Plano De Negocio Transportadora

New York State College of Human Ecology - A doutrinas da graça, por Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja A CORREÇÃO E A GRAÇA INTRODUÇÃO Após a leitura da obra A graça e a liberdade, novas perturbações surgiram no mosteiro de Hadrumeto. Não conseguindo restabelecer a paz entre os monges nem respostas para suas questões, o abade Valentim enviou o monge Floro, com uma carta para Agostinho agradecendo as cartas a ele remetidas e a obra que explicava aos monges como conciliar a graça e a liberdade. Contudo, esta mesma obra propunha novos problemas, desencadeando novas dissensões entre os confrades de Hadrumeto. Da leitura de A graça e a liberdade, alguns concluíram que se Deus opera em nós o querer e o agir, todas as correções dos superiores tornam-se desnecessárias. Se Deus é quem realiza, cooperando, aquilo que ele mesmo começa, se tanto o começo da obra quanto seu acabamento pertencem a Deus, os superiores devem apenas instruir seus súditos e rogar para que não lhes falte a graça de cumprir seus deveres, mas não podem, de modo algum, imputar-lhes culpa, já que, no caso, os monges faltosos estariam privados de um auxílio que Deus concede a quem quer. Pode-se ver que se trata de uma conclusão perigosa para a vida religiosa: o fatalismo, a inércia ou a insubordinação podem ser justificados a partir desta doutrina. Foi justamente para resolver estes problemas que Agostinho redigiu A correção e a graça, em 427, remetendo-o por meio de Floro ao mosteiro de Hadrumeto. Nela Agostinho mostra a necessidade e o valor da correção fundando-os na responsabilidade moral da pessoa, isto é, no uso da liberdade. Procura salvar sempre a dupla causalidade na ação humana: a divina e a humana, ambas agindo sem se confundir ou se anular mutuamente. A graça não exclui a cooperação de outras causas e as ações humanas nada podem operar em vista da salvação sem o concurso da graça. Por essa razão, os superiores devem orar, mas também exortar e corrigir os súditos. Esquivar-se da correção é sinal de maldade e de endurecimento do homem. A correção, segundo Agostinho, é meio para se alcançar a perseverança. Muitos dos que perderam a graça, por ela a recuperam. Nos últimos capítulos, Agostinho destaca a misericórdia de Deus para com os eleitos e a justiça para com os condenados e fala da predestinação. Há um segredo na predestinação para que ninguém se orgulhe, já que os publicanos e as prostitutas antecedem os mais austeros e presunçosos praticantes da lei, no reino de Deus. No capítulo 12,38, encontra-se uma passagem famosa que serviu de fundamento para Calvino e Jansênio tirarem suas doutrinas. A doutrina de Agostinho não supõe um domínio irresistível e férreo da graça sobre a vontade humana, destruindo nela a liberdade. Contudo a interpretação de Calvino afirma uma dominação despótica de Deus na consciência do homem de modo que sua liberdade se converte em arbítrio escravo, joguete das forças divinas ou diabólicas. Se Agostinho realça a soberania do poder divino, que pode atrair as vontades humanas aonde lhe apraz, Calvino julga incompatível com a onipotência divina o movimento livre da criatura. A "invencibilidade" de que fala Agostinho não deve ser relacionada com uma presumida ação escravizadora de Deus, mas com força que o auxílio divino imprime na vontade enfraquecida para resistir aos violentos contrastes que o mundo, o demônio e a concupisciência apresentam. Se no estado de inocência o homem gozava de plena liberdade, uma vez cometido o primeiro pecado, tornou-se refém de dupla inclinação, para si mesmo e o mundo sensível. Com a repetição dos pecados, robusteceu-se nele o "peso da natureza" (pondus naturae), o peso contrário às inclinações originais do homem. A primeira liberdade perdeu sua força original e a consciência moral a clareza de suas normas. Esta liberdade debilitada, diminuída em sua indiferença e em sua orientação aos valores supraterrenos é o livre-arbítrio subsistente no homem como faculdade para cooperar com a graça. Assim, quando Agostinho afirma que o homem perdeu a liberdade, refere-se à "verdadeira liberdade". A liberdade que perdemos de modo absoluto é o domínio da vontade sobre nossos sentimentos. Porque nossa vontade não mais acompanha o domínio dos sentimentos, temos uma liberdade debilitada, diminuída. Quando Agostinho fala da perda da liberdade, deve-se ter sempre em mente esta distinção. Esta foi uma obra de muita polêmica. Segundo Charles Boyer, os discípulos de Jansênio e de Baio buscaram nela o material para sustentar seu sistema pessimista e escravizador. Fénelon, ao contrário, vingou Agostinho contra os jansenistas. Segundo Próspero de Aquitânia, este é um "Livro repleto de autoridade divina", ao tomar conhecimento do movimento reacionário que surgiu entre os monges de Lerins. Para o cardeal Noris, este livro apresenta toda a economia da graça divina, de tal modo que foi qualificado de livro áureo por homens ilustres. Capítulo, 1 - A fé ortodoxa proclama a necessidade da graça - Muito amado irmão Valentim e irmãos que servis a Deus em comunidade: Depois da leitura da carta que Vossa Caridade me enviou por meio do irmão Floro e dos que com ele vieram até nós, agradeci a Deus ao tomar conhecimento da paz que rei-na entre vós no Senhor, do consenso a respeito da verdade e do ardor na caridade, conforme vossa palavra me afiança. A dissensão desencadeada pelo inimigo para ruína de alguns de vossos confrades, pela misericórdia de Deus e pela sua bondade em converter em proveito de seus servos as tramas diabólicas, contribuiu antes para o crescimento de alguns do que para sua perdição. Não há necessidade de voltar ao enfoque de todos os pontos tratados com a devida profundidade no livro que vos enviamos e que vossa resposta nos revelou como acolheste (Refere-se à obra anterior: A graça e a liberdade) Não julgueis ser suficiente uma primeira leitura para um cabal conhecimento de seu conteúdo. Se desejais obter melhores resultados, deveis dar-vos ao trabalho de a tornar a ler para assimilar os ensinamentos e assim tomar conhecimento sobre quais e quão importantes questões veio dar solução e remédio não a autoridade humana, mas a divina, da qual não podemos afastar-nos, se desejamos atingir a meta que nos propomos. - O Senhor não somente mostra o mal a evitar e o bem a praticar, o qual é da competência da letra da lei, mas também nos ajuda a evitar o mal e praticar o bem (Sl 36,27), o que a ninguém é possível sem o espírito da graça, com cuja falta a lei tão-somente conduz à culpabilidade e à morte. Por isso diz o Apóstolo: A letra mata, mas o Espírito co-munica a vida (2Cor 3,6) Portanto, quem de modo conveniente se serve da lei, chega ao conhecimento do mal e do bem e, não confiando na sua força, refugia-se na graça, cujo auxílio lhe dá forças para se afastar do mal e fazer o bem. E quem recorre à graça? Não é aquele cujos passos são orientados pelo Senhor e escolhe seus caminhos? (Sl 36,23). Assim, o desejo da graça é início da graça, da qual fala o salmista: Então eu digo: Agora começo: está mudada a destra do Altíssimo (Sl 76,11) Conseqüentemente, devemos confessar que temos liberdade para fazer o mal e o bem; mas para fazer o mal, é mister libertar-se da justiça e servir ao pecado, ao passo que na prática do bem, ninguém é livre, se não é libertado por aquele que disse: Se, pois, o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres (Jo 8,36). Mas ninguém pense que, uma vez libertado da sujeição ao pecado, não lhe é mais necessário o auxílio do libertador. Pelo contrário, ouvindo dele: Sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5), responda-lhe: Tu és minha ajuda; não me deixes (Sl 26,9) Alegro-me em saber que também nosso irmão Floro professa esta fé, que é certamente a fé verdadeira, profética, apostólica e católica. Sendo assim, devem ser corrigidos os que não entendiam desse modo, os quais julgo que já se corrigiram pela misericórdia de Deus. Capítulo, 2 - A graça não dispensa a iniciativa humana - É necessária a compreensão exata da graça por Jesus Cristo nosso Senhor. Somente ela pode libertar o homem do mal, e sem ela não pode fazer bem algum, seja em pensamento ou desejo ou amor, seja por obra. Com ela, não somente é capaz de saber o que há de fazer, mas também, com sua ajuda, pode fazer com amor aquilo de que tem conhecimento. Esta inspiração de boa vontade e de boa ação, o Apóstolo a implorava em favor daqueles aos quais dizia: Pedimos a Deus, não cometais mal algum. Nosso desejo não é aparecer como aprovados, mas, sim, que pratiqueis o bem, ainda que devamos passar por não aprovados (2Cor 13,7). Ao ouvir estas palavras, quem não há de cair em si e confessar que recebemos do Senhor Deus a força para nos afastar do mal e praticar o bem? Pois, o Apóstolo não diz: "advertimos, ensinamos, exortamos", mas diz: Pedimos a Deus, não cometais mal algum... mas, sim, que pratiqueis o bem. Não obstante, dizia-lhes também e fazia tudo o que mencionei: advertia, ensinava, exortava, corrigia. Mas sabia que tudo isto feito por ele às claras não tinha valor, se não ouvisse sua oração aquele que dá o crescimento ocultamente. Pois, como diz o mesmo Doutor dos Gentios: Assim, pois, aquele que planta, nada é; aquele que rega, nada é; mas importa somente Deus que dá o crescimento (1Cor 3,7) - Portanto, não se enganem aqueles que dizem: "Por que nos admoestais e nos dais preceitos para nos afastarmos do mal e praticarmos o bem, se não somos autores, mas é Deus que opera em nós o querer e o agir?". Pelo contrário, entendam que, se são filhos de Deus, são conduzidos pelo Espírito de Deus (Rm 8,14), de modo que façam o que devem fazer e, depois de tê-lo feito, agradeçam àquele de quem recebem as forças. São movidos a agir, mas nem por isso deixem de fazer sua parte. É-lhes indicado o que devem fazer e, quando fazem como devem, ou seja, com amor e gosto pela justiça, alegrem-se por ter recebido a suavidade outorgada pelo Senhor, para que sua terra produzisse seu fruto (Sl 84,13). Quando, porém, não agem, seja deixando totalmente de fazer, seja fazendo-o sem amor, devem orar para receber o que ainda não têm. Mas, o que terão e que não será recebido? Ou o que têm, que não tenham recebido? (1Cor 4,7) Capítulo, 3 - O preceito, a correção e a oração são complementares - Mas dirão: "Dêem-nos preceitos os superiores para agirmos e rezem por nós para que os cumpramos; mas não nos corrijam nem nos incriminem, se não os cumprirmos". Pelo contrário, façam ambas as coisas, pois assim faziam os apóstolos doutores das Igrejas, os quais ordenavam o que se devia fazer, corrigiam os infratores e oravam para que observassem os preceitos. O Apóstolo, por exemplo, ordena ao dizer: Fazei tudo com caridade (1Cor 16,14). Corrige quando diz: Já é para vós uma falta a existência de litígios entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma injustiça? Por que não vos deixais, antes, defraudar? Entretanto, ao contrário, sois vós que cometeis injustiça e defraudais, e isto contra vossos irmãos! Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? (1Cor 6,7-9). Ouçamos também o que ora: A vós, porém, o Senhor faça crescer e ser ricos em amor, e para com todos os homens (1Tt 3,12) Ordena que se viva o amor, corrige, quando falta o amor e ora para que o amor seja transbordante. Ó homem, descobre nos preceitos o que deves fazer, reconhece na correção o que te falta por tua culpa e aprende na oração a fonte do que desejas possuir. Capítulo, 4 - Uma objeção - Diz ainda o refratário à correção: "Como posso ser culpável por não ter o que não recebi daquele que pode dar e é o único de quem possa receber tão grande e precioso dom?" Tenham um pouco de paciência, irmãos meus, se continuo combatendo pela verdade da divina e celestial graça, não contra vós, cujo coração é reto perante Deus, mas contra aqueles que têm sentimentos terrenos e contra os próprios pensamentos humanos. Eis o que dizem os que recusam ser corrigidos pelos pregadores desta graça no tocante à suas más obras: "Ordena-me o que devo fazer; se o fizer, agradeça por mim a Deus que me ajudou; se, porém, não o fizer, não devo ser corrigido, mas a ele se deve rogar para que me outorgue o que não deu, ou seja, o amor fiel a ele e ao próximo, o qual leva ao cumprimento dos seus preceitos. Roga, portanto, por mim para que o receba e possa assim cumprir de coração e com boa vontade o que me ordenou. Deveria com razão ser corrigido, se não o possuísse por minha culpa, isto é, se eu mesmo mo pudesse dar ou tomar e não o fizesse, ou não o quisesse receber, se mo desse. Mas, como a própria vontade é preparada pelo Senhor (Pr 8), por que me corriges, ao ver que não quero cumprir seus preceitos, e não lhe suplicas que me dê uma vontade decidida?" Capítulo, 5 - Resposta à objeção - Eis nossa resposta: Quem quer que sejas e não cumpres os preceitos por ti conhecidos e não queres ser corrigido, justamente disto deves ser corrigido, ou seja, de não querer ser corrigido. Pois não queres que teus vícios te sejam revelados; não queres que te sejam lancetados causando uma dor salutar e te decidas procurar o médico; não queres que tu mesmo te enxergues para evitar a visão de tua deformidade, e assim possas desejar um restaurador e lhe suplicar a remoção de tua fealdade. É culpa tua o seres mau, e maior culpa não desejares ser corrigido, porque és mau, como se os vícios fossem dignos de elogio ou indiferentes a ponto de não merecerem nem elogio nem recriminação; ou como se de nada valessem o temor, a vergonha ou a dor do homem corrigido; ou como se a correção, quando aguilhoa salutarmente, não levasse a recorrer àquele que é bom e capaz de tornar bons os maus que são corrigidos, e passem a merecer ser louvados. Aquele que não quer ser corrigido e diz, ao querer que se faça em seu favor: "Roga, antes, por mim", deve ser corrigido para que ele também o faça em seu favor. A dor, que lhe desagrada ao sentir o acúleo da correção, desperta-o para o desejo de mais oração, a fim de que, pela misericórdia divina, ajudado pelo crescimento no amor, deixe de perpetrar o que é vergonhoso e deplorável e se entregue a obras louváveis e gratulatórias. Esta é a utilidade da correção, a qual se aplica salutarmente em graus diferentes de acordo com a diversidade de pecadores. Ela é salutar quando o médico divino lhe dirige o seu olhar. Mas de nada aproveita se não leva o pecador ao arrependimento de seu pecado. E quem pode levá-lo à contrição, senão aquele que olhou para Pedro, que o negava, e fê-lo chorar? Pelo que, o Apóstolo, depois de asseverar que devem ser corrigidos com suavidade os que se afastam da verdade, acrescentou em seguida: Na expectativa de que Deus lhes dará não só a conversão para o conhecimento da verdade, mas também o retorno à sensatez, libertando-os do laço do diabo (2Tm 2,25-26) - Por que dizem os refratários à correção: "Só quero que me dês preceitos, e reza por mim para cumpri-los". Porque, antes, não recusam ambas as coisas obedecendo a seus perversos sentimentos e digam: "Não me dês preceitos nem rezes por mim?" (Agostinho considera fruto da má vontade a recusa da correção. É maldade manifesta o não querer ser corrigido. A primeira medida será combater esta resistência à correção. A correção como graça externa não desperta o amor ao bem na pessoa corrigida. Assim, quem corrige deve também orar implorando a emenda do corrigido, pois se Deus não abranda o coração do culpado com sua misericórdia, não se conseguirá o que se pretende. Deus, com sua graça, pode produzir a mudança-correção íntima, afastando o corrigido do mal) Segundo o que está escrito. quem intercedeu por Pedro despertando o arrependimento que o levou a chorar, depois que negou Cristo? Quem instruiu Paulo nos preceitos divinos relativos à fé? Se o ouvissem pregando o evangelho e dizer: Eu vos faço saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo (Gl 1,11), poderiam responder-lhe: "Por que nos incomodas e nos obrigas a receber e aprender de ti o que não recebeste nem aprendeste de homem algum? Quem te outorgou semelhante dom, tem também o poder de no-lo outorgar?" Se não se atrevem a responder-lhe nestes termos, mas toleram que o Evangelho lhes seja pregado por um ser humano, embora possa ser pregado não por um ser humano, acreditem que possam ser corrigidos por seus superiores, aos quais foi confiada a pregação da graça cristã. Isto não quer dizer que se negue a Deus o poder corrigir qualquer pessoa, conforme sua vontade, mesmo não havendo correção da parte do homem, e despertá-la para o arrependimento salutar pelo poder oculto e eficaz de seu remédio. Assim como não há de deixar de rezar por aqueles que desejamos converter, embora o Senhor com um olhar levou Pedro a chorar seu pecado sem haver nenhuma súplica por ele, assim também não se há de omitir a correção, embora Deus possa levar à conversão sem se valer da repreensão. Mas descobrir a razão pela qual são chamados à mudança de costumes estes de um modo, aqueles, de outro e outros ainda de modo diferente, em formas diversas e inumeráveis, longe de nós pensar que pertence a nós, que somos o barro, emitir um juízo; é desígnio do oleiro. Capítulo, 6 - A perseverança é dom de Deus - Continuam a argumentar os que não se conformam com a correção: "O Apóstolo diz: Pois quem é que te distingue? Que é que possuís que não tenhas recebido? E se o recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7). Por que então somos corrigidos, argüidos, repreendidos e acusados? O que fazer, se não recebemos?" Os que têm em seus lábios esta objeção, querem parecer inculpados mesmo da desobediência a Deus. Pois, a obediência é um dom de Deus, como conseqüência da vivência da caridade, que, sem dúvida, procede de Deus (1Jo 4,7), o qual a concede a seus filhos. Continuam dizendo: "Não recebemos o dom da caridade. Por que somos assim mesmo repreendidos, como se o pudéssemos dar a nós mesmos e livremente não no-lo quiséssemos dar?" Não percebem que, se ainda não estão regenerados, existe um primeiro motivo para que, ao serem repreendidos pela sua desobediência a Deus, desagradem a si mesmos. Este motivo reside no fato de Deus ter criado o homem na retidão desde o princípio da criatura humana e não existir iniqüidade em Deus (Rm 9,14). Por isso, a primeira perversidade, ou seja, a desobediência a Deus, procede do homem, porque tornou-se perverso, desviando-se da retidão, pelo mau uso da liberdade, em que foi criado por Deus. E não se há de corrigir no homem esta perversidade pelo fato de não ter sido própria do que é corrigido, mas comum a todos? Pelo contrário, deve-se corrigir em cada um o que é comum a todos (Agostinho investiga neste trecho a primeira fonte da perversidade que leva o homem a se esquivar da correção e da emenda. Sua raiz esconde-se num mal hereditário e comum, devido à prevaricação de Adão. O homem incorrigível manifesta uma secura e dureza de coração que revela a situação pecaminosa do homem caído. Mesmo sendo uma perversidade hereditária e comum, deveria haver correção e repreensão) Não é pelo fato de não ser de cada um que deixe de ser pessoal. Na realidade, estes pecados de origem são chamados alheios porque cada um os herda de seus pais, mas, não sem motivo, são chamados também nossos, porque, como diz o Apóstolo, nele todos pecaram (Rm 5,12) Portanto, merece repreensão a origem culpável, para que da dor do coração desabroche o desejo da regeneração. Isso no caso de o corrigido ser filho da promessa, de sorte que, soando externamente o ruído da correção e penitenciando-se, Deus venha a infundir no seu interior, por uma misteriosa inspiração, uma vontade decidida. Mas, em se tratando de alguém já regenerado e justificado e que recai na infidelidade voluntariamente, não poderá dizer: "Não recebi", visto que pela sua livre vontade preferiu o mal à graça de Deus recebida. E se, ferido salutarmente pela correção, chora seu pecado e retorna às boas ou melhores obra antigas, então fica evidente a utilidade da correção. Mas, para ser proveitosa, a repreensão que parte do homem, feita ou não com amor, é sempre obra de Deus. - Acaso o resistente à correção pode dizer: "O que fiz eu que não recebi?", se consta que recebeu, mas por sua culpa perdeu o que recebeu? Ele replica: "Posso dizer ainda: ,,Que fiz que não recebi?, quando me repreendes pelo fato de ter recaído da boa para a má vida por minha vontade. Recebi, sim, a fé, que age pela caridade, mas não recebi a graça da perseverança na fé até o fim. Alguém se atreverá a dizer que esta perseverança não é dom de Deus e que este tão grande dom é nosso e tão nosso que, se alguém o receber, não lhe possa dizer o Apóstolo: Que é que possuis que não recebeste? (1Cor 4,7), pois o possui como se não o recebesse?" Nós também não negamos que a perseverança final no bem seja um excelente dom de Deus e que sua procedência seja aquele do qual está escrito. Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto, descendo do Pai das luzes (Tg 1,17). Mas não se conclui que não seja necessária a correção a quem não perseverar, a não ser que Deus lhe conceda o arrependimento e se esquive dos laços diabólicos (2Tm 2,26) Enaltecendo a utilidade da correção, o Apóstolo acrescentou a sentença antes mencionada: É com suavidade que deve educar os opositores, na expectativa de que Deus dará a conversão (2Tm 2,25) Se dissermos que esta tão elogiável e bem-aventurada perseverança procede do homem e que não tem relação com Deus, esvaziamos em primeiro lugar o que o Senhor disse a Pedro: Orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça (Lc 22,32). O que pediu em seu favor, senão a perseverança até o fim? Se este dom procedesse do homem, não o pediria a Deus. Além disso, quando o Apóstolo diz: Pedimos a Deus, não cometais mal algum (2Cor 13,7), é evidente que pede para eles a Deus o dom da perseverança. Pois age mal o que renuncia ao bem e se inclina para o mal que deve evitar, não perseverando no bem. E promete-lhes a perseverança até o fim pela misericórdia de Deus, quando diz em outra passagem: Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós, e sempre em todas as minhas súplicas, oro por todos vós com alegria, pela vossa participação no evangelho desde o primeiro dia até agora, e tenho plena certeza de que aquele que começou em vós a obra há de levá-la à perfeição até o dia de Cristo Jesus (Fl 1,3-6) Suplica a mesma coisa onde diz: Saúda-vos Epafras, vosso conterrâneo, servo de Cristo Jesus, que luta sem tréguas por vós nas suas orações, para que continueis perfeitos e em plena observância da vontade de Deus (Cl 4,12). O que significa: "para que continueis", senão para que persevereis? Por isso está escrito a respeito do diabo: Não permaneceu na verdade (Jo 8,44). Foi criado na verdade, mas nela não permaneceu. Mas os destinatários da carta de Paulo permaneciam na verdade. E quando pedimos em favor dos que permanecem na fé, pedimos que permaneçam, ou seja, que perseverem. E o apóstolo Judas mostra claramente ser dom de Deus perseverar no bem até o fim, quando diz: Àquele que pode guardar-vos da queda e apresentar-vos perante a sua glória irrepreensíveis e jubilosos (Jd 24). Aquele que guarda da queda para apresentar perante sua glória irrepreensíveis e jubilosos, o que outorga senão a perseverança no bem? É idêntica a mensagem que lemos nos Atos dos Apóstolos: Muito alegres por estas palavras, os gentios glorificavam a palavra do Senhor, e todos aqueles que eram destinados à vida eterna, abraçavam a fé (At 13,48). E quem podia ser destinado à vida eterna, senão pelo dom da perseverança? E aquele que perseverar até o fim, esse será salvo (Mt 10,22). Que salvação alcançará? Sem dúvida, a eterna. E quando na Oração Dominical dizemos a Deus Pai: Santificado seja o teu nome (Mt 6,9), não pedimos que seu nome seja santificado em nós? Mas como já foram atendidos nesta petição na ablução do batismo, por que os fiéis a renovam todos os dias? Não será para que permaneça em nós o que em nós já se realizou? Assim o entende o bem-aventurado Cipriano, explicando a referida oração: "Dizemos: Santificado seja o teu nome, não porque desejamos a Deus que seja santificado em nossas orações. Além do mais, por quem é Deus santificado, se ele é a fonte de toda santidade? Mas como ele disse: Sede santos, porque eu sou santo (Lv 19,2), pedimos e suplicamos para que, santificados no batismo, perseveremos no bem começado". Este é o pensamento do glorioso mártir sobre a petição dos fiéis cristãos, que ele significou nestas palavras: a perseverança no bem começado. É evidente que todo o que pede a Deus a perseverança no bem, confessa que o dom procede de Deus (Ainda que Deus conceda o dom da perseverança, o homem pode perdê-lo por culpa própria. A ovelha de hoje pode ser o lobo de amanhã. Por isso, ninguém deve dar como garantida sua salvação. Agostinho prova com três argumentos que a perseverança é dom de Deus: os testemunhos da Sagrada Escritura, a autoridade dos santos aqui representada por são Cipriano e as preces da Igreja) Capítulo, 7 - A falta de perseverança conduz à condenação - Embora sendo assim, contudo corrigimos e com justiça aqueles que, mesmo vivendo bem, não perseveraram no bom caminho. Permutaram voluntariamente a vida no bem pela vida no pecado, e por isso são dignos de repreensão. E se a repreensão for inútil e persistirem em continuar no mau caminho até a morte, são mesmo dignos da condenação eterna. Não se desculparão dizendo, como agora: "Por que somos repreendidos?". Mas dirão então: "Por que somos condenados? - pois, para não regredir do bem para o mal, não recebemos o dom da perseverança no bem". Com esta desculpa, de modo algum se libertarão da justa condenação. A própria Verdade declara que ninguém se liberta da condenação originária de Adão senão pela fé em Jesus Cristo, e nem se libertarão os que puderem dizer que não ouviram o evangelho de Cristo, já que a fé vem da pregação (Rm 10,17). Se assim é, quanto menos se verão livres os que irão dizer: "Não recebemos o dom da perseverança". Parece mais razoável a desculpa dos que dirão: "Não recebemos a pregação", do que a dos que afirmam: "Não recebemos o dom da perseverança". Isso porque a estes pode-se dizer: "Ó homem, se tivesses querido, terias perseverado na fé que ouviste e acolheste". De forma alguma, porém, poder-se-ia dizer aos outros: "Se tivesses querido, terias acreditado no que não ouviste". - Por conseguinte, não estão livres da massa condenada (A expressão "massa condenada" aparece também como "massa da perdição" ou "massa do pecado" . Agostinho a tirou do texto de Rm 9,21, onde se fala do oleiro que pode fazer qualquer uso da massa que tem em mãos para justificar a ação de Deus na eleição para a salvação. Leia-se o logo adiante) e merecerão todos a reprovação: os que, tendo ouvido a pregação e se convertido, não receberam o dom da perseverança; os que, tendo ouvido o evangelho, recusaram vir a Cristo, ou seja, acreditar nele, pois ele disse: Ninguém pode vir a mim, se isto não for concedido pelo Pai (Jo 6,65); os que, devido à pouca idade, nem puderam crer, mas poderiam ser purificados da mancha original só pelo banho de regeneração, mas faleceram sem o ter recebido (Chama a atenção o rigorismo de Agostinho sobre a condenação das crianças que morrem sem batismo Esta opinião se deve, certamente, à sua oposição radical ao pelagianismo, que, baseando-se nas palavras de Jesus: "São muitas as moradas na casa de meu Pai", admitia um lugar intermediário no reino de Deus, onde as crianças privadas do batismo gozavam de Deus com os bem-aventurados. Agostinho, no entanto, recusa esta exegese afirmando que as "muitas moradas" são os diversos graus de dignidade dos santos no céu. Recusará esse lugar intermediário fundando-se nas palavras de Jesus a Nicodemos, "se alguém não renascer..." e nas que dirigirá aos eleitos e aos réprobos no juízo final pondo uns à direita, outros à esquerda, isto é, só há dois lugares. Contudo, na Carta 165,7, confessa sua dificuldade neste assunto: "Quando quero falar das penas devidas às crianças, acreditem que me vejo acometido de cruéis dúvidas e não chego a encontrar o que deva responder". Hoje, a doutrina da Igreja a respeito dos que morrem sem batismo e sem conhecer o evangelho é bem mais aberta e acolhedora: "Todo homem que, desconhecendo o evangelho e a sua Igreja, procura a verdade e pratica a vontade de Deus seguindo o seu conhecimento dela, pode ser salvo. Pode-se supor que tais pessoas teriam desejado explicitamente o batismo se tivessem tido conhecimento da necessidade dele" - Catecismo da Igreja, número 1259) São, porém, separados da condenação não por seus méritos, mas pela graça do Mediador, isto é, justificados gratuitamente no sangue do segundo Adão. Ao ouvir o Apóstolo, que diz: Pois quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas recebido? E se o recebestes, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? (1Cor 4,7), devemos confessar que ninguém pode ser segregado daquela massa de perdição, que vem do primeiro Adão, a não ser quem tiver este dom, seja quem for, o qual o recebeu pela graça do Salvador. É tamanha a importância deste testemunho apostólico, que o bem-aventurado Cipriano, escrevendo a Quirino, colocou-o como título ao capítulo em que diz: "Não haveremos de nos gloriar ao considerar que nada é nosso". - Portanto, para todos aqueles que, pela liberalidade divina são segregados da condenação original, haverá, sem dúvida, uma maneira de ouvirem o evangelho. E depois de ouvi-lo, acreditarão e permanecerão na fé que age pela caridade (Gl 5,6). E quando se desviarem, emendar-se-ão uma vez corrigidos, e alguns deles, mesmo não repreendidos pelos homens, voltarão ao caminho do qual se desviaram. E outros, recebida a graça, não importa em que idade, são arrebatados desta vida pela morte prematura. Tudo isto se deve àquele que os fez vasos de misericórdia e os escolheu em seu Filho antes da criação do mundo por uma eleição de sua graça: Se é por graça, não é pelas obras; do contrário, a graça não é mais graça (Rm 11,6). Foram chamados e eleitos ao mesmo tempo e, por isso, está escrito. Muitos foram chamados, mas poucos escolhidos (Mt 20,16). Mas porque foram chamados intencionalmente, foram também escolhidos por uma eleição da graça, e não por merecimentos seus anteriores, pois todo seu mérito é para eles graça. - Destes eleitos fala assim o Apóstolo: E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio. Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou, e os que justificou, também os glorificou (Rm 8,28-30) Nenhum deles perecerá, porque todos foram escolhidos. E foram escolhidos, porque foram chamados segundo um desígnio, não o seu, mas de Deus. Deste desígnio diz o Apóstolo, em outra passagem: A fim de que ficasse firme a liberdade da escolha de Deus, dependendo não das obras, mas daquele que chama - foi-lhe dito: "O maior servirá ao menor" (Rm 9,11-13). As palavras: E os que predestinou, também os chamou, devemos entendê-las assim: "chamados segundo seu desígnio", conforme o início da sentença: E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que são chamados. E depois acrescentou: Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. Prévias estas palavras, ajuntou: E os que predestinou, também os chamou. Estão compreendidos nestas palavras os que chamou segundo seu desígnio, evitando-se pensar que há alguns chamados, mas não escolhidos, no sentido da sentença do Senhor: Muitos foram chamados, mas poucos escolhidos (Mt 20,6). Com efeito, os que foram escolhidos, foram também chamados; mas nem todos os chamados foram escolhidos. Portanto, aqueles eleitos, como muitas vezes dissemos, que foram chamados segundo seu desígnio, foram também predestinados e conhecidos de antemão. Se algum deles se perde, é sinal de que Deus se engana; mas nenhum se perde, porque Deus não se engana. Se alguns deles perece, Deus é vencido pelo pecado do homem; mas nenhum deles perece, porque Deus por nada pode ser vencido. São eleitos para reinar com Cristo, não como Judas foi escolhido para a obra à qual convinha. Foi escolhido por aquele que sabe usar até dos maus para fazer o bem, a fim de que pela sua ação reprovável se realizasse a grandiosa obra para a qual Cristo veio ao mundo. Quando, pois, ouvirmos: Não vos escolhi eu os Doze? No entanto, um de vós é um demônio (Jo 6,7), devemos entender que aqueles foram escolhidos por desígnio de misericórdia, este, por um juízo; aqueles para com ele reinar, este, para o derramamento de seu sangue. - Com razão prossegue a voz do Apóstolo dirigindo-se ao reino dos eleitos: Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou seu próprio Filho, e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo com ele? Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem justifica. Quem condenará? Cristo Jesus, aquele que morreu, ou melhor, que ressuscitou, aquele que está à direita de Deus e que intercede por nós? (Rm 8,31-34) E continuem e digam quão eficaz é o dom da perseverança final: Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? Segundo está escrito. "Por tua causa somos postos à morte o dia todo, somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro" (Sl 43,22). Mas em tudo isso somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou. Pois estou convencido que nem a morte nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus nosso Senhor (Rm 8,35-39) - A eles faz alusão o mesmo Apóstolo escrevendo a Timóteo, onde, após afirmar que Himeneu e Fileto pervertiam a fé de alguns cristãos, logo acrescentou: Não obstante, o sólido fundamento posto por Deus permanece, marcado pelo selo desta palavra: "O Senhor conhece os que lhe pertencem" (2Tm 2,19) A fé deles, que age pela caridade, não decai ou, se em alguns se debilita, readiquirem-na antes da morte e, perdoado o pecado conseqüente, são agraciados com a perseverança final. Aqueles, porém, que não hão de perseverar e, assim, se afastarão da fé e da conduta cristãs, surpreendidos pelo término desta vida, não serão incluídos no número dos eleitos, não se considerando sequer o tempo em que viveram uma vida santa e piedosa. Pois não foram segregados da massa de perdição pela presciência e predestinação de Deus e, portanto, não foram chamados segundo seu desígnio nem eleitos. Serão incluídos entre os muitos chamados, e não entre os poucos escolhidos. Não se pode negar que são considerados eleitos pelo fato de terem fé, serem batizados e viverem conforme a vontade de Deus. Mas são tidos como eleitos pelos que desconhecem seu futuro, mas não por aquele que sabe que não terão perseverança, a qual conduz os eleitos à vida bem-aventurada. E sabe que agora estão de pé, assim como tem a presciência de que hão de cair. Capítulo, 8 - O mistério dos desígnios de Deus - Se me perguntarem a razão pela qual Deus negou a perseverança aos que outorgou a caridade para viver cristãmente, respondo que ignoro. Pois, reconhecendo o que sou e sem arrogância, apoio-me nas palavras do Apóstolo: Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? (Rm 9,20). E também: Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! (Rm 11,33) Portanto, quando ele se digna dar-nos a conhecer seus desígnios, demos-lhe graças; quando, porém, no-los ocultar, não murmuremos contra seus planos, mas creiamos que mesmo neste caso eles são salutares. E tu, quem quer que sejas, inimigo de sua graça, que ousas interrogá-lo, o que dizer? Já é louvável que não negas seres cristão e te alegras pelo nome de católico. Por isso, se confessas que a perseverança final é dom de Deus, creio que, como eu, ignoras a razão pela qual um recebe o dom e outro, não; ambos não podemos penetrar nos inescrutáveis desígnios de Deus. E se afirmas que o perseverar ou não perseverar no bem depende do livre-arbítrio humano, e lutas não em defesa da graça de Deus, mas contra ela, professando que a perseverança não é dom de Deus, mas fruto da vontade do homem, o que replicarás às palavras daquele que diz: Eu, porém, orei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça? (Lc 22,32) Ou ousarás dizer que, mesmo com a súplica de Cristo para Pedro não desfalecer na fé, esta haveria de esmorecer, se Pedro assim tivesse querido, ou seja, se tivesse recusado perseverar até o fim? Seria o mesmo que dizer que a vontade de Pedro poder-se-ia inclinar contrariamente ao sentido da prece de Cristo. Ninguém ignora que a fé de Pedro esmoreceria, se falhasse sua vontade, a qual o levava a ser fiel, e permaneceria firme, se sua vontade o inclinasse para a fidelidade. Mas porque é o Senhor que dispõe a vontade (Pr 8), a oração de Cristo por ele não poderia ser em vão. Portanto, quando rogou para que sua fé não desfalecesse, rogou para que ele tivesse uma vontade deveras livre, forte, invicta e perseverante. Eis como a liberdade se harmoniza com a graça de Deus e não a contaria. A vontade humana não obtém a graça pela liberdade, mas liberdade pela graça, e uma perenidade deleitável e fortaleza insuperável em ordem à perseverança. - Com efeito, é de admirar e muito que Deus tenha outorgado a alguns de seus filhos regenerados em Cristo a fé, a esperança e a caridade, mas não lhes concede a perseverança, ao passo que aos filhos dos infiéis perdoe tantos pecados e, dando-lhes a graça, adote-os como filhos. A quem não causará admiração? Quem não se encherá de espanto perante este fato? Não causa menos admiração, e, no entanto, é fato verdadeiro e evidente, não negado pelos próprios inimigos da graça, que Deus permite que deixem este mundo sem receber o batismo alguns filhos de seus amigos, ou seja, de fiéis regenerados e bons, aos quais, se quisesse, não faltaria a graça da regeneração, pois é todo-poderoso, e os afasta do Reino aonde conduz seus pais. No entanto, faz com que filhos de pagãos entrem em contato com pessoas cristãs, e pelo batismo os conduz a seu reino, do qual os pais estão excluídos, sem que haja demérito voluntário da parte dos pais ou mérito por parte dos filhos. O certo é que, neste ponto, não se podem censurar nem pretender desvendar os desígnios de Deus, mas são profundos e justos. Este fato está relacionado com o assunto da perseverança, sobre a qual discorremos. À vista de ambos os fatos devemos exclamar: Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! (Rm 11,33) - Não nos admiremos do fato de não podermos perscrutar seus impenetráveis caminhos. Pois, silenciando outros inumeráveis bens outorgados a uns e negados a outros pelo Senhor Deus, que não faz acepção de pessoas (Rm 2,11), também não são concedidos por merecimento próprio, entre outros, a agilidade, a saúde, a beleza corporal, a inteligência extraordinária e a aptidão para as artes. Não dependem também da pessoa, mas de Deus, os bens extrínsecos, tais como, a riqueza, a nobreza, as honras e outros semelhantes. Omito ainda o tocante ao batismo das crianças, o qual tem relação com o reino de Deus, o que não acontece com os outros bens, a cujo respeito não podemos averiguar porque a uns é outorgado e a outros não, estando ambas as coisas no poder de Deus e sendo um sacramento essencial para entrar no reino de Deus. Silenciando tudo isso, consideremos as pessoas das quais se trata aqui. Tratamos daqueles que não perseveram no bem e morrem tendo-se desviado do bom para o mau caminho por uma falha de sua vontade. Respondam nossos adversários, se são capazes, por que Deus, quando esses homens levavam uma vida fiel e piedosa, não os arrebatou dos perigos desta vida, evitando que a malícia lhes mudasse o modo de pensar e as aparências enganadoras seduzissem a sua alma (Sb 4,11). Acaso não tinha este poder ou desconhecia seus futuros? Seria sinal de perversidade e insanidade mental abraçar uma destas afirmações. Por que não o fez? Respondam os que zombam de nós, quando nestes casos exclamamos: Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! (Rm 11,33) Pois, ou Deus concede este a quem quer, ou a Escritura mente ao nos falar da morte prematura do homem justo: Foi arrebatado para que a malícia lhe não mudasse o modo de pensar, ou para que as aparências enganadoras não seduzissem a sua alma (Sb 4,11) (No tempo de Agostinho, era ainda muito discutida também entre os católicos, a inspiração do livro da Sabedoria. Os semipelagianos não aceitavam a canonicidade deste livro. A questão só ficou definitivamente resolvida após o concílio de Trento) Por que Deus, no qual não tem lugar a injustiça e para quem não há acepção de pessoas (Rm 9,14 e 2,11), concede a uns e nega a outros tão assinalado benefício, ele em cujo poder está cada pessoa durante sua vida, a qual é definida como uma guerra sobre a terra? (Jó 7,1) Portanto, assim como são forçados a admitir como dom de Deus o fato de o homem terminar a vida antes de deixar o caminho do bem pelo caminho do mal, e ignoram porque se concede a uns e a outros se nega, aceitem conosco as palavras da Escritura, que atestam ser dom de Deus a perseverança no bem, da qual mencionamos vários testemunhos. E sobre o motivo pelo qual a uns é concedido e a outros é negado, dignem-se ignorá-lo conosco sem murmuração contra Deus. Capítulo, 9 - Há chamados que não são escolhidos - E não nos impressione o fato de Deus não conceder o dom da perseverança a alguns de seus filhos. É claro que isto não aconteceria, se se tratasse daqueles predestinados e chamados segundo seus desígnios, os quais são os filhos da promessa. Mas aqueles outros, enquanto vivem cristãmente, são chamados filhos de Deus; mas como hão de viver na impiedade e na impiedade morrer, não os podemos chamar filhos de Deus pela presciência divina. Pois, há filhos de Deus que ainda não o são para nós, mas são para Deus. A respeito deles diz o evangelista João: (Caifás) profetizou que Jesus iria morrer pela nação - e não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11,51-52). A morte de Cristo reuniria os que haveriam de crer pela pregação do evangelho, no entanto, antes que acontecesse, já eram filhos de Deus registrados no pensamento de Deus com garantia indiscutível. E há outros que denominamos filhos de Deus por terem recebido uma graça, embora temporalmente, mas que não o são para Deus. Referem-se a eles as palavras do mesmo João: Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido nossos, teriam permanecido conosco (1Jo 2,19). Não diz: eles saíram dentre nós, mas porque não permaneceram conosco, já não são dos nossos; mas diz que saíram de entre nós, mas não eram dos nossos. Quis dizer: embora parecesse serem dos nossos, não eram dos nossos. E se alguém te perguntasse: "Como provas?", responde: Se tivessem sido nossos, teriam permanecido conosco. Esta é a voz do Filho de Deus, assim fala João, que ocupa um lugar de destaque entre os filhos de Deus. Portanto, quando os filhos de Deus dizem a respeito dos que não perseveraram: Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos, e acrescentam: Se tivessem sido nossos, teriam permanecido conosco, acaso não afirmam que não eram filhos, embora declarassem sê-lo e tivessem este nome, não, porém, por hipocrisia, mas porque não perseveraram? O apóstolo João não diz: "Se tivessem sido dos nossos, teriam praticado conosco a verdadeira e não a fingida justiça". Mas diz: Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Desejava, sem dúvida, que perseverassem no bem, pois certamente praticavam o bem. Mas porque nele não perseveraram até o fim, "não eram dos nossos", diz ele. Em outras palavras: quando estavam conosco, não pertenciam ao número dos filhos, mesmo professando a fé dos filhos. Os que de fato são filhos, ele os conheceu e predestinou a serem conforme à imagem de seu Filho, e foram chamados segundo seus desígnios (Rm 8,28-29), para serem escolhidos. Pois o que perece não é o filho da promessa, mas o filho da perdição (Jo 17,12) - Estes cristãos fizeram parte do inumerável grupo dos chamados, mas não pertenceram ao pequeno número dos escolhidos. Deus não concedeu a perseverança a seus filhos não predestinados; tê-la-iam, se fossem enumerados entre os filhos. E o que possuiriam que não tivessem recebido (1Cor 4,7), de conformidade com a verdadeira e apostólica sentença? E assim, tais filhos teriam sido dados ao Cristo Filho, de acordo com que ele disse ao Pai: Que eu não perca nenhum dos que me deste (Jo 6,39), mas tenha a vida eterna (Jo 3,15) São considerados como dados a Cristo os que foram destinados à vida eterna. Estes são os predestinados e chamados segundo seu desígnio, e nenhum deles perecerá. E conseqüentemente nenhum deles se desviará do bem para o mal antes de terminar esta vida, porque estão de tal modo destinados e dados a Cristo, que não hão de perecer, mas terão a vida eterna. Da mesma forma, aqueles que dizemos serem seus inimigos ou filhos de seus inimigos, todos eles os há de regenerar e assim terminarão esta vida na fé que opera pela caridade. Antes que isto aconteça, são filhos de Deus pela predestinação e são dados a Cristo para que não pereçam, mas alcancem a vida eterna. - Finalmente, o próprio Salvador diz: Se permanecerdes na minha palavra, sereis, em verdade, meus discípulos (Jo 6,31). Acaso entre eles haveria de ser incluído Judas, que não permaneceu na sua palavra? Não seriam também incluídos aqueles dos quais diz o evangelista, depois que o Senhor recomendou que se comesse de sua carne e se bebesse de seu sangue: Assim falou ele, ensinando na sinagoga de Cafarnaum. Muitos de seus discípulos, ouvindo-o, disseram: "Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?". Compreendendo que seus discípulos murmuravam por causa disso, Jesus lhes disse: "Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? O espírito é que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que vos disse são espírito e vida. Alguns de vós, porém, não crêem". Jesus sabia, com efeito, desde o princípio, quais eram os que não acreditavam e quem era aquele que o entregaria. E dizia: "Por isto vos afirmei que ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai". A partir de então, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele (Jo 6,60-66) No dizer do Evangelho, não eram chamados discípulos? Mas não eram, em verdade, discípulos, porque não permaneceram na palavra, conforme diz a sentença: Se permanecerdes na minha palavra, sereis, em verdade, meus discípulos. Faltando-lhes a perseverança, não eram verdadeiros discípulos de Cristo nem foram de fato filhos de Deus, embora parecessem e assim tivessem sido chamados. Nós denominamos eleitos, discípulos de Cristo e filhos de Deus os que assim devem ser denominados, já que, uma vez regenerados, nós os vemos viver piedosamente. Mas serão de fato o que o nome indica, se permanecerem na forma de vida que o nome exige. Porém, se não permanecerem no caminho no qual começaram, não merecem este nome com que são denominados e não são o que o nome revela. Não são perante aquele que sabe o que haverão de ser, ou seja, bons que vão se tornar maus. - Esta é a razão pela qual o Apóstolo, após dizer: E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, acrescentou: daqueles que são chamados segundo o seu desígnio (Rm 8,28), sabendo que alguns amam a Deus, mas não permanecem no bem até o fim. Os chamados segundo seu desígnio perseveram no amor a Deus até o fim, e os que temporalmente dele se desviam, retornam para levar a termo a obra que começaram. A modo de explicação do que seja "ser chamados segundo seu desígnio", acrescentou em continuação: Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou, ou segundo o seu desígnio; e os que chamou também os justificou, e os que justificou, também os glorificou (Rm 8,29-30) Tudo isto já aconteceu: conheceu de antemão, predestinou, chamou, justificou, porque todos já foram conhecidos e predestinados, e muitos já foram chamados e predestinados. E o que afirmou no final: também os glorificou, ainda não se verificou, pois se trata daquela glória, da qual ele mesmo fala: Quando Cristo, que é vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados em glória (Cl 3,4) Embora as duas coisas: chamou e justificou, não se tenham verificado em todos os mencionados, pois muitos deverão ser chamados e justificados até o fim dos séculos, expressou-se mediante verbos no tempo passado significando o futuro, como se Deus já houvesse realizado o que já dispôs desde toda a eternidade. A este propósito diz o profeta Isaías: Aquele que fez as coisas que existirão (Is 45,11) Por conseguinte, todos os que, na disposição providente de Deus, são conhecidos de antemão, foram chamados, justificados, glorificados, não digo antes de renascerem pelo batismo, mas mesmo ainda não nascidos, já são filhos de Deus e de forma alguma podem perecer. Estes, em verdade, vêm a Cristo e do modo como ele disse: Todo aquele que o Pai me der, virá a mim, e quem vem a mim, eu não o rejeitarei. E um pouco depois: E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu (Jo 6,37-38) Dar-lhe-á a perseverança no bem até o fim, a qual dará aos que não perecerão, pois hão de perecer os que não perseverarem. - Aos que amam a Deus, tudo contribui para o bem. Disse: "tudo", de modo que, se alguns se desviam e se afastam do bom caminho, converterá esta falha em crescimento no bem, já que os torna mais humildes e experientes (Agostinho mostra a utilidade das quedas para a cura da soberba. A queda torna a pessoa humilde, impulsiona-a e a estimula a sair dela. O pecador pode sair de suas quedas como a flor do monte de esterco). Aprendam que devem se alegrar com tremor no caminho da vida na justiça, não se orgulhando e sem se atribuir a si mesmo a segurança de que gozam e sem dizer na prosperidade: Não terei jamais mudança (Sl 29,7) Eis por que lhes é dirigida a advertência: Servi ao Senhor com temor, e louvai-o com alegria; com tremor prestai-lhe a vassalagem para que não se ire e não pereçais fora do caminho da justiça (Sl 2,11-12). Não adverte: "Não venhais ao caminho da justiça", mas, não pereçais fora do caminho da justiça. Qual a intenção do salmista, senão advertir os que já trilham o caminho da justiça a servir a Deus no temor, ou seja, não te ensoberbeças, mas teme? (Rm 11,20). Quis dizer: não se ensoberbeçam, mas sejam humildes. Por isso diz em outra passagem: Sem pretensões de grandeza, mas sentindo-vos solidários com os mais humildes (Rm 12,16) Alegrem-se em Deus, mas com tremor, de nada se gloriando, porque nada é de nossa iniciativa. E o que se gloria, glorie-se no Senhor, para não se desviar do caminho da justiça, que já começaram a trilhar, atribuindo a si mesmos a graça de nele se encontrarem. O Apóstolo expressa-se também com estas palavras: Operai a vossa salvação com temor e tremor. E revelando o motivo da expressão: com temor e tremor, ajunta: Pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade (Fl 2,12-13) Faltavam o temor e o tremor àquele que dizia na prosperidade: Não terei jamais mudança (Sl 29,7). Mas porque era filho da promessa e não da perdição, e sabendo por experiência o que seria se Deus o abandonasse, diz: Senhor, foi por teu favor que me concedeste honra e poderio; mas apenas escondeste de mim o teu rosto, fiquei conturbado (Sl 29,8). Mais instruído e, por isso mesmo, mais humilde, manteve-se no caminho ao ver e confessar na sua vontade que Deus fortalecera sua honra e poderio. Atribuindo a si mesmo e lisonjeando-se na prosperidade que Deus lhe outorgara, exclamava diminuindo o favor recebido: Não terei jamais mudança. Mas encheu-se de perturbação ao se encontrar e, conhecendo-se com humildade, aprendeu em que deveria pôr a esperança não somente da vida eterna, mas também de uma piedosa conduta e de perseverança no presente. Esta linguagem podia ser também do apóstolo Pedro. Pois dissera em sua prosperidade: Darei a minha vida por ti (Jo 13,37), apressando-se em atribuir a si mesmo o que lhe seria concedido posteriormente pelo Senhor. O Senhor, porém, desviou dele a sua face e ficou conturbado a ponto de o negar três vezes com medo de morrer por ele. Mas o Senhor voltou-lhe novamente sua face e com lágrimas Pedro extinguiu sua culpa. O que significa: Fixou o olhar em Pedro (Lc 22,61), senão que voltou-lhe a face que um pouco antes desviara? Enchera-se de conturbação, mas como aprendera não confiar em si mesmo, a falha foi-lhe proveitosa por obra daquele que coopera em tudo para o bem dos que o amam. Foi chamado segundo seu desígnio e, assim, ninguém poderia arrebatá-lo das mãos de Cristo, ao qual fora dado. - Portanto, aquele que se extravia do caminho da justiça não deve dizer que não há necessidade de correção e que basta a súplica por ele ao Senhor, para que retorne e persevere: pessoa alguma prudente e fiel diga tal coisa. Pois, se foi chamado segundo seu desígnio, a correção será um sinal de que Deus coopera para seu bem. Mas como aquele que corrige, ignora se outro foi chamado, faça-o com caridade o que sabe ser preciso fazer. Sabe que esse outro merece correção, deixando a Deus o mostrar sua misericórdia ou seu juízo. Deus agirá com sua misericórdia, se o corrigido está afastado da massa da perdição pela liberalidade da graça e não está entre os vasos de ira destinados à perdição, mas entre os vasos de misericórdia que Deus predestinou para a glorificação. E agirá com seu juízo, se está entre os condenados e não está predestinado como o outro. Capítulo, 10 - A graça de Adão e dos anjos - Surge agora uma questão de não pequena importância que vamos enfocar e resolver, mas com a ajuda de Deus, em cujas mãos estamos nós e nossas palavras. Com relação a este dom da perseverança final no bem, perguntam-nos o que pensamos sobre o primeiro ser humano, o qual certamente foi criado sem pecado e na retidão. Eu não digo: se não perseverou no bem, como se pode dizer que esteve sem pecado, ao faltar-lhe este dom de Deus tão necessário? Respondo a esta pergunta facilmente. Não perseverou até o fim, porque não teve perseverança naquele bem que incluía a isenção de pecado. Começou a ter pecado desde o momento em que caiu. E se começou, antes de começar, não tinha pecado. Uma coisa é não ter pecado, e outra é não permanecer na retidão que supõe ausência de pecado. Pelo fato de não se dizer que nunca teve pecado, mas dizer-se que não permaneceu sem pecado, fica demonstrado claramente que esteve sem pecado, e lamentamos não ter permanecido neste estado. Mas o que devemos investigar e tratar mais profundamente é como responder àqueles que dizem: Se Adão perseverou na retidão de vida na qual foi criado, não há dúvida que a conservou. E se perseverou, então não pecou e não se desviou de Deus e da retidão. A verdade, no entanto, apregoa o contrário, ou seja, que pecou e se desviou do bem. Portanto, não perseverou no bem. E se não perseverou, não recebeu este dom, pois, como poderia ter recebido o dom da perseverança e não perseverar? Nesse caso, se não perseverou, porque não recebeu o dom da perseverança, por que foi culpado por não ter perseverado, quem não o recebeu? E não se pode dizer que não o recebeu pelo fato de não estar segregado da massa de perdição pela liberalidade da graça, visto que, antes de sua queda, não havia no gênero humano a massa de perdição, origem de todo pecado. - Por este motivo felizmente confessamos o que firmemente cremos, ou seja, que Deus é Senhor de tudo, que criou todas as coisas sem defeito e previu o mal que se originaria do bem e sabia que era mais próprio de sua bondade onipotente até o mal transmudar em bem antes que não permitir o mal, Deus e Senhor de tudo, repito, dispôs a vida dos homens e dos anjos de tal modo que revelasse primeiramente a liberdade e, depois, o benefício de sua graça e o rigor da justiça. Em resumo, alguns anjos, cujo líder se denomina diabo, voluntariamente se rebelaram contra Deus. Recusando sua bondade que os fazia felizes, não puderam evitar seu juízo, pelo qual se tornaram infelizes. Os demais, em virtude da mesma liberdade, permaneceram na verdade e mereceram a garantia de nunca mais cair. Se temos certeza pelas santas Escrituras que nenhum anjo bom há de perder a bem-aventurança, quanto mais eles a têm pela revelação mais sublime da verdade? A nós também nos é prometida a vida eterna feliz e a igualdade com os anjos. Em virtude desta promessa, temos a certeza de que jamais perderemos a felicidade quando participarmos da vida eterna depois do juízo. E se os anjos não sabem por conhecimento próprio de sua segurança, seremos mais felizes que eles e não apenas iguais. A Verdade prometeu-nos esta igualdade (Mt 20,30) É certo que eles sabem mediante alguma revelação o que sabemos pela fé, ou seja, que jamais acontecerá aos santos anjos qualquer desgraça. Contudo, o diabo e seus asseclas, embora fossem felizes antes da queda e ignorassem sua queda na infelicidade, sua felicidade seria acrescida, se pela liberdade permanecessem na verdade até receber a plenitude da felicidade como prêmio de sua perseverança. Isto quer dizer: até receberem a copiosa abundância da caridade de Deus pelo Espírito Santo, não poderiam pecar de forma alguma, do qual teriam toda certeza. Não possuíam esta plenitude da felicidade, mas ignorando sua futura desgraça, gozavam, sem pecado, de uma felicidade embora menor. Pois, se tivessem tido conhecimento de sua futura queda e do suplício eterno, não seriam felizes, visto que o medo de tão grande fatalidade acarretar-lhes-ia a infelicidade. - Deus criou o homem também com o dom da liberdade e, embora desconhecendo sua futura queda, era feliz, visto que percebia estar em suas mãos o não morrer e não se tornar infeliz. Se tivesse querido permanecer neste estado de retidão e inocência fazendo bom uso de sua liberdade, sem experimentar a morte e a desgraça, receberia a plenitude da felicidade igual à dos santos anjos, ou seja, jamais poderia cair e disso teria absoluta certeza. E não poderia ser feliz no paraíso e nem mesmo lá estaria, pois não seria lugar para um infeliz, se o conhecimento prévio de sua queda o infelicitasse pelo temor de tão grande desgraça. Porém, como voluntariamente recusou a Deus, sofreu seu justo juízo, e toda a sua descendência seria condenada, já que havia participado de sua culpa por estar como que nele encerrada. Todos os desta descendência, uma vez libertados pela graça de Deus, libertam-se também da condenação, à qual já estão como que acorrentados. E se ninguém alcançasse a libertação, nem por isso teria direito de criticar o justo juízo de Deus. E se os que se salvam são poucos em comparação com os réprobos, mas são muitos em números absolutos, isso é dom da graça e é gratuito. Por isso, graças sejam dadas a Deus para que ninguém o atribua a seus merecimentos, mas toda boca se cale (Rm 3,19) e o que se gloria, glorie-se no Senhor (1Cor 1,31) Capítulo, 11 - A graça em Adão, nos seus descendentes e nos anjos - O que dizer então? Adão não possuiu a graça de Deus? Pelo contrário, possuiu uma grande graça, mas de outra índole. Desfrutava dos bens que recebera da bondade de seu Criador. Estes bens não os alcançou pelos seus méritos e neles não havia nada de mal. Mas os santos, que recebem nesta vida a graça, estão rodeados de males e por isso clamam ao Senhor: Livra-nos do maligno (Mt 6,13). Adão não necessitou da morte de Cristo para ficar isento de males; os santos são absolvidos do reato hereditário e dos pecados pessoais pelo sangue do Cordeiro. Adão não tinha necessidade do socorro espiritual implorado pelos santos, quando dizem: Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor (Rm 7,23-25). Isso porque sua carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne (Gl 5,17), e, no meio deste combate e de perigos, imploram pela mediação de Cristo a força para lutar e vencer. Adão, porém, no lugar de delícias, sem as tentações e tormentos desta luta, gozava de paz consigo mesmo. - Por conseguinte, os santos necessitam na atual economia de uma graça mais eficaz, embora não menos ditosa. Com efeito, que graça há mais eficaz que o Filho unigênito de Deus, igual e coeterno ao Pai, que por eles se fez homem, e homens pecadores, embora isento da mancha original e de pecados pessoais? Ele, o Cristo, ainda que tenha ressuscitado ao terceiro dia para nunca mais morrer, suportou a morte pelos mortais, deu vida aos mortos, a fim de que, remidos pelo seu sangue, pudessem exclamar à vista de tão valioso penhor: Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele? (Rm 8,31-32) Deus, portanto, tomou nossa natureza, ou seja, a alma racional e a carne de Cristo-homem, mediante consórcio singularmente admirável e admiravelmente singular, de modo que o Filho de Deus, sem mérito algum de sua justiça, começou a existir desde o princípio no mesmo estado do homem na sua criação, formando uma só pessoa com o Verbo, que não teve princípio. Ninguém é tão cego pela ignorância deste fato e mistério que ouse dizer que o filho do homem, embora nascido da Virgem Maria por obra do Espírito Santo, vivendo na retidão e praticando boas obras sem pecado pelo bom uso da liberdade, mereceu ser Filho de Deus, contrariando assim o evangelho que diz: O Verbo se fez carne (Jo 1,14) E onde se realizou o mistério, senão no seio virginal onde teve princípio o Cristo-Homem? E à pergunta da Virgem sobre se faria o que lhe era anunciado, o anjo respondeu: O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra, por isso o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus (Lc 1,15) Este nascimento, sem dúvida gratuito, uniu na unidade de pessoa o homem a Deus, e a carne ao Verbo. A este nascimento seguiram-se boas obras, mas não foi mérito de boas obras. E nem haveria de se temer que a natureza humana, assumida deste modo inafável pelo Verbo na unidade de pessoa, cometesse algum pecado pelo abuso da liberdade. Isso porque a natureza humana assumida por Deus era de tal ordem que não admitia em si nenhum movimento de vontade corrompida. Por meio deste Mediador, Deus mostra que os remidos por seu sangue poderiam transmudá-los de maus em bons, mas de tal modo assumiu a condição humana que ele jamais se inclinaria para o mal e ficaria sempre isento de pecado, excluindo-se também a possibilidade de tornar-se bom depois de ter sido pecador. - Ao primeiro homem faltou-lhe esta graça de nunca desejar ser pecador, mas foi revestido da graça, na qual, se quisesse perseverar, nunca teria sido pecador e sem a qual, mesmo dotado de livre-arbítrio, poderia ser inocente. Esta graça, porém, poderia perdê-la pelo mau uso da liberdade. Portanto, Deus não quis privá-lo da sua graça, a qual rejeitou voluntariamente. Pois a liberdade basta por si mesmo para praticar o mal, mas é insuficiente para agir bem, se não é ajudada pela bondade do Onipotente. Se o homem, com a sua liberdade, não tivesse recusado esta ajuda, teria sido sempre bom; mas recusou, por isso foi recusado. Com efeito, esta ajuda era de tal ordem que poderia recusar ou conservá-la, se quisesse, mas não era eficaz para levá-lo a querer. Esta é a graça concedida ao primeiro Adão, mas a outorgada no segundo Adão é superior. A primeira possibilita o homem a viver na justiça; a segunda, mais eficaz, leva o homem a querer a justiça e com tal intensidade a amá-la que o espírito vence, com sua vontade, a vontade da carne inclinada a contrariar o espírito. Não foi pequena a primeira, com a qual se manifestou a força da liberdade, porque prestava tal ajuda que sem ela não podia permanecer no bem, mas podia recusá-la. A segunda é maior e não apenas devolve ao homem a liberdade perdida e é tão necessária que sem ela não pode abraçar o bem ou nele permanecer, se quiser, mas é também eficaz para mover a vontade. - Na criação, Deus dotou o homem de vontade reta; criara-o com ela aquele que tudo fez bem. Prestou-lhe ajuda, sem a qual não poderia manter reta a vontade, se quisesse. Mas o querer ele o deixou à liberdade do homem. Portanto, poderia permanecer, se quisesse, porque não lhe faltou o auxílio com o qual pudesse e sem o qual não teria possibilidade de aderir com perseverança ao bem oferecido à sua vontade. Mas recusando permanecer, foi culpa sua, assim como seria mérito seu, se quisesse permanecer. Assim procederam os santos anjos, pois enquanto alguns caíram pelo mau uso da liberdade, eles permaneceram pelo seu bom uso, e mereceram receber a recompensa por esta perseverança, ou seja, uma plenitude total de felicidade que lhes dá garantia de eterna perseverança. Mas se faltasse este auxílio ao anjo ou ao homem, quando foram criados, não lhes seria imputado o pecado, visto que sua natureza não oferecia condições para a perseverança sem a ajuda divina. Mas agora, quando falta esta ajuda é devido à pena do pecado; aos que é outorgada, é concessão gratuita e não fruto do merecimento. A graça por Jesus Cristo nosso Senhor é concedida com tal liberalidade, a quem aprouver a Deus concedê-la, que sem ela não podemos perseverar, ainda que quisermos, mas é tão copiosa e eficaz que nos move a querer o bem. A graça de Deus, que nos é concedida para bem agir e perseverar no bom caminho, impulsiona-nos não somente a poder o que queremos, mas também a querer o que podemos. Esta total eficácia faltou ao primeiro homem; possuiu o primeiro, não teve o segundo. Pois para agir bem, não necessitava da graça, porque ainda não a perdera; para permanecer no bem, necessitava do auxílio da graça, sem o qual não o poderia. Havia, pois, recebido a graça de poder, se quisesse; mas não teve a de querer o que podia, e, se o tivesse, perseveraria. Poderia perseverar, se quisesse. O não querer teve origem na liberdade, a qual era tão livre a ponto de poder querer o bem ou o mal. Haverá algo mais livre que a liberdade em não poder ser escravo do pecado, o que seria a recompensa do mérito para o homem, como o foi para os anjos santos? Mas agora, perdido o mérito pelo pecado, naqueles que são libertados manifestou-se o dom da graça, o qual seria a recompensa do mérito. Capítulo, 12 - As duas espécies de ajuda divina - É mister considerar com diligência e cautela a diferença entre estas duas coisas: poder não pecar e não poder pecar, poder não morrer e não poder morrer, poder não deixar o bem e não poder deixar o bem. O primeiro homem podia não pecar, podia não morrer, podia não deixar o bem. Podemos dizer que não podia pecar gozando do dom da liberdade? Ou não podia morrer, se lhe foi dito: Se pecares, morrerás? Ou não podia deixar o bem, se o deixou pelo pecado e por isso morreu? Portanto, a primeira liberdade da vontade era poder não pecar; a última será muito mais excelente, ou seja, não poder pecar. A primeira liberdade era poder não morrer; a última será muito mais vantajosa, a saber, não poder morrer. A primeira possibilidade da perseverança era poder não deixar o bem; a última será a felicidade da perseverança, isto é, não poder deixar de praticar o bem. Pelo fato de serem mais excelentes e vantajosos os últimos bens, os primeiros foram inúteis ou de pouco valor? - É mister distinguir também as diversas espécies de auxílios (Explicação da doutrina dos "auxílios" divinos. Foi na interpretação destes auxílios que erraram os semipelagianos e, mais tarde, os jansenistas. Os primeiros julgavam-na uma doutrina deprimente e fatalista. Os segundos erraram ao considerar o "auxílio mediante o qual" como anulador da liberdade, julgando que tudo deve ser atribuído a Deus e nada ao homem, nem mesmo o poder de resistir à graça). Um é o auxílio sem o qual não se pratica alguma obra, e outro o auxílio com o qual se faz alguma coisa. Exemplificando: não podemos viver sem alimento; mas, mesmo tendo-o, não é suficiente para que continue vivendo quem se empenha em morrer. Portanto, a ajuda do alimento é indispensável para viver, mas não faz com que vivamos. Mas quando o homem alcançar a felicidade, da qual agora não goza, imediatamente será feliz. A ajuda, portanto, é não somente uma condição sem a qual não se faz algo, mas também com a qual se faz aquilo para o qual é dada. Assim, esta ajuda é para se fazer e sem a qual não se faz. É o caso da felicidade: se lhe for concedida, torna-se feliz imediatamente, e se nunca lhe for concedida, nunca será feliz. O alimento, porém, não faz com que o homem viva, mas sem ele não pode viver. Ao primeiro homem, que na criação recebera o dom de poder não pecar, poder não morrer, poder não se afastar do bem, foi-lhe concedida a ajuda da perseverança, não para perseverar, mas sem a qual não poderia perseverar pela força do livre-arbítrio. Mas agora os santos destinados ao reino de Deus pela sua graça recebem não a ajuda para a perseverança, mas um dom que lhes outorga a própria perseverança. Assim, não somente não podem perseverar sem este dom, mas com ele perseveram realmente. Pois Cristo não disse apenas: Sem mim nada podeis fazer (Jo 5,15), mas também: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça (Jo 15,16) Mediante estas palavras, revelou que não somente os havia justificado, mas também lhes concedia a perseverança na justificação. Cristo, ao designá-los para irem e produzirem fruto e o fruto permanecer, quem ousará dizer: "Não permanecerá?" ou "Talvez não há de permanecer?" Os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento (Rm 11,29), mas vocação dos que foram chamados segundo seu desígnio. Assim, Cristo, rogando por eles para que sua fé não desfaleça, sem dúvida não desfaleceria jamais. Perseverarão na fé até o fim, e o fim de sua vida os encontrará firmes na fé. - É necessária liberdade maior para enfrentar tantas e tão fortes tentações, as quais não houve no paraíso, e, além disso, mais protegida e mais vigorosa com o dom da perseverança, para vencer este mundo com todos os seus amores, temores e erros. Este é o ensinamento dos mártires. Numa palavra, Adão, sem nenhuma ameaça e, além disso, usando da liberdade contra a ordem ameaçadora de Deus, não permaneceu naquela felicidade tão grande, tendo tanta facilidade de não pecar. Os santos, no entanto, ficaram firmes na sua fé, não digo apesar de atemorizados pelo mundo, mas por ele torturados. Adão tinha diante de si os bens que pelo pecado perderia; os santos não gozavam dos bens futuros com que seriam agraciados. De quem dimanou esta força senão daquele que os contemplou com sua misericórdia para permanecerem fiéis? De quem receberam o Espírito, não de temor, que os inclinaria a ceder aos perseguidores, mas de fortaleza, de caridade e de continência, que os capacitaria a se sobreporem a todas as ameaças, seduções e tormentos? Adão foi dotado de vontade livre desde a criação, porém, a pôs a serviço do pecado; os mártires, sujeitos à vontade pecadora, foram libertados por aquele que disse: Se o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres (Jo 8,36) A graça acompanha tal liberdade, com a qual mesmo na vida presente podem lutar contra as concupiscências dos pecados e, ainda que cometam alguns deslizes, que os leve a dizer todos os dias: Perdoa-nos as nossas dívidas (Mt 6,12), não mais se tornarão escravos do pecado que leva à morte, do qual fala o apóstolo João: Existe um pecado que conduz à morte, mas não é a respeito deste que eu digo que ore (1Jo 5,16) Como não especifica de que pecado se trata, podem-se fazer muitas e diversas conjeturas. Eu, porém, digo que este pecado é abandonar até à morte a fé que age pela caridade. Não são mais escravos deste pecado, mas livres não pela sua condição originária como Adão, mas libertados pela graça de Deus pelo segundo Adão; com esta libertação, gozam da liberdade para servir a Deus e não se sujeitar ao diabo. Libertados do pecado, tornaram-se escravos da justiça (Rm 6,16), na qual viverão até a morte pelo dom da perseverança outorgado por aquele que os conheceu de antemão, predestinou e chamou segundo o seu desígnio, justificou e glorificou. Pois as promessas a esse respeito, mesmo as futuras, já as cumpriu aquele no qual creu Abrão, e isto lhe foi levado em conta de justiça. Pois, deu glória a Deus, convencido de que ele é capaz de cumprir o que prometeu (Rm 4,3; 19-20) - Deus justificou estes eleitos para que praticassem boas obras. Os termos da promessa feita a Abraão não manifestam que Deus sabia de antemão que seus descendentes se santificariam por sua própria capacidade. Se assim fosse, não seria obra de Deus, mas mérito próprio. Mas não foi desse molde a fé de Abraão, mas: não se deixou abalar pela desconfiança, mas se fortaleceu na fé, dando glória a Deus, convencido de que ele era capaz de cumprir o que prometeu (Rm 4,20-21) O Apóstolo não diz que Deus é capaz de prometer o que soube de antemão ou manifestar o que predisse ou saber previamente o que prometeu. Mas, ele era capaz de cumprir o que prometeu. Portanto, leva a perseverar no bem os que justifica. Porém, os que caem e perecem, não estavam entre os predestinados. Embora o Apóstolo se referisse a todos os regenerados e aos que vivem piedosamente, ao dizer: Quem és tu que julgas o servo alheio? Que ele fique de pé ou caia, isso é lá com seu patrão, contudo, em seguida, ao considerar os predestinados, acrescentou: Mas ele ficará em pé. E, evitando que o atribua a si mesmo, diz: Porque o Senhor tem o poder de o sustentar (Rm 14,4) Por conseguinte, concede a perseverança aquele que é capaz de sustentar os que estão firmes para que perseverem, ou erguer os que caíram: O Senhor endireita os encurvados (Sl 145,8) - Como o primeiro homem não recebeu este dom de Deus, ou seja, a perseverança no bem, era livre para perseverar ou não perseverar, sua vontade era dotada de forças para tal, pois fora criado sem nenhum pecado e não encontrava nenhum obstáculo de parte da concupiscência. Por isso foi confiada à liberdade a faculdade de continuar usufruindo dignamente desse bem inefável e da felicidade de viver na justiça. Deus certamente sabia que Adão procederia contra a sua justiça. Sabia, mas não o obrigou, e sabia também o que com ele faria com justiça (Para Agostinho, a respeito do pecado, a presciência divina do futuro é passiva e inoperante. Já a presciência com relação aos predestinados é ativa e operante. Com relação aos não-predestinados, Deus prevê apenas sua queda e ordena as penas de que se tornaram merecedores. Com relação aos predestinados, Deus prepara sua vontade e lhes confere graças e benefícios com que se hão de salvar com certeza. Distingue, assim, entre presciência e predestinação. Segundo esta doutrina, com relação ao mal, Deus é simples espectador e permissor. Em relação ao bem, é autor, porque tem parte nas obras salutares desde as primeiras iniciativas até a perseverança final). Agora, porém, perdida pelo pecado a preciosa liberdade, subsiste a fraqueza para ser socorrida com dons maiores. Aprouve, portanto, a Deus eliminar completamente a altivez da presunção humana, a fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus (1Cor 1,29), ou seja, nenhum ser humano. E de que o homem não se pode vangloriar diante de Deus, senão de seus merecimentos que possuiu, mas perdeu? Perdeu-os devido ao que podia levá-lo a possuí-los, isto é, a liberdade, restando agora apenas a graça do Libertador aos que hão de ser libertados. Assim, nenhum ser carnal pode-se gloriar diante de Deus. Não se gloriam os pecadores, porque não têm de que se gloriar. Nem se gloriam os justos, porque dele recebem tudo e não têm outra glória senão ele mesmo, ao qual dizem: Tu és minha glória, e o que exalta minha cabeça (Sl 3,4) Portanto, a todos se refere o que está escrito. A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus; e aplicam-se aos justos as palavras: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Este é o pensamento muito claro do Apóstolo, o qual, depois de ter dito: A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus, acrescentou em continuação, evitando que os santos se considerassem privados de glória: Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, "aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1Cor 1,31) Eis porque neste lugar de miséria, onde a vida do homem sobre a terra é uma guerra (Jó 7,1), é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder (2Cor 12,9). A que poder se refere? Ao que se refere o texto: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (2Cor 10,17) - Por esta razão, Deus não quis que os santos se gloriassem de si mesmos, mas dele, por motivo de sua perseverança no bem. Não somente lhes concede a ajuda igual à do primeiro homem, sem a qual não podem perseverar, se quiserem, mas leva também a querer. E como não alcançarão a perseverança sem o poder e o querer, na liberalidade de sua graça outorga-lhes a possibilidade e a vontade de perseverar. Sua vontade encontra-se tão inflamada do fogo do Espírito Santo, que podem porque querem e querem porque Deus os leva a querer. Se nesta vida, marcada pela fraqueza (na qual convinha que se aperfeiçoasse a virtude para reprimir a presunção), se nesta vida, repito, fossem deixados por conta de sua vontade para ficar, se quisessem, com a ajuda de Deus, indispensável para a perseverança, e Deus não atuasse sobre sua vontade, esta sucumbiria devido à sua fraqueza, situados que estão no meio de tantas e tão sedutoras tentações. Portanto, não poderiam perseverar pelo fato de não quererem, ao serem vencidos pela fraqueza, ou não terem a vontade necessária para serem capazes. É tal o socorro oferecido à fraqueza da vontade humana que, pela graça divina, poderia agir firme e invencivelmente (A edição de Lovaina do ano 1557 acrescentou esta nota: "Todos os manuscritos mantêm com razão o termo ,,insuperabiliter . Contudo, Agostinho não é de opinião que os eleitos não possam se afastar do caminho reto e ser vencidos pela tentação. Ele ensina que a graça é tão potente, que, embora enfermos e débeis, não se afastam do caminho nem são vencidos, e, assim, não nega a impossibilidade de pecar, mas apenas indica o resultado. E o querem dizer as palavras que seguem àquele termo: "e, embora frágil, não desfaleceria nem seria superado por nenhuma adversidade". E depois: "Ao passo que protegeu os fracos de tal modo que pelo dom de sua graça quisessem o bem com determinação invencível e se recusassem do mesmo modo a dele se afastar") e, embora frágil, não desfaleceria nem seria superado por nenhuma adversidade. Assim o resultado foi que a vontade humana e frágil, perseverasse no bem ainda que pequeno pelo poder de Deus, ao passo que a vontade do primeiro homem, forte e sadia, não perseverou no bem maior ao fazer uso da liberdade. É claro que não haveria de faltar a ajuda de Deus, com a qual poderia permanecer fiel, se quisesse, mas não a juda com que Deus move a vontade para agir. Sendo Adão dotado de excepcional fortaleza, deixou-o e permitiu-lhe fazer o que quisesse, ao passo que protegeu os fracos de tal modo que pelo dom da sua graça quisessem o bem com determinação invencível e se recusassem do mesmo modo a dele se afastar. As palavras de Cristo: Eu orei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça (Lc 22,32), entendamo-las como dirigidas àquele que é edificado sobre a pedra. Por isso, aquele homem de Deus, não apenas porque alcançou misericórdia para ser fiel, mas também porque a própria fé não desfaleceu, obedeceu à exortação: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Capítulo, 13 - A misericórdia de Deus em favor dos predestinados e a sua justiça - O que estou dizendo refere-se aos predestinados ao reino de Deus, cujo número é tão determinado, que não é possível nenhum acréscimo ou diminuição. Não se refere àqueles que, pelo anúncio e pela pregação do evangelho são tão numerosos para se poder contar (Sl 39,6). Estes podem se considerar chamados, não porém eleitos, porque não são segundo o seu desígnio. De fato, é determinado o número dos eleitos, não devendo haver acréscimo ou diminuição, e João Batista o insinua quando diz: Produzi, então, fruto que prove a vossa conversão e não penseis que basta dizer: "Temos por pai a Abraão", pois eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão (Mt 3,8-9). Revela nesta sentença que tais judeus seriam segregados, se não produzissem fruto, para completar o número prometido a Abraão. Mas a afirmação é mais clara no Apocalipse, onde está escrito. Segura com firmeza o que tens, para que ninguém tome a tua coroa (Ap 3,11), ou seja, se outro não te receber, no caso de este não perder, conclui-se que o número é determinado. - Se mesmo com relação aos eleitos, as afirmações da Escritura deixam a incerteza do seu número, devem acolhê-las no seu sentido, já que não convém que se ensoberbeçam, mas se encham de temor. Entre os numerosos fiéis durante esta vida mortal, quem tem a presunção de se considerar entre os predestinados? É necessário que exista o segredo neste mundo, onde se deve precaver da vanglória, evitando o que aconteceu ao Apóstolo, ao qual foi dado um anjo de Satanás para espancá-lo, para que não se enchesse de soberba (2Cor 12,7). Por isso, dizia aos apóstolos: Se permanecerdes em mim (Jo 15,7) aquele que previa sua perseverança. E o Senhor disse pelo profeta: Se quiserdes e me ouvirdes (Is 1,19), conhecendo aqueles cuja vontade moveria. E há outras afirmações semelhantes. Pela utilidade deste segredo, destinado a evitar que alguém se ensoberbeça e a fazer com que se encham de temor aqueles que correm no caminho certo por desconhecer os que alcançarão a meta, pela vantagem deste segredo, repito, há motivo para crer que alguns, dentre os filhos da perdição, não tendo recebido o dom da perseverança final, comecem a viver na fé, que age pela caridade, e temporariamente pratiquem a justiça e a piedade e depois desistam antes de ser arrebatados desta vida. Se tal não tivesse acontecido a ninguém, os homens viveriam no temor salutar, com que se vence o pecado, até alcançarem a graça de Cristo, alimento da vida piedosa, e então estariam certos de não sofrer mais quedas. Não é conveniente esta presunção neste lugar de tentações, onde há tanta debilidade que, da segurança, pode-se originar a soberba. Mas um dia haverá esta garantia, mas isto acontecerá aos homens, como já é realidade para os anjos, quando não será possível a existência da soberba. Portanto, o número dos eleitos destinados ao Reino de Deus, pela sua graça e agraciados também pelo dom da perseverança, permanecerá na sua integridade até este momento e se manterá inalterável para sempre em glória e felicidade, graças à misericórdia do Salvador, seja quando se convertem ou lutem, seja quando são coroados. - Com efeito, a misericórdia de Deus lhes é necessária mesmo quando são coroados, de acordo com o testemunho da Escritura, onde o eleito diz à sua alma a respeito de seu Senhor Deus, que te coroa de misericórdia e de graça (Sl 102,4). O apóstolo Tiago também diz: O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia (Tg 2,13), revelando que no juízo, no qual os justos receberão a coroa e os injustos, a condenação, uns serão julgados com misericórdia e outros sem misericórdia. Por esta razão, a mãe dos Macabeus diz a seu Filho: Para que eu torne a receber-te com teus irmãos naquela misericórdia que nos espera (2Mc 7,29). Pois assim está escrito. Quando o rei justo se sentar no trono, nenhum mal resistirá perante ele. Quem pode gloriar-se de ter o coração casto ou quem se vangloriará de estar limpo de pecado? (Pr 20,8-9) Eis por que no juízo é necessária a misericórdia, que beatifica os que o Senhor não culpa (Sl 31,2). E nessa ocasião haverá lugar para a misericórdia, por um justo juízo, de conformidade com os merecimentos das boas obras. Quando Tiago diz: O juízo será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia, dá a entender que o juízo será misericordioso para aqueles que praticaram obras de misericórdia e que a misericórdia será de acordo com os merecimentos das boas obras. Não acontece assim agora quando, sem merecimentos prévios ou até marcados pelas más obras, a misericórdia de Deus se antecipa aos homens, ajudando-os a se libertarem dos pecados que praticaram e praticariam, se a graça de Deus não os protegesse, assim como padeceriam eternamente, se não fossem arrebatados do poder das trevas e transportados para o reino de seu Filho amado (Cl 1,13) Contudo, porque, à vida eterna, que é certamente recompensa às boas obras, o Apóstolo lhe dá o nome de graça divina (Rm 6,23), sendo ela um dom gratuito e não devido às obras, devemos confessar que a graça chama-se vida eterna pelo fato de ser recompensa dos merecimentos alcançados pelos homens com o auxílio da graça. E este o sentido do que se lê no evangelho: Graça sobre graça (Jo 1,16), ou seja, graça alcançada pelos méritos alcançados pela graça. - No entanto, serão julgados com toda a justiça de acordo com seus merecimentos aqueles que não são deste número determinado e feliz dos predestinados, os quais a graça de Deus conduz ao reino, seja os que não têm o uso da liberdade, seja os que dela se servem, mas liberdade livre, uma vez que foi libertada pela mesma graça. Com efeito, ou estão sujeitos ao pecado original e deixam este mundo com esta dívida hereditária, da qual não foram purificados pelo batismo, ou acrescentaram pecados pelo uso do livre-arbítrio, digo livre, não libertado, livre da justiça, mas escravo do pecado, que os enreda em desejos culpáveis, uns mais, outros menos. Mas todos são pecadores e, por isso, receberão castigos diversos de acordo com a diversidade de suas culpas. Ou recebem a graça de Deus, mas estão apegados ao mundo e não perseveram, abandonam o caminho reto e por isso são abandonados (O abandono por parte do homem provoca o abandono por parte de Deus, Deus não abandona, se não for abandonado, postula a doutrina da graça de Agostinho. Trento formula o mesmo princípio) São, pois, entregues ao livre-arbítrio por um juízo oculto e justo de Deus, uma vez que não aceitaram o dom da perseverança. Capítulo, 14 - A utilidade da correção - Os homens devem admitir a necessidade da correção quando pecam. Que a correção não sirva de pretexto com relação à graça nem a graça no referente à correção. Pois o pecado merece um castigo justo e o castigo está ligado à correção, a qual é aplicada a modo de remédio, ainda que a saúde do doente seja incerta. A correção feita ao participante do número dos predestinados sirva-lhe de salutar remédio, e tenha caráter penal ao que dele está excluído. Tendo em conta esta incerteza, a correção deve revestir-se de caridade, dado que se desconhece seu efeito, e acompanhada da oração em favor do corrigido implorando-se a sua cura. Porém, como os homens, mediante a correção, ou vêm ou retornam ao caminho da justiça, quem opera a retidão nos corações, senão Deus que dá o incremento, seja quem for o que planta ou rega, seja quem for o que trabalha nos campos ou nos bosques, aquele Deus a cuja vontade de salvar liberdade humana nenhuma pode resistir? Pois, o querer ou não querer depende da vontade do que quer ou não quer, mas não impede a ação da vonta-de divina nem supera seu poder. Mesmo aqueles que fazem o que ele não quer, ele faz com que façam o que ele quer. - A respeito da afirmação: Quer que todos os homens sejam salvos (1Tm 2,4) e, não obstante, nem todos se salvem, admite várias interpretações, das quais comentamos algumas em outros escritos. Aqui mencionarei apenas uma (Agostinho interpreta em sentido restrito o texto de 1Tm 2,4. Deus poderia, certamente, converter todos os pecadores e salvar toda a humanidade. Deus não o faz porque está em seu poder o não querer. A expressão "todos os homens" limita-a a "muitos", segundo a Carta 217,6 19. A certeza da condenação de muitos e uma exegese fundada na soberania absoluta de Deus, cuja vontade absoluta não pode ser frustrada, fazem Agostinho entender por "todos os homens" todos os que Deus elegeu, predestinou e só eles. Para os semipelagianos esta limitação era escandalosa. A vontade salvífica universal era um dos postulados mais defendidos por eles para realçar a bondade e a misericórdia de Deus. Deus quer a salvação de todos os homens, mas deixa a iniciativa à escolha deles. Cabe aos homens receber ou recusar os dons. Por esta mesma razão, recusavam a opinião de Agostinho a respeito do número dos predestinados) Está escrito. Quer que todos os homens sejam salvos, abrangendo todos os predestinados, porque há no meio deles todo gênero de pessoas. Tem o mesmo sentido que a afirmação de Cristo aos fariseus: Pagais o dízimo de todas as hortaliças, entendendo-se todas as que colhiam, mas não pagavam o dízimo de todas as hortaliças existentes no mundo. No mesmo estilo de expressar, diz o Apóstolo: Assim como eu mesmo me esforço por agradar a todos em todas as coisas (1Cor 10,33) Será que ele agradava também a todos os seus perseguidores? Ele agradava todo gênero de pessoas reunidas pela Igreja de Cristo, tanto os já convertidos como os futuros. - Pode-se afirmar com certeza que a vontade de Deus, que tudo o que quer faz, no céu e na terra (Sl 134,6), e que fez mesmo as coisas futuras (Is 45,11), as vontades humanas não podem impedi-la que faça o que quer e que mesmo das vontades humanas faz o que quer e quando quer. Parece ser um exemplo contrário, para só citar um entre alguns, o caso de Saul, quando Deus quis dar-lhe o reino. Ficou a critério dos israelitas submeter-se ou não a este rei, o que significava a liberdade de resistir também a Deus. Mas não aconteceu assim, pois o Senhor contou com a vontade deles ao dispor de poder absoluto sobre os corações humanos, inclinando-os a seu bel-prazer. Pois, assim está escrito. E Samuel despediu todo o povo, cada um para sua casa. E Saul voltou também para sua casa em Gabaa; e foi com ele uma parte do exército, a quem Deus tinha tocado o coração. Porém os filhos de Belial disseram: "Porventura poderá este salvar-nos?". E desprezaram-no e não lhe levaram presentes (1Sm 10,25 a 27). Alguém dirá talvez que não acompanharia Saul algum daqueles cujo coração o Senhor tocou para irem com ele, ou que o acompanharia algum dos filhos de Belial, cujo coração o Senhor não tocou? Há também uma referência a Davi, a quem o Senhor estabeleceu no reino com absoluto êxito. Assim está escrito. E Davi fazia progressos adiantando-se e fortalecendo-se, e o Senhor dos exércitos estava com ele (1Cr 11,9). E mais adiante esta sentença: Amasai, porém, primeiro entre os trinta, revestido do espírito, disse: "Nós somos teus, ó Davi, e estamos contigo, ó filho de Isaí. A paz, a paz seja contigo, e a paz seja com os teus defensores, porque o teu Deus te protege (1Cr 12,19). Poderia ele resistir à vontade de Deus e não obedecer àquele que lhe moveu o coração pelo seu espírito, do qual se revestiu para isto querer, dizer e fazer? Um pouco depois diz a mesma Escritura: Todos estes homens guerreiros, prontos para combater, foram com coração sincero a Hebron, para constituir Davi rei sobre todo o Israel (1Cr 12,38) Escolheram Davi como rei por sua vontade. Quem não vê? Quem o nega? Não fizeram hipocritamente e maldosamente o que fizeram pacificamente. Contudo, agiu em seu espírito aquele que domina os corações humanos. Por isso a Escritura afirmou antes: E Davi fazia progressos, adiantando-se e fortalecendo-se, e o Senhor dos exércitos era com ele. Por esta razão, o Senhor todo-poderoso, que estava com ele, levou-os a constituírem Davi como rei. E como os levou? Acaso amarrou-os com laços materiais? Agiu internamente, apossou-se de seus corações, moveu-os, induziu-os, servindo-se de suas próprias vontades, inspiradas por ele. Se quando Deus quer constituir reis neste mundo, mantém seu poder sobre as vontades humanas, mais do que eles as suas, quem senão ele faz com que a correção seja salutar e proceda a esta correção no coração do corrigido para que seja levado ao reino celestial? Capítulo, 15 - Não há direito de negligenciar a correção - Os superiores corrijam seus irmãos súditos com correção revestida de caridade e proporcionada à diversidade e gravidade das culpas. A própria excomunhão dada pela bispo e que é a maior pena eclesiástica, pela vontade de Deus, pode-se converter em correção salutar e ser proveitosa. Pois desconhecemos os acontecimentos do dia seguinte, não podemos desesperar da salvação de ninguém nem impedir que Deus olhe um culpado e lhe inspire o arrependimento. Assim, aceito por ele o sacrifício do espírito humilhado e contrito (Sl 50,19), pode conceder-lhe a absolvição da excomunhão aplicada com justiça, e o castigado não venha a se condenar. Contudo, é próprio de seu ofício de pastor separar a ovelha doente das sadias para evitar o contágio para as outras e, sendo-lhe tudo possível, curá-la servindo-se da própria separação. Portanto, desconhecendo quem pertence ou não pertence ao número dos predestinados, devemos de tal modo deixar-nos levar pela caridade que queiramos a salvação de todos. Conseguiremos isto, empenhando-nos em atrair todos aqueles com que deparamos e com os quais possamos agir assim. Deste modo, justificados pela fé, estejam em paz com Deus (Rm 5,1), a qual o Apóstolo proclamava ao dizer: Sendo assim, em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus (2Cor 5,20). O que é reconciliar com Deus? Não é estar em paz com ele? O próprio Jesus fez-lhe referência, quando disse a seus discípulos: Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: "Paz a esta casa!". E se lá houver um homem de paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, voltará a vós (Lc 10,5-6) Quando pregam esta paz aqueles de quem está escrito. Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia e prega a paz, do que anuncia o bem (Is 52,7), então cada um de nós começa a ser filho da paz, quando, obedecendo ao evangelho e nele crendo, começar a estar em paz com Deus uma vez justificado pela fé. Mas de acordo com a predestinação divina já era filho da paz. Reparemos que o Senhor não disse que "se tornará filho da paz aquele sobre o qual repousar a vossa paz", mas: Se lá houver um homem de paz, a vossa paz repousará sobre ele. Portanto, antes que a paz lhe fosse anunciada, já existia ali um filho da paz de acordo com a ciência e a presciência de Deus, não do evangelista. Nesse caso, como não sabemos se alguém é ou não filho da paz, cumpre a nós evitar qualquer exceção, não discriminar ninguém, mas desejar a salvação de todos a quem anunciamos a paz. Não devemos temer que venhamos a perdê-la no caso de desconhecermos se nosso ouvinte é filho da paz. Ela voltará a nós, ou seja, o anúncio ser-nos-á útil e não a ele. E se a paz anunciada repousar sobre ele, repousará sobre nós e sobre ele. - Mesmo ignorando os que se salvarão, Deus nos manda querer que todos os nossos ouvintes se salvem, e ele move-nos a isto derramando seu amor em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 6,5). Este ensinamento pode significar também que Deus quer que todos os homens sejam salvos (1Tm 2,4), porque leva-nos a este desejo, assim como enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: "Abba! Pai!" (Gl 4,6), ou seja, leva-nos a clamar. Refere-se ao mesmo Espírito ao dizer em outra passagem: Recebestes o espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: "Abba! Pai!" (Rm 8,15) Portanto, se a Escritura disse com razão que o Espírito clama e faz com que clamemos, com a mesma razão se pode dizer que Deus quer quando nos leva a querer. Por conseguinte, como pela correção devemos apenas fazer com que alguém não se afaste desta paz, que nos une a Deus, ou a ela retorne o que se afastou, não procedamos com desesperança no que fazemos. Se é filho da paz aquele que corrigimos, nossa paz repousará sobre ele; em caso contrário, voltará a nós. - Ainda que permaneça firme o fundamento de Deus, porque conhece os que lhe pertencem, enquanto a fé de alguns desfalece, não devemos por isso ser negligentes e tardios em corrigir os que necessitam de correção. Com razão está escrito. As más companhias corrompem os bons costumes (1Cor 15,33), e: E assim por causa de tua ciência perecerá o fraco, esse irmão pelo qual o Cristo morreu (1Cor 8,11) Não nos oponhamos a estes preceitos e a este temor salutar ao dizer: "Que as más companhias corrompam os bons costumes e que o ímpio pereça! Que nos importa? O fundamento de Deus permanece sólido e somente perece o filho da perdição" (Jo 17,12) Capítulo, 16 - Correção e oração Longe de nós proferirmos tais parvoíces e acreditar que estamos garantidos apesar desta negligência. É verdade que somente perece o filho da perdição, mas diz Deus pelo profeta Ezequiel: Este ímpio morrerá na sua iniqüidade, mas eu requererei de tua mão o seu sangue (Ez 3,18) - Portanto, pelo que nos diz respeito, incapazes que somos de distinguir os predestinados dos que não o são, devemos desejar que todos se salvem, e é nossa obrigação empregar a correção severa, mas medicinal a todos, evitando que pereçam ou levem os outros a se perderem. Pertence a Deus torná-la útil àqueles que conheceu de antemão e predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho (Rm 2,29) Se algumas vezes não corrigimos por medo de que alguém se perca, por que não corrigimos por medo de que alguém se perverta mais ainda? Não possuímos entranhas de maior amor que o Apóstolo, o qual diz: Admoestai os indisciplinados; reconfortai os pusilâmines; suportai os fracos; sede pacientes para com todos. Vede que nenhum retribua o mal com o mal (1Ts 5,14-15) Quis dizer que é retribuir o mal com o mal, se há descuido em corrigir e se se evita a correção por uma negligência culpável. Diz também o Apóstolo: Repreende os que pecam, diante de todos, a fim de que os demais temam (1Tm 5,20). Trata-se de pecadores públicos, pois do contrário contradiria o que diz o Senhor: Se teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós contigo (Mt 18,15). Contudo, mais adiante ele encarece a severidade e diz: Caso não lhes dê ouvido, dize-o à Igreja, trata-o como gentio ou publicano (Mt18,17). E quem amou mais os fracos do que ele que se fez fraco por todos e por todos foi crucificado na sua humanidade? Sendo assim, a graça não exclui a correção, e a correção não nega a graça. Por conseguinte, ao se prescrever a vivência da justiça, com oração autêntica deve-se implorar a Deus sua graça para cumprir o preceito. Proceda-se em tudo com caridade, pois a caridade não comete pecado e cobre uma multidão de pecados (Pd 4,8).

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