Relatorio Escolar Individual Maternal

Stella and Charles Guttman Community College - Festa da Circuncisão - 1º Sermão para a Festa da Circuncisão Realeza de Jesus Cristo Pregado no 1º de janeiro de 1654 ou 1656. SUMÁRIO Exordio. - O poder real e o poder sacerdotal estão intimamente ligados e derivam naturalmente de duas inclinações que existem no Coração humano: a inclinação para Deus ou para a religião e a inclinação para o homem ou para a sociedade. Proposição e divisão. - Jesus Cristo é simultaneamente rei e pontífice, porque é salvador: Realeza de Jesus Cristo; em que consiste, como Ele a adquiriu e como a exerce; sacerdócio de Jesus Cristo e Sua excelência. 1º Ponto. - Jesus Cristo veio ao mundo com um poder real: não é uma realeza temporal, como a entendiam os judeus e os próprios apóstolos, mas uma realeza inteiramente espiritual; e por isso, só durante a Paixão é que se ouve falar da Sua realeza: Tu dicis quia rex ego sum. Jesus reina em toda a parte: Christi regnum et nomen ubique porrigitur, ubique regnat ubique adoratur. Tertuliano. 2º Ponto. - O sacerdócio de Jesus Cristo é muito mais perfeito do que o de Aarão. O nome de Jesus, que encerra todas as maravilhas da realeza e do sacerdócio, é um nome superior a todos os nomes. Amam-se os reis benfazejos, mas não se ama a Jesus, que é o mais generoso dos reis, Jesus, que deu o Seu sangue para a conquista da nossa alma. Peroração. - Povos, até quando hesitareis entre dois partidos? "Se Jesus é o vosso rei, prestai-lhe obediência; mas se o vosso rei é Satanás, colocai-vos ao lado de Satanás. O governo de Jesus sobre os vassalos de Satanás há de ser severo. Renovemos o nosso juramento de fidelidade que devemos a Jesus, o nosso grande rei" Vocabis nomen ejus Jesum; ipse enim salvum faciet populum E vós lhe chamareis Jesus, porque é Ele quem salvará o vosso povo (São Mateus 1, 21). Hoje o Deus de Israel, que veio visitar o seu povo, revestido de carne humana, entra pela primeira vez no seu templo; hoje o grande sacerdote do Novo Testamento, o soberano Sacrificador, segundo a ordem de Melquisedeque, entrega-se nas mãos dos pontífices, sucessores de Aarão, que usava o emblema do seu sacerdócio; hoje o Deus de Moisés submete-se voluntariamente a toda a lei de Moisés; hoje o Inefável, cujo nome é incompreensível, digna-se receber um nome humano que lhe é dado pela boca dos homens, mas por instigação do Espírito de Deus. Que direi eu? Para onde me hei de voltar, cercado de tantos mistérios? Faltarei dá circuncisão do Salvador, ou da imposição do nome de Jesus, desse nome tão amável, que constitui as delícias do céu e da terra, e a nossa única consolação durante a peregrinação desta vida? E tanto a solenidade desta igreja, como um movimento inexprimível do meu coração, me com peitem a falar do nome de Jesus e a mostrar-vos a excelência deste nome, enquanto aprouver a Deus inspirar-m'o com a Sua graça. Jesus quer dizer Salvador, nome que exprime o afeto e a caridade! "Minha alma, glorificai o Senhor, e que tudo o que em mim existe louve o seu santo nome" - Benedic, anima mea, Domino (Salmo 103, 1). Falemos do nome de Jesus, desvendemos-lhe o mistério, mostremos a excelência do título de Salvador, e digamos quão glorioso é para o nosso sublime Deus e Redentor Jesus Cristo ter exercido sobre nós tão grande misericórdia e ter-nos salvo com o Seu sangue. Que em todo este templo se repercuta o nome e os louvores do Jesus Salvador. Ah! Se tivéssemos os olhos bastantemente puros, veríamos toda esta igreja cheia de anjos por todos os lados para nela honrarem a presença do Filho de Deus; vê-los-íamos curvarem-se profundamente ao nome de Jesus, todas as vezes que o houvermos de pronunciar na continuação deste discurso. Curvemo-nos também em espírito; e adorando em nossos corações o nosso amoroso Salvador, roguemos também à Virgem Maria, Sua Mãe, que nos auxilie com às suas piedosas intercessões. Ave-Maria. Assim como nós temos certas inclinações que são comuns aos animais e que são inteiramente vis, como vil é esta morada terrestre em que estamos cativos, assim também certamente temos outras de natureza mais elevada, pelas quais atingimos de muito perto as inteligencias celestes que estão perante o trono de Deus, cantando noite e dia os seus louvores. Os espíritos bem-aventurados têm dois movimentos maravilhosos. Eles não volvem tão depressa os olhos para si mesmos que não reconheçam logo que a sua luz se deriva doutra luz infinita, e então regressam à sua causa primeira com uma velocidade incrível, e procuram aperfeiçoar-se na sua origem. Este é o primeiro dos seus movimentos. Depois, cada um dos anjos, considerando que Deus lhe dá companheiros, que em igual vida e em igual imortalidade projetam, na mesma intenção, louvar o seu Senhor, cada um deles se sente dominado por um certo desejo de entrar em relação com eles. Todos experimentam uma inclinação reciproca e poderosa; e é esta inclinação que estabelece a ordem nas suas hierarquias e institui entre as suas legiões uma santa e eterna aliança. Ora ainda que seja verdade que a nossa alma, pelo fato de estar afastada do seu ponto de origem, e de estar constrangida e quase oprimida pelo peso deste corpo mortal, ainda que seja verdade ela deixar apenas manifestar parcialmente esse nobre e imortal vigor que continuamente a devia agitar, descendemos nós contudo duma raça divina, assim como o apóstolo São Paulo o pregou com maravilhosa energia em pleno conselho do Areópago: Ipsius enim et genus sumus (Atos dos Apóstolos, 17, 29). Aprouve ao nosso sublime Deus, que nos formou à Sua semelhança, deixar cair sobre as nossas almas uma centelha desse fogo celeste que brilha nos espíritos angélicos; e embora façamos uma curta reflexão a nosso respeito, notaremos facilmente essas duas belas inclinações que há pouco admirávamos na natureza dos anjos. Com efeito, não vemos que, assim que chegamos ao uso da razão, há não sei que inspiração, cuja origem desconhecemos, que nos ensina a chamar por Deus em todas as necessidades da vida? Em todos os nossos incômodos, em todas as nossas necessidades, há um secreto instinto que nos faz erguer os olhos ao céu, como se conhecêssemos que é lá que reside o arbitro das coisas humanas. E este sentimento observa-se em todos os povos do mundo, em que ficaram uns vestígios de humanidade, porque é um sentimento que se desenvolve mais por natureza que por estudo, e nasce em nossas almas mais por instinto que por doutrina. É um culto que os próprios pagãos impensadamente prestam ao verdadeiro Deus; é o cristianismo da natureza, ou, como lhe chama Tertuliano, "o testemunho da alma naturalmente cristã" - Testimonium animae naturaliter christianae. É este já o primeiro movimento que a nossa natureza tem de comum com a natureza angélica. Além disso, parece manifestamente que o prazer do homem é o homem. Daí esse aprazimento sensível que achamos numa conversação honesta. Daí essa familiar comunicação dos espíritos por meio do comércio da palavra. Daí a correspondência das cartas; daí, para ir mais além, os Estados e as Repúblicas. Tais são as primeiras inclinações de tudo o que é capaz de ouvir e de raciocinar. Uma eleva-nos a Deus, a outra liga-nos por amizade aos nossos semelhantes. Duma nasceu a religião, e da outra a sociedade. Mas, visto que as coisas humanas caminham naturalmente em desordem, se não são refreadas pelas disciplina, foi necessário estabelecer uma forma de governo para as coisas sagradas e para as profanas; aliás, a religião, breve cairia em ruína, e a sociedade degeneraria em confusão. E foi o que introduziu no mundo as duas únicas autoridades legítimas, a dos príncipes e magistrados, e a dos sacerdotes e pontífices. Daí o poder real, daí e ordem sacerdotal. Não cabe aqui explicar-vos qual destes dois poderes tem vantagem sobre o outro, e como eles prestam entre si um natural auxílio. Somente vos peço que considereis que, sendo derivados um e outro das duas inclinações que alcançaram no coração humano raízes mais profundas, eles adquiriram justamente uma grande veneração entre todos os povos, porque são ambos sagrados e invioláveis. Foi por isso que os imperadores romanos, os senhores da terra e dos mares, imaginaram que aumentariam muito a sua dignidade, se juntassem o título de soberano pontífice a esses nomes magníficos de Augusto, de Cesar e de Triunfador; não duvidando de que os povos se submetessem de boa vontade às suas ordens, ao considerarem os príncipes como ministros das coisas sagradas. Por isso, quando olho para esse título de religião ligado a esses nomes odiosos de Nero e de Calígula, esses monstros do gênero humano, o horror e a execração de todos os séculos, não posso deixar de fazer esta reflexão: que os deuses de pedra e de bronze, os deuses adúlteros e parricidas, a quem a cega antiguidade adorava, eram dignos certamente de serem servidos por tais pontífices. Elevai-vos, pois, ó rei do verdadeiro povo, ó pontífice do verdadeiro Deus. A realeza desses imperadores não é mais que uma tirania, e o seu sacerdócio profano um contínuo sacrilégio. Vinde exercer a vossa realeza pela profusão das vossas graças, e o vosso sacerdócio pela expiação dos nossos crimes. Eu creio que compreendeis perfeitamente que é do Salvador que estou falando. Ele, e só Ele, cristãos, que é o verdadeiro Cristo, isto é, o ungido do Senhor, unctus, só Ele reúne em si a realeza e o sacerdócio por excelência da Sua unção, que encerra um e outro poder. E é por esta razão que o admirável Melquisedeque é simultaneamente rei e pontífice; mas "rei de justiça e de paz" - rex justitiae, rex pacis (Hebreus 7, 2) como o interpreta o Apóstolo na sua divina Epístola aos Hebreus, mas o "pontífice do Deus altíssimo", sacerdos Dei excelsi (Gênesis 14, 18) como diz o texto do Gênesis. E porque era isto, cristãos? Não era para representar Aquele que, na plenitude dos tempos, devia ser o verdadeiro rei e o grande sacrificador do Deus omnipotente, isto é, o Jesus Salvador representado em Melquisedeque? É deste glorioso conjunto da realeza e do sacerdócio na pessoa do Filho de Deus que espero hoje falar-vos. Porque, havendo considerado atentamente a significação do nome de Jesus que se dá neste dia ao meu Mestre, acho neste nome augusto a Sua realeza e o Seu sacerdócio. Jesus quer dizer Salvador; e eu digo que o Filho de Deus é rei, porque é Salvador; digo que é pontífice, porque é Salvador. E parece-me estar já a ver que estas duas verdades excelentes me abrem um belo campo. Mas ainda há alguma coisa que demanda a minha atenção. Ele é o rei Salvador e é o pontífice Salvador. De que maneira é Ele Salvador? Pelo Seu sangue. É por isso que neste ditoso dia em que recebe o nome de Jesus e o título de Salvador, começa a derramar o Seu sangue pela Sua misteriosa circuncisão, para testemunhar que é pelo Seu sangue que Ele é Salvador das nossas almas. Ó belas e adoráveis verdades! Poderei hoje explicar-vos a este povo? Vós, que outrora vos escandalizastes por verdes correr o sangue do meu Mestre, que imaginastes que a Sua morte violenta era indício da Sua impotência, quão mal compreendeis os seus mistérios! A cruz do meu rei é o Seu trono; a cruz do meu pontífice é o Seu altar. Aquela carne dilacerada é a força e a virtude do meu rei; aquela mesma carne dilacerada é a vítima do meu pontífice. O sangue do meu rei é a Sua púrpura; o sangue do meu pontífice é a Sua consagração. O meu rei acha-se investido de dignidade pelo Seu sangue, e é pelo Seu sangue que é consagrado o meu pontífice; e é ainda por este meio que Ele é o verdadeiro Jesus, o único Salvador dos homens. Ó Rei e Salvador e soberano Pastor das nossas almas, entornai uma gota desse sangue precioso no meu coração, a fim de o abrasar com as vossas chamas; uma gota nos meus lábios, para que fiquem puros e sagrados, estes lábios que devem hoje pronunciar tantas vezes o Vosso nome adorável: assim seja, irmãos. Vou começar a falar da realeza do meu Mestre; falemos energicamente, escutemos com atenção. Trata-se de glorificar Jesus, que constitui propriamente toda a nossa glória; ó Deus, sede conosco! PRIMEIRO PONTO Antes de mais nada direi que, segundo as profecias antigas, o Messias esperado pelos judeus, reconhecido e adorado pelos cristãos, devia vir ao mundo com um poder real. É por isso que o anjo, anunciando a Sua vinda à Virgem Maria, Sua Mãe, se refere a Ele nestes termos: "Deus há de dar-lhe o trono de Davi, seu pai, e Ele reinará eternamente na casa de Jacó" E a mesma coisa havia predito o evangelista da lei, isto é, o profeta Isaías, quando disse de Jesus Cristo "que Ele há de sentar-se no trono de Davi, afim de o consolidar em justiça e em verdade até à consumação dos séculos" - Super solium David et super regnum ejus sedebit, ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia, amodo et usque in sempiternum (Isaías 11, 7). O que eu muito folgo em submeter à vossa consideração, para que vejais nestas duas passagens a conformidade da antiga e da nova aliança; porque seria impossível referir-vos neste lugar todos os textos das Escrituras que afirmam a realeza do Salvador. E foi com que os judeus infelizmente se iludiram, porque, tendo a alma possuída duma cega admiração pela realeza e pelas prosperidades temporais, davam ao seu Messias belos e triunfantes exércitos, grandes e soberbos palácios, uma côrte mais livre e mais esplendorosa, uma casa mais rica e mais bem disposta do que a do seu Salomão, e enfim todo esse pomposo aparato de que se acha cercada a majestade real. Por isso, quando viram Jesus Salvador, que em tão inferior estalão tomava o título de Messias, não imaginais quão grande foi a sua surpresa. Cem vezes lhes havia Ele dito que era o Cristo, e cem vezes o havia atestado com milagres irrepreensíveis; e eles constantemente a importunarem-no: - Mas afinal, "dizei-nos quem sois; até quando nos deixareis indecisos? Se sois o Cristo, dizei-no-lo abertamente" e dai-nos prova disso: Quousque animam nostrum tollis? Si tu es Christus, dic nobis palam (São João 10, 24). Eles desejariam ouvir outra coisa da boca dEle, e de boa vontade lhe teriam concedido toda a honra que era devida aos maiores profetas; mas também desejariam convencê-lo de que se fizesse rei, ou que desistisse - voluntariamente do título de Messias. E nós lemos em São João que depois dessa milagrosa multiplicação dos cinco pães, alguns povos, convencidos de que um milagre tão extraordinário só podia ser operado pelo Messias, reuniram-se entre si e conclavaram fazê-lo rei (São João 6, 15) E teriam executado o seu intento, se Ele lhes não tivesse desaparecido da vista. Estranha ilusão dos homens, entre os quais ordinariamente todas as espécies de opiniões são recebidas, exceto a boa e a verdadeira! Uns diziam que Jesus era um sedutor; outros, não podendo negar que não houvesse na Sua pessoa qualquer coisa de sobrenatural, comunicavam entre si mil sentimentos ridículos. "Uns afirmavam que era Elias, outros preferiam crer que era João Batista ou algum dos profetas ressuscitados" - Alii Eliam, alii Joannem Baptistam aut unum ex prophetis (São Mateus 16, 14). E em vez de confessarem que era o Messias, deixavam-se dominar por estranhos caprichos. Porque eram assim obstinados, cristãos? É que eles tinham a imaginação cheia dessa magnificência real e dessa suprema majestade, que tanto idolatravam. E essa mentirosa crença tinha tal voga entre os judeus, que esse velho e infortunado político, que andava sempre com a alma perturbada por um desejo furioso de reinar, temerário, que não poupava mais os filhos do que os inimigos, esse Herodes, que é a quem me quero referir, teve zelos dessa pretensa realeza. Daí proveio essa cruel carnificina dos inocentes, cuja memória celebrávamos há dias. Eu não sei se me engano, fieis, mas parece-me que estas observações acerca da história de Jesus Cristo não vos devem desagradar; e nesse caso não recearei acrescentar mais uma que vos mostrará claramente que enraizada estava no espírito dos povos esta opinião da realeza do Salvador. É que os próprios apóstolos, a quem o Filho de Deus honrava com a Sua mais íntima boa-fé, embora particular e publicamente só lhes prometesse tormentos e ignomínia neste mundo, ainda não tinham conseguido desprender-se desse primeiro sentimento que os tinha preocupado na infância. "Mestre, lhe diziam eles, quando é que chegará o vosso reino? Restaurareis dentro em pouco o reino destruído de Israel?" (Atos dos Apóstolos, 1, 6). Jesus predizia-lhes qual devia ser a Sua morte e eles condenavam o vaticínio. Viam que a reputação dEle ia aumentando, e imaginavam que enfim Ele conseguisse realizar o desejo de todos eles e que tudo alcançasse pela Sua virtude e pelos milagres. Lisonjeavam o espírito com mil esperanças grosseiras. Começavam já a disputar entre si a honra da presença. E não era bela a proposta que a mãe dos dois irmãos insensatos, muito crédula e muito ingênua, havia feito a Jesus Cristo? Eles cuidavam já ver o Salvador num trono resplendente de pedrarias, no meio duma corte faustosa. Senhor, lhe diziam eles, quando começareis o Vosso reino, pois desejaríamos que "um de nós se sentasse à vossa direita e o outro à esquerda" (São Mateus 20, 21) Tal era a maneira como eles abusavam da paciência e do auxílio do seu Mestre, pascendo a alma numa vã e pueril ostentação. De maneira que Jesus Cristo, tendo dó da ignorância deles, começa a desiludi-los com estas memoráveis palavras: Ó discípulos insensatos, que imaginais partilhar da minha realeza e julgais que heis de viver num fausto e numa pompa mundana, "não sabeis o que me pedis"; porque nada do que dizeis há de ser assim - Nescitis quid petatis (São Mateus 20, 22). "Podereis beber o cálice que eu hei de beber?" Este cálice é a Sua paixão, em que Ele tantas vezes lhes falou, sem que eles o quisessem compreender. Em seguida, após alguns excelentes conselhos, concluiu assim o seu discurso: "Sabei que o Filho do homem não veio para ser servido, senão para servir e para dar a vida pela redenção de muitos" (São Mateus 28). Ah! Discípulos ignorantes, e vós, mãe imprudente, não era isso o que pretendíeis; vós pedíeis grandezas aparentes, e só vos falam de humilhação. Mas o meu Salvador procedeu assim, para brandamente nos insinuar, pela memória da Sua paixão, que o nosso rei era um rei pobre; que descia à terra, não para se revestir das grandezas humanas, mas para nos ensinar pelo Seu exemplo a desprezá-las; e que, assim como era por paixão que Ele devia subir ao trono, assim também é pelos sofrimentos que podemos aspirar às honras do Seu reino celeste. E agora, cristãos, depois de vos ter; exposto os diversos sentimentos dos homens a respeito da realeza de Jesus, era necessário que eu pedisse a Deus a língua dum serafim para vos exprimir dignamente os sentimentos do próprio Jesus. Na verdade, é com admiração que vejo nas Escrituras divinas que o bondoso Jesus, tendo por assim dizer ostentado a Sua humildade durante todo o curso da Sua vida mortal, só fala de glória, só conversa em grandezas com os Seus discípulos, quando sente aproximar-se a hora derradeira. Era na véspera do Seu infame suplício. Ele já havia celebrado essa páscoa misteriosa que devia ser no dia seguinte completada pelo derramamento do Seu sangue. O Seu discípulo traidor acabava de sair da sua câmara para ir executar o detestável tratado que tinha feito com os pontífices. Logo que ele se retirou da Sua companhia, o meu Mestre, que não ignorava o seu pérfido e execrável intento, como se de repente tivesse sido impressionado por um ardor divino, fala desta sorte aos apóstolos: "Agora vai o Filho do homem ser glorificado" - Nunc glorificatus est Filius hominis (São João 13, 31). Que vai Ele fazer, irmãos? Que quer dizer este Agora? Pergunta muito a propósito neste lugar o admirável Stanto Agostinho. Vai talvez elevar-Se numa nuvem para fulminar todos os seus inimigos? Ou fará descer legiões de anjos para se fazer adorar por todos os povos do mundo? Não, não é isto. Vai para a morte, para o suplício, para o mais cruel de todos os tormentos, para a última das infâmias; e é a isto que Ele chama a Sua glória, o Seu reino e o Seu triunfo. Olhai, por quem sois, para o meu Salvador nesse triunfante dia em que entrou na cidade de Jerusalém, poucos dias antes de morrer. Ia montado num jumento; ah, fiéis! Não coremos por isto. Eu bem sei que os grandes da terra zombariam de tão triste e tão miserável equipagem; mas Jesus não veio para lhes agradar; e seja qual for o pensamento que tenha a louca arrogância dos homens, esta equipagem de humildade é com certeza muito digna dum rei que veio para calcar aos pés suas grandezas. Não é isto, porém, o que eu, quero levar à vossa consideração. Volvei os olhos para esse concurso de povo de todas as condições e todas as idades, que vão à frente dEle, com palmas e ramos na mão em sinal de regozijo, e que, para mostrarem o seu zelo por este novo príncipe, numa cerimônia tão santa abalam os ares com gritos de alegria: "Bendito seja o Filho de Davi, diziam eles; viva o rei de Israel!" - Hosanna Filio David, benedictus qui venit in nomine Domini rex Israel (São Mateus 21, 9). E por entre estas beatíficas aclamações, entra em Jerusalém. Que novo procedimento é esse, tão diferente do seu vulgar procedimento? E dizei-me desde quando Ele gosta dos aplausos, visto que, sendo outrora procurado por uma grande multidão de pessoas que tinham, vindo das cidades e das aldeias vizinhas com intenção de o fazerem rei, como há pouco vos referi, se retirara sozinho para o cume duma alta montanha, a fim de evitar o Seu encontro. Hoje ouve Ele todo este povo que, em alta voz, O proclama seu rei; e os fariseus ciosos aconselham-no a que imponha silêncio a essa plebe escandecida, e o meu Salvador responde: "Não, porque as pedras clamarão, se estes se calarem" - Si hi tacuerint, lapides clamabunt (São Lucas 19, 40). Que diremos de mudança tão inopinada? Ele aprova o que rejeitava, e aceita hoje uma realeza que outrora recusara. Ah! Não procureis outra causa; porque, pela última vez que Ele entra em Jerusalém, é para lá morrer; e um Salvador que morre é um Salvador que reina. Com efeito, quando é que alguém O viu mostrar-se com mais firme valor e com mais augusto porte do que no tempo da Sua paixão? Como me apraz vê-lO perante o tribunal de Pilatos, afrontando por assim dizer a majestade dos fasces romanos com a generosidade do Seu silêncio! Pode Pilatos entrar quantas vezes quiser no pretório para interrogar o Salvador, que Ele apenas satisfará a uma única das suas perguntas. E que pergunta é essa, irmãos? Admirai os segredos da Divindade. O presidente romano pergunta-lhe se é verdade Ele ser rei: e o Filho de Deus no mesmo instante, tendo ouvido falar da sua realeza, sem que ainda se ti-vesse dignado satisfazer a qualquer das perguntas que lhe eram dirigidas por aquele juiz condescendente, e nem sequer honrá-lo com uma única palavra, responde-lhe com acento grave e majestoso: "Sim, é verdade que sou rei" - Tu dicis, quia rex sum ego; (São João 18, 37) palavra que até então ainda não tinha proferido. Considerai o Seu intento, se vos apraz. O que Ele nunca confessou por entre os aplausos do povo, assombrados com o grande número dos Seus milagres e com a santidade da Sua vida e com a Sua doutrina celeste, começa a publicá-lo em alta voz, quando o povo pediu a Sua morte no meio de furiosas aclamações. Nunca se manifestou senão por figuras e parábolas aos apóstolos que recebiam os Seus discursos como palavras de vida eterna; e agora nuamente o confessa ao juiz corrupto, que, por uma injusta sentença, O vai pregar na cruz. Nunca disse que era rei, quando praticava ações duma potência divina; e apraz-Lhe declará-lo, quando está para sucumbir voluntariamente à última das enfermidades humanas! Não é isto operar muito intempestivamente? E contudo foi a Sabedoria eterna que dispôs todos os tempos. Mas, ó maravilhoso infortúnio! Ó segredo admirável da Providencia! Eu compreendo-Vos, ó meu rei Salvador! É que Vós fazeis consistir a glória em sofrer por amor dos Vossos povos, e não quereis que Vos falem de realeza senão, no próprio momento em que, por uma morte gloriosa, fordes libertar os Vossos miseráveis vassalos duma servidão eterna. Só então, só então confessais que Sois rei, Bondade inacreditável do nosso rei! Que o céu e a terra cantem eternamente os seus perdões. E vós, ó fiéis de Jesus Cristo, bem-aventurados vassalos do meu rei Salvador, ó povo de conquista a quem o meu príncipe vitorioso adquiriu com o preço do Seu sangue, com que amor e com que homenagens podereis dignamente reconhecer as liberdades infinitas dum rei tão clemente e tão generoso? De certo não temerei dizê-lo que não são os tronos, nem os palácios, nem a púrpura, nem as riquezas, nem as guardas que cercam o príncipe, nem esse longo séquito de fidalgos, nem a multidão dos cortesões, que prestam grandes homenagens à Sua pessoa; não, não são essas coisas que eu mais admiro nos reis. Mas quando considero essa infinita multidão de povos que espera da proteção dos reis a sua salvação e a sua liberdade; quando vejo que, num Estado civilizado, a terra se acha bem cultivada, os portos francos, o comércio rico e fiel, e cada um viver em sua casa tranquilamente e em segurança, reconheço que é isto um efeito dos conselhos e da vigilância do príncipe. E quando vejo que, assim como um sol, a magnificência desse príncipe conduz a virtude até às províncias mais recônditas; e que os seus vassalos lhe devem uns as honras e os cargos, outros a fortuna e a vida, e todos a segurança pública e a paz, de maneira que não há um único que não deva estimá-lo como a seu pai; isto então arrebata-me, cristãos, porque desta forma a majestade dos reis parece-me inteiramente admirável; e nisto os reconheço como vivas imagens de Deus, que se compraz de encher o céu e a terra com provas da sua bondade, não deixando neste mundo lugar algum vazio de benefícios e de liberalidades. Oh! Dizei-me, por quem sois, em que século, em que história, em que feliz região se viu alguma vez um monarca, não digo tão poderoso e tão temível, mas tão bom e tão benfazejo como o nosso? O reino do nosso príncipe constitui a nossa felicidade e a nossa salvação. "Se Ele se digna reinar sobre nós, é por clemência e por misericórdia; não é isso para Ele um aumento de poder, mas um testemunho da sua bondade" - Dignatio est, non promotio; miserationis indicium, non potestatis augmentum, diz o admirável Santo Agostinho. Olhai para essa vasta extensão do universo: todos esses lumes celestes, todas as santas aspirações, todas as virtudes e graças, foi o sangue do príncipe Salvador que os atraiu à terra. Todos quantos somos cristãos, não proclamamos quotidianamente que nada possuímos que não seja derivado da Sua pessoa? Esse povo maravilhoso que Deus na Sua bondade espalhou por entre todos os outros, povo que neste mundo habita e que neste mundo é desconhecido, que faz tráfico na terra para amontoar no céu (fiéis, sabei que é ao povo dos eleitos que me quero referir, à nação dos justos e dos homens de bem) que é que não deve ao Salvador? Todos os particulares desse povo, desde a origem do mundo até à consumação dos séculos (vede que grande extensão!) clamam dia e noite e com todas as forças pelo nosso esforçado Libertador: Fostes Vós que quebrastes os nossos ferros, fostes Vós que abristes as nossas prisões; a Vossa morte libertou-nos da opressão e da tirania; o Vosso sangue resgatou-nos das penas eternas. Por Vós vivemos, por Vós respiramos, por Vós temos esperança e por Vós reinamos; porque a munificência do nosso príncipe passa a um tal excesso de bondade, que faz monarcas dos seus vassalos, e só quer ver na sua côrte frontes coroadas. Escutai, oh! Escutai o belo hino dos vinte e quatro velhos do Apocalipse, que representam, na minha opinião, toda a universalidade dos fiéis do Antigo e do Novo Testamento; doze para os doze primeiros patriarcas, os pais da Sinagoga; e doze para os doze apóstolos, príncipes e fundadores da Igreja. Eles são reis, são coroados, e cantam com incrível prazer os louvores do Cordeiro sem mancha, imolado por amor de nós. "O Cordeiro imolado, diziam eles, que nos resgatastes com o vosso sangue; haveis-nos feito reis e sacrificadores pelo nosso Deus, e nós reinaremos sobre a terra!" - Et regnabimus super terram (Apocalipse 5, 10). Ó Deus eterno! E qual é a maravilha dessa corte, cristãos? Ousariam manifestar-se todas as grandezas humanas perante tal magnificência? Esse antigo admirador da velha Roma, admirava-se de ter visto naquela cidade soberana tantos reis, dizia Ele, como senadores. Irmãos, o nosso Deus omnipotente chama-nos a um espetáculo bem diverso, de que nós próprios fazemos parte. Nessa côrte verdadeiramente real, nessa nação eleita, nessa cidade triunfante que Jesus erigiu por Sua morte, isto é, na Santa Igreja, não digo que lá não vejamos tantos reis como senadores; mas digo que devemos lá ser tanto reis como cidadãos. Quem jamais ouviu falar de semelhante coisa? Foi um povo inteiro de reis que Jesus reuniu com o Seu sangue, que Jesus salva, que Jesus coroa, que faz reinar, reinando sobre eles, porque "servir o nosso Deus é reinar" - Servire Deo, regnare est. Ó realeza augusta do rei Salvador, que divide a Sua coroa com os povos que resgatou! Ó morte verdadeiramente gloriosa! Ó sangue utilmente derramado! Ó nobre e magnifica conquista! Por maiores que sejam os louvores que demos aos vitoriosos, não deixa de ser verdade que as guerras e as conquistas produzem sempre muito mais lágrimas do que lauréis. Considerai, ó fiéis, os Cesares e os Alexandres e todos esses outros devastadores de províncias, a quem chamamos conquistadores: só na Sua cólera é que Deus os envia à terra. Esses valentes, esses triunfadores, com todos os seus magníficos elogios, só cá vêm para perturbar a paz do mundo com a sua ambição desmedida. Já alguma vez fizeram guerra tão justa, onde não tenham oprimido uma infinidade de inocentes? As suas vitórias são o luto e o desespero das viúvas e dos órfãos. Triunfam da ruína das nações e da ruína pública. Ah! Outro tanto se não dá no reino do meu príncipe! Ele é um capitão salvador, que salva os povos, porque os domina, e domina-os, morrendo por eles. Não emprega ferro nem fogo para os subjugar; combate com amor; combate com benefícios, com graças omnipotentes e com encantos invencíveis. E é o que explica divinamente uma excelente passagem do Salmo 44, que eu me esforçarei por vos expor. Renovai, se vos apraz, a vossa atenção. O Profeta, neste lugar, considera Jesus Cristo como um príncipe vitorioso, e vendo em espírito que Ele devia sujeitar às suas leis um tão grande número de povos rebeldes, convidado a pegar em armas e depois diz: "Cingi a espada, ó meu bravo e valoroso capitão" - Accingere gladio tuo super femur tuum (Salmo 44, 4). E imediatamente, como se quisesse corrigir o seu primeiro discurso com nova reflexão (são estes os movimentos ordinários da expressão profética) continua: "Não, não é assim, ó meu príncipe, não é com lágrimas que deveis estabelecer o vosso império" Então como? E ele responde-lhe: "Ide, mais belo dos homens, com essa admirável beleza, com essa boa graça que vos é tão peculiar - specie tua et pulchritudine tua; avançai, combatei e reinai" - intende, prospere procede et regna (Salmo 44, 5). Depois continua assim o seu discurso: "Como são penetrantes as setas do Todo-Poderoso! Todos os povos lhe hão de cair aos pés. Os seus golpes vão ferir mesmo no coração inimigos do meu rei" - Sagittae Potentis acutae (Salmo 119, 4). Em seguida, eleva os olhos para a majestade do seu trono e para a vasta extensão do seu império: Sedes tua, Deus, in saeculum saeculi - "O vosso trono, ó Deus, está firmado para todos os séculos dos séculos" (Salmo 44, 7). E que quer dizer esse reino? Que vitoriosa beleza é essa? Que significam esses golpes, e essas setas, e esses povos feridos no coração? É o que vamos explicar com o auxílio divino, por uma doutrina inteiramente cristã, toda extraída dos Livros Sagrados e das Escrituras Apostólicas. Mas, fiéis, aconselho-vos a que não tenhais o espírito ocupado com alguma ideia vã de beleza física, que certamente não merecia tão longa meditação da parte do profeta. Atendei, atendei antes a esse terno e afetuoso movimento do admirável Santo Agostinho: "Quanto a mim, diz este grande personagem, seja qual for o lugar onde eu vir o meu Salvador, a Sua beleza parece-me encantadora. Ele é belo no céu, e portanto é belo na terra, belo no seio de seu Pai e belo entre os braços de Sua mãe. É belo nos milagres, e não o é menos no meio das multidões. Tem uma graça incomparável, quer quando nos aconselha a viver, quer quando Ele próprio despreza a morte. É belo até na Cruz, e até é belo no sepulcro: Pulcher in caelo, pulcher in terra...; pulcher in miraculis, pulcher in flagellis; pulcher invitans ad vitam, pulcher non curans mortem...; pulcher in ligno, pulcher in sepulchro. Pensem os outros o que quiserem a este respeito; mas para nós outros crentes, em toda a parte onde o virmos, é Ele sempre belo em perfeição - Nobis credentibus ubique sponsus pulcher occurrat. Mas o que sobretudo devo confessar, cristãos, é que, seja qual for a crença que o mundo tenha no tocante à Sua paixão, ainda que esses membros cruelmente desconjuntados, e essa miseranda carne maltratada faça quase sublevar o coração dos que dEle se aproximam, ainda que o profeta Isaías tenha vaticinado que neste estado "não seria Ele fácil de reconhecer-se, porque já não teria a graça nem qualquer aparência humana" - Non est species ei, neque decor; vidimus eum, et non erat aspectus; (Isaías 53, 2,) apesar de tudo isso, é nesses lineamentos apagados, é nesses olhos pisados, é nesse semblante que inspira horror, que eu distingo feições duma incomparável beleza. A Sua doçura tem não só dignidade, mas também graça e encanto. Mas dir-me-eis talvez: Que ideia tão singular procurar a beleza de Jesus no meio dos Seus sofrimentos, que nem sequer Lhe conservam a figura humana! Porque a não considerais antes na Sua maravilhosa transfiguração ou na Sua ressurreição gloriosa? Escutai e compreendei o meu pensamento e vereis que essa beleza é incomparável para nós. Um soldado acha-se coberto de grandes ferimentos que parecem alterar-lhe o semblante. As pessoas escrupulosas talvez desviem a vista dessas chagas; mas o príncipe há de acha-las belas, porque foi para o servir que Ele as recebeu: são sublimes distintivos, são cicatrizes honrosas, que a fidelidade para com o seu rei e o amor da pátria embelezaram. Ora eu certamente não posso evitar, ó fieis de Jesus Cristo, que os inimigos do meu Mestre achem deformidade nas Suas chagas; mas, "para nós outros, crentes", novis credentibas, como dizia há pouco Santo Agostinho, para mim, que estou certo de que por amor de mim foi que Ele assim se cobriu de ferimentos, não é aceitável a opinião dele. A verdadeira beleza do meu mestre não lhe pode ser negada; porque essas cruéis contusões, em vez de Lhe alterarem o semblante, mais o embelezaram a meus olhos. Se os ferimentos dos vassalos são tão belos aos olhos do príncipe, dizei-me que devem ser os ferimentos do príncipe aos olhos dos vassalos? Para mim, são verdadeiras delicias, que eu beijo e rego com lágrimas. O amor que o meu rei Salvador me dedica, o amor que Lhe abriu todas as chagas, derramou nEle uma certa graça, incomparável a nenhum outro objeto, e um certo esplendor de beleza que transporta as almas fiéis. Não vedes com que doce prazer elas se prostram constantemente a adorá-IO? Afastá-las desse amável objeto, seria para elas um verdadeiro suplício. Daí provem essas setas agudas que Davi canta no nosso Salmo; daí, procedem esses raios de chama invisível "que penetram os corações tio sensivelmente" - in corda inimicorum regis, "que eles desejam outra coisa com mais ardência do que a Jesus não crucificado", à imitação do Apóstolo: Non judicavi me scire aliquid inter vos nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum (Coríntios 3, 2) É assim que o rei Jesus se compraz de reinar nos corações. É por isso que eu não me admiro se apenas vir na Sua paixão provas da Sua realeza. Sim, a despeito da raiva dos seus carrascos esses espinhos constituem um diadema que Lhe coroa a paciência; a cana frágil converte-se em um cetro nas Suas mãos; essa púrpura ridícula, com que eles O cobrem, transformar-se-á em púrpura real, logo que for tinta com o sangue do meu Mestre. Quando eu ouço o povo clamar que o Salvador merece a morte só porque se fez rei, digo imediatamente de mim para mim: não há duvida, esses loucos dizem melhor do que pensam; porque o meu Príncipe deve reinar por meio da morte. Quando Ele leva a cruz sobre os ombros inocentes, outro que não fora cristão admirar-se-ia da Sua impotência; mas o fiel deve-se lembrar do que dEle disse Isaías, "que o seu império, o seu principado é sobre os seus ombros que se acha estabelecido" - Principatus super humerum ejus (Isaías 9, 6). Que quer dizer esse império e esse principado estabelecido sobre os ombros do Salvador? Ah! Não o compreendeis? É a cruz. É assim que o explica Tertuliano no livro Contra os Judeus. A cruz é o Seu cetro; a cruz é o Seu bastão de ordenança; é ela que há de reduzir todos os povos à obediência de Jesus Cristo. E nunca vos destes ao incômodo de atentar nessa bela inscrição que os inimigos do meu Mestre fixaram no alto da cruz: JESUS DE NAZARÉ, REI DOS JUDEUS, escrita em grossos caracteres e em três espécies de idiomas, para que se tornasse mais conhecida? É verdade que os judeus opõem-se a este intento, mas Pilatos escreve o letreiro, apesar da resistência deles. Que quer isto dizer, cristãos? Esse, juiz corrupto tinha desejo de salvar o meu Mestre, e apenas o condenou para ser agradável aos judeus. Os próprios judeus instam com ele para que mude a inscrição; e ele recusa, resiste e deixa de ter condescendência para com eles. Como assim! Esse homem tão condescendente, que entrega um inocente à morte, com receio de ofender os judeus, começa a tornar-se audacioso para conservar três ou quatro palavras que havia escrito sem intenção e que pareciam de tão pouca importância! Notai tudo isto, por quem sois: ele é covarde e ousado, é fraco e audacioso no mesmo assunto e para com as mesmas pessoas. Meu Deus, bem reconheço os Vossos segredos; era necessário que Jesus morresse na cruz, e eia indispensável que no alto da cruz ficasse registrada a Sua realeza. Pilatos executa primeiro por condescendência e depois por audácia. "Ó virtude inefável da operação divina até no coração dos ignorante! - exclama neste passo o admirável Santo Agostinho - Todos eles não sabem o que dizem, e todos dizem o que ao meu Salvador apraz". Uma secreta virtude se apodera invencivelmente da alma desses ignorantes, e apesar das suas más intenções, executam mui prudentes e mui salutares conselhos. Caifás, em pleno conselho de fariseus, falando de Jesus Cristo, diz "que é conveniente que ele morra, para que toda a nação não pereça". De maneira que a Sua morte não deixará que toda a nação pereça; e, portanto, é Ele o Salvador de toda a nação, observa muito a propósito o evangelista São João (São João 11, 50. 52) Maravilhoso juízo de Deus! Imaginava Ele que pronunciava a sentença da Sua morte, e fazia uma profecia da Sua glória. O mesmo aconteceu a Pilatos: condena o Filho de Deus à Cruz; e querendo escrever segundo o costume, a causa do seu suplício, exige um monumento à sua realeza. Tal é a verdade do poder infalível que Deus tem para dirigir os corações dos Seus inimigos para onde Lhe apraz e obrigá-los a concorrer, a seu pesar, para a execução dos Seus desígnios! E como o reino do Salvador devia começar pela cruz, desejava o nosso sublime Deus que a Sua realeza nela ficasse atestada por um sinal público e pela autoridade do governador da província, que imprevistamente há de servir à Providência Divina. Escrevei, pois, ó Pilatos, as palavras que Deus vos dita e cujo mistério não compreendeis. Sejam quais forem às alegações que vos possam fazer, tende cuidado de não alterardes o que já está escrito no céu permaneçam irrevogáveis as vossas ordens, visto que são cumpridas em execução dum decreto imutável do Omnipotente. Fique a realeza de Jesus, escrita em linguá hebraica (São João 19, 20) que é a língua do povo de Deus; em língua grega, que é a língua dos doutos e dos filósofos; e em língua romana, que é a do império do mundo. E vós, ó gregos, inventores das artes; vós, ó judeus, herdeiros das promessas; vós, romanos, senhores da terra, vinde ler esse admirável letreiro, e genuflecte perante o vosso rei. Dentro em pouco vereis esse homem, abandonado pelos Seus próprios discípulos, reunir todos os povos à invocação do Seu nome. Dentro em pouco sucederá o que Ele outrora profetizou, isto é, quando se elevar da terra atrairá tudo a Si e mudará o instrumento do mais infame suplício numa máquina celeste para excitar todos os corações. Et ego, cum exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (São João 12, 32). Em breve as nações incrédulas, para as quais Ele estende os braços, virão receber, por entre os afagos paternais, esse amável beijo de paz, que, segundo as profecias antigas, as deve reconciliar com o verdadeiro Deus que elas desconhecem. Não tarda que esse crucificado seja "coroado de honra e de glória, porque, pela graça de Deus, sofreu a morte por todos", como diz a divina Epístola aos Hebreus; (Hebreus 2, 9) verá nascer do seu sepulcro uma bela prosperidade; e será gloriosamente realizado esse famoso oráculo do profeta Isaías: "Se Ele der a alma pelo pecado, verá uma longa série de descendentes" - Si posuerit pro peccato animam suam, videbit semen longaevum (Isaías 53, 10). Essa pedra, tirada da estrutura do edifício, constituirá a pedra angular e fundamental que há de sustentar todo o novo edifício (Salmo 127, 22) e esse misterioso grão de frumento, que representa o nosso Salvador, quando cair à terra (São João 12, 24) há de multiplicar-se pela sua própria corrupção, isto é, o Filho de Deus há de cair da cruz para o sepulcro, e por um maravilhoso acidente "todos os povos lhe cairão aos pés" - Populi sub te cadent, dizia o nosso Salmo (Salmo 44, 6). Como eu sinto vivo prazer quando vejo em Tertuliano que já no seu tempo o nome de Jesus, tão próximo da morte do nosso Salvador e do começo da Igreja, já o nome de Jesus era adorado por toda a terra, e em todas as províncias do mundo que ao tempo estavam descobertas, tinha o Salvador um número infinito de vassalos! "Nós constituímos, diz claramente aquela ilustre personagem, quase a maior parte de todas as cidades" - pars pene major civitatis cujusque. Os Partos invencíveis aos Romanos, os Trácios antínomos, como lhes chamavam os antigos, isto é, homens incompatíveis com toda a espécie de leis, suportaram voluntariamente o jugo de Jesus. Os Medos, os Armênios, os Persas e os índios mais remotos; os Mouros e os Árabes, e essas vastas províncias do Oriente; o Egito e a Etiópia, e a África mais selvagem; os Citas, sempre errantes, os Sármatas, os Getulios, e a Barbaria mais desumana foi domada pela doutrina modesta de Jesus. Na Inglaterra, ah! Na pérfida Inglaterra, inacessível aos romanos pela barreira marítima, aportou a fé do Salvador: Britannorum inaccessa Romanis loca, Christo vero subdita. Que direi dos povos das Espanhas, e da belicosa nação dos gauleses, o espanto e o terror dos Romanos, e dos audaciosos alemães, que se jactavam de não ter outro receio que não fosse o de lhes cair o céu sobre as cabeças? Aproximaram-se de Jesus, mansos e simples como cordeiros, e vieram pedir-Lhe humildemente perdão, impelidos por um temor respeitoso. E até Roma, essa cidade soberba que por tanto tempo se havia embriagado com o sangue dos mártires de Jesus, até Roma, a senhora do mundo, vergou a cabeça e prestou mais honra no túmulo dum pobre pecador do que nos templos do seu Rômulo: Ostentatur mihi Romae tanto in honore templum Romuli, in quanto ibi ostendo memoriam Petri. Não há império, por mais vasto que seja, que não tenha sido estreitado em certos limites. Jesus reina em toda a parte, diz o grave Tertuliano no livro Contra os judeus, donde extrai quase tudo o que acabo de vos dizer a respeito da vastidão do reino de Deus. "Jesus reina em toda a parte, diz ele, e em toda a parte Jesus é adorado. Perante Ele, a condição dos reis não é melhor do que a dos menores escravos; Citas ou Romanos, gregos ou bárbaros, tudo lhe é semelhante, Ele é igual para todos, é rei de todos, e é o Senhor e o Deus de todos" - Christi regnum et nomen ubique porrigitur; ubique regnat, ubique adoratur; non regis apud illum major gratia, non barbari alicujus inferior laetitia; omnibus aequalis, omnibus rex, omnibus Deus et Dominus est. E o que é mais para admirar é que não foram os nobres e os imperadores que lhe trouxeram os simples e os plebeus; pelo contrário, foi Ele que chamou os imperadores com autoridade dos pecadores. Permitiu que os imperadores, com todo o poder do mundo, resistissem à Sua pobre Igreja com toda espécie de crueldades, a fim de mostrar que o Seu reino não dependia do apoio nem da condescendência dos grandes. Mas quando Lhe aprouve abater aos pés a majestade do império, disse então: "Vinde, vinde a mim, ó Cesares, que bastantemente e por largo tempo haveis perseguido à minha Igreja; entrai no meu reino, onde não sereis mais poderosos do que os menores dos vossos vassalos" Ao mesmo tempo, Constantino, esse triunfante imperador, obedecendo à Providência, elevou o lábaro da cruz acima das águias romanas, e por toda a vastidão do império foi a paz assinada às Igrejas. Onde estais, perseguidores? Que é feito desses leões rugidores que queriam devorar o rebanho de Jesus? Já não existem, irmãos; porque Jesus aniquilou-os, e "eles caíram-lhe aos pés": Populi sub te cadent. O mesmo sucedeu com São Paulo: "Jesus fez morrer o seu perseguidor, e em seu lugar colocou um discípulo" - Occisus est inimicus Christi, vivit discipulus Christi, diz Santo Agostinho. Por isso, esses povos ferozes, que rugiam como leões contra os inocentes cordeiros de Jesus Cristo, já não existem, morreram; "Jesus feriu-os no coração", in corda inimicoram. "Era pelo coração que eles se insurgiam contra Ele, e foi pelo coração que Ele os humilhou" - Cadunt in corde; ibi se erigebant adversus Christum, ibi cadunt ante Christum. "As setas do meu Mestre penetraram o coração dos seus inimigos" - Sagittae Potentis acutae in corda inimicoruum regis. Ele feriu-os com o seu santo amor. "Os inimigos ficaram derrotados, e o meu Salvador como amigos os tratou" - Ceciderunt: ex inimicis amici facti sunt; inimici mortui sunt, amici vivunt. E por que meio conseguiu Ele isto? "Por meio da cruz" - Domui orbem, non ferro, sed ligno. "O reino que não era deste mundo dominou o mundo soberbo, não com a altivez dum combate, mas com a humildade da paciência": Regnum quod de hoc mundo non erat, superbum mundum non atrocitate pugnandi, sed patiendi humilitate vincebat. Ora no tempo em que tudo isto se passava (notai comigo este último fato) no tempo em que tudo respirava Jesus, pela paz que foi assinada à Igreja, erigiam-Lhe templos de todas as partes, e em toda a terra derrubavam os ídolos; no tempo em que todos os veneráveis bispos da cristandade, que são os príncipes do seu império, se reuniram em Niceia a fim de se ocuparem dos primeiros estados gerais de todo o reino de Jesus Cristo, nos quais todas as províncias do mundo confessaram a Sua divindade; nesse mesmo tempo a cruz preciosa em que o Salvador fora suspenso, cruz que até então havia estado oculta, talvez porque a Providência divina imaginasse que a cruz de Jesus Cristo já havia estado bem patente aos seus membros durante a perseguição dos fies; a cruz até então oculta (ponderai todas estas circunstâncias) foi descoberta nesse tempo por grandes extraordinários milagres, foi e reconhecida e foi adorada. E isto não é uma história duvidosa, porque deve ser aprovada por todos os que amam as antiguidades cristãs, nas quais a vemos muito evidentemente atestada. E julgaríeis, cristãos, que uma coisa tão memorável, tão célebre entre os Padres, tivesse acontecido nesse tempo sem qualquer profundo conselho da Sabedoria, eterna? Inteiramente inverosímil. Que diremos então? Que todo o mundo foi vencido e tudo se vergou às leis do Salvador. Já é tempo de vos erguerdes, ó Cruz que esta obra formastes; fostes vós que despedaçastes os ídolos, fostes vós que subjugastes os povos, fostes vós que destes a vitória aos valorosos soldados de Jesus que tudo venceram pela paciência. Haveis de ser gravada na fronte dos reis, haveis de ser o principal ornamento da corôa dos imperadores, ó cruz que sois a alegria e a esperança de todos os fiéis. Concluamos, pois, de todo este discurso que a cruz é um trono magnífico, que o nome de Jesus é um nome bem digno dum rei, e que um Deus, que desce à terra para viver no meio dos homens, não podia fazer coisa mais sublime, nem mais real, nem mais divina do que salvar todo o gênero humano por meio duma morte generosa. SEGUNDO PONTO E prouvera a Deus, cristãos, que, para de todo vos mostrar a glória dessa morte, eu tivesse tempo bastante para vos falar um pouco do título de pontífice de que Jesus Cristo tanto se tornou digno! Assim eu, seguindo a tão celeste doutrina da incomparável Epístola aos Hebreus, pela comparação do sacerdócio da lei mosaica, procuraria fazer-vos compreender a dignidade infinita do sacerdócio de Jesus Cristo. Veríeis Aarão levar a um altar corruptível novilhos e touros; e Jesus, pontífice e vítima, oferecer, perante o trono de Deus, a sua carne formada pelo Espírito Santo, oblação sagrada e viva para expiação dos nossos crimes. Veríeis Aarão num tabernáculo mortal expurgar a lei de certas impurezas e de certas irregularidades com o sangue dos animais mortos; e Jesus à direita da majestade, fazendo com a virtude do Seu sangue a verdadeira purificação das nossas almas. Veríeis Aarão consagrado com sangue de outrem, como está escrito no Levítico (Levítico, 8) e "com esse mesmo sangue doutrem", in sanguine alieno, diz o Apóstolo (Hebreus 9, 25) entrar no santuário edificado por mão de homem; e Jesus, consagrado com o Seu próprio sangue, entrar também com o Seu próprio sangue no santuário eterno, cujas portas abre a seus servos. Veríeis (e que admirável espetáculo para almas verdadeiramente cristãs!) veríeis dum lado todos os homens revoltados abertamente contra Deus; e doutro lado a justiça divina, pronta a precipitá-los no abismo na companhia dos demônios, cujos conselhos e cujo orgulho haviam seguido e imitado, quando de repente esse santo, esse caridoso pontífice, esse pontífice fiel e condoído dos nossos males, aparece entre Deus e os homens. Aparece para suster os golpes que iam cair sobre as nossas cabeças, e depois, derramando o Seu sangue sobre os homens, ergue a Deus as suas mãos inocentes; e, pacificando assim o céu e a terra, suspende o curso da vingança divina e transmuda um furor implacável numa eterna misericórdia. Veríeis como todos os fiéis se convertem em sacerdotes e sacrificadores com o precioso sangue de Jesus, por meio do qual são consagrados. Eu representar-vos-ia esses novos sacrificadores, revestidos duma estola celeste, purificados nas águas do batismo e no sangue do Cordeiro, oficiando todos juntos, não sobre um altar de matéria terrena, mas sobre esse altar celeste que representa o Filho de Deus; (Apocalipse 8, 3) e até encherem esse altar de vítimas espirituais, isto é, de fervorosas preces, de cânticos de louvor e de piedosas ações de graças, que de todos os lugares da terra se elevam acima desse misterioso altar perante a face de Deus, semelhantes a um agradável perfume e a um oloroso sacrifício, em nome de Jesus Cristo Senhor Nosso, grão sacerdote e sacrificador eterno, segundo a ordem de Melquisedeque. E que não dirianos desse incomparável Pontífice, desse Medianeiro do Novo Testamento, por quem são bem recebidas todas as orações, por quem são remidos os pecados, e por quem são concedidas todas as graças; esse Pontífice, que, por uma nova aliança, quebrou o pernicioso tratado que havíamos feito com o inferno e com a morte, conforme diz Isaías: Delebitur faedus vestrum cum morte, et pactum vestrum cum inferno non stabit (Isaías 28, 18) Muito diríamos, cristãos. E depois, juntando essa doutrina inteiramente apostólica ao que acabamos de dizer da realeza do Salvador, concluiríamos claramente, na expansão dos nossos corações, que o nome de Jesus, que encerra todas essas maravilhas, é um nome superior a todos os nomes, como ensina o Apóstolo aos Filipenses; (Filipenses, 2, 9) e, que muito convinha na opinião do mesmo Apóstolo aos Hebreus (Hebreus 2, 10) "que Deus consagrasse, pelos seus tormentos, o príncipe da nossa salvação". Mas, visto que aprouve ao que nos inspira, nesta tribuna da verdade, fornecer-nos bastantes pensamentos para falarmos da realeza de Jesus, detenhamo-nos aqui, fiéis, até que a Providencia divina nos conduza ao mesmo assunto, e destas verdades tiremos alguns ensinamentos para edificação das nossas almas. Por isso, ó povos de Jesus Cristo, se o Filho de Deus é o vosso verdadeiro rei, tratai de Lhe prestar obediência. Será preciso remontar aos séculos passados para vos provar como os bons príncipes foram as delicias dos seus vassalos? O que não fizeram os povos pelos reis que salvaram os seus países, tornando-se uns verdadeiros pais da pátria? Ah! Em verdade existe em nossos corações não sei que natural propensão para os príncipes que Deus nos dá, que nem as desgraças, nem qualquer mau acolhimento podem fazer desaparecer das almas bem formadas. Como é fácil aos reis da terra conquistarem a afeição dos seus povos! Um sorriso, um olhar benévolo, um semblante sincero e risonho satisfaz às vezes os mais exigentes. In hilaritate vultus regis vita, dizia antigamente o Sábio: (Provérbios 16, 15) "O príncipe exprime a vida no olhar, quando o tem sereno e tranquilo" Povos, é coisa indubitável, bem o sabeis; um governo tolerante e justo, um poder acompanhado de bondade e dum temperamento benéfico, encanta as almas mais selvagens. É um sentimento comum entre os homens virtuosos; e príncipes assim até são dignos de viver. Só a Jesus de nada servem a brandura e as liberalidades. Por mais que Ele nos abra os braços para nos abraçar; por mais agradável que nos seja, não com vãs caricias, mas com benefícios reais, a tudo ficamos insensíveis, porque preferimos iludir-nos com as frívolas aparências do mundo do que com a amizade sólida que Ele nos promete. E com que cuidado buscou Ele o nosso amor! Ele, que é o nosso rei por origem, também o é de direito natural; e quis sê-Io por amor, e por benefícios. "É necessário libertar estes miseráveis cativos", disse Ele. Eu poderia consegui-lo doutro modo; mas quero salvá-los, morrendo por eles, a fim de fazer com que me tenham amor. Irei com risco da minha vida, irei com a perda de todo o meu sangue arrebatá-los da morte eterna. Mas não importa, fá-lo-ei de boa mente; e não lhes peço outra recompensa, a não ser o amor. Depois, hão de reinar comigo também. Dizei-me agora, irmãos, porque é que Jesus, sendo o melhor dos príncipes, não consegue com tal bondade conquistar os nossos afetos, nem abrandar a dureza dos nossos corações? Vós, com efeito, povo de Metz, mereceis que eu vos elogie, quanto a serdes fiel aos nossos reis. Nunca ninguém vos viu entrar, por simpatia ao menos, nos diversos partidos que se formaram contra o seu ministério. A vossa obediência não é duvidosa, nem a vossa fidelidade vacilante. Quando há dias se falava desses covardes que tinham vendido aos inimigos do Estado os lugares que o rei lhes confiou, viu-se que vós tínheis frêmitos duma justa indignação. Chamáveis-lhes traidores, indignos de terem nascido, por terem assim covardemente enganado a confiança do príncipe e haverem sido infiéis ao seu rei. Ora nós, que somos fiéis aos reis da terra, porque somos traidores somente ao Rei dos reis? Porque é que para Ele não nos incomoda sermos pérfidos, censura que, noutras circunstâncias, muito sentiríamos? Irmãos, Jesus confiou-nos a todos um lugar que é para Ele de tal importância, que o quis comprar com o Seu sangue: esse lugar é a nossa alma, que Ele confiou à nossa fidelidade. Nós somos obrigados, a guardar-la, em virtude de um juramento inviolável que lhe prestamos no batismo. Ele proveu-a de tudo o que é necessário: interiormente com as Suas graças e com o Seu Espírito Santo, externamente com a proteção angélica. Nada lhe falta, é inexpugnável, e só por traição pode ser tomada. Traidores e pérfidos que somos, que a entregamos a Satanás, que vendemos a Satanás o prêmio do sangue de Jesus; a Satanás, Seu inimigo mortal, que quis invadir-Lhe o trono, e que, não podendo realizar no céu a sua audaciosa empresa, veio à terra disputar-Lhe o reino e em Seu lugar fazer-se adorar. Ó perfídia! Ó indignidade! Para servir a Satanás traímos o nosso príncipe que, por nossa causa foi crucificado, traímos o nosso único libertador. Imaginai, cristãos, que hoje no meio desta assembleia aparece de repente um anjo de Deus que nos faz soar aos ouvidos o que outrora Elias dizia aos Samaritanos: "Povos, até quando hesitareis entre dois partidos?" - Quousque claudicatis in duas partes? (1, Reis, 18, 21). Se o Deus do Israel é o verdadeiro Deus, deveis adorá-lO; e se Baal é Deus, necessariamente o deveis adorar. Amados irmãos, os pregadores são os anjos do Deus dos exércitos. Por isso, hoje vos digo a todos, e Deus queira que convenientemente o diga a mim próprio: Quousque claudicatis? "Até quando estareis hesitantes?" Se Jesus é o vosso rei, prestai-Lhe obediência; mas se o vosso rei é Satanás, colocai-vos ao lado de Satanás. É necessário que hoje vos decidais. Ah! Irmãos, que estremeceis a esta proposta. Por Jesus! Por Jesus! Dizeis vós; mas não podemos aqui tomar deliberação. E eu, apesar do que me dizeis, novamente reitero a mesma pergunta: Quousque claudicatis in duas partes? Estareis eternamente hesitantes, sem decidirdes como convém? "Se Eu sou o vosso mestre, diz o Senhor pela boca do seu, profeta, onde está a honra que me deveis?" (Livro de Malaquias, 1, 6) "E porque me chamais Senhor, e não fazeis o que vos digo?", diz Jesus Cristo no seu Evangelho (São Mateus 8, 1) Em que quereis que haja fé, nas nossas palavras ou nas nossas ações? O Filho de Deus ordena-nos que nos aproximemos de seu Pai com toda a pureza e temperança, E então para que havemos de ter tão aviltantes desejos? Para que há tão excessiva devassidão? Ele ordena-nos que sejamos caritativos; mas a caridade, fiéis, poderá acaso harmonizar-se com as nossas secretas paixões, com as nossas maledicências contínuas e com as nossas inimizades irreconciliáveis? O Filho de Deus ordena-nos que aliviemos os pobres tanto quanto pudermos; e nós não receamos consumir o alimento do pobre por meio de rapinas cruéis ou com usuras mais que judaicas: Quousque claudicatis? Não devemos hesitar mais, irmãos; é necessário optar por um ou por outro. Se Jesus é o nosso rei, demos-Lhe as nossas obras como Lhe damos as nossas palavras; mas se o nosso rei é Satanás (ó coisa abominável! Que até a dureza dos nossos corações nos compele a falar desta sorte) se o nosso rei é Satanás, não lhe recusemos as nossas palavras, depois de lhe havermos dado as nossas ações. Mas Deus queira, irmãos, que nunca façamos semelhante escolha! E como poderíamos suportar o olhar desse Cordeiro sem mancha, triste por nossa causa? Nesse dia terrível, em que esse rei há de descer majestosamente a julgar os vivos e os mortos, como haveríamos de sustentar o aspecto das Suas chagas que nos exprobrariam a nossa ingratidão? Onde encontraríamos antros assaz obscuros e abismos bastante profundos para ocultar tão negra perfídia? E como havíamos de suportar as exprobrações dessa terna amizade tão indignamente desprezada, e a voz terrível do sangue do Cordeiro que, estando já na cruz, suplicou para nós perdão e misericórdia, e nesse dia de cólera há de clamar vingança contra a nossa fé mal garantida e contra os nossos juramentos infiéis? Ó Deus eterno! Quão duro e insuportável há de ser esse império que Jesus há de começar nesses dias a exercer sobre os Seus inimigos! Porque afinal, fiéis, é necessário que Ele reine sobre nós. O império das nações está-Lhe prometido pelas profecias. Se Ele não reinar sobre as nossas almas por misericórdia, reinará nelas por justiça; se nelas não reinar por amor e com graça, há de reinar pela severidade dos juízos e pelo rigor das Suas ordens. E que dirão os maus, quando, a seu pesar, sentirem a opressão do braço omnipotente do seu rei; quando Deus, ferindo com uma das mãos e segurando com a outra, os fustigar eternamente com os seus golpes sem os consumir? E assim, sempre vivos e sempre moribundos, imortais para seu castigo, fortes demais para morrer, e demasiado fracos para suportar, hão de gemer constantemente em leitos de chamas, ultrajados com dores furiosas e irremediáveis; e, soltando por entre execráveis blasfêmias mil lamentos desesperados, hão de confessar com tardia penitência que nada havia mais racional do que deixar imperar Jesus nas suas almas. Em verdade, são dignos dos mais horríveis suplícios, por terem preferido a tirania do usurpador ao doce e legítimo domínio do príncipe natural. Ó Deus e Pai de misericórdia, desviai estes infortúnios de cima das nossas cabeças! Irmãos, não desejais, pois, que eu hoje renove o juramento de fidelidade que todos devemos ao nosso grande rei? Ó meu Jesus, a quem tão justamente pertencemos, e que nos resgatastes com um prêmio de amor e de caridade infinita, eu reconheço-vos como meu soberano. É a vós unicamente que eu me dedico. O Vosso amor será a minha vida, a Vossa lei será a lei do meu coração. Eu cantarei os Vossos louvores, e nunca deixarei de proclamar a Vossa misericórdia. Quero ser-Vos fiel, quero pertencer-Vos inteiramente, quero consagrar-Vos todos os meus cuidados, e quero viver e morrer servindo-Vos. Amém. Festa da Circuncisão - 2º Sermão para a Festa da Circuncisão Jesus é o Cordeiro que tira os Pecados do Mundo Pregado no 1º de janeiro de 1687, em Paris, na capela da Casa professa dos Jesuítas. SUMÁRIO Exordio. - Desenvolvimento do texto: Ipse salvum faciet populum suum a peccatis eorum... Proposição e divisão. - Jesus é o Cordeiro que tira os pecados do mundo: 1º O pecado avilta a alma e dá-lhe a morte eterna, mas Jesus ressuscita-a pelo perdão; 2º A alma perdoada é de novo arrastada ao mal, mas a graça de Jesus fortifica-a contra a tentação; 3º Neste mundo estamos sempre, sujeitos a abusar da nossa liberdade, mas com a glória do céu torna-nos Jesus impecáveis. 1º Ponto. - O pecado é um ato de rebelião contra Deus e de ódio contra o próprio indivíduo, um mal íntimo que apaga em nós por completo tudo que nos une a Deus. A graça de Jesus, fruto do Seu sangue divino, cura este mal nas almas penitentes. 2º Ponto. - O pecado, entrando na nossa alma, e residindo sobretudo nela, faz-lhe chagas que não desaparecem juntamente com Ele, enfraquece a nossa natureza e produz-lhe as maiores alterações. A graça de Jesus, porém, está sempre preparada para nos lavar dos nossos pecados, para nos ajudar a triunfar, para nos premunir enfim contra novas fraquezas. 3º Ponto. - Finalmente, para completar a sua vitória, a graça de Jesus Cristo há de ajudar-nos a alcançar o repouso eterno, isto é, esse estado em que a nossa alma, firmada na felicidade, não tornará jamais a pecar. Peroração. - Ai do que diz: "Eu pequei e que mal me sucedeu?" Não se lembra de que o Omnipotente o espera no dia fatal, e que, certo do golpe que há de dar, não precipita a sua vingança. - Elogio do zelo da Companhia de Jesus. Vocabis nomen ejus Jesum: ipse enim salvum faciet populum suum a peccatis eorum E vós lhe chamareis Jesus, que quer dizer Salvador, porque é Ele quem há de salvar o povo dos seus pecados (São Mateus 1, 21). Se tivéssemos conservado os sentimentos que Deus a princípio tinha dado à nossa natureza, não teríamos dificuldade alguma em compreender que o pecado é o maior de todos os males, e sem o auxílio dos oradores sagrados, a nessa consciência dir-nos-ia mais do que todos os seus discursos. O que nos ilude, irmãos, o que faz com que não consideremos o pecado como um mal, é ele ser voluntário. Mas a este respeito e manifesto o nosso erro, porque, sendo por culpa nossa que ele é voluntário, o parecer-nos que não é, dá origem à sua existência; e é para vingar o abuso que dele fazemos com prejuízo nosso e para nossa vergonha, que a mortalidade, que as doenças, que o próprio inferno e todos os seus suplícios veem de tropel oprimir-nos a nosso pesar. E quem quer que seja o Salvador dos homens, deve ele unicamente inclinar-se a este princípio voluntário e universal de todos os nossos males. É por isso que Deus nos adverte que se hoje, por entre as dores da circuncisão, Ele dá a seu Filho o nome de Salvador e eleva com nome tão sublime a Sua humilhação, é porque Ele deve salvar o seu povo fiel com esse grande mal do pecado. Outros deram-lhe este belo nome por Ele ter libertado o povo dum longo cativeiro, ou dos perigos da guerra, ou dos horrores da fome. Todas as línguas devem confessar que este é um Salvador do melhor quilate, porque não vem salvar-nos como os outros das penas ou de certas consequências do pecado; vem salvar-nos do próprio pecado; e atacando o mal pela raiz, é Ele o verdadeiro Libertador e o Salvador por excelência. É esta, irmãos meus, em poucas palavras, a explicação do meu texto (É esta a significação do meu texto) e é por isso que o nome sagrado de Jesus é superior a todos os nomes. Eu poderia provar-vos com São Paulo "que a este nome tudo se humilha no céu, na terra e nos infernos" (Filipenses, 2, 10) e por este meio despertar-vos profunda admiração e grande assombro com nome tão augusto e tão magnifico. Mas prefiro provar-vos, pelo próprio sentido do meu texto, que a este nome, o céu e a terra se enchem de alegria, de esperança, e de ações de graças, e que todo o coração se deve inflamar dum santo amor. É a este assunto que eu dedico todo o meu discurso. E como São Paulo diz que "ninguém pode pronunciar sequer o nome de Jesus senão pela graça do Espírito Santo" (1 Coríntios 12, 3) é humildemente que eu a peço por intercessão da bem-aventurada Virgem Senhora nossa. Ave-Maria. A remissão dos pecados, a própria obra do Salvador e a graça particular da nova aliança começa no Batismo, continua-se durante toda a vida e completa-se no céu. É o que Santo Agostinho nos explica por uma excelente doutrina. Interpretando esta palavra de São João Batista: "Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo"; (São João 1, 29) diz ele estas belas palavras: "O Filho de Deus tira os pecados, porque perdoa os que cometemos, porque nos ajuda a não cometer mais durante esta vida, e porque, por diferentes perigos e por diversos exercícios, nos conduz finalmente à vida feliz, em que não podemos cometer mais nenhum" Deste modo, o reino do pecado é inteiramente destruído, e a graça do nosso Salvador alcança sobre este inimigo uma vitória completa. Porque, quando nos entregamos ao pecado, irmãos, tem ele a sua mancha que nos desdoura e que depois causa a morte eterna; e quando o pecado desaparece das almas pela graça do sagrado Batismo ou pela da Penitência, ainda deixa nelas os seus encantos enganadores e os seus atrativos que nos tentam; e no maior vigor da sua resistência, se vivemos sem pecado, pelo menos sem esses pecados que causam a morte, não vivemos sem perigos, porque temos sempre em nós essa liberdade infeliz e essa deplorável facilidade de sucumbir a um mal tão perigoso. Para ser nosso Salvador e preencher toda a latitude dum título tão glorioso, é necessário que o Filho de Deus nos liberte destes três males: que tire o mal do pecado pela graça que no-lo perdoa; que reprima o seu atrativo pela graça que nos mantém durante todo o curso da vida; e finalmente que faça desaparecer por completo todo o perigo pela graça que nos coroa e nos recompensa. Tal é a obra do Salvador. Agora, irmãos, façamos a nossa; a estas três graças que Ele nos dá, devem corresponder da nossa parte três disposições; conservai-as, cristãos. E se quiserdes gozar da salvação que vos é oferecida em Jesus Cristo, reconhecei antes de mais nada com amor e ação de graças o perdão que nos foi concedido; combatei incessantemente o atrativo pernicioso que nos arrasta para o mal, e aspirai de todo o vosso coração ao estado feliz em que já não tereis de recear fraqueza alguma. Eis toda a vida cristã que corresponde ao nome adorável de Jesus Cristo. E agora, irmãos, muito estimarei se puder gravar-vos no coração estas três verdades. PRIMEIRO PONTO Para compreenderdes perfeitamente o que deveis ao Salvador, compreendei primeiro que tudo o que é o pecado, de que Ele vos liberta. Eu não quero aqui, cristãos, que considereis no pecado nem a fraqueza que o produz, nem o opróbrio que o cerca, nem o suplício terrível que de perto o acompanha; não, para o detestardes, não quero que espereis nem a sentença do juiz, nem a sangrenta execução desse juízo final, nem a sublevação universal das criaturas unidas para vingarem o ultraje do seu criador, nem o ardor dum fogo devorante, ou, como lhe chama São Paulo, a sua emulação, ignis aemulatio (Hebreus 10, 27) e essa força sempre nova que se irrita cada vez mais contra os maus. Não é isto que eu quero que noteis; o que eu desejaria fazer-vos compreender, é o que tudo isto merece; o que, por consequência, é mais funesto, mais pernicioso e mais digno do nosso ódio; isto é, o desregramento, a iniquidade, a fealdade e a própria malícia do pecado. E donde vem essa fealdade é essa malícia que o faz tão digno de execração? É fácil compreendê-lo. É que o homem esta submetido por sua natureza, e deve estar submetido por escolha sua, à vontade divina e à razão eterna que lhe dirige as ações; deve-se associar a ela de todo o seu coração, porque é o que o faz justo, o que o faz reto e o que o faz virtuoso. Quando peca, desprende-se dela; prefere a sua vontade à de Deus, a vontade dependente e subordinada à vontade soberana, a vontade errante e defeituosa à vontade reta, que é a sua própria lei; a vontade particular, que também se limita a contentar um particular, isto é, o próprio individuo, à vontade primeira e universal pela qual tudo subsiste, e onde tudo o que existe, tudo o que vive e tudo o que ouve encontra a sua ordem, a sua estabilidade e o seu repouso. Nada há mais indigno, nem mais iníquo, e não é possível levar mais além, nem a rebelião, contra Deus, nem a consequência dessa rebelião, que é o ódio contra o próprio individuo. É este certamente de todos os males o mais pernicioso. A rebelião contra Deus: "Contra quem vos sublevastes? Contra o Santo de Israel" (2, Reis, 19, 22). O ódio contra o próprio individuo: "Aquele que ama a iniquidade é o inimigo da sua alma" (Salmo 10, 6). Sim, cristãos, todo o pecador é inimigo da sua alma, corruptor na sua consciência do seu maior bem, que é a inocência. Ninguém peca que não se ultraje a si próprio; ninguém atenta contra a integridade de outrem senão com perda da sua, ninguém se vinga do seu inimigo que não dê o primeiro golpe e o mais mortal no seu próprio seio; e o ódio, esse veneno mortal da vida humana, começa a sua operação funesta no coração onde é gerado, visto que apaga nele a caridade e a graça. Perjuro, que querias tornar o céu cúmplice da tua perfídia, esse depósito de boa fé que Deus confiara à tua guarda, mas que tu roubaste a ti próprio; quanto mais valia o que tu não queres reconhecer? O pecado, por consequência, é o maior e mais extremo de todos os males; maior sem comparação do que todos os males que nos ameaçam externamente, porque é o desregramento e a completa depravação do interior; maior e mais perigoso do que as doenças corporais mais pestilentes, porque é um veneno fatal para a vida da alma; maior do que a perda da razão, porque é a perda da probidade e da virtude, e, afinal, maior perda do que a da razão é a do bom uso dela, sem o qual a própria razão não é mais do que uma loucura e um erro criminoso; mal íntimo que apaga em nós por completo tudo o que nos associa a Deus, e que, fazendo entrar a malícia até ao amago da nossa alma, a abre também de todo à vingança. Por consequência, e em conclusão, o pecado é um mal superior a todos os males; uma desgraça que excede todas as desgraças, porque é ao mesmo tempo uma desgraça e um crime; desgraça que nos oprime, e crime que nos desonra; desgraça que nos tira toda a esperança, e crime que nos tira todo o perdão; desgraça, que tudo nos faz perder, e crime que nos torna criminosos da nossa perda, não tendo nós sequer o triste direito de nos lastimarmos, e pesando sobre nós a vergonha, que é o maior de todos os infortúnios, digna ao mesmo tempo dum ódio e dum desprezo eterno. Já basta, já basta; que eu já nem sequer posso suportar o nome de pecado. Tão grande mal eu sinto que me oprime, que a vida me foge, se não encontrar um Salvador. Pois sem esse Salvador misericordioso, onde encontrarei, ó Deus, um remédio para o mal que me tortura? Onde encontrarei um remédio para as dissoluções ou um asilo para os temores da minha consciência, tristes prenúncios dos rigores inexoráveis da Vossa justiça? Que recurso hei de procurar? Não, irmãos meus, só o Salvador nos pode dar o meio de respirarmos um momento. Não digais, como os ímpios, de que reza o Profeta: "O Senhor não nos fará bem nem mal" - Non faciet bene Dominus et non faciet male (Livro de Sofonias, 1, 12). E que mal podemos nós fazer-Lhe para provocar as Suas vinganças? Ocupado em fazer girar continuamente a grande máquina do mundo, não o atingem as nossas injúrias; os nossos pecados, de que se diz que Ele se acha ofendido, não chegam até Ele. Assim fala o ímpio; e firma-se na sua impotência. Ignorante, que não vê, pelo contrário, que quem quer que seja o vingador das injustiças, deve, pela sua própria grandeza, estar acima dos seus insultos. E é em virtude da lei ser inalterável, que a injustiça e o agravo se aniquilam contra ela; é em virtude da verdade ser invencível, que a mentira e o erro se confundem na sua presença. O castigo deve partir de mão inacessível às injurias; aliás, mais entregue a defender-se dos crimes do que a puni-los, deixará triunfar a iniquidade. Oxalá que não! Sob o império dum Deus tão santo, se os nossos pecados pudessem prejudicar o Seu reino, se pudéssemos enfraquecer o Seu poder pelas nossas rebeliões ou ofender a Sua dignidade pelos nossos ultrajes, seria Ele um vingador mui pouco para temer. Mas porque o Seu trono está fora do nosso alcance, porque o cerca a justiça e porque o Seu juízo atua sempre poderosamente e verdadeiramente, amaldiçoado, amaldiçoado uma vez ainda, e amaldiçoado seja para sempre todo aquele que peca à Sua vista! E esta verdade é tão importante, que era indispensável que ela existisse no próprio Salvador. É por isso, que Deus nos mostra um Salvador suspenso da Cruz, oprimido com os nossos crimes. Que era com efeito, o Salvador? Que era esse Verbo encarnado, irmãos? Que outra coisa não era senão a própria verdade manifestada na carne? Desta maneira, toda a verdade devia nEle ser manifestada; tanto a verdade dos rigores de Deus como a dos seus perdões. Deus então "estabeleceu no Salvador a iniquidade de nós todos" (Isaías 53, 6) como dizia o profeta; e ao mesmo tempo para conciliar todas as coisas, e com receio de que no meio dos perdões se esquecessem os rigores, fez do medianeiro da Sua graça um exemplo da Sua justiça. Jesus Cristo suportou esse jugo por amor de nós. Desde o princípio da Sua vida recebeu a circuncisão, isto é, o sacramento dos pecadores e o sinal da servidão deles. Quando Ele começar o Seu ministério; quando, depois de haver saído do Seu profundo recolhimento, começar a obra para que foi enviado, há de receber ainda no batismo outro sacramento dos pecadores. Como assim! Jesus ser batizado! Jesus, que é a própria inocência, ser filiado no número dos penitentes! O próprio São João, a quem Ele se dirige, fica perturbado: "Senhor, eu batizar-vos! - Que importa? responde o Salvador; é assim que devemos cumprir toda a justiça" (São Mateus 3, 14, 15). Ora, se Jesus se dispôs a suportar o castigo de todos os pecadores, também é justo que eu o imite. "Deus estabeleceu então no Salvador, diz o profeta, a iniquidade de nós todos"; e suportou esse jugo voluntariamente. Portanto, o Salvador em certo modo, o maior de todos os pecadores, visto que todos eles se acham representados na sua pessoa; e ao mesmo tempo esse jugo é, o que eu não estranho, a vingança que o persegue no nascimento, na morte, e em todo o curso da sua vida. A ele teria sucumbido, se não fosse Deus. Que novo prodígio é esse, irmãos meus! O paganismo pôde compreender perfeitamente que é preciso ser Deus para exercer a justiça em toda a sua latitude, e nós vimos transparecer esta ideia no platonismo. Mas que fosse preciso ser Deus para a suportar, é isto um mistério do cristianismo, mas mistério muito manifesto para olhos imaculados; porque o peso da vingança divina sobre o pecador é tão grande que, se for preciso um poder infinito para o enviar, não é preciso outro menor para o suster. Embora Jesus Cristo tome apenas a forma de escravo e a semelhança do pecado, embora Ele seja apenas pecador (entendei sempre pela representação de todos os pecadores a obrigação que Ele se impôs de suportar o castigo de todos os crimes) embora Ele apenas seja pecador, a cruz há de oprimi-lo com o seu peso; Ele ficará sepultado nas sombras da morte, e as prisões do inferno onde foi preciso Ele descer conservá-lo-ão eternamente cativo. Mas porque esse representante dos pecadores é com efeito um Deus omnipotente, por isso mesmo é que, como diz Davi, ficou "livre entre os mortos" (Salmo 87, 6) e superior não só à pena do pecado, mas ao próprio pecado; e veio a ser, pelo Seu sangue, a propiciação de todos, os pecados e o Salvador de todos os homens. Acudi, pois, sem demora, ó pecadores, quem quer que sejais, ou o vosso ouro constitua a vossa força, ou façais consistir a força e a confiança nos vossos disfarces (Os vossos artifícios) ou tenhais criado uma falsa divindade numa criatura tão infeliz e tão cega como vós; ou a vossa chama imanente vos deixe ainda a liberdade de vos arrependerdes, ou o vosso jugo se torne mais pesado, e endurecidos no mal pareçais ter feito com o pecado uma eterna aliança. Pela graça de Jesus Cristo que vos chama, "o vosso pacto com o inferno será anulado, e o tratado que fizestes com a morte não se manterá" (Isaías 28, 18) Recebereis gratuitamente a remissão dos vossos pecados pelos merecimentos do Salvador; e ouvireis da Sua boca estas palavras: "Ide em paz" (São Lucas 7, 50) Escutai somente pecadores, a lei suave que Ele vos impõe; e tão suave que enternecidos por tantos benefícios lhe dareis o vosso coração. Deveis-lhe, pois, o vosso amor, quando Ele vos der a graça, e mais lhe ficais devendo, depois dEle vo-la ter dado; e se quiserdes saber o grau do amor que Ele de vós espera, avaliai-o pelos vossos crimes. Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e o outro devia-lhe cinquenta. Como não tivessem com que pagar, perdoou-lhes ambos a divida inteira. Qual dos dois lhe tem mais amor? É a pergunta que faz Jesus ao fariseu, como sabeis pela parábola do Evangelho (São Lucas 7, 41 seguintes) E que responde o fariseu, isto é, que responde a própria dureza e a própria sequidão?, Qual dos dois lhe tem mais amor? Certamente que é aquele a quem mais se perdoa. O fariseu é assim que responde, e a sua resposta merece a aprovação do Salvador. E vós, irmãos, que respondereis? O vosso coração insensível nada dirá ao vosso Libertador? E se, conforme o seu oráculo, aquele a quem mais se perdoa é o que mais amor tem depois de tantos pecados perdoados e de tantas graças recebidas, onde encontrareis amor bastante para os reconhecer? Mas se o não tiverdes, se o vosso amor, em vez de se inflamar, apenas desfalecer e se extinguir; se a graça da penitência tantíssimas vezes desprezada, apenas produzir, por único fruto, no vosso coração ingrato, uma confiança insensata, e em contínuas reincidências uma insensibilidade espantosa, não ficais já compreendendo a vossa sentença? Se Jesus não vir manifestar-se em vós qualquer natural consequência da remissão dos pecados, e não descobrir nas vossas obras qualquer centelha de amor, não receais, insensíveis, que Ele nada vos perdoe? Não, vós não estáveis dispostos a receber semelhante graça; e, portanto, a vossa penitência não era mais que uma ilusão. Posso dizer-vos como disse São Paulo: "Vós ainda persistis nos vossos pecados" (1 Coríntios 15, 17) isto é, ainda vos conservais na perdição e na morte. Que deplorável situação que é a vossa! Mas quando houverdes recebido a remissão dos vossos pecados, se o médico que vos curou não vos continuar a prestar o seu auxílio, a reincidência é inevitável. Porque Ele é esse Salvador misericordioso que não só entra quando lhe abrem a porta, mas também bate para lha abrirem (Apocalipse 3, 20). SEGUNDO PONTO É chegado o momento de compreendermos o que são as fraquezas morais, as chagas da alma e o cativeiro da nossa natureza, vencida pelo pecado. Internamente e externamente tudo concorre para estabelecer o seu império. Em primeiro lugar, externamente: fascinados pela nossa boa fortuna, ciosos da fortuna dos outros, insensíveis às suas desgraças, perturbados e enfraquecidos pelas nossas menores perdas, não guardamos a devida proporção, nem para conosco, nem para com os nossos irmãos. Tudo o que externamente se manifesta é para nós motivo de escândalo. Internamente, que trevas! Que ignorância! Os verdadeiros bens são os menos conhecidos; ninguém no-los pode fazer compreender. E pelo que diz respeito aos nossos conhecimentos, ou a paixão os obscurece, ou a inconsideração, os inutiliza, como provas de desregramento no saber; ou a curiosidade os torna perigosos, como prova de impiedade e de heresia. Em todos os acontecimentos da vida, a razão dá-nos conselhos, e os sentidos estimulam-nos. É por isso que o bem nos apraz, mas entretanto o mal prevalece; a beleza da virtude atrai-nos, mas as paixões arrebatam-nos; e enquanto aquela combate frouxamente, alcançam estas mui fácil vitória, estabelecem a sua tirania e instituem um reino pacífico. Tudo o que há de melhor em nós dispara em excesso, a coragem em altivez, a atividade em zelo, e a circunspeção em incerteza. Que virá a ser de mim? Para onde me hei de voltar, homem miserável? Que hei de fazer da minha vontade, sempre enfraquecida pela contrariedade dos seus desejos? Ou a entorpece a preguiça, ou a precipita a temeridade, ou a suspende a irresolução, ou a paralisa a pertinácia e não permite que ela compreenda coisa alguma. Umas vezes assusta-a o perigo, outras vezes enfraquece-a a certeza, e ainda outras a corrompe o orgulho. Ó pobre coração humano! A quantos erros estás exposto! De quantas vaidades és o joguete! O teatro de quantas paixões! Estranha miséria do homem, a quem cega a ignorância e a quem a inteligência confunde, "para quem a sua própria sabedoria é uma armadilha, e a sua própria virtude um escolho contra o qual se lhe quebram as forças", porque a sua humildade a tudo isto sucumbe!. Nesta deplorável fraqueza, irmãos, sinto-me impelido a excitar-vos a que preseis gratidão ao Salvador, não tanto pelos pecados que Ele vos remiu, como por aqueles de que vos preservou a Sua graça. Santo Agostinho exprimiu este belo sentimento no livro da Santa Virgindade: Omnia peccata sic habenda tanquam dimittantur, a quibus Deus custodit ne comittantur: "Deveis crer na remissão de todos os vossos pecados e na - graça que vos não deixou pecar, porque todos nós os albergamos, por assim dizer, na grande corrupção da nossa alma. Não, irmãos, não há erro, por mais extravagante, nem paixão, por mais desordenada, que não tenha em nós a sua origem pelo que Deus, confiando-nos a nossa própria alma, como diz São Paulo (Romanos 1, 24) por pouco que levante o dique, vê-la-á completamente inundada de pecados. E não me digais que há crimes, pelos quais sentis tanta repugnância que, sem auxílio, os podeis evitar; pois quem poderia aqui representar-vos o encadeamento das nossas paixões, e a maneira como essas paixões, que amais com tanto carinho, geram, per assim dizer, outras que vos causam horror? Quão afastado da idolatria devia andar o sábio Salomão, a quem Deus se dera a conhecer por tão manifestas aparições! E no entretanto, o seu amor cego impele-o para os ídolos. Que coisa há mais oposta à clemência e ao coração magnânimo de Davi, do que derramar o sangue inocente dum dos seus servos mais fiéis, dum Urias, que ardentemente o servia? Um olhar, intempestivamente volvido e fito mui suavemente, compele-o pouco a pouco, contra o seu temperamento, a uma ação tão negra e tão sanguinária. Inimigo da imoderação era Ló, que imaculadamente se havia conservado com a sua família no meio das abominações das suas inominadas cidades e, contudo, é sabido que o vinho exerceu grande influência sobre ele. Nabucodonosor era apenas soberbo, mas o seu orgulho desprezado torna-o cruel. E que necessidade tinha Baltasar, nos seus banquetes dissolutos, dos vasos do templo de Jerusalém? Não havia muitas outras taças douradas na Babilônia, enriquecida com o despojo de tantos reis? "Tragam-nas contudo; correi buscá-las, horda de escravos. Embriaguemo-nos, disse ele às suas mulheres e às suas amantes, embriaguemo-nos nessas taças sagradas, donde tantas manifestações se fizeram ao Rei dos judeus!" E desta maneira, a sua intemperança leva-o até à profanação e ao sacrilégio. Tal é a certeza que temos de que, apagada a luz divina, esquecido o princípio da retidão e enfraquecida a consciência, todos os crimes uns após outros se naturalizam, por assim dizer, no nosso coração, e nós caímos de excesso em excesso. E agora vos pergunto: acreditaríeis nisto, se vos dissessem, na vossa juventude, que deveríeis enrugar a fronte até desprezardes todo esse tumultuar e todos esses opróbrios mundanos? Acreditaríeis nisto, se os vossos lábios, não sei como habituados a esse prazer sempre enganoso, tivessem afinal de proferir gratuitamente tantas mentiras ou mesmo tantos perjúrios como de palavras? Vós caístes gradualmente nesse, abismo; e para que descêsseis a essas profundidades que tanto horror vos causavam, bastou apenas conduzir-vos lá por um declive mais suave e mais insensível. Por isso, o divino Salvador, demais limitaria eu o meu reconhecimento para convosco, se o reduzisse apenas aos crimes que me perdoastes. Mas "eles multiplicaram-se por sobre os cabelos da minha cabeça, e o coração abandona-me quando nisto penso" (Salmo 39, 13) Enfim, o seu número é ilimitado; e eu vejo erguer-se a meus olhos uma série infinita de pecados conhecidos e desconhecidos. Se as minhas mãos estão inocentes, é à bondade do Salvador que o devo. Ó graça divina! Aprendamos, pois, a conhecer a multidão dos pecados, e num só que cometermos, compreendamos a infinidade integral da nossa malícia. Um respeito humano não vos deixa praticar uma boa ação. Enquanto vos irritais contra os devotos, corais da profissão da verdadeira piedade. Foi por um princípio semelhante que, durante a perseguição, tantas almas enfermas naufragaram na fé, e que a Igreja lamentou a sua apostasia. Se em breve não corrigirdes a indiferença desumana que votais aos infelizes e aos pobres, chegareis, compenetrada de vós mesmo e dos vossos prazeres, à insensibilidade do mau rico. Irrite-se essa vaidade que exige tanta condescendência, ou esse interesse que vos obriga a dar um passo em falso no caminho da boa-fé e da justiça, e ver-se-á nascer dum lado esses monstros de orgulho que ninguém poderá suportar, e do outro as traições e as perfídias assinaladas. Vede, pois, nesse primeiro passo, em que vos susteve a mão do Salvador, todo o horror da queda. O que nós não tememos da nossa malícia, tememo-lo da nossa fraqueza; ou, para melhor dizer, tememos ao mesmo tempo tudo da nossa malícia e da nossa fraqueza, porque a nossa malícia conduz-nos a tudo, e a nossa fraqueza, sem proteção e exposta de todos os lados, a nada resiste. Estejamos, pois, sempre em guarda contra nós mesmos. Temos de conservar um edifício oscilante; e para lhe manter a estrutura que de todos os lados se arruína, é preciso estar sempre vigilante, sempre atento e pronto a operar, escorar dum lado, reparar do outro, consolidar o fundamento, alicerçar essa muralha arruinada que arrastará consigo todo o edifício, e cobrir de novo a cumieira; porque é por aí que a fraqueza sucumbe, é por lá que as chuvas penetram. Para conhecermos todas estas imperfeições, não conhecemos bem o Salvador. Que este nome me confunda! Mas que me dê também alegria e confiança! Eu, que tenho andado sempre transviado, muito careço dum Salvador a cada momento! Mas, por outro lado, devo, por assim dizer, considerar-me salvo de pecado, visto que tenho um Salvador tão poderoso e tão caritativo, um Salvador que a ninguém se recusa, "cujo nome é um perfume derramado" (Cântico dos Cânticos, 1, 2) e cujas graças se, estendem a todos os pecadores, isto é, a todos os homens: que a todos abre os seus braços, a todos as suas chagas, a todos as suas mercês!. "A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador" - In Deo salutari meo (São Lucas 1, 46-47). "Minha alma bem-diz o Senhor, e que tudo o que em mim existe celebre o seu santo nome; minha alma, repito, bendiz o Senhor, e não esqueças nunca algum dos seus benefícios. Foi Ele quem todos os teus pecados perdoou, e é Ele quem todas as tuas fraquezas suporta" (Salmo 102, 3). Mas, para cúmulo de felicidade, é Ele quem te há de libertar de todos os teus perigos e que, elevando-te a tão alta e tão perfeita liberdade, fará com que nunca mais sejas servo do pecado. É, portanto, esta, cristãos, a graça final, o prêmio, a perfeição e o cúmulo de todas as outras. É este o eterno sabatismo, é este o perfeito repouso que nos está prometido, e em que a nossa fidelidade não será menos garantida do que a de Deus, porque então há de Ele suspender de todo os nossos desejos erráticos por meio da plena comunicação do verdadeiro bem. Ainda vos vou dizer mais duas palavras, cristãos, sobre essa graça final. TERCEIRO PONTO Essa graça final será dada ao fiel pelo nosso Salvador, quando, após o termo desta vida, Ele lhe dirigir estas palavras: "Coragem, bom e fiel servo, já que fiel fostes nas pequenas coisas, ser-vos-ão dadas as grandes: entrai no gozo do vosso Senhor" (São Mateus 25, 23). Compreendeis a energia destas palavras: "EEntrai no gozo do vosso Senhor?" Compreendeis esse Gozo sublime, divino, incompreensível, que não entra no vosso coração como num navio mais vasto do que Ele, mas que, maior do que o vosso coração, diz Santo Agostinh, o inunda, o penetra e o toma para si? Não é o seu próprio gozo que sente o fiel, é o gozo do seu Senhor onde ele entra; é a felicidade do seu Deus, porque, unindo-se com Deus, constitui, como diz São Paulo (1 Coríntios 6, 17) um mesmo espírito, por meio dum amor imutável; de maneira que, semelhante a Deus, e unindo-se Deus a ele em certo modo, tudo o que nEle houver de mortal é absorvido pela vida; e sentindo apenas o espírito de Deus, entra na plenitude do gozo do mesmo Deus, in gaudium Domini tui. Então não só deixa de pecar, mas também não pode pecar. Todos os seus desejos são satisfeitos; e com a capacidade da sua alma, e realizada a sua esperança. Que é feito dessa liberdade que não deixava de baquear de objeto para objeto? Já o fiel lhe desconhece o encanto. Não há movimento do seu coração nem parte alguma de si próprio que possa escapar ao soberano bem que o possui. O princípio do nosso repouso é poder ser impecável; o fim, é tornar impossível o pecado. É este, irmãos, o alvo a que devemos mirar, este apenas o nosso grande desiderato. "Procuremos, pois, diz São Paulo, entrar nesse repouso" (Hebreus 4, 11). Mas não se consegue bem tão sublime sem ter o desejo de o experimentar. Experimentemos de antemão esse bem sacrossanto, porque Deus, já nesta vida, nos concedeu um reflexo da Glória na graça, uma prova da clarividência na fé, um ante-gosto da felicidade eterna na esperança, e uma centelha da caridade perfeita na caridade começada. Comecemos pois "a deliciar-nos com a bondade do Senhor" (Salmo 33, 9). Mas quê! Já ninguém me ouve. Tu foges-me neste momento, ouvinte distraído; e se nos ouves durante algum tempo, é em quanto pregamos uma moral sensível ou verberamos os vícios comuns do século. O homem amigo de cenas faz uma (tal é a sua loucura!) da descrição dos seus erros e dos seus defeitos, e julga ter satisfeito a tudo, quando, pelo menos, deixa censurar o que não corrige. Quando nós examinamos o que se passa no homem interior, isto é, o que faz o cristão quando executamos esses desejos do reino de Deus, esses ternos gemidos dum coração desgostoso do mundo e enternecido com os bens eternos, parece-nos ouvir uma língua desconhecida. Isto não me causa estranheza; porque esse cântico das alegrias celestes que eu começava a cantar, é o cântico de Jerusalém, E por quem são rodeados os pregadores? Quem é que compõe em geral os grandes auditórios, a não ser habitantes da Babilônia, mundanos que ostentam as suas vaidades, a sua corrupção e a sua vida sensual nestes discursos sagrados? E consente Deus que eles ainda depois condenem o pregador, se ele não souber enternecer, lisonjear com algum novo artifício, contentar ou surpreender-lhes o gosto delicado ou extravagante. E poderia eu esperar que almas assim afeitas às alegrias da terra compreendessem as alegrias do céu? Ai de nós, ai de nós, não por esse dilúvio de males que oprimem a vida humana, nem pela pobreza e pelas doenças, pela velhice e pela morte! Ai de nós pelas alegrias que nos iludem, que nos obscurecem os olhos, que nos ocultam os nossos deveres e o fim deplorável de todos os nossos desígnios! Ai duma mocidade ébria que se glorifica nos seus desregramentos, e que se envergonha de pôr termo aos seus excessos! Ai do pecador afortunado que cegamente diz no seu íntimo: "Eu pequei e que mal me sucedeu?" (Eclesiástico, 5. 4). Não se lembra de que o Omnipotente o espera no dia fatal, e que, certo do golpe que há de dar, não precipita a Sua vingança. Ai do ímpio que se deleita na singularidade dos seus sentimentos! Ele recearia parecer fraco, se se lembrasse disto; mas mais fraco se torna, porque receia perder os fúteis louvores de alguns amigos, que, tão pouco firmes como ele nas verdades da vida futura, folgam contudo em experimentar até onde se pode levar a aparência da segurança no meio da incerteza e da dúvida. Mas Deus há de em breve confundir-lhes a estulta filosofia; e apesar dessa dissimulação vergonhosa, há de encontrar-lhes no coração com que os convença. "Para o ímpio não há paz" disse o Senhor. Aí finalmente dos que vivem nas delícias, porque morrerão em plena vida, como diz o Apóstolo! Jesus Cristo não há de ser o Salvador dos ímpios, porque "o seu reino não é deste mundo", e Ele não o preparou para os que querem triunfar na terra. Pelo contrário, foi a respeito deles que Ele pronunciou esta sentença: "Receberam a sua consolação", e depois: "Recebestes os vossos bens" (São Lucas 16, 25). Foi o que Jesus Cristo sempre pregou pública e particularmente, ao povo como aos Seus discípulos, em todas as Suas práticas e em todas as Suas parábolas. Como assim! Há de haver apenas excessos no Seu Evangelho? Haverá Ele unicamente dito exageros, sendo necessário, acomodar todas as Suas palavras às nossas paixões para lhes atenuar os excessos? Mas, sem alongar mais este raciocínio, chamo agora a atenção da vossa consciência: quereis acabar os vossos dias no meio desses prazeres e desse ardor constante? Respondei, mundanos, se ainda vos não esquecestes do cristianismo. Eu não vos falarei desses mercantilismos perigosos, nem dessas intrigas que se maquinam nas trevas. Não vos falarei dessas extorsões clandestinas, dessas concussões, nem de todo esse comércio de iniquidade. Mas quereis que a morte sobrevenha, enquanto, agravados pelo tumultuar do século ou entregues aos seus prazeres; (São Lucas 21, 34) enquanto, incapazes de pensardes no século futuro, na oração, nas obras de caridade, incapazes de qualquer pensamento grave, só cuidais dum divertimento que vos ocupa os dias e as noites, ou dessas conversações em que, para não falar das maledicências com que as excitais, fazeis avultar agradáveis futilidades, que afinal é o que há de mais inocente, mas de que tereis um dia de dar conta, conforme vos ensina o Evangelho? (São Mateus 12, 36). Quereis passar nessas vaidades o último ano da vossa vida, que é talvez o que hoje começais? Pois que caráter particular terá esse ano fatal em que haveis de pertencerão número dos mortos? Os anos todos são igualmente enganadores; e a nós compete estabelecer a diferença entre eles. - Mas eu depereço até morrer, nestes exercícios de piedade, nestas orações e nestes ensinamentos. - Que vos hei de dizer? Esse desprazer é um vestígio da doença: o prazer há de voltar-vos com a saúde; tratai unicamente de vos curardes. É longo o tempo das provações. Bastantemente no-lo repete o mundo nas suas amarguras, que demasiado nos oprimem. Mas vós, em quanto não chega o momento das consolações, ide tendo paciência: suportai o castigo da impudicícia em que há tanto tempo depereceis, e não acalenteis a esperança, como um novo Paulo, de serdes primeiro elevado ao terceiro céu. Lembrai-vos de Jesus Cristo que, antes das Suas grandes dores e do suplício da cruz, quis suportar, para salvação vossa, humilhações, tédios, extremas misérias, permiti-me o termo, e uma tristeza que O acompanhou até à morte. Tomai este remédio eficaz, e bebei o cálice da Sua paixão, que o prazer há de voltar-vos com a saúde. Mas, visto que os prazeres da terra são tão fatais para a alma, não deixemos de despertar, sobre este assunto, o gênero humano adormecido: derramemos nos discursos sagrados o balsamo da piedade, e em vez desses estremados requintes que importunam o mundo, façamos destacar a viva e majestosa simplicidade, as agradáveis promessas e a celeste unção do Evangelho. É Vós, célebre Companhia, não debalde chamada de Jesus, e a quem a graça inspirou essa alta empresa de guiar os filhos de Deus desde a sua juventude até à maturação do homem perfeito em Jesus Cristo; a quem no declinar dos tempos Deus concedeu doutores, apóstolos e evangelistas, para fazerem realçar em todo o universo e até às regiões mais ignotas a glória do Evangelho; não deixeis de cooperar neste objeto, segundo a Vossa santa instituição, com todos os talentos do espírito e da eloquência, com a cortesia e com a literatura; e para melhor executardes tão grande obra, recebei com toda esta assembleia, em testemunho duma eterna caridade, a sagrada benção do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Autores a consultar: Bourdaloue, Lejeune, Palu, Massilon, o Padre Faber, São Francisco de Sales, Luiz de Granada, De la Luzerne, e Padre Chaignon. 2º Domingo depois da Epifania - Sermão para o 2º Domingo depois da Epifania As Duas Alianças SUMÁRIO Exórdio. - Jesus Cristo une-se às almas fiéis por vias misteriosas; e eis o motivo porque tantas vezes lhe chamam, e com razão, o divino Esposo das almas. Proposição e divisão. - O orador tira o assunto do seu sermão da história milagrosa das bodas de Caná. Desenvolve sucessivamente três pensamentos principais que lhe são sugeridos pela conversão da água em vinho. Jesus Cristo transformou: 1º O símbolo em realidade; 2º A letra em espírito; 3º A lei de rigor em lei de misericórdia e de amor. 1º Ponto. - Pelo milagre das bodas de Caná, quis Jesus Cristo fazer-nos compreender quê, do mesmo modo que convertia a água em vinho, convertia também o símbolo em realidade. No Antigo Testamento tudo é simbólico, no Novo tudo é real; e assim como o símbolo não pode existir sem a realidade, assim todas as Escrituras proféticas não teriam razão alguma de ser, e até nos pareceriam às vezes bem extravagantes, se nelas não se destacasse a figura de Jesus Cristo. São águas sem ímpeto e sem sabor, frias e languidas, que de repente se convertem num vinho generoso, sob a divina influência de Jesus Cristo "A lei é, pois, um Evangelho oculto; e o Evangelho é a lei explicada." 2º Ponto. - Deus mandará dizer pelo seu profeta: "Eu hei de inspirar-lhes nas almas a minha lei, e hei de escrevê-la, não em tábuas de pedra, mas nos seus corações" (Jeremias 31, 31). E na verdade, com Jesus Cristo, o Espírito de Deus apoderou-se dos nossos corações por uma caridade sinceríssima, por um poderoso amor que Ele nos inspira, e por uma bondade santa e arrebatadora. A lei antiga ordenava, mas não vivificava, mas não atraía; impunha-se ao espírito pelo raciocínio, mas não ao coração pela caridade; impressionava profundamente os ouvidos, como diz Bossuet, mas não comovia o coração. A lei nova, pelo contrário, entusiasma-nos com um divino fervor, alenta-nos, aquece-nos com benditos arderes. 3º Ponto. - A lei antiga é uma lei de receio e de rigor; os seus transgressores eram punidos impiedosamente; e Deus oprimia-os muitas vezes com eternas maldições. A lei nova é uma lei toda de amor. Peroração. - Nós já não estamos sob o império da lei do temor, estamos sob o império da lei do amor. Sirvamos a Deus com um amor liberal e sincero. E vós, sobretudo, neófitas, rendei-lhe eternamente as vossas ações de graças. Nuptiae factae sunt in Cana Galilaeae, et erat mater Jesu ibi. Vocatus est autem et Jesus et discipuli ejus. Celebrava-se uma boda em Caná da Galileia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus e os seus discípulos também foram convidados para a boda (São João 2, 1 e 2). Jesus com sua santa Mãe e com os seus discípulos: Que companhia, amadas irmãs! Foram convidados para um banquete, e que piedoso banquete! Para um banquete nupcial, e que bodas misteriosas! Mas nesse banquete falta o vinho; o vinho, a que os caprichosos chamam a alma dos banquetes. Será isto avareza? Será pobreza? Será negligencia? Ou não será antes qualquer mistério que o Espírito Santo nos propõe para exercitarmos a nossa inteligência? Certamente deve ser isto, caríssimas irmãs. Porque eu vejo que o Salvador, para suprir essa falta, converte a água em vinho excelente, e esse vinho é servido no fim do banquete com grande admiração dos assistentes. Ó vinho admirável e cheio de mistério, fornecido pela caridade de Jesus, aos rogos da Virgem Maria! Dizei-me, irmãs, que interesse tem o sóbrio Mestre em que haja vinho nessa reunião. Era coisa que merecesse a intervenção da Sua omnipotência? Era em semelhante conjuntura que Ele devia começar a manifestar a Sua glória, constituindo uma obra desta natureza o Seu primeiro milagre? Parece-vos que haja nisto mistério? Deus não há de querer, almas cristãs, que façamos tal conceito do nosso Salvador! Ele é a Sabedoria e a Palavra do Eterno; porque todos os Seus discursos e todas as Suas ações denunciam espírito e vida. Tudo é luz na Sua pessoa, tudo nEle é inteligência, tudo nEle é razão. Ó eterna Sabedoria, alumiai como vosso Espírito Santo a nossa razão fraca e impotente, a fim de compreendermos a vossa. Nesta história milagrosa, tudo me faz ver Jesus Salvador. Vejo-o propriamente em corpo; mas também o vejo mais em mistério. Segundo a verdade histórica, é Ele convidado a banquetear-se; mas, segundo a verdade do mistério, e se bem o soubermos compreender, é Ele propriamente o Esposo. É sabido que Jesus é o Esposo das almas fiéis; contudo, se m'o permitis, deduzir-vos-ei sobre este ponto algumas verdades cristãs maravilhosamente piedosas. Deus ocupa o céu e a terra, encontra-se em todos os lugares, como diz a teologia; mas também sabe comunicar-se duma maneira muito particular às criaturas inteligentes: Ad ipsum veniemus, et mansionem apud eum faciemus - "Nós viremos a ele e nele faremos morada" (São João 14, 23) É realmente incompressível, irmãs, como a natureza divina se une aos espíritos puros por meio de castos amplexos; e se bem que isto seja, um segredo inefável, é-o todas as vezes que as Escrituras divinas no-lo representam de diversas maneiras e por símbolos diferentes. Umas vezes dizem que Deus é uma fonte de vida que derramando-Se em nossas almas, as lava e purifica, comunicando-lhes uma divina fresquidão e saciando-lhes a sede ardente com as ondas das verdades: Fons aquae salientis... (São João 4, 14) Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum (Salmo 41, 2). Outras vezes descrevem-no-lo assim como um dúlcido orvalho que, à semelhança dum fecundo regato, banha o nosso espírito e nEle faz germinar as sementes celestes: Rorate, caeli desuper (Isaías 45, 8) E ainda outras representam-nos Deus à maneira dum fogo consumidor que, penetrando todas as nossas forças, devora todas as afeições desconhecidas e purifica as nossas almas como o ouro num foco calorífico: Ignis consumens est (Deuteronômio, 4, 24). Dizem-nos noutro lugar que Deus é um alimento admirável; porque assim como todas as partes do nosso corpo atraem a si uma certa substância sem a qual desfaleceriam, e depois se incorporam nela pela virtude dum secreto calor que a natureza lhes deu, assim também as nossas almas seriam destituídas de todo o vigor, se por fiéis desejos que o Espírito Santo lhes excita, não atraíssem a si essa verdade eterna que por si só é capaz de as sustentar. É o que nos é significado por esse pão angélico que se converteu em pão humano: "Pão celeste que desejamos por um apetite de vida eterna, que tomamos pelo ouvido, que ruminamos pelo entendimento e que digerimos pela fé" - In causam vitae appetendus, et devorandus auditu, et ruminandus intellectu, et fide digerendus. Tais são pouco mais ou menos as comparações de que se servem as Escrituras para nos fazer compreender em certo modo essa santa união da natureza divina com as almas, eleitas. Mas de todas essas comparações a mais grata, a mais agradável e a mais comum nas Epístolas Sagradas, é aquela em que o nosso sublime Deus é comparado a um casto esposo, que, por um sentimento de misericórdia, embevecido no amor das nossas almas, depois de mil amorosas carícias, depois de mil provas das Suas santas inspirações, se une finalmente a elas por amplexos inefáveis, e, enlevando-as com uma certa dulcidão que o mundo não pode compreender, as repassa dum gérmen divino que frutifica em boas obras para a vida eterna. Três condições são necessárias para satisfazer ao matrimônio. União: Erunt duo in carne una (Gênesis 2, 24) Dulcidão: Faciamus adjutorium; (Gênesis 2, 18) se Ele está só, "demos-lhe um auxílio: é complacente ser auxiliado". Fecundidade: Crescite et multiplicamini (Gênesis 1, 28). É o que o apostolo São Paulo nos ensina, quando diz aos cristãos que, assim como o marido e a mulher são uma e a mesma carne, assim também "o que se associa a Deus é um e o mesmo espírito" - Qui adhaeret Domino unus spiritus est; (1 Coríntios 4, 17) doutrina que o santo apóstolo achou para as nossas almas, repetindo-a em tantos lugares que muito tempo levaria a relatar-vo-los. Ora, visto que declinamos dessa primeira pureza que nos igualava aos anjos na inocência da nossa origem, porque nos tornamos sensuais e grosseiros, não poderíamos por mais tempo conservar a semelhança com a natureza divina, se ela primeiramente se não tivesse aviltado. E foi por isso que o Filho de Deus, igual e consubstancial a seu Pai, para chamar as almas humanas, esse feliz matrimônio com Deus, cuja santidade tinham violado pela infâmia do seu adultério, foi por isso que Ele desceu do céu à terra e encarnou e abdicou essa terrível majestade, ou antes lhe empanou o brilho, e tomou as nossas imperfeições, a fim de se igualar a nós em certo modo, e quis que, pela natureza humana que Ele se dignou de tomar para se confundir conosco, achássemos um caminho seguro para a natureza divina, da qual nos tínhamos afastado por uma funesta desobediência. É esse caritativo Esposo da Igreja, isto, é, das almas fiéis, que o Apóstolo nos descreve, aos Efésios, capítulo 5: É o mais belo dos filhos dos homens que amou uma esposa feia, a fim de a tornar formosa. Veio busca-la à terra, a fim de a conduzir em triunfo para a pátria celestial. Deu a sua alma por ela, lavou-a com o seu sangue, purificou-a na água do batismo com palavras de vida, deu-lhe por dote o seu reino, e por adorno as suas graças. É esse Esposo, amadas irmãs, que opera hoje o seu primeiro milagre e representa nesse primeiro milagre o que veio fazer a este mundo. Os seus discípulos creem nEle neste dia; porque Ele é o principio da sua Igreja. Guarda o seu melhor vinho para o fim do banquete; é como que o Evangelho para a última idade, que deve durar até a consumação dos séculos. Esse vinho tira-o Ele da água, e converte essa água em vinho, como converte a lei no Evangelho, isto é, o símbolo em verdade, a letra em espírito, o terror em amor. Digamos alguma coisa dessas três conversões; mas digamos apenas os pontos capitais, por causa do pouco tempo de que dispomos. O resto ficará entregue à vossa meditação. PRIMEIRO PONTO É a respeito dEle que se achá escrito no Gênesis, capitulo 2, "que o homem deixará seu pai e sua mãe para se ligar a sua mulher" (Gênesis 2, 24) Ora, para falar como é de uso em coisas humanas, a mulher é que, pelo contrario, deixa a casa paterna para ir viver com seu marido. Mas, segundo a inteligência espiritual, Jesus é esse homem por excelência que deixou seu Pai e sua Mãe para se ligar a sua querida esposa. Deixou em certo modo seu Pai, quando desceu do céu à terra, para tornar a juntar-se com Ele, conforme o disse em diferentes lugares. Deixou na sinagoga, sua mãe, que o tinha gerado carnalmente, para se ligar à Igreja, sua única esposa, que Ele tirou das nações idólatras. Haveis, pois, de saber, irmãs, que sendo Jesus o termo de todas as obras de Deus, tudo o que de extraordinário se fez desde a origem do mundo foi apenas em atenção para com Ele. Lede as Escrituras divinas e em toda a parte vereis o Salvador, se tiverdes os olhos bastantemente purificados. Não há página onde Ele não exista. Encontra-se no paraíso terreal, encontra-se no dilúvio, encontra-se na montanha, encontra-se na passagem do Mar Vermelho, encontra-se no deserto, encontra-se na Terra prometida, nas cerimônias, nos sacrifícios, na Arca e no Tabernáculo; em toda a parte se encontra, mas simbolicamente. E então aprouve ao nosso sublime Deus, como diz o Apóstolo aos Gálatas (Gálatas, 4, 3) elevar-nos pouco a pouco, como as crianças, até ao conhecimento dos seus mistérios. Por uma infinidade de exemplos sensíveis, soterrados durante muitos séculos, por semelhanças de coisas corporais que impressionavam a nossa imaginação, guiou-nos Ele suavemente para a inteligência das Suas verdades e fez-nos compreender as grandes coisas que Ele preparava para a nossa salvação. Considerai, por quem sois, todo este grande aparato da lei mosaica. Para que sobrecarregar esse pobre povo de tantas cerimônias diferentes, que todas eram muito laboriosas, e, não obstante, muito incapazes por si só de tornarem o homem mais agradável a Deus? Porque é evidente, caríssimas irmãs, que nem tantas purificações corporais, nem todos esses banhos externos, nem esse número infinito de penosas observações, nem o aroma do incenso ou da gordura queimada, nem o sangue dos animais mortos eram coisas que por si só pudessem agradar ao nosso sublime Deus, que, visto ser um espírito puro, quer ser adorado em espírito e em verdade. Mas EIe ordenava todas as coisas, para que todo este pomposo fausto e Ioda esta majestade exterior da religião judaica fossem símbolos do seu amado Filho; e era esta consideração que lhe tornava estas coisas agradáveis temporariamente, se bem que elas fossem indiferentes por sua natureza. Por isso, como diz o Apóstolo; desde a origem do mundo até à ressurreição do Salvador, "tudo acontecia em figura a nossos pais" - Omnia in figuris contingebant ilis (1 Coríntios 10, 11). É por isso que o admirável Santo Agostinho diz que nem na lei da natureza, nem na lei mosaica, vê coisa alguma que seja agradável, se nelas se não manifestar o Salvador. Tudo é displicente; é uma água insípida, se não for convertida nesse vinho celestial, nesse vinho evangélico que se guarda para o fim do banquete, esse vinho que Jesus preparou e que extraiu da Sua vinha eleita. Vou narrar-vos alguns feitos da história antiga, e vereis quanto ela é insípida, se nela não ouvirmos o Salvador. Diremos alguns dos mais notáveis com o douto Santo Agostinho, porque, se contássemos circunstanciadamente tudo o que nos fala do nosso Salvador; não chegariam os anos para tanto. Vede no Paraíso terreal esse homem novo que Deus fez a seu bel-prazer. Sobre ele faz descer um sono profundo, para formar duma das suas costelas a companheira que lhe destinava. Dizei-me, diz Santo Agostinho, que necessidade havia de o adormecer para lhe tirar essa costela? Seria talvez com o fim de lhe diminuir a dor? Ridículo motivo seria este! Mas como esta história é pouco agradável! Como esta água é insípida, se Jesus a não converter em vinho! Acrescentai-lhe o sentido espiritual, e vereis o Salvador, cuja morte origina a Igreja; morte que é semelhante ao sono, por causa da Sua pronta ressurreição e da tranquilidade com que Ele voluntariamente a sofreu. A Sua morte dá, portanto, origem à Igreja. O primeiro Adão é privado duma costela para com ela ser formada sua mulher durante um sono muito misterioso; e durante o sono do novo Adão, depois que Ele fechou os olhos com a mesma paz com que os homens adormecem, é-lhe aberta a ilharga com uma lança, e imediatamente brotam os Sacramentos com os quais é regenerada a Igreja. Que direi agora de Noé, que, só por si, restaurou o mundo sepultado nas águas do dilúvio, e que repovoou o gênero humano com o pequeno número de homens que faziam parte da sua família? Não foi o Salvador, o único reparador da humanidade, que, com doze homens que envia por toda a terra, povoou o reino de Deus e encheu o mundo duma nova raça? Que direi do moço Isaac que é o próprio portador da lenha sobre que deve ser imolado, enquanto o seu próprio paí se prepara, segundo as ordens de Deus, para o sacrificar sobre a montanha? Ó espetáculo desumano! Mas se nele se considerar Jesus, converte-se num espetáculo de misericórdia! Agora é o Salvador que leva a cruz para ser imolado no monte Calvário, entregue por seu próprio Pai nas mãos dos seus inimigos, a fim de constituir uma hóstia viva para a expiação dos nossos crimes. E o casto José, vendido pelos irmãos e preso pelos egípcios, convertido por este infortúnio no salvador dos irmãos e dos egípcios, não é Jesus submetido à morte pelos judeus, isto é, pelos idólatras, e convertido, por sua morte, em Salvador dos judeus e dos idólatras? Se eu passar o mar Vermelho com os israelitas, se com eles permanecer no deserto, quantas vezes verei o Filho de Deus, único guia do seu povo no deserto deste mundo, que retirando-os do Egito por meio da água do Batismo, os conduziu à Terra prometida! Esse maná tão delicioso, que é senão uma carne corporal, se eu não sentir no paladar o gosto do Salvador? Acho-a insípida; pouco falta para que eu diga com os judeus: "Estamos enjoados com essa carne ordinária" (Números, 21, 5). Mas quando nela aprecio o Salvador, verdadeiro pão angélico, verdadeiro alimento das almas fiéis, que nós comemos à mesa sagrada, ah! Como então é agradável ao paladar, como então é saborosa! Vede o lajeado do templo; vede as vestes sacerdotais; vede o altar e santuário todo banhado com o sangue das vítimas, e o povo israelita lavado tantas vezes com esse mesmo sangue; como tudo isso é gélido, amados irmãos, se a fé não me mostrar o sangue do Cordeiro derramado para remissão dos nossos crimes, esse sangue do Novo Testamento que nós oferecemos a Deus nesses terríveis altares, e de que nos saciamos para a vida eterna! Enfim, diz Santo Agostinho, se não considerarmos Jesus Cristo, todas as Escrituras proféticas são insulsas; são aparentemente extravagantes, pelo menos em certos lugares. Mas se nelas apreciarmos o Salvador, tudo então é luz, tudo é inteligência, tudo é razão. Vede esses dois discípulos que vão a Emaús. Falavam da redenção de Israel, que é o assunto de toda a lei antiga, mas não compreendiam os mistérios do Redentor. Era uma água sem energia e sem sabor, como frios e languidos eram os mistérios. "Nós esperávamos, diziam eles, que fosse Ele o que remisse Israel" (São Lucas 21, 5). Esperávamos é uma palavra gélida. O que vemos é Jesus aproximar-se deles, percorrer todas as profecias, orientá-los no mistério, na significação profunda e misteriosa, converter a água em vinho, os símbolos em verdade e a obscuridade em luz. E ei-los que ficam imediatamente transportados: Nonne cor nostrum ardens erat in nobis - "Não ardia o nosso coração dentro de nós"? (São Lucas 24, 32). É que eles tinham começado a beber o vinho novo de Jesus, isto é, a doutrina do Evangelho. Todavia admirai, caríssimos irmãos, os salutares conselhos da Providência, que por uma tal riqueza de exemplos nos ensina uma única verdade, que é o Verbo encarnado. Ah! Se tivéssemos os olhos bem abertos, seria um espetáculo muito agradável ver que não há página, nem palavra, nem por assim dizer traço ou virgula da lei antiga que não fale do Salvador! A lei é um Evangelho oculto. O Evangelho é a lei explicada; os filósofos dizem-nos que o vinho não é mais que uma água colorida, que recebe, ao passar pela vinha, uma certa impressão das suas qualidades, porque esse elemento é susceptível pela sua natureza de todas as alterações desconhecidas. Por isso a água da lei antiga converte-se no vinho da nova lei. E é essa mesma água da lei mosaica, que, sendo apropriada a Jesus Cristo, verdadeira vinha do Pai Eterno, toma uma nova forma e uma nova energia. Por consequência, irmãs, passemos as noites e os dias a meditar na lei do Senhor. Procuremos Jesus em toda a parte, e não haverá sítio onde Ele se não encontre. E visto que aprouve ao nosso sublime Deus oferecer-nos esse novo vinho do seu Evangelho, mas puro e sem mistura, limpo das fezes dos símbolos e da água das expressões proféticas, não tendo daí por outra bebida senão esse sagrado e imortal licor, oxalá que o nosso espírito experimente sempre o gozo da palavra divina. Mas não nos detenhamos na letra; libemos o espírito vivificador que Jesus nela ensinou com a Sua graça. É o que constitui a nossa segunda parte, e, para maior brevidade, ligaremos também a terceira numa mesma ordem de raciocínio. SEGUNDO E TERCEIRO PONTO Não poder eu transportar-vos em espírito a esse terrível monte onde se mostra a majestade do Senhor! É o monte Sinai em que Deus dá a Sua lei a Moisés. Ali vejo esse sublime Deus Omnipotente, gravando na pedra as Suas santas leis, dignas de serem escritas na maior altura dos céus com os ardentes raios do sol. E depois disso, pela boca do Seu servo Moisés, manda anunciar ao Seu povo as Suas ordens, e ameaça os transgressores com punições que causam horror só de as contar. Em verdade, essa lei é sacratíssima; não vos convençais, caríssimas irmãs, de que ela contenha a vida. Todas essas palavras majestosas e essa Escritura do dedo de Deus não são mais que um instrumento de morte, se não forem acompanhadas do espírito da graça. "É uma letra que mata", diz o grande apóstolo São Paulo (2 Coríntios 3, 6). Quantas almas presunçosas foram precipitadas na morte eterna por esses augustos preceitos! Não vos admireis dessa palavra, que é a doutrina do apóstolo São Paulo, cuja verdadeira explicação é esta: A lei indicava perfeitamente o que era necessário fazer, mas não valia à impotência da nossa natureza. Impressionava profundamente os ouvidos, mas não comovia o coração. Não era suficiente que Deus, com voz trovejante e imperiosa, fizesse anunciar ao povo os Seus desígnios; era preciso que Ele falasse interiormente e que, por uma poderosíssima operação, abandonasse a nossa dureza. Deus eterno e sublime, vós ordenais-me; é justo que sejais obedecido; mas de que me valem as Vossas ordens se me não derdes a graça por meio da qual eu possa observar os Vossos preceitos? Ora essa graça não é a lei; é o próprio dom do Evangelho, porque diz o apóstolo São João que "a lei foi dada por Moisés, e a graça e a verdade foram feitas por Jesus Cristo" (São João 1, 17). Que é então que fazia a lei? Ela ordenava, exigia, oprimia os transgressores com eternas maldições, porque "amaldiçoado será o que não observar as palavras que estão escritas neste livro"; (Deuteronômio, 27, 27) mas não aliviava em coisa alguma as nossas enfermidades. Era uma água languida e sem energia, capaz de nos agitar, mas incapaz de nos manter. É por isso que o Salvador, compadecendo-se da nossa impotência, vem dar-nos um vinho duma celestial energia, que é a Sua graça, que é o Seu Espírito Santo que embriagou os apóstolos no dia de Pentecostes. É esse santo e divino Espírito que conduz a lei até ao íntimo dos nossos corações, e neles a grava em caracteres de fogo. Até anima interiormente e dá-lhe uma força vivificadora; converte a letra em espírito, sendo esta a nova aliança que Deus contrai conosco pelo Seu Evangelho. É por esta razão que, falando pela boca de Jeremias, Ele diz: "Eis que eu hei de estabelecer com a casa de Judá um novo testamento, não como o que estabeleci com seus pais, que não ficaram no meu testamento, porque eu os desprezei, diz o Senhor, mas um testamento novo que eu hei de dar à casa de Israel" (Jeremias 31, 31 seguintes) isto é, aos verdadeiros filhos de Israel e ao povo da nova aliança, e que é concebido nestes termos: "Hei de inspirar-lhes nas almas a minha lei, e hei-de escrevê-la, não em tábuas de pedra, mas nos seus corações; e eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus" Que virtude maravilhosa é essa que entra Ião profundamente nos nossos corações? Donde vem a essa nova lei essa força tão penetrante? Vem do Espírito de Deus, amadas irmãs, que é o verdadeiro motor das nossas almas, o diretor dos nossos corações, o guia dos nossos desejos. Mas por que espécie de operações a conduz Ele assim até ao íntimo de nós mesmos? É por uma caridade sinceríssima, por um poderoso amor que Ele nos inspira, por uma casta deleitação e por uma bondade santa e arrebatadora. Deus exerce duas espécies de operações nas nossas almas, que estabelecem a diferença das duas leis. Em primeiro lugar, amedronta-as, enche-as do terror dos Seus juízos; e em segundo lugar, atrai-as, inflama-as dum amor sagrado. A primeira operação, que é o temor, não pode penetrar até ao íntimo das nossas almas: assombra-as, agita-as, mas não as altera. Suponhamos que encontrais uns ladroes. Se fordes o mais forte, eles apenas se acercarão de vós com uma aparência de civilidade simulada; mas nem por isso deixam de ser ladrões e de ter a alma ávida de carnificina e de pilhagem. O receio abafa os sentimentos e parece reprimi-los; mas não lhes corta a raiz. Vede essa pedra em que Deus escreveu a Sua lei; acha-se alterada por ter em si palavras tão santas? É por isso menos dura? Não. Esses preceitos sagrados apenas existem numa superfície exterior. O mesmo se dá com a lei de Deus. Quando não entra em nossas almas senão pelo terror, impressiona apenas a superfície; e enquanto apenas houver esse temor servil, não pode o íntimo ser convenientemente alterado. Só o amor que entra no recôncavo dos arcanos dos nossos corações, só ele tem a chave das nossas almas e só ele lhe modera os movimentos. Se tiverdes más inclinações ou sentimentos desregrados, nunca eles poderão ser expulsos senão por inclinações contrárias, senão por um santo amor, senão por castos sentimentos do verdadeiro bem; e então a alma modificar-se-á por completo. O amor dilata-a por um certo fervor, abre-a até ao íntimo para receber o orvalho das graças celestes. Já não é uma pedra em que se escreve externamente, é uma espécie de cera penetrada e derretida por um calor divino. É assim que o Salvador se acha verdadeiramente gravado em todas as faculdades das nossas almas. Encontra-se na nossa vontade inteiramente transportada pelo Seu santo amor. Encontra-se na memória, porque ninguém pode esquecer o que ama. Encontra-se no entendimento, porque o amor curioso e diligente não tem outra satisfação a não ser a de contemplar as perfeições do objeto amado que o atrai. Daí passa aos corpos pelo exercício das virtudes e por sagradas operações que, originando-se no amor de Jesus, conservam todos os seus caracteres. Tal é, caríssimas irmãs, o espírito da nova lei. É por isso que Deus não nos aparece com esse aspecto terrível que tinha no monte Sinai. Além, fumegava esse monte com a majestade do Senhor, que "faz distilar os montes como cera"; (Salmo 96, 5) aqui não esmagará sequer uma cana partida (São Mateus 12, 20) porque é todo clemente e todo benigno. Além apenas se ouve o ribombo dum longo e horrível trovão; aqui ouve-se uma voz doce e afável: "Ficai de mim sabendo, diz Ele, que sou manso e humilde de coração" (São Mateus 11, 29). Alem é proibida a aproximação sob pena de morte: "Não vos aproximeis; diz Ele, senão morrereis; e os homens e os animais que se aproximarem do monte, morrerão fatalmente" (Êxodo 19, 12-13). Aqui varia Ele de linguagem: "Vinde, vinde", diz Ele (São Mateus 11, 28) aproximai-vos, não vos arreceeis, meus filhos; vinde a mim, oprimidos, que eu vos aliviarei e vos ajudarei a levar os vossos fardos; vinde a mim, enfermos, que eu vos curarei; pecadores, publicanos, aproximai-vos, que eu sou o libertador; deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o reino de Deus (São Marcos, 10, 14). Porque há esta mudança na linguagem, caríssimas irmãs? Ah! É que Ele quer que o amem sobre todas as coisas. Vem converter o terror em amor; essa água fria do receio, que oprimia o coração com uma baixa e servil timidez, num vinho dum divino fervor que o há de encher de contentamento, que o há de alentar, e que o há de aquecer com benditos ardores. É este o espírito da nova lei. Já vos disse as conversões que fez o Salvador. A água é insípida; assim era a lei nos seus mistérios e nos seus símbolos, se Jesus a não convertesse na verdade do seu Evangelho, vinho doce e saboroso que nos enche de delícias celestes. A água não tem energia para nos excitar; assim era a lei pela sua letra inútil e impotente, se não fosse acompanhada do vinho da nova lei, isto é, do espírito da graça. Estas duas primeiras conversões dão origem a uma terceira. Por mui longo tempo e bastantemente bebemos esse gélido terror; mas já é tempo dos nossos corações se aquecerem ao fogo do amor de Deus. Irmãs, agora já não estamos sujeitos à lei do temor; estamos sob o império da lei do amor, porque deixamos de viver na servidão, para ficarmos vivendo na liberdade dos filhos de Deus. E quem nos libertou foi Jesus, que é a própria verdade; por consequência, sirvamos ao nosso Deus com amor liberal e sincero. Amemos a justiça, amemos a verdade, amemos a verdadeira e a sólida razão, amemos o único repouso, porque tudo isto é Jesus; e então devemos amar a Jesus com todo o afeto das nossas almas. E atrevo-me a dizer que quem não ama a Jesus não é cristão. Um cristão é um homem regenerado; e nós não podemos ser regenerados sem o espírito da nova lei. Ora o espírito da nova lei é a caridade; e quem não tem caridade não é cristão. Ah! Como o século folga na devassidão e nos banquetes, e nos deliciosos e capitosos vinhos! Nós temos um vinho com o qual nos é permitido embriagar-nos; vinho que nos aquece, mas com um ardor muito espiritual; que nos faz cantar, mas são cânticos de amor divino; que nos dá o esquecimento, mas é do mundo e das vaidades; que nos excita um grande júbilo, mas um júbilo que o mundo não compreende. Bebamos desse vinho, caríssimas irmãs, porque noite e dia não respiraremos senão essência de Jesus, E, vós, particularmente, a quem Ele retirou do século, experimentai o gozo de Jesus na solidão, porque é assim que Ele se comunica com as almas fiéis. A vós, amadas irmãs, a quem Ele, por Sua infinita misericórdia, libertou milagrosamente das trevas da heresia, a vós é que eu me dirijo. E que palavras poderiam exprimir-vos a ternura que o meu coração sente por vós. Rendei-lhe eternamente as vossas ações de graças! Vede como por toda a cidade o erro se acha espalhado. Deus escolheu dentre vós duas ou três que chamou à sua Santa Igreja; e por isso não sejais ingratas a esse inestimável beneficio. Perseverai nessa ditosa vocação. Vede a pureza, vede a inocência e a candura dessas filhas de Deus com quem conversais. Que diferença dessa verdadeira devoção que elas vos ensinam com toda a humildade e simplicidade para o fausto, para o orgulho e para a falsa piedade da heresia! Perseverai, caríssimas irmãs, não atendais a lágrimas nem a recriminações de vossos pais. Deus vos conceda a graça de experimentardes quanto a santa casa é mais agradável do que a casa paterna! Vede esses temíveis altares: os Sacramentos que neles ministramos não são mistérios nem símbolos, porque já não estamos sujeitos à lei judaica; é a realidade, é à verdade, é a própria carne de Jesus, outrora por nós dilacerada; é o seu sangue vivificador derramado por amor de nós. Gozai das delícias dessa carne de que a heresia se privou para se iludir com a vaidade duma cena imaginaria, etc. Domingo da Septuagésima - Sermão sobre a eminente dignidade dos pobres na Igreja Este discurso, que é um Sermão de Caridade em toda a extensão do termo, não conclui, como poderá ver-se, pela Ave-Maria tradicional. Os editores são unânimes em afirmar com Floquet que este sermão foi pregado no Seminário das Filhas da Providência, estabelecimento situado junto do Val-de-Grace. Lachat, afirmativo sempre, menciona os nomes de senhoras ilustres, na presença das das quais falou Bossuet. A data deste discurso não pode precisar-se ao certo, nem o lugar onde Bossuet o pronunciou é rigorosamente o seminário das Filhas da Providência. No verso de duas cartas que vieram de Sedan para Metz, e que foram remetidas de Metz para Paris, acham-se escritas duas páginas deste sermão. O sinete duma dessas cartas tanto pode ser o da famílias de Bouillon, como o dos Schombergm, como até o do marechal Fabert. (Gazier). Pregado em Paris, em fevereiro de 1659. SUMÁRIO Exordio. - A subversão das condições que o Salvador nos anuncia na passagem do Evangelho, que serve de tema a Bossuet, começou já nesta vida. Proposição e divisão. - O orador desenvolve três pensamentos que se opõem ao que decorre no mundo e na Igreja, que é o reino de Jesus Cristo. No 1º prova que a maior grandeza pertence aos pobres, que são os primogênitos da Igreja, os seus verdadeiros filhos; no 2º que os ricos são os servos dos pobres; e no 3º que são os pobres que têm as graças e as bênçãos do céu, e só por intervenção deles é que as podem ter os ricos. 1º Ponto. - A Igreja é realmente a cidade dos pobres, por que nos seus princípios só foi edificada para eles. Difere, portanto, da Sinagoga na ausência das riquezas e da abundância que são as partilhas desta. É isto o que nos faz compreender o Salvador, quando diz: Beati pauperes, quia vetrum est regnum Dei. Deve-se, pois, amar e respeitar os pobres, ainda mesmo quando se lhes faz uma esmola, porque são eles os primogênitos da família de Jesus Cristo. 2º Ponto. - Jesus Cristo não necessita para Si dos favores dos ricos, mas necessita deles para os Seus pobres, de quem serve de medianeiro junto dos grandes deste mundo. Portanto, os ricos devem considerar uma honra o fato de serem os servos dos pobres; porém, valendo-lhes nas suas misérias, valem ao próprio Jesus Cristo. Além disso, devem servi-los com grande prazer e gratidão, pois aliviam assim o fardo das suas riquezas, que, aliás, os arrastaria ao abismo. 3º Ponto. - Em todos os reinos há privilegiados. Os privilegiados do reino de Jesus Cristo são os pobres, porque é na pobreza que reside a magnificência desse reino. Todos os benefícios são prometidos aos pobres; aos ricos só cabem maldições: Vae vobis divitibus. Peroração. - Posto isto, será necessário que os ricos procurem o meio de que os pobres se interessem por eles? E como? Por meio de esmolas: Peccata tua eleemosynis redime. Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos (São Marcos, 20, 16). Esta maravilhosa Cidade, fundada pelo próprio Deus, governa-se por leis e polícia Suas. Mas como Jesus Cristo veio ao mundo para destruir a ordem, que o orgulho consolidara, a política do Salvador é diretamente contrária a do século, e eu noto esta contrariedade em três coisas principalmente: Em primeiro lugar, enquanto no mundo são os ricos os mais vitoriosos, e os que ocupam os lugares mais elevados, no reino de Jesus Cristo, a maior grandeza pertence aos pobres, que são os primogênitos da Igreja, os seus verdadeiros filhos. Em segundo lugar, no mundo os pobres obedecem aos ricos, parecendo ter nascido só para os servirem, e pelo contrário, na Santa Igreja, os ricos só podem ter entrada sob a condição de servirem os pobres. Finalmente, no mundo pertencem aos ricos e aos poderosos todas as graças e privilégios, não os conseguindo os pobres sem a proteção daqueles; e na Igreja de Jesus Cristo são os pobres que tem as graças e as bênçãos, e só por intervenção deles é que as podem ter os ricos. Por isso se vai já cumprindo hoje esta doutrina do Evangelho, doutrina que escolhi para meu tema: "os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos", porque os pobres, últimos no mundo, são os primeiros na Igreja; porque os ricos, que se julgam de posse de todas as homenagens, e que calcam aos pés os pobres, só estão na Igreja para servirem os mesmos pobres; porque as graças do Novo Testamento pertencem de direito aos pobres, não as recebendo os ricos senão por intermédio daqueles. Verdades são estas evidentemente grandes, e que vos devem ensinar, ó ricos do mundo, como deveis proceder para com os pobres; isto é, que deveis honrar-lhes a condição, aliviar-lhes as provações, comparticipar dos seus privilégios. É isto o que intento fazer-vos compreender, auxiliado pela graça de Deus. PRIMEIRO PONTO O sábio e eloquente São João Crisóstomo apresenta-nos uma formosa alegoria para conhecermos toda a superioridade da pobreza, com relação à opulência. Existiriam duas cidades, uma habitada só por homens ricos e, só por homens pobres a outra; São João Crisóstomo, apresentando-as, estuda depois qual delas deveria de ser a mais poderosa. Se nos guiássemos pela opinião da maioria dos homens, é indubitável, cristãos, que como tal classificaríamos a habitada só por homens ricos: mas o grande São João Crisóstomo, prova que a mais poderosa seria a cidade que fosse habitada só por pobres, porque a cidade dos ricos teria muito esplendor e luxo, mas não teria força, nem sólidos alicerces. A abundância, inimiga do trabalho, incapaz de se refrear, e, portanto, alucinada sempre pela sede das voluptuosidades, corromperia todos os espíritos, anularia todos os caracteres, por meio do luxo, do orgulho, da ociosidade. Seriam, portanto, desprezadas as artes; a terra não seria cultivada; os trabalhos penosos; que são a conservação do gênero humano, seriam abandonadas por completo; e a esplendida cidade não precisaria de outros inimigos da sua existência, porque cairia por si mesma, arruinada pela sua própria opulência. Pelo contrário, na outra cidade, que fosse, habitada só por pobres, a necessidade engenhosa, que produz as invenções e as artes úteis, tornaria, por meio das exigências da vida, aplicados os espíritos; estimulá-los-ia por meio do estudo; dar-lhes-ia másculo vigor, por meio do exercício da paciência; e, não se furtando aos suores, realizaria as grandes obras que só um trabalho heroico realiza. Eis na essência, o que nos diz São João Crisóstomo, acerca destas duas tão diferentes cidades. E serve-se desta alegoria para assinalar a preferência da pobreza. Mas, falando a rigor das coisas, vemos que a distinção entre as duas cidades não passa duma bela fantasia. As cidades, que são corpos políticos, necessitam, como os organismos físicos, dum temperamento e da mistura de elementos, e tanto que, segundo a ordem social, esta cidade de pobres de São João Crisóstomo não pode existir senão na imaginação. Só Cristo e a política do céu podiam construir-nos uma cidade que fosse realmente só dos pobres. Esta cidade é a Santa Igreja. E, se me perguntardes, cristãos, porque a chamo a cidade dos pobres, justificar-me-ei, avançando a essa proposição: que a Igreja, nos seus princípios, só foi edificada para os pobres, e que são estes os verdadeiros cidadãos desta bem-aventurada cidade que a escritura chamou a cidade de Deus, Pode esta doutrina parecer-vos estranha; mas nem por isso deixa de ser verdadeira. E para vos convencerdes disso, dignai-vos, senhores, notar esta diferença entre a Sinagoga e a Igreja. Deus prometeu a Sinagoga bênçãos temporais, ao passo que, como diz o divino Salmista, toda a glória da Santa Igreja é oculta e interior. Omnis gloria ejus filiae regis ab intus (Salmo 44, 14). "Dá-te Deus - dizia Isaac a seu filho Jacó - o orvalho do céu e o húmus da terra" - In pinguedine terrae et in rore caeli desuper erit benedictio tua (Gênesis 27, 39). Eis a benção concedida à Sinagoga. Afinal, quem desconhece, pelas antigas Escrituras, que Deus nunca prometia aos seus servos mais do que prolongar-Ihes as vidas, enriquecer-lhes as famílias, multiplicar-lhes os rebanhos, abençoar-lhes as terras e heranças? É intuitivo concluir, senhores, por estas promessas, que, sendo as riquezas e a abundância as partilhas da Sinagoga, devia ter esta, na sua instituição, homens poderosos, e casas opulentas. Já assim não sucede com a Igreja. Nas promessas do Evangelho não se alude aos bens temporais, que serviam de engodo aos materialistas e de ludibrio aos novos. Em vez deles, serviu-se Cristo das dores e das aflições, e foi por meio desta maravilhosa substituição que os últimos ficaram sendo os primeiros e que os primeiros ficaram sendo os últimos. Porque os ricos, que eram os primeiros na Sinagoga, não têm entrada na Igreja, e só os pobres e os indigentes são os seus verdadeiro cidadãos. Ora ainda que estes diferentes ditames da Providência, na antiga e na nova aliança, se fundamentem em importantes razões que seria fastidioso enumerar, podemos contudo dizer de passagem que, desejando Deus mostrar-Se com majestoso brilho no Antigo Testamento, havia toda a conveniência em que a Sinagoga, sua esposa espiritual, tivesse os sinais duma grandeza exterior; ao passo que no Novo Testamento, em que Deus ocultou toda a Sua onipotência sob uma forma servil, havia mister que a Igreja, o Seu corpo místico, fosse uma imagem da Sua humildade e tivesse gravado em si o vestígio do seu aniquilamento voluntário. E não é por este motivo, irmãos, que esse mesmo Deus, assim humilhado, e desejando "encher a sua casa", como Ele próprio se exprime, ut impleatur domus mea (São Lucas 14, 23) não é por este motivo que Ele ordena aos seus servos que lhe vão buscar todos os entes miseráveis?, Vede como Ele os enumera quando diz: "Ide por todos os caminhos e valados, Exit cito, trazei-me sem demora - Quem? - Os pobres e os enfermos. - E mais quem? - Os cegos e os impotentes" - Pauperes ac debiles, caecos et claudos introduc huc (São Lucas 14, 21). E é com o que Ele pretende encher a sua casa. Tudo quanto seja humilde é o que Ele só deseja, porque também apenas quer o que apresente o seu distintivo, que é o sofrimento e a enfermidade. Portanto, a Igreja de Jesus Cristo é realmente a cidade dos pobres. Os ricos, considerados como tal - e afronta-me o dizê-lo, porque devo falar sem tergiversações - visto que são uma sequência do mundo e que, por assim dizer, ocupam os lugares mais inferiores, só têm entrada na Igreja por uma certa tolerância; porque os pobres e os indigentes, assinalados pelo Filho de Deus é que rigorosamente devem ser recebidos nela. E é por este motivo que o divino Salmista lhes chama os "pobres de Deus": pauperes tuos (Salmo 71, 2) E porque lhes chama ele os pobres de Deus? Apelida-os assim espiritualmente, porque na nova aliança aprouve-lhe recebê-los com uma prerrogativa especial. E não foi por causa dos pobres que o Salvador desceu a terra? "Enviou-me Deus, diz Ele, para anunciar aos pobres o Evangelho" - Evangelizare pauperibus misit me (São Lucas 4, 18). Quando Ele pregou o primeiro sermão na montanha misteriosa, não se dignou de falar aos ricos, para, de propósito, lhes fulminar a soberba; aos pobres é que Ele falou, dirigindo-lhes as seguintes palavras evangélicas: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus!" - Beati pauperes, quia vestrum est regnum Dei (São Lucas 6, 20). Ora, se é a eles que pertence o céu, que é o reino de Deus na eternidade, também a eles pertence a Igreja, que é o reino de Deus no tempo absoluto. E como a Igreja lhes pertence, são eles portanto os primeiros a tomarem assento nela. "Vede, dizia o divino Apóstolo, que, segundo a opinião do mundo, não há na Igreja muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos nobres e, por isso, Deus escolheu o que havia de mais desprezível" - Videte vocationem vestram, fratres quia non multi sapientes secundum carnem, non multi potentes, non multi nobiles: sed quae stulta sunt mundi elegit Deus ut confundat sapientes; et infirma mundi elegit Deus, ut confunda fortia; et ignobilia mundi et contemptibilia elegit Deus (1 Coríntios 1, 26-28). Daqui é intuitivo concluir que a Igreja de Jesus Cristo era uma assembleia de pobres. E nos seus princípios, se os ricos eram nela recebidos, tinham de despojar-se, antes de entrar, de todos os seus bens e de os lançar aos pés dos Apóstolos, para assim darem entrada na Igreja, que era a cidade dos pobres, e que apresentava todo o cunho da pobreza, tal o plano que formara o Espírito Santo de estabelecer na origem do Cristianismo a prerrogativa eminente dos pobres, verdadeiros membros de Jesus Cristo! Por aqui podemos ver que não basta ter dó da pobreza, ou simplesmente socorrê-la, mas que também devemos usar para com ela de grandes sentimentos de respeito. E São Paulo dá-nos uma prova disso. Numa epístola que dirigiu aos Romanos, em que se referia a uma esmola que ia levar aos fiéis de Jerusalém, falava-lhes nestes termos: "Rogo-vos, irmãos, por Nosso Senhor Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo que me auxilieis com orações a Deus, para que os santos, residentes em Jerusalém, aceitem a oferenda que lhes vou fazer" - Obsecro vos, fratres, per Dominum nostrum Jesum Christum et per charitatem Sancti Spiritus, ut adjuvetis me in orationibus vestris pro me ad Deum, ut... obsequii mei oblatio accepta fiat in Jerusalem sanctis (Romanos 15, 30-31). Como é admirável, cristãos, a maneira honrosa como ele trata os pobres! Não diz: "a esmola que lhes vou fazer, ou o auxílio que lhes vou prestar"; o que diz é: "a oferenda que lhes vou fazer". Mas ainda diz mais, e notai bem isto que ele acrescenta: "Rogai a Deus, caríssimos irmãos, que lhes seja grata a minha oferenda" Que quer dizer o santo Apóstolo, e para que tantas precauções para fazer aceitar uma esmola? É que a alta dignidade dos pobres é que o faz assim falar. Pode haver para isto duas razões: ou o desejo de captar a afeição, ou o prazer de aliviar a miséria; pode ser um efeito de simpatia, e também um sentimento de piedade. Como quer que seja uma das duas coisas constitui a oferenda, a outra é a esmola. Na esmola, admite-se, em geral, que já o fato de dar é suficiente; na oferenda, porém, há mais desvelo e até uma certa arte inocente de encarecer o valor do que se dá, pela maneira como se procede e pelas circunstâncias que revestem o fato. Ora é por este último modo de ser que São Paulo presta socorro aos pobres. Não os considera unicamente como uns desgraçados carecidos de auxílio; entende que, na miséria em que vivem, são eles os principais membros de Jesus Cristo e os primogênitos (os que têm o direito de primogenitura) da Igreja, e como tal, trata-os como a pessoas nobres, dignas da maior deferência. Não acha suficiente o alívio ocasionado por uma oferenda: deseja que essa oferenda lhes seja grata, e, para a realização desse desiderato, implora preces a toda a Igreja. É tal a consideração de que gozam os pobres na Igreja de Jesus Cristo, que São Paulo parece fazer consistir a sua felicidade na honra de os servir e no prazer de lhes agradar: Ut obsequii mei oblatio, etc. Excelentíssimas senhoras, deixai-vos inspirar por estes sentimentos apostólicos; e, nos desvelos que recebeis desta casa, olhai respeitosamente os pobres que a compõem. - Vede bem que, se as honras mundanas vos sobrelevam a eles, superiorizam-se eles a vós, pois meio do distintivo de Jesus Cristo que têm a honra de possuir. Honrai, servindo os pobres, a misteriosa norma da Providência Divina, que lhes marca os primeiros lugares na Igreja com uma prerrogativa tal, que os ricos só têm entrada nela com a condição de os servirem. SEGUNDO PONTO Havendo-me imposto a obrigação de vos explicar a segunda verdade, passo agora a fazê-lo, sem me alongar demais na demonstração, visto que ela resulta tão evidentemente da verdade já estabelecida. Como já disse, Jesus promete unicamente no seu Evangelho sofrimentos e aflições; e, portanto, não precisa dos ricos na Santa Igreja. Além disso, como o luxo dos ricos é incompatível com a profunda humilhação desse Deus, oprimido até ao martírio da cruz, é evidente que não os procura por deferência para com eles. E de que Lhe serviriam eles no Seu reino, senão para Lhe erigirem templos magníficos ou para Lhe adornarem os altares com ouro e pedrarias? Ora é indubitável que Deus não se preocupa com esses ornamentos. Recebe-os, é certo, da mão dos homens como provas da sua devoção, do seu espírito religioso; mas, fora dessas custosas demonstrações de religiosidade, ha lá nada mais trivial e mais simples do que o que basta ao culto que lhe é devido? Deus apenas se satisfaz com a água mais simples para regenerar os Seus filhos, e com algum pão e vinho para consagrar os Seus mistérios, onde reside a fonte de todas as Suas graças. O Seu maior contentamento é quando Lhe oferecem sacrifícios em escuras masmorras ou Lhe exaltam os templos com a humildade e com a fé. Deus de nada carece, e, todavia carece muito dos ricos. Porque carece deles? Para corresponder a majestade do Seu culto e para satisfazer à necessidade dos Seus pobres. Noutro tempo, pelo antigo Testamento, era forçoso utilizar para os sacrifícios os melhores rebanhos, e para o tabernáculo as maiores suntuosidades; atualmente, na nova aliança, é dispensável esse luxo, limitando-se Deus a criar outras necessidades para os pobres, implorando o auxílio deles: Ecce mysterium vobis dico - "Eis um mistério admirável" Jesus não carece de nada e carece de tudo. Não carece de nada, pelo infinito poder; mas carece de tudo, pela infinita misericórdia: Ecce mysterium vobis dico - "Eis um grande mistério que vos vou desvendar" (1 Coríntios 15, 51) e que é o mistério do Novo Testamento. E na mesma misericórdia que obrigou Jesus, na Sua inocência, a vergar-se a todos os crimes, obriga-O também, na Sua felicidade, a vergar-Se a todas as misérias; e, nestas condições, é Ele de todos os pobres mais pobre de todos. Com ser o mais inocente, é que sofreu o maior número de pecados; e apesar de ser o mais rico, é, contudo o mais cercado de necessidades. Aqui deperece com fome, além estertoriza com sede acolá geme com o rigor das algemas, noutra parte, martirizado pela crueza dos tormentos, sofre ao mesmo tempo o frio e o calor e as durezas mais antagônicas. Enquanto todos os outros pobres sofrem unicamente pela sua própria condição, Jesus Cristo, que é verdadeiramente pobre, e o mais pobre de todos, "sofre por toda a universalidade dos indigentes" - Unus tantummodo Cristus est qui in omnium pauperum universitate mendicet (1 Coríntios 15, 51) São, portanto, as necessidades urgentes doam pobres membros de Cristo que o obrigam a quebrantar o seu rigor em proveito dos ricos. Desejaria Ele ver somente na Sua Igreja os que trazem o sinal da Sua divindade, somente os pobres, os indigentes, os aflitos e os miseráveis. Mas, se o mundo é povoado de infelizes, quem há de aliviar esses infelizes? Que virá a ser dos pobres, por quem Ele sofre e de quem sente todas as necessidades? Poderia Deus enviar-lhes em seu auxílio os anjos da sua corte; mas mais justo é que sejam socorridos por homens, que são o seu próximo. Entrai, pois, na Igreja, ó ricos, que a porta está finalmente aberta para vós; mas podeis entrar em atenção aos pobres e com a condição de os servir. Eis como, pelo amor consagrado aos seus filhos, Deus permite a entrada aos ricos, havidos como estrangeiros. Verdadeiro milagre da pobreza! Mas apesar de estrangeiros, a graça concedida aos pobres naturaliza os ricos e serve-lhes para a expiação do contágio que eles contraem no meio das suas riquezas. Portanto, ó ricos do mundo, podeis usar quantos títulos soberbos quiserdes, que na Igreja de Jesus Cristo sereis apenas servos dos pobres. E não vos ofendais com semelhante título, glorificado pelo patriarca Abraão. Ele, que possuía tantos servos e uma família tão numerosa tinha, contudo o cuidado e a obrigação de servir os necessitados. Apenas os sentia aproximar de sua casa, corria logo ao encontro deles para recebê-los; ia escolher no seu rebanho o melhor e mais lindo carneiro para lhes dar, e tinha o trabalho de os andar servindo a mesa com grande; aprazimento (Gênesis 18, 8). Sobre isto, diz o eloquente Pedro Crisólogo: "Abraão, sentindo chegar os pobres a sua casa, já se não lembra de que é senhor"; e desempenha todas as funções dum servo: Abraham, viso peregrino, dominum se esse nescivit. Mas porque era tão solícito em servir os pobres? É que esse pai dos crentes via já em espírito o lugar que eles deviam ocupar na Igreja; e vendo também neles a figura de Jesus Cristo, esquece a sua dignidade ao considerar a dignidade dos pobres, e mostra com o seu exemplo aos ricos a obrigação que eles tem de os servir. Que serviço devemos então prestar-lhes? Em que somos obrigados a socorrê-los? A resposta está no exemplo do patriarca Abraão que vos apresentei. Mas o admirável Santo Agostinho ainda vos ministra a este respeito um ensinamento mais frisante. O serviço que deveis prestar aos necessitados é aliviá-los numa parte do fardo que os oprime; e por isso o apóstolo São Paulo ordena aos fiéis que "aliviem os fardos uns dos outros" - Alter alterius onera portate (Gálatas, 6, 2) É que tanto os pobres como os ricos tem um fardo que os vexa altamente. Que os pobres tem o seu fardo, ninguém o ignora; porque, quando os vemos labutar e gemer constantemente, não podemos deixar de reconhecer que as misérias que os flagelam são um fardo pesadíssimo que lhes carrega nos ombros. Mas que os ricos tenham também o seu, é que à primeira vista parece inacreditável. Pois embora os ricos tenham grandes comodidades e pareçam ter uma vida desafogada, ficai sabendo que também tem o seu fardo. E sabeis, cristãos, qual é esse fardo? São as suas próprias riquezas. Numa palavra: o fardo dos pobres é a necessidade, e o fardo dos ricos é a abundância. "O fardo dos pobres, diz Santo Agostinho, é não ter o que é preciso; e o fardo dos ricos, é ter mais do que é preciso" - Onus pauper patis non habere, divitiarum onus plus habere (Bossuet restringiu demais o texto de Santo Agostinho). Então como se compreende que viver na opulência seja um fardo incômodo? Talvez muitos mundanos estejam agora acalentando no íntimo dos corações o desejo de possuírem semelhante fardo! Mas reprimam a impulsividade desses loucos desejos. Se os injustos preconceitos do século lhes não deixam avaliar neste mundo os enormes encargos que tenha opulência, mais tarde hão de reconhecê-los e hão de arrepender-se, mas já sem remédio, de se não haverem deles libertado, quando comparecerem nesse tribunal em que é necessário dar conta não só dos talentos dispendidos, mas também dos escondidos, e responder a esse juiz inexorável não só pelas despesas, mas também pelas economias que se tiverem feito. Não aguardemos, porém, essa hora fatal, e enquanto o tempo o permite, pratiquemos esse conselho de São Paulo: Alter alterius onera portate - "Aliviai os fardos uns aos outros" Aliviai o fardo do pobre, ó ricos, aliviai a sua necessidade, ajudai-o a suportar as aflições que o assoberbam e o fazem gemer; e ficai sabendo que, trabalhando para o aliviardes, concorreis para o vosso próprio alívio. Ao mesmo tempo em que lhe prestais socorro, também lhe diminuis o fardo, e ele igualmente diminui o vosso. Vós aliviais a necessidade que o oprime, ele alivia a abundância que vos pesa. Aliviai os fardos uns aos outros, "para que haja igualdade nos, pesos a suportar", como diz São Paulo: ut fiat aequalitas (2 Coríntios 8, 14). E que maior injustiça haverá, irmãos, do que a que consiste em suportarem os pobres toda a violência, todo o peso das misérias que lhes esmagam, os ombros? Se eles se queixam e se murmuram contra a Providência Divina, permiti-me, ó Deus, que diga que é com certa razão; porque sendo pobres e ricos argamassados com os mesmos elementos, e não havendo diferença sensível entre a massa que forma uns e a forma outros, porque é que dum lado vemos a alegria a proteção e a abundância, e do outro a tristeza, o desespero e a extrema inópia, além do desprezo e da servidão? Porque há de haver um homem afortunado, vivendo na opulência, a ponto de satisfazer os desejos mais inúteis, curiosamente estudados, ao passo que há um miserável, um homem, apesar de tudo tão bom como o primeiro, mas que não pode sustentar a família, nem mitigar a fome que o atormenta? Nesta estranha desigualdade poderia acusar-se a Providência de uma má distribuição dos tesouros que Deus repartisse igualmente, se por outro meio ela não houvesse provido a necessidade dos pobres e reconhecido certa igualdade entre os homens? Ora foi por isso, cristãos, que Deus estabeleceu a Igreja, onde ordena que a abundância de uns supra a falta dos outros, e assim obriga os opulentos a darem aos necessitados o que tiverem de supérfluo. Penetrai neste pensamento, irmãos, e vede que, se não aliviardes o fardo dos pobres, tereis de sofrer a opressão do vosso, e o peso das vossas riquezas mal distribuídas conduzir-vos-á ao abismo onde caíreis; ao passo que, se comparticipardes da miséria dos pobres, aliviando-lhes o fardo da sua indigência, também sereis dignos de comparticipar dos privilégios que lhes forem concedidos. TERCEIRO PONTO Enquanto os ricos não participarem dos privilégios dos pobres, não terão salvação possível; e basta-me apenas insistir nos mesmos princípios para vos convencer desta verdade. Se é certo a Igreja ser a cidade dos pobres, como já disse, se é certo eles ocuparem nela os melhores lugares e ser principalmente para eles que foi construída essa cidade bem-aventurada, é intuitivo concluir que os privilégios que forem concedidos só a eles pertencem, Em todos os reinos e em todos os impérios há privilegiados, quer dizer personagens eminentes que tem direitos extraordinários; e é a fonte desses direitos que eles alcançam facilmente pelo seu nascimento ou pelos cargos representativos da pessoa do príncipe. O esplendor, resultante da grandiosidade da nação e da majestade do soberano, reverbera na coroa deste e como que se reflete sobre os que o ilaqueiam. Ora nós, que vimos pelas Sagradas Escrituras que a Igreja é um reino onde existe a melhor ordem, não devemos duvidar de que ela tenha também os seus privilégios, e que esses privilégios se poderão obter por meio da união com o príncipe da Igreja, que é Jesus Cristo. E se é mister viver solidário com o Salvador, não é nos ricos, cristãos, que deveis procurar os privilégios da Santa Igreja. A coroa do nosso monarca é uma coroa de espinhos; e o esplendor que nela reverbera são as angústias e os sofrimentos. Pois só nos pobres, isto é, naqueles que sofrem, é que reside a majestade desse reino espiritual. E visto Jesus ser pobre e indigente, havia toda a conveniência em que Ele se solidarizasse com os seus semelhantes e distribuísse benefícios por todos os seus companheiros de infortúnio. Não se olhe agora a Pobreza desdenhosamente, nem se trate como coisa vil e plebeia. Embora ela pertencesse à escória do povo, o que é certo é que depois do rei da glória a ter desposado, nobilitou-a com essa aliança, concedendo logo aos pobres todos os privilégios do seu império. Promete o reino aos necessitados a consolação aos que choram, o alimento aos que tem fome, e a alegria eterna aos que muito sofrem. Mas se todos os direitos, se todas as graças, se todos os privilégios do Evangelho são para os pobres de Cristo, que vos resta, então, ó ricos, e que quinhão vos caberá no Seu reino? Ele apenas fala de vós no Evangelho para vos fulminar o orgulho: Vae vobis (divitibus) - "Ai de vós, ricos!" (São Lucas 6, 24). Quem não tremeria ao ouvir pronunciar esta sentença? Quem não se sentiria tomado de íntimo pavor? Contra esta terrível maldição tendes uma única esperança. É certo que esses privilégios pertencem aos pobres; mas vós podeis alcançá-los diretamente deles e recebê-los das suas mãos, porque só assim é que o Espírito Santo vos concede as graças do céu. Quereis que vos sejam perdoadas as vossas iniquidades? "Resgatai-as por meio de esmolas, disse Ele" - Peccata tua eleemosynis redime (Livro de Daniel, 4, 24). Implorais a misericórdia divina? Procurai-a nas mãos dos pobres exercendo-a para com eles: Beati misericordes - Bem-aventurados os misericordiosos (São Mateus 5, 7). Quereis, finalmente, entrar no reino de Deus? Ser-vos-ão abertas as portas, disse Jesus Cristo, contanto que os pobres vos deixem entrar: "Granjeai amigos que vos recebam nos tabernáculos eternos, disse Ele" - Facite vobis amicos de mammona iniquitatis, ut quum defeceritis, recipiant vos in aeterna tabernacula (São Lucas 16, 9). Deste modo, a graça, a misericórdia, a remissão dos pecados e o próprio reino estão entregues nas mãos dos pobres; e os ricos nunca poderão compartilhar destes bens, se os pobres os não favorecerem. Como sois então ricos, ó pobres! E vós, ó ricos, como sois tão pobres! Se confiardes nos vossos próprios bens, ficareis eternamente privados dos bens do Novo Testamento, e só vos restará por única partilha esse Vae terrível do Evangelho. E para evitardes tão tremendo infortúnio, para terdes a sorte de vos salvardes dessa maldição inevitável, acolhei-vos sob a proteção da pobreza; entrai em comunhão com os pobres; daí, que grandes coisas haveis de receber: daí os bens temporais, porque recebereis as bênçãos espirituais; comparticipai das misérias dos aflitos, que Deus vos aquinhoará dos seus privilégios. Eis o que eu tinha para dizer-vos a respeito das vantagens da pobreza e da necessidade de a socorrer. Depois disto, só me resta clamar com o profeta: Beatus qui intelligit super egenum et pauperem - "Bem-aventurado o que olha com alma para o indigente e para o pobre!" (Salmo 40, 2). É que não basta, cristãos, volver para os pobres os olhos da matéria; é também necessário examiná-los com os olhos da alma: Beatus qui inteligit. Aqueles que os fitam com os olhos do corpo só veem coisas, objetos que lhes infundem repulsão; os que, porém, volvem para eles um olhar íntimo, isto é, a inteligência guiada pela fé, veem neles a figura de Jesus Cristo, as imagens da Sua pobreza, os cidadãos Seu reino, os herdeiros das Suas promessas, os distribuidores das Suas graças, os verdadeiros filhos da Sua Igreja e os primeiros membros do Seu corpo místico. Isto é que os leva a socorrê-los com fervorosa solicitude. Mas ainda não basta socorrê-los nas suas necessidades. Há muitos que protegem a pobreza sem verdadeiramente lhe perscrutarem o íntimo. O que dá uma esmola a um pobre alivia-lhe a miséria, ou porque é instado pelas suas súplicas importunas, ou porque é movido por uma natural compaixão; mas o que é certo é que não perscruta o íntimo desse pobre. Aquele, porém, que considera os pobres como primeiros filhos da Igreja, e que, respeitando essa qualidade, se julga na obrigação de os servir, e que só espera comparticipar das bênçãos do Evangelho por intermédio da caridade e da comunicação fraternal esse é que verdadeiramente compreende o mistério da caridade. Portanto, irmãos, volvei os olhos para esta casa indigente, e olhai com alma para os pobres que nela habitam. Se eu pedisse as vossas esmolas para uma única pessoa, os vossos corações comover-se-iam, por motivos importantes e justos, que vos compelem ao exercício da caridade; mas neste momento levanto a minha voz em nome duma casa, onde vive uma multidão numerosa de pobres mulheres completamente abandonadas. Será preciso representar-vos o perigo a que se achai exposto esse sexo e as perniciosas consequências da sua pobreza, que são o escolho mais vulgar onde naufraga o seu poder? De nada servirão as palavras, se o próprio objeto vos não comover. Entrai nesta casa, conhecei de perto as necessidades que ela acusa, e se vos não compadecerdes dos extremos a que se acha reduzida, não sei então, irmãos, de coisa que seja capaz de vos enternecer. Não devo ocultar que há algumas senhoras devotas que se tem dignado de velar por esta casa, olhando, pelos pobres com verdadeira alma; lisonjeiam-se muito em os servir, porque conhecem a dignidade que eles possuem; julgam-se na obrigação de os socorrer, porque são evidentemente cristãos; libertam-se duma parte do peso das suas riquezas, entregando-a nas mãos dos pobres, porque reconhecem o grande crime de dar uma má aplicação a essas riquezas; e distribuindo por eles os bens temporais, vêm receber em troca as graças espirituais. Autores para consultar: Du Jarry, Luís de Grenada, Bayle, Morisot e Vidal. Domingo da Quinquagésima - Sermão sobre a Lei de Deus Pregado em Metz, entre os anos de 1653 e 1656. SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET Cogitam vias meas. Exordio. - Diversidade de ações entre os homens. Animais de maior uniformidade. Ocupações servis, ou inúteis, ou estultas, ou criminosas. Um guia para as minhas culpas, uma norma para os meus desvarios e um repouso para as minhas inconstâncias. 1º Ponto. - Ignorância humana. Nós não sabemos o que nos convém. Concilium meum justificationes tuae - Intellectum dat parvulis - Super senes intellexi. O acaso dirige os negócios. Aproximemo-nos de Jesus Cristo para recebermos os Seus ensinamentos. 2º Ponto. - Ordinatione tua perseverat dies... Nisi quod lex tua... Grande coisa é ser dirigido pela sabedoria divina. 3º Ponto. - Perturbação da vista. Esperança falaz. Repouso em Deus. 1ª Peroração. - Carnaval. 2ª redação. - A natureza deu por limites: a fraqueza às crianças, e a razão aos homens. O mau: Robustus puer - Posse quod velis... Velle quod oportet. "Os homens sentem maior prazer com o que alcançam do que com o que já possuem" Cogitavi vias meas, et converti pedes meos in testimonia tua Estudei os meus caminhos, e finalmente segui aquele que me foi indicado pelos vossos testemunhos (Salmo 118, 59). Já que a licenciosidade desenfreada impera hoje ostensivamente; que, como guerra a penitência que breve vamos iniciar, o diabo forceja por entenebrecer esses dias, auxiliado pela infâmia de tão excessivas devassidões, urge santificá-los, tanto quanto pudermos, por meio de preces públicas e da palavra divina, que são a mais santa e salutar instituição que se pode opor as arremetidas do anjo perverso. Mas como, durante esse tempo, os homens abismados na matéria parecem haver-se esquecido de que foram feitos a imagem de Deus, visto que nivelam a sua felicidade pela dos animais irracionais, entendi que seria muito útil para a salvação de todos vós uma enumeração dos verdadeiros deveres da vida humana que hoje vou fazer, auxiliado pelo profeta Davi. Por isso escolhi o versículo do Salmo 118, em que o grande rei e grande profeta, depois de várias considerações sobre os seus deveres neste mundo, nos declara com a maior lisura que não encontrou melhores caminhos do que os da lei de Deus. E então diz: "Estudei os meus caminhos." Atendei, fiéis, a tão importante resolução. Esse excelente servo de Deus, que nos deixou as palavras que eu vos citei, teve que lutar desde a infância com poderosas animosidades. Muitas vezes se achou implicado nos perigosos interesses dos príncipes e dos potentados; e teve de governar um Estado poderoso, onde devia declarar-se contra as cinzas da família de Saul, seu antecessor. Finalmente, durante, um mui longo reinado, teve de arcar com dificuldades, não só por parte duma corte faciosa e da sua própria casa sempre agitada por intrigas, mas também sugeridas por guerras cruéis, tanto civis como estrangeira. Todavia, se lhe perguntardes qual a sua opinião quanto ao que ele nos propõe nesse judicioso e admirável versículo que eu escolhi para meu tema, não duvidava dizer-vos que nunca se desobrigou de missão tão importante como a que tomou sobre si. E que não temos poder algum por vontade própria, porque quanto maior é a correlação das coisas, tanto mais carecemos do auxílio divino, imploremos fervorosamente ao Pai de toda a luz e de infinita bondade a graça de nos alumiar o espírito, por meio dos rogos que dirigimos a Santíssima Virgem. Ave Maria. Na importância, do plano do profeta Davi, eu considero-me, cristãos, como um forasteiro, chegado há pouco duma terra desconhecida e desabitada, livre há muito tempo do comércio e do convívio dos homens, considero-me como um indivíduo estranho as coisas humanas, que de repente subiu ao cume duma elevada montanha, e que de lá, devido a um efeito do poder divino, avista a terra e os mares e tudo o que se pratica no mundo. O bem-aventurado mártir Cipriano serve-se do artificio análogo para representar as vaidades do século ao seu fiel amigo Donato, Depois de ter subido à dita montanha, a primeira coisa que me chama a atenção é essa multidão infinita de povos e de nações com os seus costumes diferentes e os seus temperamentos incompatíveis, uns bárbaros e selvagens, outros instruídos e civilizados. Depois, para vos dar conta duma tal variedade de costumes e de inclinações, desço mais profundamente a particularidades da vida humana e examino os diversos misteres em que os homens se ocupam. Que caos, Deus do céu! Que enredo! Que confusão extraordinária! Se volvo os olhos para as cidades, não vejo um ponto único onde fixe a vista, tal é a diversidade de seres que estranhamente se confundem. Este discute acaloradamente no tribunal; aquele cuida dos negócios públicos; outros, nas suas lojas, vendem mais mentiras do que mercadorias. Se passo a examinar as artes e ofícios com os seus diferentes trabalhos, e essa quantidade inumerável de máquinas e de instrumentos com aplicações tão variadas, confunde-se-me o espírito com tal diversidade, e até nem poderia convencer-me da tamanha riqueza do engenho humano, se a experiência não me mostrasse tantas obras más. Por outro lado, vejo que as aldeias não se acham em menor atividade. Ninguém está em descanso, todos trabalham, todos estão em exercício. Uns a construírem casas, outros a lavrarem, este entregue a agricultura; aquele ocupado nos jardins, este outro ornamentando os mesmos jardins para convertê-los em lugares de delícias, aquele outro trabalhando em objetos de uso doméstico... Mas para que vos hei de estar a fazer uma longa enumeração de todas as ocupações da vida rústica? O próprio mar, que a natureza parecia ter destinado para ser unicamente o império dos ventos e a morada dos peixes, é também habitado por homens. A terra envia-lhe em cidades flutuantes como que colônias de povos vagabundos que, tendo por única muralha uma casca de madeira, se arrojam a lutar com o furor das tempestades por sobre o mais pérfido dos elementos. Mas que mais vejo além? Espetáculos diversos! Exercícios penosos! Cenas variadas! Tudo numeroso! Por toda a parte se confundem a audácia e o engenho do espírito humano. Que hei de agora dizer-vos, fiéis, das diversas inclinações dos homens? Uns, de temperamento mais agitado ou mais generoso, preferem ocupações violentas: todo o seu contentamento consiste no tumulto dos exércitos; e se qualquer circunstância os obriga a ficar em repouso, entregam-se a caça, que é uma imagem da guerra. Outros, de natural mais pacífico, gostam duma vida tranquila; e então se dedicam com mais gosto a conversações do domínio de todos, ou ao estudo das boas letras, ou a diversas espécies de curiosidades, cada qual conforme a sua índole. Há certos que andam sempre a estudar anedotas para colherem os aplausos da alta sociedade. Este encontra no jogo todo o seu prazer; o que deveria constituir unicamente um passatempo é para ele uma faina contínua que toma sérias proporções, e em que ele gasta o melhor do seu tempo. Frequentando diariamente as casas de jogo, chega a apaixonar-se, a irritar-se e malbarata sempre um tempo precioso. Há ainda outros que passam toda a sua vida numa intriga constante: querem conhecer todos os segredos e empregam todos os meios para o conseguir, entrando em toda a parte e tomando sempre novos conhecimentos, criando novas relações de amizade. Este ama apaixonadamente, aquele tem ódios cruéis e animosidades implacáveis, e este outro ciúmes furiosos de alguém que o excita. Um acumula, outro desperdiça. Uns são ambiciosos e sedentos de empregos públicos; outros, mais moderados, preferem o repouso e a suave ociosidade duma vida privada. Cada qual tem o seu capricho e as suas diferentes inclinações. E como os costumes são mais dissemelhantes do que as fisionomias, cada um parvoeja a seu modo. O mar não tem mais vagas quando agitado pelos ventos, do que esse abismo sem fundo e impenetrável do coração humano, quando convulsionado por pensamentos diversos. Eis na essência, irmãos, o que a minha vista alcança, ao examinar atentamente os negócios e as ações que constituem a vida humana. A esta espantosa diversidade, fico surpreendido num como alheamento; penso, medito, e pergunto a mim mesmo que hei de fazer, para onde me hei de dirigir. Cogitavi vias meas. Depois, refletindo, vejo que os outros animais parecem conduzir-se ou ser conduzidos mais uniformemente. Donde provem uma semelhante desigualdade e uma tal extravagância nas coisas humanas? Este é que é o divino animal de que se contam tão grandes maravilhas? Essa alma dum imortal vigor não é susceptível duma operação mais divinal e que defina melhor o laço donde proveio? Todas as ocupações que eu vejo me parecem servis, ou inúteis, ou estultas, ou criminosas. Nelas vejo movimento ou ação para agitar a alma; mas não vejo uma norma, nem uma verdadeira orientação para a predispor. "Tudo é vaidade e dor de espírito", dizia o mais sábio dos homens. Não verei eu coisa que seja digna duma criatura feita imagem de Deus? Cogitavi vias meas: procuro, medito, estudo os meus caminhos; e enquanto estou nesta dúvida, descubro outro gênero de homens que Deus distribuiu por todas as partes do mundo e que se empenham em basear a sua vida na equidade da lei divina: são os justos e as pessoas honestas. Parecem-me ter um procedimento mais uniforme, uma atitude mais grave e seus costumes melhor regulados; mas o seu número é tão reduzido que mal se distingue na terra. Além disso, não os vejo geralmente desfrutarem uma boa reputação; dir-se-ia que tem por partilhas o desprezo e a pobreza. Os que os maltratam e os oprimem aparecem no mundo de cabeça erguida, no meio dos aplausos de todas as condições e de todas as idades; e isto conduz-me ainda a novas perplexidades. Que número deverei seguir? O maior ou o menor? Os ajuizados ou os venturosos? Os que gozam do favor público ou os que o satisfazem com o testemunho das suas consciências? Depois de varias hesitações, consegui finalmente fazer a seguinte reflexão: Nasci numa profunda ignorância e apareci neste mundo sem saber o que havia de fazer. O que nele posso aprender acha-se eivado de erros tão multiplicados que a minha alma permaneceria numa incerteza contínua, se apenas se limitasse a sua própria luz; e apesar dessa incerteza, tenho de empreender uma longa e perigosa viagem. Essa viagem é a viagem da vida, onde necessariamente terei de andar por mil ínvios caminhos, cercado por toda a parte de precipícios, célebres pela queda de tantas pessoas. Cego como sol, que hei de fazer se não tiver a fortuna de encontrar um guia fiel que norteie os meus passos e dirija a minha alma indecisa? Isto é o de que careço em primeiro lugar. Mas, além de ter o espírito entenebrecido pela ignorância, sinto ainda a minha vontade extremamente desordenada, pois nela tumultuam constantemente desejos injustos e supérfluos. Sinto-me quase sempre agitado pela veemência das minhas paixões e pela violenta precipitação dos meus impulsos. Careço, portanto, em segundo lugar, duma norma definida que regule os meus costumes de harmonia com a boa razão e reduza as minhas ações à justa mediocridade. Finalmente, a terceira coisa de que necessito consiste no seguinte: Achando-se prejudicadas as duas partes principais que governam todas as minhas ações - entendimento e vontade - uma pela ignorância e a outra pelo desregramento, sente-se com isso excitada toda a minha alma, que cai numa inquietação e numa eterna inconstância, infortúnio que se reduz a mudar continuamente de desejos, sem encontrar um só que satisfaça. Todos os dias, por isso, tomo novos planos, na esperança de que os últimos deem melhor resultado e, contudo, cada dia tenho uma desilusão, porque não encontro coisa alguma que me satisfaça. Daqui resulta o ter uma vida tumultuosa, sem uma orientação definida, constituindo um conjunto de aventuras, diversas e de diversas ambições, que todas iludem os meus desejos. Ludibrio-as eu, ou elas me ludibriam a mim. Se não realizo o fim que tinha em vista, sou eu que as ludibrio; se, havendo obtido o que desejava não o encontro nelas, são elas que me ludibriam. E assim viverei doravante, sem esperança de pôr termo aos meus longos cuidados, se, finalmente, não encontrar um objeto sólido que fortifique os meus impulsos, por meio duma verdadeira, tranquilidade. As três coisas de que eu necessito são, portanto, as seguintes: um guia para as minhas culpas, uma norma para os meus desvarios e um repouso definido para as minhas inconstâncias. Mas onde hei de encontrar estas coisas, ó Deus? Cogitavi vias meas. A prudência humana vacila constantemente; as normas dos homens são defeituosas; e os bens do mundo não tem estabilidade. Tenho, portanto, de elevar-o meu espírito e de procurar na lei de Deus uma orientação infalível, uma norma definida e uma paz imutável. Já estou ouvindo essas palavras que Jesus Cristo proferiu com a sua proverbial caridade: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" - Ego sum via, veritas et vita (São João 14, 6). Sou o caminho seguro que indubitavelmente vos guia; Sou a verdade infalível, invariável, imaculada, que vos norteia; e Sou a (verdadeira) vida das vossas almas que lhes dá um constante repouso. Para que hei de refletir por mais tempo? Não mais me importuneis! (dúvidas e inquietações) Não mais, ó irresoluções malditas! "Eu estudei os meus caminhos, e finalmente segui aqueles, Senhor, que me foi indicado pelos vossos testemunhos" - Cogitavi vias meas, et converti pedes, etc. Eis o tema do meu discurso, que abrange, como vedes, todos os deveres da vida humana. Não duvido, fiéis, dê que tenhais muitas vezes ouvido prédicas de homens mais eruditos, que saibam deduzir os assuntos muito melhor do que eu; mas o que vos posso afirmar é que nunca nos gabinetes, nem nos conselhos, nem nas tribunas, nem nos livro, se tratou jamais um assunto de tão elevada importância. PRIMEIRO PONTO "Que é o homem, ó Deus supremo, para vos lembrardes dele?" - Quid est homo, quod memor es, ejus? (Salmo 8, 5). A nossa vida não é mais do que um contínuo desvario, as nossas opiniões são outros tanto erros, e os nossos caminhos apenas representam ignorância da nossa parte. Mas quando me refiro a nossa ignorância, não lamento, cristãos, o fato de desconhecermos qual seja a estrutura do mundo, ou influências dos corpos celestes, ou a razão porque a terra se mantem suspensa no espaço, ou ainda o motivo porque todas as obras da natureza são para nós enigmas insolúveis. Embora estes conhecimentos sejam muito admiráveis e muito dignos de serem estudados, não é todavia o que eu hoje lamento; a causa da minha dor relaciona-se mais intimamente conosco. O que eu lamento é a desgraça de ignorarmos o que nos convém, de não conhecermos o bem e o mal, e de não possuirmos a verdadeira norma que deve guiar a nossa vida. O sábio Salomão, meditando um dia profundamente sobre isto, disse: "Para que há de o homem saber coisas superiores a sua inteligência, se ele nem sequer sabe o que lhe convém durante a peregrinação desta vida?" - Quid necesse est homini majora se quaerere; cum ignoret quid conducat sibi (in vita sua) numero dierum peregrínatíonis suae, et tempore quod velut umbra praeterit? (Eclesiastes 7, 1). Mortais miseráveis e audaciosos: nós medimos o curso dos astros, marcamos o lugar aos elementos, vamos buscar ao fundo dos abismos as coisas que a natureza lá escondera, penetramos num oceano imenso para descobrir novas terras que os séculos anteriores nunca conheceram, e a que coisas nos não levam os desejos vagos e temerários duma curiosidade infinita? E depois de tão laboriosos estudos, não sabemos quem somos; não conhecemos o caminho que devemos trilhar, e ignoramos qual é o verdadeiro fim dos nossos movimentos. E contudo, é intuitivo que a primeira coisa que deve fazer uma pessoa refletida é examinar bem os seus caminhos e ponderar com a máxima prudência a maneira como deve regular os seus costumes. É isto o que nos aconselha o Eclesiastes nas seguintes bem avisadas palavras: "Os olhos do sábio residem na cabeça" - Sapientis oculi in capite ejus (Eclesiastes 2, 14). Que modo de dizer tão estranho: os olhos do sábio residem na cabeça! É que ele quis fazer-nos compreender que assim como a natureza colocou a vista, como um guia fiel, no lugar mais eminente do corpo, a fim de velar pela nossa conduta e de prever os obstáculos que poderiam interrompê-la na sua marcha segura, assim também a Providência Divina estabeleceu a razão, na parte superior da nossa alma, para guiar os nossos passos ao bom caminho e perscrutar os embaraços que dele nos desviam. E embora todos concordem na absoluta necessidade desse preceito do sábio, desprezamo-lo contudo por completo no mais essencial da vida, apesar de o respeitarmos de certo modo nas coisas de somenos importância. Estranha cegueira do homem! Nenhum de nós quer reconhecer a falta lamentável do raciocínio, porque todos nós blasonamos de proceder com prudência e de discretear com acerto; damos viveza e engenho as nossas diversões; estudamos artisticamente os nossos gestos e ademanes; e só não nos damos ao trabalho de seguir os ditames da razão quanto aos nossos costumes, porque os confiamos ao acaso e a ignorância. E para que não imagineis, cristãos, que esteja aqui a fazer invectivas inúteis, dignai-vos ponderar em que consiste a vida humana. Se é certo haver em cada idade as suas faltas e os seus desvarios, que haver de mais insensato do que a mocidade ardente, temerária e irrefletida, sempre precipitada nos seus planos, e incapaz de pensar no que pratica, devido extrema violência das paixões? O vigor da idade consome-se em mil cuidados e em mil trabalhos inúteis. E que convulsões não causam nessa idade a ambição, a vingança, os ciúmes e o desejo de garantir a reputação e o bem-estar? E com que lentidão se não dedica as ações virtuosas a velhice preguiçosa e impotente! Que frieza e languidez a envolvem, e que agitação ela imprime no presente, ao considerar num futuro que lhe é funesto! Volvamos agora um olhar retrospectivo para os anos que já passaram, e que vemos? Quase todos os nossos planos condenados agora pela justiça do nosso espírito, bem como os cargos mais elevados que, mesmo por causa do brilho que os caracteriza, não são por isso os mais acompanhados de razão. A maior parte das coisas que fizemos não foram maduramente pensadas; mas tão somente empreendidas por um certo ardor irrefletido, que dá impulso a todos os nossos planos. Aquilo mesmo em que parece ter havido mais prudência não foi baseado nos verdadeiros princípios. Nunca pensamos em realizar as coisas como elas deviam ser, de harmonia com a sua índole, porque nunca nos deixamos guiar pelos sentimentos da nossa alma, nem tivemos nunca o cuidado de ponderar no modo de ser do nosso íntimo e de inquirir o motivo da nossa existência. Os nossos amigos, as nossas pretensões, os nossos cargos, enfim, os nossos diferentes meios da vida social, sempre incompreendidos para nós, precipitaram-nos constantemente, deixando-nos apenas impulsionar por considerações estranhas. E assim se passa a vida no meio duma infinidade de projetos inúteis e de estultos ideais, de maneira que os mais prudentes, depois do tempo acalmam esse primeiro entusiasmo que dá realce as coisas mundanas, admiram-se quase sempre de terem empreendido inutilmente tão longas tarefas. Qual a razão disto, cristãos? Não ser um defeito de má compreensão dos verdadeiros deveres do homem e do verdadeiro fim a que devemos mirar? É certo que não é empresa fácil nem trabalho medíocre adquirir um cárter infalível que garanta uma perfeição, ao menos relativa, nas ações que praticamos; porque todos os sábios do mundo tem aspirado ao rigor dos melhores princípios e todos tem caído em erro. De longe me avisas, ó filosofia, que tenho de andar neste mundo por um caminho tortuoso e cheio de precipícios, o que reconheço por experiência própria. Ofereces-me a mão para me auxiliares e me servires de guia; mas desejo primeiro saber se me sabeis guiar convenientemente. "Dois cegos, guiados um pelo outro, arriscam-se a cair no mesmo precipício" Desta forma, como posso confiar em ti, ó pobre filosofia? Nas tuas escolas só vejo inúteis e infindáveis controvérsias; só vejo suscitar dúvidas sem se pronunciarem decisões. Notai, porém, cristãos, que, desde que se começou a filosofar no mundo, a principal questão a ventilar-se foi a dos deveres essenciais do homem, estudando ao mesmo tempo qual o fim da vida humana. O que uns reputaram como verdadeiro, foi havido como falso por outros. Ora, num tal choque de opiniões, é que eu desejava ver, no meio duma assembleia de filósofos, um homem sem saber coisa alguma do que devia fazer neste mundo. Queria ver reunidos, se possível fosse, todos os que tivessem a fama de sábios, para decidirem, em conferência, quando é que esse homem havia de compreender o que era a vida e os seus deveres essenciais. Resultaria daí alguma conclusão definida? Mais fácil seria deixarem de se guerrear o frio e o calor do que esses filósofos confessarem unanimamente a verdade dos seus dogmas: Nobis invicem videmur insanire - "Parecemos todos um bando de insensatos", dizia outrora São Jerônimo. É impossível, cristãos, é impossível confiar exclusivamente na razão humana, que é tão variável e tão vacilante, e que tantas vezes cai no erro. Quem nela confiar, quem recorrer a ela para a tomar por guia, é o mesmo que procurar um perigo manifesto a que se deseje expor. Quando às vezes penso nesse mar tão vasto e tão agitado das razões e das opiniões humanas, não consigo descobrir em tão grande amplidão nenhum lugar tão sereno, nem refugio algum tão seguro que se não tenha notabilizado pelo naufrágio de qualquer personagem célebre. E tanto que o profeta Jó, lamentando, na violência das suas dores, as diferentes calamidades que flagelam a vida humana, razão teve em se queixar da nossa ignorância, no capitulo 8, exprimindo-se pouco mais ou menos nos seguintes termos: Oh vós que navegais sobre os mares, que comerciais em terras longínquas e que delas nos trazeis mercadorias tão preciosas; dizei-nos: Nas longas e trabalhadas viagens que haveis feito, "ainda não descobristes onde reside a inteligência e em que bem-aventurados países se refugiou a sabedoria"? Unde sapientia venit, et quis est locus inteligentiae? Naturalmente "ocultou-se da vista de todos os homens e até das aves do céu- quer dizer, os espíritos superiores não têm podido descobrir sinais dela" - Abscondita est ab oculis omnium, volucres quoque caeli latet (Jó 28, 12. 20-21) A morte e a corrupção, isto é, a caducidade e a velhice decrépita, que, vergada pelos anos, parece já olhar para a sepultura, disseram-nos assim: Finalmente, após longas pesquisas e mui rudes experiências, "ouvimos um ruído confuso", mas não podemos dar-vos novas muito seguras: Perditio et mors dixerunt: Auribus (nostri) audivimus famam ejus (Jó 22). Portanto, ó sabedoria incompreensível, agitado por essa tempestade de opiniões diferentes, verdadeiramente ignorantes e indecisas, só vejo um refugio em vós; sereis vós o porto seguro onde findarão os meus erros. Graças a vossa misericórdia, tenho uma lei e uns preceitos que me haveis dado, e que me alumiam como um facho celeste, assim como outrora, durante as trevas da noite, essa misteriosa coluna de fogo, alumiava o povo de Israel, guiando-o a vastíssimas terras ermas e inóspitas. Os vossos preceitos hão de fortalecer o meu espírito vago e hão de dirigir os meus passos vacilantes: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen semitis meis - "A vossa palavra é o facho que guia os meus passos, e a luz que brilha nos caminhos que eu piso" (Salmo 118, 105). "Eu tinha me resolvido, diz o sábio, a divorciar me por completo dos prazeres, para me dedicar verdadeiramente ao estudo da sabedoria, até conhecer à evidência o que é útil aos filhos dos homens. Mas, continua o príncipe esclarecido, reconheci que, para esse estudo, não era bastantemente longa a nossa vida" - Cogitavi in corde meo abstrahere a vino carneam meam ut animum meum transferrem ad sapientiam, devitaremque stultitiam, donec viderem quid esset utile filiis hominum: quo facto opus est sub sole numero dierum vitae suae (Eclesiastes 2, 3). E realmente a prudência humana é tão basta nos seus progressos, e a vida tão precipitada no seu curso, que ainda bem não temos aprendido o pouco que sabemos, e já a morte interrompe de repente a continuação dos nossos estudos, em virtude duma sentença fatal e irrevogável. Sobre a lei de Deus, porém, ficamos perfeitamente orientados logo no primeiro dia. Há uma doutrina muito simples que "dá inteligência aos mais néscios" - Intellectum dat parvulis (Salmo 118, 130) Essa doutrina consiste unicamente em sermos tementes a Deus. Por isso o profeta Davi disse: "Na minha mocidade tive grandes discussões com poderosos inimigos, com velhos e argutos palacianos; mas mais arguto fui eu do que esses provados anciãos, porque zombei dos seus sofismas, escudando-me simplesmente na astúcia de jogar com os mandamentos de Deus: Super senes intellexi, quia mandata tua quaesivi" (Salmo 100). Vede, com efeito, cristãos, esses poderosos e grandes gênios, que, afinal, não sabem o que fazem. Porque os vemos todos os dias abalançarem-se a empresas que caem frustradas, em virtude dos seus vastos e grandiosos planos acusarem falibilidade? É que as coisas são como são, e não como nós desejamos que elas sejam, e porque tudo o que acontece é duma maneira tão anormal que é preciso ser muito cego para não ver que há um poder oculto e terrível que se compraz de anular os planos dos homens, zombando desses espíritos superiores, que cuidam revolver todo o mundo e que se não lembram de que há uma razão superior que zomba deles e os utiliza, como eles se utilizam e zombam dos outros. Efetivamente, devemos concordar que, no meio do labirinto das coisas humanas, o meio mais seguro que temos para nos orientarmos, a única e verdadeira ciência a que sempre podemos recorrer é essa razão dominante e infalível, razão soberana, capaz de nortear uma alma para o verdadeiro caminho, elevando-a também com o verdadeiro alívio. Se não for ela, todos os nossos negócios caminharão ao acaso, mercê das ocasiões. De que serve pensar em tomarmos a rigor as nossas precauções, e em estudarmos o meio de determinado acontecimento se realizar no momento desejado, se as coisas humanas são tão contingentes, tão irregulares e tão extravagantes? Seria uma loucura pensar em tal. Muito previdente é quem observa o estado do tempo para lançar a semente terra e fazer as colheitas e, contudo, o Sábio, que eu não me canso de vos citar neste assunto, diz o seguinte: "Quem muito se acautelasse do vento, nunca semearia; e quem estivesse examinando as nuvens, espera de que o tempo lhe corresse medida dos seus desejos, nunca recolheria as suas sementeiras" - Qui observat ventum non seminat, et qui considerat nubes nunquam metet (Eclesiastes 11, 4). Com este exemplo, quer ele dizer que é um erro imaginar que tudo se harmoniza perfeitamente com os nossos planos e que tudo concorre para a sua execução. Assim é a lei das empresas humanas, sempre falível, a ponto dos mais previdentes se verem obrigados a confiar ao acaso o mais importante dos seus negócios. Não procedais desta maneira, justos filhos de Deus! Vós, que possuís uma sabedoria mais que humana, deveis compreender que seria indigno de pessoas sensatas confiardes os vossos planos ao acaso e mercê dos acontecimentos; e visto que a vossa razão não é bastantemente segura nem suficientemente poderosa para dirigir firmemente o bom êxito dos negócios, deixai-vos guiar por essa divina Sabedoria que tão bem rege todas as coisas. E não me digais que ela é superior à vossa inteligência; porquanto, devido a uma extrema bondade, manifestou-se ela muito claramente e muito desataviadamente. Deriva, por assim dizer, nas Escrituras divinas, donde os pregadores a extraem para vo-la pregar; e depois essa Sabedoria profunda, que dá um alimento sólido aos bons, houve por bem converter-se em leite para sustentar as criancinhas. E que mais podemos desejar, depois que essa Sabedoria eterna tomou carne humana para se familiarizar conosco? Não podíamos achar o verdadeiro caminho, devido aos nossos erros: "e foi o próprio caminho que veio procurar-nos" - Ipsa via ad te venit, diz Santo Agostinho. E o caminho não é mais nem menos do que o Salvador, esse Preceptor eminente, prometido por Isaías no capítulo 30: "Os teus ouvidos, diz Ele, ouvirão a voz daquele que, caminhando atrás de ti, te orientará nos teus caminhos, e então os teus olhos verão o teu Preceptor" - Erunt oculi tui videntes Praeceptorem tuum. Ó inefável misericórdia! Regozijemo-nos, fiéis, por sermos ignorantes em tudo. Mas isso que importa, se temos um Mestre tão sublime? Pelo contrário, temos justificado motivo para nos facilitarmos pela nossa ignorância, que determinou o nosso Pai celestial a confiar a direção de todos nós a um Preceptor tão eminente. Esse bom Preceptor é Deus e homem. Ó soberana autoridade! Ó suavidade incomparável! Um mestre tem conquistado tudo, quando consegue proceder de maneira que o amem e o respeitem. Eu respeito o meu Mestre, porque é Deus; e, para que o amor que lhe dedico fosse mais familiar e mais livre, dignou-se Ele fazer-se homem. Ora, se a sabedoria e a autoridade que hão de fluir em mim fossem puramente humanas, eu desconfiaria da primeira e sacudiria facilmente o jugo da segunda; porque "a sabedoria e muito sujeita ao erro, e a autoridade expõe-se muito ao desprezo" - Tam illa falli facilis, quam ista contemni, diz Tertuliano, Mas como esses dois elementos proveem tão maravilhosamente do Salvador, inclino-me e sujeito-me as Suas palavras magistrais: naquelas que entendo, vejo eu admiráveis ensinamentos; nas que não entendo, considero-as como um princípio de autoridade infalível, digna de veneração. Se não sou merecedor de as compreender, são elas merecedoras da minha crença; e assim, na sua escola, tenho eu a vantagem de alcançar mais facilmente a inteligência por meio duma humilde submissão, do que auxiliado por um estudo laborioso. Vinde, pois, ó sábios do mundo, vinde ouvir as palavras de vida eterna desse eminente Preceptor. Deixai o vosso Platão com a sua divina eloquência, deixai o vosso Aristóteles com essa sutileza de raciocínio, deixai o vosso Sêneca com as suas soberbas opiniões; e vinde ouvir a simplicidade de Jesus que tem mais majestade e mais vigor do que a gravidade afetada de todos esses homens. Havia um filósofo que insultava as misérias do gênero humano com altaneria e ar zombeteiro; havia outro que as deplorava em estos de mágoa e com ar compassivo, mas inutilmente; e só Jesus, o doce e humilde Jesus, lamenta as nossas misérias, mas dá alivio para elas. Aqueles a quem Ele vai instruindo, são conduzidos nos Seus braços vigorosos e invencíveis, com a maior bondade e com o maior desvelo; e é de tal abnegação que arrisca a própria vida a procurar a ovelha que anda perdida, trazendo-a depois aos ombros para ela se não cansar mais, visto que, "andando a correr dum lado para o outro, se havia extenuado de todo" - Multum enim errando laboraverat, diz Tertuliano. Ora, sendo Jesus um Mestre tão eminente, devemos ainda hesitar em segui-lO? Além disso, não é Ele desses mestres hipócritas que louvam a pobreza no meio da opulência, ou que aconselham a paciência no meio das voluptuosidades. Tanto Ele como todos os Seus discípulos cimentaram com o seu sangue as verdades que pregaram; mas os Seus santos ensinamentos não eram mais do que um quadro da Sua vida, porque as ações eram muito melhores do que as palavras, um seguro testemunho do Seu infinito poder. E, verdadeiramente bom, harmonizava os ensinamentos com a nossa fraqueza, havendo mister que vivesse neste mundo como um belo exemplar duma inimitável perfeição. Que receais, pois, homens covardes, se esse Mestre eminente tudo determinou pelas Suas palavras e pelos Seus exemplos, e se, quanto aos nossos costumes, nada deixou indeciso? Eu vejo-vos desorientados e numa estranha alucinação, a beira do caminho da piedade cristã, sem vos atreverdes a percorrê-lo, porque à primeira vista só se vos deparam embaraços e dificuldades; não sabeis se nesse rio haverá um vau, por meio do qual vos possais salvar, em caso de necessidade. Mas lembrai-vos de que o Salvador foi o primeiro a atravessá-lo sem perigo nenhum, e então já no vosso espírito não deve haver dúvidas. Vede-o triunfante na outra margem, chamando por vós, estendendo-vos os braços, garantindo-vos que nada há a recear. E vede também o sitio que Ele honrou com a Sua passagem, deixando um rasto de luz para o santificar e engrandecer. Não será uma vergonha para os cristãos terem repugnância de passarem por onde Jesus Cristo passou? É inegável, irmãos, que seríamos verdadeiramente insensatos se, com uma orientação tão segura, ainda nos deixássemos dominar pelos erros e pelas vaidades da razão humana. Eu estudei os meus caminhos; e nas diferentes ilusões da vida, cogitei atentamente onde poderia encontrar a realidade, e afinal, Senhor Jesus, achei que era manifesta loucura procurá-la noutra parte que não fosse nos Vossos testemunhos irrepreensíveis. E assim, auxiliado por Vós, resolvi seguir o caminho que me foi indicado pelos Vossos testemunhos: Cogitavi vias meas, porque não só vejo neles a luz que alumia a minha ignorância, como também a norma infalível que pode regular os meus desvarios. Eis o que constitui a segunda parte deste discurso. SEGUNDO PONTO Não se podia evitar que a ignorância profunda, que prevalece nas coisas humanas, precipitasse os nossos sentimentos afetivos numa desordem extraordinária; porque, assim como o piloto, desorientado no meio das trevas e das tempestades, abandona o leme e deixa vogar o navio ao sabor dos ventos e das ondas, assim também os homens, havendo perdido, por sua culpa, os verdadeiros princípios por que se deviam guiar, perderam também o tino e o bom-senso, deixando-se dominar pelos seus caprichos. Cada um se deixou vencer pelo que melhor o iludiu, e, portanto, as normas dos costumes ficaram completamente pervertidas. Quantas pessoas vemos nós que desejariam que todos vivessem cada qual a seu talante, e que todos se vissem libertos de tantas leis incômodas! A este plano é que essas pessoas chamam as santas instituições da lei divina; mas se não temos a audácia de criticar livremente este assunto, não vivamos, pelo menos, de modo que sê pense que estamos imbuídos dessa crença. O nosso programa, seja qual for o nosso raciocínio, é acender as nossas paixões; ou, se algumas vezes as reprimirmos, seja a despeito de outras mais violentas, e por isso mesmo mais repugnantes à razão. Não chamemos a prudência para fazer a escolha de boas e virtuosas inclinações, porque não é essa a índole dos homens, nem é esse o nosso costume. Despertadas em nós ás primeiras inclinações e as mais dominantes, certamente devido a movimentos deliberados e a uma espécie de instinto cego, é que começamos a fazer a escolha dos meios mais convenientes para as dirigir ao seu fim, e que julgamos ter tomado completamente as nossas precauções. Chamamos a isto um procedimento metódico, tão corrupto se acha já entre nós o verdadeiro uso das coisas. Ou então, para mais argutamente nos encaminharmos ao ponto de mira, e demonstrarmos uma verdadeira posse da ciência do mundo e um conhecimento positivo do que é a vida, guardamos os nossos prazeres para melhores ocasiões, e deixamos ao tempo e as atuais circunstâncias a sorte dos nossos cegos e temerários desejos, visto haver muitos que se contrariam numa tal diversidade. Mas no que ninguém pensa é em buscar aos tempos remotos a origem do mal e cortar duma vez pela raiz as más inclinações. Quem nos arraigou no espírito, ó Deus, crenças tão errôneas, a nós, que não passamos duns pobres mortais iludidos? E depois, reconhecendo "que somos oriundo duma raça divina", como diz o apostolo São Paulo, porque não havemos de ir buscar as regiões mais elevadas a norma reguladora das nossas ações? Se é certo o que os nossos pais disseram contra os sectários de Epicuro e contra a escola dos libertinos, isto é, que assim como este universo é regido por uma Providência eterna, assim as ações humanas, por mais extravagantes, são norteadas por uma sabedoria infinita, não será absolutamente indispensável que elas tenham uma norma definida em que se baseiem? E se não bastam estas grandes e importantes razões para nos convencerem, não devia a experiência, pelo menos, ensinar-nos que a verdadeira sabedoria não é a que consiste em saber contestar muitos desejos que nos prejudicam senão a que nos aconselha a moderação desses desejos? Que viria a ser das coisas humanas, se cada um fizesse o que lhe pede a vontade? Porque é que os Neros, os Calígulas e esses outros monstros do gênero humano praticaram ações tão brutas como violentas? Naturalmente, porque se deixaram impulsionar pela licenciosidade desenfreada, caraterística desses tempos, e se julgaram, portanto, no direito de fazer tudo o que quiseram. Isto provamos, cristãos, que não há animal mais feroz nem mais indomável do que o homem, quando se deixa vencer pelas suas paixões. Ora, neste caso é necessário limitar os nossos desejos por meio de normas fixas e invariáveis; e visto todos sermos dotados da mesma razão e duma natureza semelhante, é inteiramente impossível que o nosso destino não seja perfeitamente igual, e que se não deva admitir como comuns a todos os homens as normas que vamos estabelecer, e que, por um raciocínio indestrutível, vamos provar não poderem ser outras senão a lei de Deus. Onde o nosso desiquilíbrio moral mais se manifesta, aí também é mais constante a nossa alucinação; porque as ocupações, os exercícios, as conversações e os divertimentos ligam-nos as coisas externas, prejudicando-nos altamente o nosso íntimo. Já no começo deste discurso eu aludi de passagem a este assunto, e agora de novo me refiro a ele para tirar outras conclusões de que necessito; mas não me obrigueis, cristãos, a penetrar mais uma vez na essência das nossas ações para vos demonstrar uma verdade tão evidente por si mesmo. Se cada um entrar no fundo da sua consciência reconhecerá claramente que tudo o que pratica é devido a causas puramente estranhas; e no entanto, a primeira influência que a lei deve exercer em nossas almas é ordenar, é normalizar o nosso íntimo com todo o rigor. Se me disserdes que, depois de haverdes praticado uma ação muito ilustre, descobristes o meio de acumular muitas riquezas, e que caístes no agrado duma personagem eminente que vos pode prestar relevantes serviços, e que até mesmo, se quiserdes, ficastes sendo senhor de todo o mundo, nem por isso a vossa alma ficou mais bem disposta, nem os vossos costumes se adoçaram mais ou se regularam melhor. O erudito Tertuliano, no famoso livro de Pallio diz o seguinte: "Eu não tenho o hábito de tecer intrigas nem pessoa alguma me vê ilaquear os grandes, ou devassar-lhes as portas das suas casas ou esperá-los na rua; não me esfalfo a bradar no foro, nem ando pelos mercados ou pelas praças públicas. E porquê? Porque tenho de trabalhar por conservar o estado de pureza da minha consciência, trabalho íntimo e heroico que exige o emprego de todas as minhas forças e que é a minha única tarefa" - In me unicum negotium mihi est. Por aqui vedes, irmãos, que Tertuliano pensava seriamente em ordenar a sua consciência; e por isso, o primeiro efeito dessa resolução é, como a pouco disse, a normalidade rigorosa do nosso senso íntimo. Mas, para aduzir mais uma prova, temos o orgulho que, quando excessivo, nos obsidia constantemente. Vede como o orgulhoso se mira de todos os lados com o maior escrúpulo e com extremo cuidado, corrigindo o que está defeituoso, ordenando o que se acha irregular. Que é que lhe desperta tanto desvelo? É o orgulho que o faz refletir a dentro da personalidade. E não foi o orgulho, cristãos, que fez com que tantos filósofos se divorciassem do seio do comum dos homens? "Nós queremos preocupar-nos só conosco", diziam eles. E diziam bem. Com eles próprios é que eles se queriam preocupar para admirarem as suas formosas alegorias, para se enlevarem nos seus belos e agradáveis raciocínios e para formarem caprichosamente no espírito uma imagem da virtude que idolatravam. Não faziam uma ideia do que era esse grande Deus, de quem derivava toda a ciência que possuíam. Soberbos e arrogantes como eram, primavam também em ser autólatras nas suas argutas invenções. Ora foi daqui que nasceu todo o desequilíbrio moral, a verdadeira origem do desregramento. Quem há de, portanto, reabilitar seguramente a nossa consciência, afastando-nos de tantas coisas inúteis em que a nossa alma por tanto tempo se corrompeu? Há de ser indubitavelmente a lei de Deus, por meio da humildade cristã. A humildade cristã é que verdadeiramente nos chama ao estudo íntimo, porque é ela que nos convida ao exame do nosso nada, e nos faz compreender que tudo o que possuímos deriva da misericórdia divina; e assim, vergando-nos à lei de Deus, submete-nos à Sua vontade, que é a norma soberana da nossa vida. "Deus fez o homem reto", diz o Eclesiastes (Eclesiastes 7, 30) e o sábio Santo Agostinho reconhece essa retidão da seguinte forma: A retidão, a ordem e a lei justa são coisas inseparáveis. Ora uma coisa está de harmonia com os princípios da boa ordem quando obedece as causas superiores que devem influir nela por uma natural condição dessas causas. A ordem consiste em cada um se inclinar à vontade daqueles a quem deve obedecer. Por isso Deus, diz Santo Agostinho, deu ao homem o preceito de "dirigir os seus inferiores como ele próprio tem de ser dirigido pelo supremo poder" - Regi a superiore, regere inferiorem. Assim como a lei dos movimentos inferiores reside na justa e verdadeira razão, assim a lei da razão reside no próprio Deus. E quando a razão humana se harmoniza perfeitamente com a vontade de Deus, o efeito é essa ordem admirável, esse justo equilíbrio, essa conveniente mediocridade que constitui toda a beleza da nossa alma. Para penetrar na essência dessa tão bela doutrina de Santo Agostinho, ponderemos maduramente e notemos que a vontade de Deus é a norma suprema pela qual devem ser necessariamente moldadas todas as outras normas; e estas só poderiam vibrar de justiça e de verdade, achando-se harmonizáveis com essa norma primeira e original, que se não funda em bases estranhas porque se funda em si mesma, como lei que é. Por isso o profeta Davi disse no Salmo 18 que "os juízes de Deus são verdadeiros e justificam-se por si mesmo". Era como se dissesse: Os juízos dos homens podem, às vezes, ser verdadeiros, mas não podem justificar-se por si mesmo. Todas as verdades criadas devem necessariamente harmonizar-se com a verdade divina, donde lhes provem toda a certeza que as firma. Mas diz o santo profeta que a verdade dos juízos de Deus "resulta duma verdade imanente e essencial, e por este motivo é que eles se justificam por si mesmos" - Vera, justificata in semetipsa (Salmo 18, 10) De maneira que a vontade divina preside a este universo; e, constituindo ela uma norma de si mesmo, é, portanto, a norma infalível de tudo o que existe, e a lei imutável por que tudo se rege. A este respeito, faço uma observação ao profeta Davi, que talvez edifique as almas piedosas. Esse homem, sempre dominado por uma santa admiração pela Providência divina, depois de ter celebrado a prudência dos seus conselhos nas suas obras grandiosas e magnificas, passa insensivelmente à consideração das suas leis. E assim, no Salmo 18, diz a ilustre personagem: "Os céus atestam a glória de Deus" - Caeli enarrant gloriam Dei" (Salmo 28, 2). E depois de consagrar metade do Salmo a glorificação de Deus, feita nas suas obras, dedica a outra metade a exaltar a equidade dos seus preceitos, dizendo: "A lei de Deus é imaculada, e fiéis os seus testemunhos"; completando em seguida o admirável cântico com meditações análogas. No Salmo 118 diz: "A vossa palavra, Senhor, permanece no Céu para sempre. Fundastes a terra e assim está; e por vossa ordem continua o dia, porque tudo vos obedecei" - In aeternum, Domine, verbum tuum permanet in coelo... Fundasti terram, et permanet. Ordinatione tua perseverat dies: quoniam omnia serviunt tibi (Salmo 118, 89). E logo depois acrescenta: "Por muito que a vossa lei ocupasse todo o meu pensamento, cem vezes teria desanimado no meio de tão multiplicados sofrimentos que tem atormentado a minha vida" - Nisi quod lex tua meditatio mea est, tunc forte periissem in humilitate mea (Salmo 118, 92). Que quer ele dizer, fiéis? Que relação acha esse cantor celeste entre as obras de Deus e a sua lei? Será por casualidade que essa ordem se manifesta em várias passagens dos seus Salmos? Ou não será antes ele a dizer-nos a todos estas palavras, que entram no fundo da nossa consciência: Erguei os olhos, ó filhos de Adão homens feitos a imagem de Deus; contemplai essa bela estrutura do mundo, vede essa ordem e essa harmonia. Haverá coisa mais bela e melhor executada do que esse grande e soberbo edifício? É que nele foi fielmente observada a vontade divina, respeitando-se todos os seus planos, obedecendo tudo aos seus irrevogáveis decretos e constituindo essa vontade a sua própria lei, sempre justa, sempre regular, sempre uniforme, deriva numa boa e perfeita ordem tudo o que se moldar por ela. Daí resulta essa harmonia e esse ritmo tão justo e tão proporcionado. Pois se os próprios seres corpóreos tem extraordinário realce porque obedecem aos decretos de Deus que beleza não hão de ter as naturezas inteligentes quando forem norteadas pelos seus preceitos! Vede, que se todos os seres da criação pudessem falar, diriam em alta voz que o seu maior prazer é observarem as leis dessa Providência incompreensível, visto que é dela que lhes provem toda a sua perfeição e todo o seu esplendor; mas como não tem linguagem para se exprimir, nem por isso deixam de no-lo atestar por meio dessa constante uniformidade que em todos existe. Porque sois tão ingratos, ó homens, filhos de Deus, a quem vosso pai celestial iluminou com um raio da sua inteligência infinita; porque sois tão ingratos, vós, que sendo mais estúpidos e mais insensíveis do que os seres inanimados, não quereis respeitar as leis que Deus vos deu desde o princípio do mundo, por intermédio dos seus santos profetas, e finalmente na plenitude dos tempos, pela boca de seu amado Filho! Creio ser assim que se exprime o profeta Davi. E agora, cristãos, imaginai qual há de ser a nossa confusão, quando tivermos de aparecer nesse temível tribunal, e quando nos verberarem, na presença dos santos anjos, o nosso desprezo por uma alma imortal que nos foi dada por Deus, com o fim de empregarmos todo o nosso desvelo em harmonizar os seus atos e os seus movimentos com a sua verdadeira natureza! Imaginai a humilhação que nos deve deprimir, quando ouvirmos dizer que antes quisermos preocupar-nos com assuntos supérfluos e a maioria das vezes criminosos, do que trabalhar a bem dessa alma, engrandecida com a imagem de Deus, e considerada como um dom magnífico e incomparável. De maneira que a coisa mais preciosa do mundo, que recebemos da munificência divina, foi a mais desprezada, no meio de tantas coisas a que nos dedicamos inutilmente! Ó loucura! Ó indignidade! Ó justa e inevitável acusação que eu forcejo por evitar! Não caias tu nunca sobre a minha alma que por tanto tempo andou perdida no jogo, nas reuniões, na avareza e na devassidão, coisas estranhas a ela e que muito a perverteram; não a fulmines com o rigor da sua justiça, porque eu farei exame de consciência, ao menos durante a quaresma que se aproxima. Estudarei os meus caminhos e pensarei na norma que devo seguir; e não podendo haver outra senão os vossos santos e justos mandamentos, o caminho que eu devo seguir é o que me for indicado pelos vossos testemunhos. Eis a minha última e irrevogável resolução, que Vós vos dignareis de confirmar, Senhor, com a Vossa graça onipotente. Só ela me dará o repouso onde eu acabo de ver a boa ordem e onde a pouco reconhecia a verdade a certeza. E para vos convencerdes deste princípio, fiéis vou já concluir o meu discurso pela sua demonstração! TERCEIRO PONTO Depois das belas máximas suficientemente estabelecidas com o auxílio das divinas Escrituras, creio não ser preciso, cristãos; recomeçar uma longa série de raciocínios para vos provar que o nosso repouso reside: na observância rigorosa da lei de Deus. Basta que agora apliquemos, por um método fácil e inteligível, a doutrina que hoje vos explicamos, auxiliados pela divina misericórdia. Será uma verdade que se manifestará em toda a sua evidência. Todas as coisas começam a desfrutar o seu repouso, desde o momento em que se achem natural e verdadeiramente constituídas. Suponhamos que fostes atormentado por uma longa e perigosa doença, mas que pouco a pouco vos ides restabelecendo e que depois readquiris o vosso estado normal. A saúde que recuperais já vos promete um próximo repouso. Ora como não há de a vossa alma gozar uma perfeita tranquilidade depois da lei de Deus ter curado todas as suas doenças? A lei de Deus estabelece a certeza infalível no espírito; de maneira que é forçoso que o entendimento reconheça essa certeza, depois dos erros e das dúvidas terem sido dissipados, não pela evidência da razão, mas por uma autoridade soberana, mais inabalável e mais firme do que os nossos mais sólidos raciocínios. E até a vontade, com a sua norma imutável, que suprime o que há de mais nos seus impulsos, até essa deve experimentar uma tranquila estabilidade e uma paz santa e divina. Por isso o salmista dizia: "As justiças de Deus são retas e alegram o coração" - Justitiae Domini rectae, laetificantes corda. (Salmo 18, 9) Alegram o coração, porque são retas, porque regulam as más afeições, porque lhe escolhem o estado conveniente, colocando-o no grau em que consiste a sua perfeição. As coisas humanas derivam tão caoticamente que a gente não sabe quando faz bem nem quando faz mal. Faz-se bem quando se quer granjear meios de fortuna; faz-se mal quando, por exemplo, se come o suficiente para conservar o regular funcionamento do organismo, e portanto, para conservar a saúde, o que, porém, muito descontenta os amigos que nos fazem companhia e que instam conosco para comermos mais. E assim nas outras coisas. Na obediência a lei de Deus não há destas alternativas; aí faz-se o bem absoluto, o bem ilimitado, porque quando se faz esse bem, tudo o mais pouco vale: enfim, faz-se bem, porque se pratica o soberano bem. Ora como é que se não há de estar tranquilo, fiéis, praticando o soberano bem? Que prazer e que paz serena para uma alma! A Vós vos pertence, ó Deus Supremo, na qualidade de soberano bem, fazer a divisão dos bens pelas Vossas criaturas; mas felizes mil e mil vezes as criaturas de quem Vós sois a única herança! Esse será o quinhão dos Vossos filhos que, pela Vossa inefável bondade, Vós chamais, no céu, para junto de Vós. Nós, porém, miseráveis proscritos, embora longe da nossa pátria celestial, não ficamos de todo privados da Vossa graça, porque vos temos na Vossa santa lei e na Vossa divina palavra. Lei muito para desejar! Palavra muito para adoçar as almas! "Palavra mais doce do que o mel quando se come, dizia o profeta Davi; lei mais para desejar do que todos os tesouros do mundo". Vede realmente, cristãos, que essa lei admirável é um esplendor da verdade divina e uma efusão dessa soberana beleza; e não duvideis dessa fonte ter conservado qualquer coisa das qualidades da sua origem. "O vosso servo, meu Deus, respeita os vossos mandamentos - Etenim servus tuus custodit ea, canta amorosamente o Salmista; pois grande prêmio terá aquele que os respeitar" - In custodiendis illis retributio multa (Salmo 18, 12). "E a razão porque os respeitam, diz Santo Agostinho, é que além de ser grande a recompensa, é também incomparável a suavidade desses mandamentos" Atendei agora, irmãos, ao que vos vou dizer: Imaginemos um homem de bem, vivendo neste mundo com a maior simplicidade, não sabendo como se governa um Estado, como se norteiam os negócios públicos, nem o que são os cargos eminentes da terra, que só os grandes e os políticos conhecem. Direis uma criatura, passando a vida sem fazer nada. Ele ignora os segredos da natureza, e não fala do movimento dos astros, porque talvez a sua inteligência não atinja esses altos e sublimes raciocínios. A vida desse homem parece-nos, portanto, vulgar; e, contudo, se atendermos ao que dissemos atrás, esse homem é dirigido por uma razão eterna, é norteado por princípios divinos, e a sua vida, apoiada na palavra de Deus, é mais firme do que o céu e a terra. Antes todo o mundo seja subvertido, do que ele confundido nas suas esperanças. Enquanto nós, para resolvermos qualquer dificuldade nas coisas mundanas, vamos pedir vários conselhos que muitas vezes nos suscitam novos embaraços, esse homem apenas diz com o salmista: "O meu conselho são os vossos testemunhos" - Consilium meum justificationes tuae; ou então, como diz São Jerônimo: Amici mei jastificatimes tuae - "Os vossos testemunhos são os meus amigos" Nós consideramos como nossos melhores amigos aqueles que muitas vezes nos enganam por infidelidade ou por ignorância; o homem de bem, quando tem dúvidas, consulta os seus amigos fiéis, que são os testemunhos de Deus, e esses amigos sinceros e verdadeiros ensinam-lhe como ele deve proceder e aconselham-no para a vida eterna. Imensamente feliz se deve, portanto, considerar esse homem, por ter encontrado tão bons amigos; e razão terá em zombar da perfídia que reina nas coisas humanas, porque, nem por isso eu deixarei de lhe chamar bem-aventurado. Permiti agora que vos interrogue conscienciosamente sobre uma coisa: Possuis por acaso tudo o que desejais? Não pretendeis coisa alguma neste mundo? Não há talvez aqui uma única pessoa que possa responder negativamente. "O lavrador espera o fruto da terra", diz o apóstolo São Tiago, Ecce agricola exspectat pretiosum fructum terrae, patienter ferens donec accipiat temporaneum et serotinum. A sua vida é uma esperança contínua; lavra na esperança de colher; colhe na esperança de vender, e assim vai sempre passando a vida. O mesmo se dá em todas as outras profissões. Efetivamente, são tantas as coisas de que nós carecemos que nos veríamos em constantes dificuldades, se Deus não nos tivesse dado a esperança, como que para suavizar os nossos males e adoçar um pouco a amargura desta vida. É da esperança, e só dela, que vive a nossa vida, essa vida que se nos vai escoando muito gradualmente mas sem interrupção. O futuro, que talvez seja uma parte notável da nossa idade, só poderá conseguir-se por meio da esperança; e até ao momento derradeiro, é sempre a esperança que nos acompanha e nos alimenta a vida. Ora, visto andarmos esperando sempre, é porque evidentemente não estamos no lugar onde possamos obter tudo o que desejamos; e por isso, neste mundo onde nada nos satisfaz e onde só vivemos de esperança, o mais feliz dos mortais será aquele que acalentar a esperança mais bela e mais firme. Bem-aventurados, pois, mil e mil vezes os justos e os homens de bem! Graças a misericórdia divina, tem havido quem lhes discuta o gozo da vida presente, mas ainda ninguém lhes contestou a virtude e o consolo da esperança. Comparemos agora com isto as loucas esperanças, mundanas. Dizei-me, cristãos, nunca encontrastes coisa alguma que satisfizesse plenamente o vosso espírito? Nós todos os dias tomamos novos planos, esperando achar melhor resultado nos últimos que se retomam; mas a nossa esperança sai sempre frustrada. Daí resulta o termos uma vida desuniforme, instável, sujeita ao erro, que, não podendo adquirir uma orientação definida, se converte, portanto, num conjunto de aventuras diversas e de diversas ambições, que todas nos iludem. Ludibriamo-las nós, ou elas nos ludibriam. Se não realizamos o fim que tínhamos em vista, somos nós que as ludibriamos; se, havendo obtido o que desejávamos, não o encontramos todavia nelas, são elas que nos ludibriam. De maneira que os mais sensatos, depois do tempo acalmar esse primeiro entusiasmo que dá realce as coisas mundanas, admiram-se quase sempre de terem empreendido inutilmente tão longas tarefas. Em face disto, cristãos, que melhor expediente podemos tomar do que procurar repouso unicamente em Deus, desejar somente o que Ele ordena, e aguardar o que Ele prepara? Porque não havemos de buscar esse firme repouso? Porque somos cegos até ao ponto de pensarmos em escolher noutra parte a nossa beatitude? Aqui é que está o nosso erro, irmãos (e agora vos peço que me atendais mais um momento). Desde que formamos uma falsa ideia do que é a felicidade, deixamos radicar no nosso espírito esse erro grosseiro, e já imaginamos que o bem-estar que gozamos no mundo é uma sombra dessa felicidade suprema que só se pode gozar no céu. Os bens terrenos satisfazem-nos, não porque constituam verdadeiros bens, mas porque os consideramos como tais; e nisto semelhamo-nos a esses pobres hipocondríacos que se prazem de afagar no cérebro escandecido o simulacro e o sonho dum vão e quimérico prazer. Dir-me-eis agora talvez: "Não me dissipeis esse erro agradável, que apesar de me iludir, me alegra e me consola. Que importa que seja uma ilusão, se nela achei aprazimento?" Não há dúvida que de boa vontade vos deixaria viver nessa ilusão, se não visse a condição deplorável em que, por esse meio, vos encontrais embora imagineis desfrutar uma felicidade, muito risonha. Como ainda a pouco dissemos, a felicidade bem compreendida só pode existir desde o momento em que tudo se ache naturalmente constituído e dentro dos limites duma verdadeira perfeição. Ora é impossível alcançar essa felicidade, por meio de erro e da ignorância, que tudo destroem e nada conquistam e só nos precipitam na desgraça. Por isso o admirável Santo Agostinho disse "que o primeiro grau da miséria é amar as coisas nocivas, e o cúmulo do infortúnio é havê-las conquistado" - Amando enim res noxias miseri, habendo sunt miseriores. Vede esse pobre enfermo, agitado por uma febre ardente e devoradora, tragando vinho sequiosamente como se imaginasse tomar um refresco consolador, quando afinal não bebe mais do que a peste e do que a morte. Não vos parece que esse enfermo é tanto mais digno de lastima quanto maiores são as delicia que ele experimenta em beber esse vinho? Oh! Eu sei que hei de ver durante três dias muitos homens, feitos de barro e lama, levarem, no meio de toda a gente, uma vida mais brutal do que os próprios brutos; e ainda quereis que eu diga que são verdadeiramente felizes, só porque me ostentam uma mesa larga, só porque se gabam de comer manjares suculentos, e porque alvoroçam toda a vizinhança com os seus gritos confusos e a sua alegria dissoluta? Oh! Que indignidade fazer triunfar tão ostensivamente a intemperança, quando tão próximos estamos dos dias de recolhimento! A Igreja, que é a nossa boa mãe, vendo que durante um ano inteiro nos entregamos a tantos prazeres mundanos, procura o meio de tirar seis semanas aos nossos desregramentos, para nos dar algum verdadeiro prazer, por meio da penitência. Durante a Quaresma ministra-nos ela esse sacrifício, como um remédio salutar e útil, na esperança de que ele nos faça digerir a amargura que nos causa, e de que nós continuemos a usar dele muitas vezes. Mas, ó vida humana incapaz de bons conselhos! Ó caridade maternal indignamente compreendida por filhos tão pérfidos! Nós, servimo-nos dos seus salutares preceitos como um pretexto para novos desregramentos! Honramos a intemperança, fazendo-a seguir publicamente do jejum; e como se tentássemos aliar Cristo com Belial, colocamos as bacanais à frente da sagrada Quaresma. Ó dias verdadeiramente infames, e que deviam ser riscados da lista dos outros dias! Dias que nunca serão bastantemente expiados por uma penitência perpétua, e muito menos por quarenta dias de jejuns mal observados! Dir-se-ia, irmãos, que a licença e a voluptuosidade combinaram vedar-nos os caminhos da penitência, e que esses dias marcam a entrada desses caminhos para fazerem com que a devassidão seja um caminho aberto a piedade; e então já não me admiro de nesses dias haver apenas luxo e alguns rostos sem graça. Eu admito que seja fácil o cair-se da penitência na libertinagem; mas que se ascenda da libertinagem a penitência, mas que logo depois da satisfação o dos falsos prazeres daquela, se goze a purificadora amargura desta, é que não cabe de forma alguma na corrupção da nossa natureza. Vós, pois, almas cristãs, a quem Jesus concedeu um certo amor a conta da Sua santa doutrina, sede sempre tementes a Ele. Que nem um só dia consiga diminuir uma parcela sequer da vossa modéstia e da vossa honestidade. Estudai os vossos caminhos como o profeta, e segui aquele que vos for indicado pelos testemunhos de Deus; porque certamente haveis de encontrar nele a certeza, a norma e o firme repouso que há de ter principio na terra, mas que se há de consumar gloriosamente no céu. Amém. 1º Domingo da Quaresma - Sermão da Penitência SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET Exordio. - Tempo. - Sua perda. - Três dificuldades que atrasam a sua conversão. 1º Ponto. - Espírito do homem sempre extremo. - Da presunção do perdão ao desespero do mesmo perdão: Spe desperati. Do fato da misericórdia e da justiça serem infinitos resulta de serem aparentemente compatíveis. Qual é a misericórdia divina? Justiça na graça. A remissão dos pecados. Cada um deve fazer uma confissão sincera, e não procurar meios vis para se eximir das culpas. Devemos alegar defesa perante um juiz, e confessarmo-nos na presença dum padre. Maneira diferente de alegar defesa perante um e outro. 2º Ponto. - Não há coisa que mais se deixe subjugar do que a vontade individual. Força do temperamento e do hábito. Muro impassibilitatis, Santo Agostinho. Um e outro podem vencer-se pelo temor. A penitência demanda sacrifício. Exemplo de Davi: Motiva poenitendi, Santo Agostinho. Penitência com sacrifício, porque é um ato de geração: In dolore paries filios tuos. Geração própria. 3º Ponto. - Do tempo, Dies mali, São Paulo. O tempo é uma ilusão. A vida ora nos parece longa, ora nos parece curta. A ciência do tempo constitui um dos segredos de Deus. O homem deseja penetrar nessa ciência. Nec filius hominis. Contra os que aguardam o último momento. Tempo dos Testamentos: São João Crisóstomo, São Gregório Nazianzeno. Exortação a uma rápida penitência. Adjuvantes autem exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis E nós, como cooperadores, vos exortamos que não recebais a graça de Deus em vão (2 Coríntios 6, 1). Razão temos, cristãos, em censurarmos os pecadores pela sua indesculpável infidelidade; porque não há graça, nem remédio, nem espécie alguma de socorro implorado a Deus para os salvar do abismo, que se lhes não ofereça todos os dias por meio dessa misericórdia divina que lhes não pede a morte, mas a conversão. Para nos convencermos disto, irmãos, dignai-vos examinar atentamente o que pode desejar um homem a quem o remorso, da sua consciência aconselha a que enverede pelo verdadeiro caminho. O primeiro pensamento que lhe acode é o dos seus pecados, cujo horror e grande numero o fazem duvidar do perdão. Mas nós, a quem Deus aprouve conceder o ministério da paz e da reconciliação, concedemos-lhe também a indulgência e a remissão dos seus crimes, em nome de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos remiu com o Seu sangue! Ao receber este balsamo, começa ele a respirar, a sentir alívio; mas logo uma outra dificuldade lhe surge no espírito, lançando-o em novos cuidados: é a obrigação de mudar de vida, de corrigir as suas inclinações corruptas, e a ação dos hábitos inveterados, fazendo-se sentir os obstáculos que lhe parecem de todo invencíveis. Para o tranquilizar desse receio, dizemos-lhe que nas mãos de Deus e nos segredos da sua onipotência existem remédios que, além de serem muito eficazes pois que curam infalivelmente todos aqueles que os aplicarem, são também acessíveis a todos, visto que se podem sempre ministrar a quem os pedir. E deste modo, não podendo os maiores pecadores duvidar do perdão, quando se convertem, nem da conversão, quando a compreendem, só carecem de tempo bastante para realizarem essa obra, sobre o que a nós, cristãos, não compete providenciar, mas a Deus, que se responsabiliza pelo próprios efeitos dela. Tendo poder para lhes prolongar a vida e para lhes ocultar a ingratidão, vai também retardando a época em que deve manifestar a sua ira, dando a conhecer claramente que deseja dar latitude a penitência. Por aqui se vê, irmãos, que Deus não recusa aos pecadores coisa alguma do que eles necessitam. De três coisas carecem eles: da misericórdia divina, do poder divino e da paciência divina. Da misericórdia para lhes perdoar, do poder para os socorrer, e da paciência para os guardar. E tudo isto Deus concede liberalmente: a misericórdia promete o perdão, o poder oferece o socorro e a paciência concede a delonga. Que nos resta agora, se não dizermos aos pecadores com o Apóstolo: Adjuvantes autem exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis? - "Nós vos exortamos, irmãos, que não recebais a graça de Deus em vão" Não recebais em vão a graça da remissão que promete abolir os vossos crimes; não recebais em vão a graça da conversão do vosso íntimo que se oferece para corrigir os vossos costumes depravados; e finalmente, não recebais em vão essa terceira graça tão considerável, que vos é concedida em proveito das duas outras, e que vem a ser o tempo, esse tempo precioso de que um momento sequer deve valer para vós uma eternidade. E aqui tendes, irmãos, três coisas importantes para excitar os homens a penitência, e das quais faço a divisão do meu discurso. PRIMEIRO PONTO O homem tem, por índole, o capricho de facilmente se deixar impulsionar até aos extremos mais opostos. Assim, o doente, alucinado pela febre, perde a esperança de obter melhoras; mas quando se acha restabelecido, já imagina que é imortal. O nauta, atemorizado com os horrores da tempestade, dirige as ondas um eterno adeus; mas assim que o mar entra em bonança, reembarca ele já sem receio como se tivesse poder para dominar os ventos e as tempestades, no caso de o assaltarem de novo. Um homem que imaginou ser descoberto numa intriga perigosa logo deixa gostosamente de frequentar a corte; mas, sabendo que saiu triunfante nessa intriga, de novo volta a frequentá-la como se tivesse exaurido toda a cólera do acaso. Este procedimento tão irregular e tão desordenado, manifesta-se principalmente nos pecadores, mas duma maneira, oposta; porque essa louca e temerária confiança que os alenta nos seus pecados, conduz-los finalmente ao desespero, do desespero a esperança, e, na veemência dos crimes que praticam, confiam em Deus quanto a impunidade desses crimes. Depois, vergados ao peso deles, já não creem no perdão de Deus, "e assim vão de pecado em pecado, caindo numa ruína inevitável, ralados pelo desespero que lhes deu a esperança" - Feruntur magno impetu, nullo revocante, spe desperati. Isto é uma verdade, cristãos; e senão vede esse homem, que, na ardência duma paixão vil, diz que parece impossível haver um Deus, de tamanha grandeza e de tamanha bondade, que deseje tiranizar as suas criaturas e mostrar o seu poder com a destruição dum frágil navio; e que não é digno dum Deus julgar-se ofendido pelas ações praticadas por um ser impotente, nem tão pouco revoltar-se contra esse ser, que não dispõe de meio algum de defesa. Depois de ter assim discorrido por muito tempo, esse homem reflete melhor e reconhece quanto é audaciosa a tentativa dum ser impotente revoltar-se contra Deus; e então dirige a si mesmo estas palavras do profeta ao capitão dos assírios: "Contra quem blasfemaste? Contra quem ergueste a voz e volveste o olhar soberbo?" - Quem blasphemasti? Contra quem exaltasti vocem tuam, et elevasti in excelsum oculos tuos? "Foi contra o Santo de Israel", foi contra um Deus Todo-Poderoso: Contra Sacntum Isarel (Livro de Reis 14, 22). Sente-se então confundido no meio da sua estranha audácia, e o que a princípio o concitava ao trabalho esforçado mas inútil, de obter toda a misericórdia, mostra-lhe agora a impossibilidade de aplacar a justiça, tal é a prodigiosa loucura que o acomete, e cuja causa aparente é o seguinte: É que tanto uma como outra dessas qualidades, tanto a a misericórdia como a justiça, são duma colossal e infinita grandeza; de maneira que aquela que primeiro se encara ocupa por tal forma o pensamento, que não deixa livremente examinar a segunda. Além disso, parecendo à primeira vista qualidades opostas, não é fácil compreender-se como possam existir juntamente nesse supremo grau de perfeição. E então o pecador, que primeiro apreende a grande ideia da misericórdia, esquece naturalmente a justiça, e reciprocamente, preocupando-se apenas com a justiça, sente destruir-se no seu espírito a ideia da misericórdia, o que prova a opressão do seu desespero, bem comparável aos assomos e ao louco orgulho da sua esperança. Convém destruir, meus senhores, essas falsas imagens da misericórdia e da justiça, que o pecador alucinadamente adora, e substitui-las pela verdadeira justiça e pela verdadeira misericórdia. É uma ilusão pecadores, e uma perfeita loucura imaginardes que são incompatíveis duas qualidades que, pelo contrário, se ligam intimamente. A bondade de Deus, irmãos, não é uma bondade insensível, nem uma bondade irracionável; porque o Deus que nós adoramos não é o Deus dos marcionitas, um Deus que não castiga, que tudo sofre até ao desprezo e que é indulgente até à fraqueza. Não é um Deus, como diz Tertuliano, "com o qual os pecados se gozam a vontade e de quem se pode zombar impunemente" - Sub quo delicta gauderent, cui diabolus iluderet. A bondade de Deus, como ainda diz Tertuliano, consiste "em ser intolerante para com o mal e em se declarar seu inimigo" - Qui non alias plene bonus sit, nisi mali aemulus. Anexa a bondade está a justiça; e Deus, para ser verdadeiramente bom, "exerce o amor que consagra ao bem por meio do ódio que dedica ao mal" - Uti odio mali exerceat. Não imagineis, portanto, que a justiça seja uma qualidade oposta a bondade, que pelo contrário, a protege, evitando-lhe o desprezo a que possa estar sujeita. Mas ficai também sabendo que a bondade não se opõe a justiça; porque, se por um lado salva as vítimas que esta possa causar, por outro, restitui-lhe duma maneira especial. Em vez de as aniquilar por meio da vingança, aniquila-as por meio da humildade em vez de as oprimir por meio do castigo, oprime-as por meio das dores da penitência; e se a justiça carece de sangue para se satisfazer, apresenta-lhe a bondade o sangue dum Deus. Deste modo, não são de forma alguma incompatíveis, mas sim se dão mutuamente as mãos. Não devemos, pois, fazer conjeturas, nem perder a esperança. Não façais conjeturas, ó pecadores, porque é bem certo que Deus se vinga; mas não percais também a esperança, porque, para assim dizer, é ainda mais certo que Deus perdoa. Posto isto, é tempo agora, meus senhores, de vos fazer compreender, por meio das Escrituras, essa graça singular da remissão dos pecados. Como ela é o fruto principal do sangue do Novo Testamento e o artigo fundamental da prédica evangélica, o Espírito Santo teve um cuidado especial em nos dar dessa graça uma ideia muito nítida e em no-la explicar de várias maneiras, para que mais profundamente penetrasse em nossos corações. Diz Ele que Deus esquece os pecados, e que, em vez de os imputar, pelo contrário, os oculta; e diz também que os lava, que os afasta de nós, que os faz enfim, desaparecer. Para compreendermos o segredo destas expressões e de outras que se leem nas Sagradas Escrituras, é necessário observarmos com atenção o efeito do pecado no coração do homem, e o efeito do pecado no coração de Deus. O pecado no coração do homem é um veneno pestilente e devorador e uma nódoa infamante que o perverte. É necessário expurgar esse veneno maligno, extraindo-o das nossas entranhas; "porque Deus faz com que as nossas iniquidades distem tanto de nós como o nascente dista do poente" - Quantum distat ortus ab occidente, longe fecit a nobis iniquitates nostras (Salmo 102, 12). Quanto a essa nodoa vergonhosa, urge passar-lhe uma esponja por cima, de maneira que dela não fique um só vestígio. Deus muito se compraz de tudo purificar. Provam-no estas palavras dirigidas a Israel: "Se fui eu quem te criei, Israel, não te esqueças do teu Criador. As iniquidades que te maculavam fi-las eu desaparecer de ti como uma nuvem que se desfaz ou como um ligeiro vapor" que, dissipado por um turbilhão, não deixa no ar o menor vestígio: Delevi ut nubem iniquitates tuas, et quasi nebulam peccata tua (Isaías 44, 22). Mas o pecado com relação a Deus, irmãos, é que tem efeitos muito mais para temer. Esse pecado brada-lhe terrivelmente aos ouvidos sempre atentos, e oferece-lhe um espetáculo horroroso aos olhos constantemente abertos. É um espetáculo que desperta o ódio, e um brado que clama vingança. Para tranquilizar os pecadores, declara-lhes Deus, por meio da Escritura, que lhes encobre os crimes para não mais os ver; que os lança para traz das costas, com receio de se encolerizar se os visse; que os esquece, enfim, que não mais pensa neles. E esse brado funesto, que tão insolitamente lhe perturba os ouvidos, abafa-o Ele com outra voz formidável; porque em quanto os nossos pecados nos acusam, temos nós, "para nos defender, um advogado em Jesus Cristo, o Justo, que é a propiciação para os nossos crimes" (1 João 2, 1-2). Declara ainda o Onipotente que não consente mais que no-los imputem, nem que tornemos a ser perseguidos por eles. "E então o céu e a terra hão de rejubilar, e as montanhas hão de estremecer de alegria, porque o Senhor operou misericórdia" - Laudate, caeli...; jubilate, extrema terrae: resonate, montes, laudationem, quoniam misericordiam fecit Dominus (Isaías 44, 23). Aqui tendes, pois, irmãos, a remissão dos pecados autorizada e explicada por todas as formas que se pode enunciar uma graça. Hortamur vos ne in vacuum gratiam Dei recipiatis - "Não recebais essa graça em vão" (2 Coríntios 6, 1) que o efeito dela cabe ao Espírito Santo dizer-no-lo. No capitulo 3 de Jeremias, envia Deus os seus profetas, dizendo-lhes: (veja Jeremias, 3, 12 - 21; Ezequiel, 18, 31-32) Projicite a vobis omnes prevaricationes vestras, facite vobis cor novum et spiritum novum. Et quare moriemini, domus Israel? Quia nolo mortem morientis, dicit Dominus Deus; revertimini et vivite. Porque desejais perecer? Porque persistis na vossa ruína? Deus quer perdoar-vos, e só vós não perdoais. Deus meus, misericordia mea (Salmo 58, 11) E Santo Agostinho diz: O nomen, sub quo nemini desperandum est!. Ó prodigo, voltai para junto do vosso pai; adultera, tornai a juntar-vos com vosso marido; mas tornai ambos, confessado o vosso crime: Peccavi; (Reis 12, 13) verumtamen scito iniquitatem tuam (Jeremias 3, 13). Não penseis em desculpar-vos; não acuseis a noite nem o temperamento. Não digais que foi a má sorte ou o acaso que vos levou a isso; nem acuseis sequer o diabo: Neminem quaeras accusare, ne accusatorem invenias a quo non possis te defendere. Ipse diabolus gaudet cum accusatur, vult omnino ut accuses illum, vult ut a te ferat criminationem, cum tu perdas confessionem. Não procureis, portanto, desculpas. Uma coisa é tratar com um padre, outra coisa é responder a um juiz. Para este procuramos defender-nos; para, aquele devemos confessar. Um juiz exige o castigo; um padre deseja a conversão. Mas seria possível essa conversão? Quem poderá obrigar um etíope a despir a pele? Quem poderá dizer a um pecador inveterado que se prive dos seus perigosos manejos? Eis o que teremos de examinar na segunda parte. SEGUNDO PONTO Quando se fala na presença dum juiz, diz-se: Eu não fiz semelhante coisa, ou então: Fui surpreendido, fui levado a isso, porque não era esse o meu intento; o crime foi mais grave do que eu pensava. Não nos defendamos assim, irmãos, não procuremos desculpar-nos inutilmente para encobrirmos a nossa ingratidão, que nunca é criminosa demais. Na presença dum juiz recorremos a evasivas; na presença dum padre, a principal defesa é confessar simplesmente o erro: Cometi uma falta, fiz mal, estou arrependido, imploro a vossa bondade e peço perdão da falta que cometi. Mas se ninguém ainda obteve de vós esse perdão, para que hei de eu ousar pedir-vos-lo? Se, porém, a vossa bondade dispensou já muitas mercês, vós, que me destes a esperança, concedei-me agora o perdão. O Profeta representa a Sinagoga como uma criatura desesperada que vai cair nas mãos de estranhos e que, temendo a cólera do marido, não quer já voltar para a sua companhia. Desperavi, nequaquam faciam; adamavi quippe alienos, et post eos ambulabo - "Parto para nunca mais voltar" (Jeremias 2, 25). Nós nada fazemos, cristãos, em convencer os pecadores de que, se confiarem em Deus, poderão facilmente alcançar o Seu perdão, visto poder-se esperar bom resultado da obra da remissão que depende puramente dEle. Mas como o trabalho da conversão é no coração que verdadeiramente se deve operar, eles então sentem o desespero esmagador das almas torturadas e caem num profundo desalento. É que embora a nossa força seja nula, embora a nossa extrema fraqueza não nos permita dispor de coisa alguma, não há, contudo, coisa de que menos possamos dispor do que de nós mesmos. Estranha enfermidade a da nossa natureza! Não há coisa que mais a deixe subjugar do que a vontade individual; finalmente, não há coisa mais impossível de realizar do que aquela em que manifestamos a nossa vontade, e por isso, é mais fácil o homem obter de Deus o que quer, do que procurar consegui-lo por mero desejo. Provemos esta verdade com toda a evidência. Há dois obstáculos invencíveis, por assim dizer, que não nos deixam o uso livre da nossa vontade: é o temperamento e o hábito. O temperamento adquire o vício por amor, o hábito adquire-o por necessidade. Nem um nem outro podemos evitar; porque o temperamento algema-nos e lança-nos numa prisão, e o hábito clausura-nos nela e fecha-nos todas as portas para não tentarmos uma fuga: Inclusum se sentit difficultate vitiorum et quasi muro impossibilitatis erecto portisque clausis, qua evadat non invenit. De maneira que o miserável pecador, que forceja desesperadamente, mas inutilmente, para sair dessa prisão, entrega-se depois as suas paixões vis e não cuida de as refrear de qualquer modo: Desperantes, semetipsos tradiderunt impudicitiae, in imperationem immunditiae omnis in avaritiam (Efésios, 4, 19). Ora o que pode desejar um homem, que é tiranizado pelo seu temperamento, é que o convertam, que o regenerem, que façam dele um outro homem. E é isto o que todos os dias nos diz qualquer amigo nosso que se ache encolerizado, quando o increpamos pelos seus repentes, pelos seus impulsos ou pelas suas violências. Responde que é impossível livrar-se da tirania do temperamento quê o domina; que as vezes lhe resiste, mas que, com o andar do tempo, se sente impulsionado; que se exigem que ele pratique outras ações, absolutamente indispensável que façam dele um outro homem. Mas o que reclama a natureza fraca e impotente, irmãos, é o que a graça lhe oferece para se reconstruir, porque a conversão do pecador não é mais do que um segundo nascimento, e o homem é então regenerado até a sua origem, isto é, é regenerado até ao coração. O coração antigo é destruído para se lhe dar um coração novo. Qui finxit singillatim corda eorum (Salmo 32, 15) Diz Santo Agostinho que "para formar um coração puro é necessário destruir o coração impuro" - Ut creetur cor mundum, conteratur immundum. Mudada a direção da fonte, necessariamente o regato toma outro curso. Mas se a graça pode triunfar do temperamento, também triunfará do hábito; porque o hábito não é menos do que um temperamento fortificado. Não há, porém, força que iguale a do espírito que nos impele. Basta que Deus insufle o Seu espírito num coração endurecido, para que desse coração brotem as lágrimas da penitência: Flabit spiritus ejus, et fluent aquae (Salmo 147, 18) E se ainda isso não bastar, enviará Deus "um espírito ciclópico, que derrubará violentamente as muralhas", quasi turbo impellens parietem; (Isaías 25, 4) "que deitará por terra as montanhas" e que desenraizará os cedros do Líbano, spiritus Domini subvertens montes (1, Reis, 19, 11). Se corrêsseis para a morte mais impetuosamente do que o Jordão corre para o mar, serieis logo detidos por Ele na vossa carreira. E embora o vosso corpo jazesse no túmulo num estado de putrefação, Ele havia de ressuscitar-vos como ressuscitou o Lazaro. Basta para isso que escuteis o Apóstolo, e que não recebais a graça de Deus em vão. Hortamur vos ne in vacuum gratiam Dei recipiatis. Força é, porém, confessar, irmãos, que poucos efeitos dessa graça se manifestam, porque poucas dessas grandes conversões se veem no mundo que se possa considerar como ressurgimentos; e a causa dum tão grande mal é recebermos com gelado indiferentismo a graça da penitência, deixando enervar todos os nossos sentimentos por escrúpulos deveras reprovados. Há uma penitência covarde e preguiçosa, que nada empreende com esforço; mas dessa, irmãos, nunca devemos esperar as grandes conversões, nem a vitória decisiva sobre os nossos hábitos. A condição da nossa natureza é ter de trabalhar heroicamente, sujeita a todos os revezes, para a verdadeira conquista do bem. Assim como o pão que comemos só se pode alcançar com o suor do rosto (Gênesis 3, 19) assim a penitência, para ser eficaz, tem necessariamente de ser violenta. Ora essa violência provém unicamente, cristãos, do fato da cólera e da indignação originarem impulsos violentos que, no dizer de Santo Agostinho, se observam também na penitência, visto que esta "não é mais do que uma santa indignação contra si própria" - Quid est enim penitentia, nisi sua in seipsum iracundia? Eis que ouço a voz dum santo penitente bradar: Afflictus sum et humiliatus sum nimis; rugiebam a gemitu cordis mei - "Sinto dores incomportáveis; a consciência fustiga-me cruelmente" (Salmo 37, 9). E o seu brado plangente não é como o gemido duma pomba, mas sim semelhante ao rugido dum leão. É o gemedouro pavoroso dum homem irritado contra os seus próprios vícios, intolerante para com a sua languidez, para com a sua covardia, para com a sua fraqueza. Depois essa cólera recrudesce, tomando proporções de furor: Turbatus est a furore oculus meus (Salmo 6, 7) e ele então revolta-se contra as suas reincidências, contra a lentidão e a covardia que o enervam. Não procura já envolver-se nas reuniões que o pervertem; buscar a sombra e a solidão que o regeneram. É, como diria o Profeta, semelhante às aves que, escondendo-se da luz, procuram as trevas, "semelhante ao mocho que, muito obscuramente, vive dentro do seu ninho" - Factus sum sicat nycticorax in domicilio (Salmo 6, 7). Nessa solidão, nesse recolhimento, é que ele se indigna contra si próprio, e freme de cólera, e forceja herculanescamente por adquirir hábitos contrários aos que tem, "a fim de que o costume de pecar, como diz Santo Agostinho, ceda a violência da penitência" - Ut violentiae paenitendi cedat consuetudo peccandi. E assim se consegue, irmãos, triunfar do temperamento e do hábito. E se me preguntardes porque é necessária tanta violência para conseguir tal fim, facilmente vos respondo que a conversão do pecador é como que um ressurgimento, e que a perversidade da nossa natureza só se pode expulsar no meio de sofrimentos cruéis: In dolore paries filios tuos (Gênesis 3, 16). Por isso a penitência é laboriosa; tem gemidos e dolorosos trabalhos, porque é um verdadeiro parto: Ibi dolores ut parturientis, diz Santo Agostinho, dolores paenitentis. É preciso criar um novo homem? Também é necessário que o primeiro padeça. Mas no meio de tantas dores e de tantas angústias, lembrai-vos sempre destas palavras do Evangelho: "A mulher, na ocasião do parto, sofre extraordinariamente; mas depois do parto, já se não lembra das dores que sofreu, tal a alegria que lhe invade o coração, por ter dado um filho a luz" (São João 15, 21). Assim vós, irmãos, no meio dos trabalhos da penitência também dais a luz, mas o que dais a luz é o vosso próprio eu. Se é verdadeiramente aprazível ter dado a luz e a vida a alguém, que de repente se vê limpo de todos os males passados, que maior prazer não será darmos a luz e havermo-nos gerado a nós próprios, insuflando-nos uma vida imortal? Dai, pois, a luz, ó pecadores, e não temais as dores dum parto tão salutar. Perpetuai, não a vossa raça, mas a vossa própria entidade; conservai, não o vosso nome, mas a própria essência dá vossa substância. Virgens de Jesus Cristo, tal é o parto que Deus vos ordena. Dai a luz o espírito da salvação; regenerai-vos em Nosso Senhor no meio das angústias da penitência; continuai a mostrar aos pecadores que é possível vencer a natureza nas suas mais fortes inclinações; e para os convencerdes por meio do vosso exemplo, declarai ao vício uma guerra sagrada, mas especialmente ao vício mais oculto, mais íntimo, e que se eleva sobre as ruínas de todos os outros. E nós, cristãos, palpemos uma vez só as nossas chagas inveteradas, mas sem vacilar, mas sem dizer que não podemos tocar-lhes ou que nos é impossível tal violência; pois bem melhor é sofrer uma violência neste mundo do que no outro. Ambulate dum lucem habetis - "Andai em quanto tendes luz" (São João 12, 35) e não abuseis do tempo que Deus vos concede. É por aqui que vou terminar este discurso. TERCEIRO PONTO Deus, que não quer a morte dos pecadores, porque deseja antes que eles se convertam, não se satisfaz com excitá-los pela boca dos pregadores, pois anima, por assim dizer, toda a natureza a convidá-los a penitência. Essa série continua de dias e anos que eles tantas vezes veem repetir-se, é como que uma voz pública de todo o universo a testemunhar a paciência de Deus e a avisar os pecadores de que não abusem do tempo que ele lhes dá. "Ignorais, diz o Apóstolo, que a misericórdia divina vos encaminha a conversão? Ou desprezais as riquezas da sua paciência e da sua benignidade" (Romanos 2, 4) que vos encaminha ao arrependimento? Eis a principal graça que o Apóstolo vos aconselha a que não deixeis infrutífera. E logo depois acrescenta: "Escutei-vos no tempo marcado" - Tempore accepto (2 Coríntios 6, 2). Para bem compreendermos, senhores, o valor e o merecimento duma tal graça, devemos primeiramente notar que a medição do tempo pode ser feita por horas, por dias, por anos, e assim indefinidamente até à eternidade. Posto isto, eu reconheço que o tempo não tem existência, porque não tem forma nem estabilidade, e porque toda a sua propriedade é ir decorrendo, e, portanto, diminuindo sucessivamente, e finalmente deixar de existir. Coisa extraordinária é esta, irmãos, o tempo não ter existência; e todavia, tudo perdemos quando perdemos o tempo. Quem nos explicará este enigma? É que o tempo, que não existe, foi estabelecido por Deus para servir de passagem a eternidade. Por isso Tertuliano disse: "O tempo é semelhante a um enorme véu, a uma enorme cortina que se acha corrida por diante da eternidade e que no-la encobre" - Mundi... species... temporalis, illi dispositioni aeternitatis aulaei vice oppansa est. Ora, para alcançar essa eternidade, é necessário atravessar esse véu, porque do bom emprego do tempo é que nasce o direito de aquisição ao que é superior a ele. E agora já não me admiro, cristãos, do vosso extremo zelo na economia escrupulosa do tempo, porque sabeis quão rápida é a sua fuga; mas ele que, considerado em si, é menos do que um vapor e do que uma sombra fugaz, assim que acinge a eternidade, adquire um peso infinito, como diz São Paulo (2 Coríntios 4, 17) graça esta que é um verdadeiro crime receber em vão. Não pretendo agora mostrar-vos num longo discurso o pouco apreço em que temos essa graça, bem como a facilidade que há em a deixar perder. Lá estão os homens para se justificarem a tal respeito; pois quando tão abertamente nos dizem que só desejam ter em que passem o tempo, manifestam-nos à evidência a facilidade que tem em o deixar perder. Mas porque será que a humanidade, que é tão naturalmente avara e que tão avidamente guarda o que lhe pertence, deixa facilmente fugir das mãos um dos seus tesouros mais preciosos? Por dois motivos que merecem ser examinados, cristãos, provindo um de nós e outro do tempo. Quanto a nós, compreende-se bem que o motivo porque o tempo tão facilmente nos foge, é por não nos querermos preocupar com a sua fugida tão rápida. Ou porque se fôssemos a contar o tempo, isso nos trouxesse a ideia a finalidade da nossa existência, o que muito nos desgostará, ou porque devido a uma certa indolência, não saibamos empregá-lo convenientemente, o que é certo é que não há coisa tanto para recearmos como a observação atenta da sua passagem. Como estes tristes dias da vida que vão decorrendo, e dos quais contamos todas as horas e todos os instantes nos oprimem altamente com a sua extensão, por vezes demasiada, por isso o tempo é para nós um fardo impossível de suportar, quando o sentimos sobre os ombros, e então recorremos a todos os artifícios de que podemos dispor para não notarmos semelhante peso. Ora esta preocupação constante de nos iludirmos a respeito do tempo, faz com que não demos pela sua perda brusca, visto só acharmos agradável tudo aquilo que derive tão sutilmente que nem sequer pressintamos a sua duração. Mas se por um lado procuramos iludir-nos, por outro, também concorre o tempo para essa ilusão, cujos efeitos são os seguintes: Diz Santo Agostinho que o tempo é uma imitação da eternidade. Pálida imitação, digo eu; contudo, apesar de volúvel, procura ele imitar-lhe a permanência, visto que a eternidade é invariável. O que o tempo não consegue igualar na estabilidade, procura imitá-lo na sequência, e isto só nos ilude. Tira-nos hoje um dia, mas amanhãs dá-nos outro. Não pode perdurar o ano que acabou, mas em seu lugar faz derivar outro semelhante, que não nos deixa sentir a falta do que passou já. E assim subjuga a nossa fraca imaginação, que facilmente se deixa iludir pela semelhança, e que não sabe distinguir o que é semelhante. Eis, a meu ver, em que consiste a malícia do tempo da qual nos avisa o Apóstolo com estas palavras: Redimentes tempus, quoniam dies mali sunt - "Resgatai o tempo, porque os dias são maus" (Efésios, 5, 16) isto é, malignos e maliciosos. Nós temos a impressão de que não se acaba um ano, porque ele parece continuar-se no ano seguinte. Do mesmo modo não notamos que o tempo se passa, porque embora variando eternamente, mostra quase sempre a mesma cara. Ora este é que é o nosso grande infortúnio, este é que é o grande obstáculo a penitência. Uma longa fase, porém, descobre-nos o embuste do tempo. A fraqueza, os cabelos grisalhos, e a alteração visível do temperamento obrigam-nos a observar a grande parte da nossa existência que decaiu e se aniquilou. Acautelai-vos, pois, da malícia do tempo, irmãos; e vede como esse sutil embusteiro procura salvar aparências, imitando sempre a eternidade. A eternidade tem como apanágio, conservar as coisas no mesmo estado; e o tempo para imitar essa eternização, vai nos despojando de tudo a pouco e pouco, vai nos tirar porque embora variando eternamente tão sutilmente o que possuímos, que nem sequer damos pelo latrocínio; assim como nos conduz tão astuciosamente as extremidades opostas, que chegamos a elas sem darmos por isso. Ezequias não sentia correrem-lhe os anos, pois quando tinha quarenta parecia-lhe que tinha nascido nessa ocasião: Dum adhuc ordirer succidit me - "Interrompeu-me o tempo a continuação dos meus dias logo no começo" (Isaías 38, 12). Deste modo, a malignidade enganosa do tempo faz decorrer a vida insensivelmente, e nós não pensamos em nos converter e vamos cair de repente nos braços da morte sem darmos por tal. Só vemos o abismo quando nos lançamos nele. Mas o que também nos ilude é vermos correr sempre o tempo adiante de nós, por mais longe que lancemos a vista, sem nos lembrarmos de que, apesar de o vermos não poderemos talvez lançar-lhe a mão para utilmente o aplicar. E assim, de ilusão em ilusão, vamos vivendo em tão manifesto engano que nem sequer nos conhecemos e mal sabemos avaliar a vida que decorre, pois ora nos parece longa, ora nos parece curta, conforme o grau das nossas paixões. Sempre curta demais para os prazeres, mas sempre demasiado longa para a penitência. As pessoas dadas a voluptuosidades, e que facilmente se sentem dominadas por insensatos ardores, acham a vida muito curta quando dizem: Non praetereat nos flos temporis; coronemus nos rosis anteqaam marcescant - "Gozemos, enquanto estamos na flor da idade; coroemo-nos de rosas, enquanto elas não murcham" (Sabedoria 2, 7-8). Mas no meio das suas volúpias, irmãos, pensarão por ventura na morte? Não lhes causará tristeza uma ideia tão fúnebre? Não; eles pensam com efeito nela, que é para não perderem tempo em desfrutar os prazeres que não voltam mais. "Comamos e bebamos, acrescentam eles, porque em breve estaremos nos confins da vida" (Isaías 22, 14). Ora eu folgo muito em ver que esses mundanos que assim pensam, reconhecem a rapidez com que a vida vai decorrendo, porque também poderão pensar na penitência, que há tanto tempo vem protelando, não recebendo, portanto, a graça de Deus em vão. Logo, porém, mudam de opinião esses homens lascivos, porque a vida, que antes lhes parecia curta, tão longa se lhes torna de repente, que eles pensam ainda em gastar muitos anos da sua existência nos prazeres ilícitos que os absorvem: Filii hominum, usquequo gravi corde? - "Até quando deixareis agravar os vossos corações, ó filhos dos homens?" (Salmo 4, 3). Até quando quereis que o tempo vos iluda? Quando reconhecereis verdadeiramente a curta duração da vida? Quereis esperar pelo último instante? Mas vede que seja qual for o estado em que vos encontreis quer estejais ainda na flor da vossa idade, quer no maior vigor dela, a todos disse o Apóstolo que "o tempo se vem aproximando". Os dias vão-se sucedendo uns aos outros; e se se vai guardando para o fim o dia da penitência, é muito provável que esse dia se perca depois. - Mas não virá ainda muito tempo de sobejo? - alegam eles. - Que haverá hoje, ó Deus, que os homens não queiram saber? E de que coisa não será capaz a sua temeridade? Eis o que é muito para notar. Diz-nos o Filho de Deus que a ciência dos tempos é um dos segredos que o Pai guardou para si; (Atos dos Apóstolos, 1, 7) e o próprio Cristo, interrogado a tal respeito, respondeu que também o ignorava, só para terminar de vez com a curiosidade dos homens (São Marcos, 13, 32) Analisemos melhor estas palavras. Jesus, na qualidade de embaixador do Onipotente e de interprete do gênero humano, não declara ou ignora o que não é da sua alçada, etc, Como quer que seja, temos de concluir que a ciência dos tempos, e maiormente a ciência do derradeiro instante, é um dos secretos mistérios que Deus não deseja revelar aos seus fiéis. É por uma vontade determinada "que ele não revela quando será o último dia, para que nos não passem em vão todos os dias que forem decorrendo" - Latet ultimus dies, ut observentur omnes dies. E apesar de tudo, o que não empreenderá o arrojo dos homens? Aquele que é audacioso pretende filosofar acerca do tempo, desejando penetrar no futuro que só a Deus pertence. Mas as minhas palavras nada valem em comparação das vossas, ó meu Senhor Jesus; falai, portanto, e confundi esses corações endurecidos. Quando se lhes fala dos juízos de Deus, dizem Eles com Ezequiel "que ainda virá longe essa visão" - In tempora longa iste prophetat (Ezequiel 12, 27). Quando se procura amedrontá-los com os terrores da morte, imaginam que ainda tem muito tempo de sobejo. Mas Jesus Cristo, para os manietar, representa-lhes a justiça divina irritada e pronta a despedir o golpe: Jam enim securis ad radicem arborum posita est - "O machado já se acha colocado na raiz da árvore" (São Mateus 3, 10). Admitindo, porém, pecador, que ainda tenhas muito tempo de sobra, porque demoras ainda assim a tua conversão? Porque não começas já? Receias que seja de longa duração o dia da tua penitência? Não satisfeito de seres criminoso, pretendes viver ainda por muito tempo na escuridão do teu crime? Desejas uma vida; longa e tenebrosa? Vê que é uma injúria que fazes a Deus, o estares constantemente a pedir-lhe tempo para afinal ficar tudo perdido no último instante da tua vida. O tempo que pedes é o tempo dos testamentos, no dizer de São João Crisóstomo, e não o tempo dos mistérios. Não sejas como o enfermo que, na última fase da doença, ainda aguarda o desengano dos médicos para então ser absolvido pelo padre; e que manifesta tamanho desprezo pela alma, que só cuida em salvá-la quando o corpo está nas andas do desespero. Fazei penitência irmãos, enquanto o médico não está à beira do vosso leito, prolongando-vos o tempo que não vos pode dar, calculando os momentos da vossa vida com meneios de cabeça, e finalmente, dispostos a filosofar sobre o curso da natureza da doença, depois da vossa morte. Evitai que vos convençam em altos gritos da necessidade da conversão, violentando-vos a que digais se sim ou não vos quereis converter. Vede que é indigno o padre estar disputando, a beira, do vosso leito, com o vosso herdeiro avarento ou com os vossos pobres servos, instando, por um lado, convosco a que vos penitencieis, enquanto, por outro, alguém vos solicita uma recompensa ou vos-importuna a que façais testamento. Convertei-vos sem demora; não espereis que a enfermidade vos dê esse conselho salutar. Inspirai-vos em Deus e não na doença, na razão e não na necessidade, na autoridade divina e não na força. Entregai-vos livremente a Deus, e não aflitivamente e com ar alucinado. Se a penitência é um dom de Deus, celebrai esse mistério com júbilo, e não com tristeza. Devendo a vossa conversão rejubilar os anjos, triste coisa é começá-la quando a vossa família estiver angustiada. Se o vosso corpo é uma hóstia, que deve ser oferecida a Deus em sacrifício, consagrai-lhe uma hóstia viva; e se é um talento precioso que deve render, estando em poder de Deus, lançai-o já em negociação, e não espereis que deva ser enterrado, para lho oferecerdes. Depois de terdes sido o joguete do tempo, tomai conta, não sejais o joguete da penitência, que fingirá entregar-se-vos, iludindo-vos com falsos sentimentos, até que a morte vos surpreenda, depois de haverdes feito, não uma penitência cristã, mas uma confissão pública do vosso delito, que nem por isso vos livrará do suplício. Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis: (2 Coríntios 6, 3) Eis o escolho e eis o porto: o escolho é a impenitência; e o porto é a penitência, onde só encontrareis a misericórdia eterna. Sermão acerca dos Demônios SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET 1º Ponto. - O que é conhecido como ornamento às naturezas inteligentes converte-se-lhes em suplício. Operação oculta da mão de Deus. 2º Ponto. - Inveja: espécie de orgulho, mas que se dirige aos seus fins por ínvios caminhos, porque é um orgulho covarde e tímido. O orgulho manifesta-se naturalmente, porque aparenta generosidade. Ciúme dos anjos. Faraó. Ezequiel, 32. Expedientes ocultos de que se serve o espírito maligno. Tertuliano. Comparação da serpente: Tertuliano. Independência do diabo. São João Crisóstomo. Exemplos. 3º Ponto. - Os nossos vícios são mais para temer do que o diabo. Exemplo de Saul. Inveja. Ductus est Jesu a Spiritu in disertum, ut tentaretur a diabolo Jesus, foi levado em Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo (São Marcos, 4, 1). Quando os anjos, que foram outrora filhos e servos, e que agora são inimigos, foram expulsos do céu, bem comum de todas as naturezas inteligentes, para viverem na independência e assinalarem a sua própria grandeza, operou-se no céu uma grande convulsão, em virtude da qual eles perderam repentinamente a justiça em que Deus os havia criado. E logo depois, substituindo o luxo pela sua natural preeminência, servindo-se de maliciosos artifícios em vez de recorrerem a uma sabedoria celeste, preferindo o espírito de divisão a uma verdadeira e firme caridade, começaram esses anjos a encher-se duma grande soberba e a afundar-se no erro e na inveja, e vendo-se justamente reduzidos ao extremo da miséria, em virtude de terem caído no pecado, cobiçam agora, apesar da sua elevada condição, a humildade em que nós, pobres mortais, vivemos neste mundo. Convulsão foi essa verdadeiramente espantosa, originada por esses espíritos maléficos que nos odeiam, e que, bem compreendida, há de concorrer para a nossa salvação, ensinando-nos a ser tementes a Deus, pelo exemplo da ruína desses anjos maus, e a precavermo-nos contra eles, por meio do temor das suas astúcias. Eis o assunto que me proponho desenvolver neste discurso, que, sendo de tamanha importância e constituindo uma empresa tão salutar, não poderá certamente deixar de ter o auxílio do céu. O Espírito Santo descerá pois sobre nós, irmãos, e Maria auxiliar-nos-á com as suas preces; e visto que se trata de combater os demônios, não faltará um anjo que da melhor mente interceda por nós para implorar o socorro da Virgem: Ave-Maria. É propósito seguro do Filho de Deus conservar os seus fiéis sempre em movimento, sempre ocupados, vigilantes e cheios de vida, sem nunca se entibiarem nem se darem a ociosidade. E como de todas as ocupações humanas a da guerra é que é a mais ativa, por isso Ele nos diz, na sua Escritura, que "a nossa vida é uma verdadeira luta" (Jó 7, 1) e se vivemos sempre a lutar, devemos andar constantemente precavidos: Sobrii estote et vigilate - "Sede sóbrios e vigiai" (1, Pedro, 5, 8). O evangelho deste dia prova-nos a evidência esta verdade. Nele vemos Jesus ser levado ao deserto para ser tentado pelo diabo; isto é, vemos o nosso capitão descer ao campo de batalha para pelejar com os nossos inimigos invisíveis. Ductus . Não imagineis, porém, irmãos, que devamos ficar como simples espectadores desse combate admirável; pois temos, pelo contrário, de tomar nele uma parte muito importante. E se o Filho de Deus permite hoje ao demônio que o tente, é para nos mostrar com esse exemplo as perfídias de que todos os dias somos vítimas. E sendo assim, cristãos, combatamos sem tréguas, façamos o que se faz na guerra; mas antes de entrarmos na refrega, avancemos com o Salvador para reconhecermos esses inimigos que tão resolutamente marcham contra nós. Se cuidadosamente os observarmos no Evangelho deste dia, facilmente notaremos a soberba e a audácia do seu poder, que lhes permite tentar o Filho do próprio Deus, diligenciando fazê-lo ajoelhar aos pés. Poderá haver audácia mais violenta? (maior insolência?) E não será indício duma força terrível o subitâneo rapto de Cristo do deserto para o pináculo do templo, se bem que Ele assim o permitisse para ensinamento dos seus fiéis? É indubitável que se eles são fortes e empreendedores, não são menos astuciosos e perversos. O ódio inveterado que eles nos dedicam obriga-os a recorrerem a astúcias igualmente sutis e maliciosas. É assim que tentam a Jesus Cristo com a gula após um jejum de quarenta dias, dirigindo-lhe estas palavra: Dic ut lapides isti panes fiant - "Dizei a estas pedras que se convertam em pães"; e que procuram transportá-lo a vanglória, após um ato de paciência heroica. Que plano tão arrojado, e que astúcia tão bem imaginada. Tudo isto, cristãos, nos deve meter medo, visto que temos de nos defender, a um tempo, da violência e da surpresa, da força e dos ardis. E, contudo, o mesmo Evangelho que nos representa esses inimigos com tão temível aparato, também nos mostra que é extremamente fácil vencê-los, pois, que basta uma simples palavra para lhes destruirmos todas as forças e lhes anularmos todas as astúcias. Eis, em poucas palavras, irmãos, o que o Evangelho nos diz acerca do estado dos nossos inimigos e do seu exército. Se lhes reparardes no passo audacioso, e no porte altivo e presumido, haveis de ver em primeiro lugar a força e o poder desses inimigos se lhes observardes o andar de mais perto, facilmente lhes reconhecereis os ardis e os subterfúgios; finalmente se aprofundardes o vosso exame, vereis que apesar da fisionomia soberba e do aparato formidável, já neles se vê o destroço e a derrota, a perturbação e o pavor e então, no momento em que se acham trêmulos e espavoridos pelo desbarato, é facílimo pô-los em debandada. É isto o que intento fazer-vos compreender, começando já por explicar a força e o poder dos inimigos. PRIMEIRO PONTO Para vos fazer compreender qual a força dos inimigos que temos de combater, é absolutamente indispensável falar-vos da perfeição da sua natureza. Mas como este discurso seria infinito, se eu, por espírito de curiosidade, me fosse a referir a tudo o que não diz a teologia, apenas vos direi, para vosso ensinamento, que é tal a nobreza da personalidade desses inimigos que os teólogos mal podem compreender a maneira como o pecado se pode introduzir numa perfeição tão eminente. Que uns simples mortais como nós, abismados numa ignorância profunda, oprimidos pela matéria que nos avilta, agitados por tantas ambições brutais, abandonem tantas vezes o estreito caminho da lei de Deus, embora este procedimento seja uma extrema insolência, não é isso uma coisa impossível de se acreditar; mas que essas inteligências divinamente iluminadas, cujos conhecimentos são tão elevados e tão ordenados os impulsos, inteligências que Deus criara com tanto primor e numa condição tão propícia, que eram dignas de alcançar a beatitude, se tivessem um momento de perseverança, que elas, apesar de tudo, se tenham afastado de Deus, embora tivessem a firme certeza de que a sua soberana felicidade só nEle podia residir, é que é verdadeiramente terrível e surpreendente. O próprio profeta se admira disto, dizendo: Quomodo cecidisti de caelo Lucifer? (Isaías 14, 12) Ó Lúcifer, astro resplandecente, que brilhavas no céu com tamanho resplendor, como foi que caíste assim dum modo tão repentino? Qual foi a causa da tua queda? Quem te abriu as portas ao pecado, se o erro não podia existir em tão vasto saber, nem a surpresa numa luz tão intensa, nem a perturbação numa tão perfeita tranquilidade e num tal desprendimento da matéria? E contudo, irmãos, esse astro caiu, e arrastou consigo a quarta parte das estrelas. Como foi que isso aconteceu? Não tenhamos ai curiosidade de penetrar num tão grande segredo, e reconheçamos apenas que na verdade uma criatura pouco valor tem. Sim, o único motivo que eu vejo pelo qual os anjos puderam pecar, foi por serem criaturas; e a razão deste motivo é Santo Agostinho quem no-la explica, A criatura foi feita pela mão de Deus. Ora, é impossível admitir-se que ela seja essencialmente boa, só porque o seu princípio é a própria bondade. Além disso, a criatura é tirada do nada; e então não é de admirar se ela contem em si qualquer coisa dessa origem baixa e obscura, nem tão pouco se, havendo saído do nada, nele recair tão facilmente por meio do pecado, que de novo o absorve, separando-o da origem da sua entidade. Deste modo, meus senhores, basta sabermos que os anjos eram criaturas para concluirmos que não eram impecáveis. Esta honra só pertence a Deus. É certo que são seus semelhantes, mas não em tudo. E diz Tertuliano que, embora vejamos "que uma imagem bem feita representa todos os contornos do original, não pode, contudo exprimir o seu vigor por falta de movimento; e por isso, por maior que seja a semelhança das perfeições infinitas de Deus nos anjos e nas naturezas espirituais, não podem eles nunca exprimir o seu caráter dominante, que é a facilidade de não pecar" - Imago, cum omnes lineas exprimat veritatis, vi tamen ipsa caret, non habens motum; ita et anima, imago Spiritus, solam vim ejus exprimere non valuit, id est non peccandi felicitatem. A consequência de serem tirados do nada foi embevecimento dos primeiros anjos na contemplação da sua beleza; a extrema sedução pelas delícias da sua liberdade, de que quiseram dar uma prova funesta; e o esquecimento da mão liberal que os enchera de graças, devido a alucinação da sua própria grandeza. Dominados pelo orgulho de seu poder, não quiseram mais submeter-se a Deus; e, como abandonaram miseravelmente essa primeira bondade, que não era menos o apoio da sua felicidade do que o princípio da sua existência, não é de admirar que tudo se subvertesse e tão espantosamente se convulsionasse, visto que Deus assim o permitiu. Tremamos, tremamos, irmãos, ao vermos, tanto esse trágico exemplo da fraqueza do ser criado, como o exemplo da justiça divina. Mas, desgraçados de nós! Por mais conselhos que nos deem todos os dias caímos no pecado, em conjunturas cada vez mais funestas e mais perigosas; nós cuidamos tão pouco da nossa vigilância como se fossemos impecáveis; e julgamos possível a fácil conservação, no meio de tantas tentações, do que em plena tranquilidade perderam criaturas tão perfeitas. Será por loucura? Será por sedução? Será porque ignoramos os infortúnios que ocasiona o pecado? Mas lembremo-nos de que esses espíritos, que vimos tão esclarecidos, sofreram uma transformação tão extraordinária devido a um único crime, pois que, de anjos de luz, se converteram de repente em anjos de trevas; de filhos submissos que eram, tornaram-se inimigos irreconciliáveis; eram ministros imortais das vontades divinas, e ficaram por fim reduzidos a tão extrema miséria, que o seu mister desde então, mister aviltante e ignóbil, ficou sendo enganar os homens. Que vingança! Que transformação! Foi o pecado que operou tudo isto, e nós não tememos o pecado! Já é sermos verdadeiramente cegos! Mas voltemos ao nosso assunto, e precisemos a força dos nossos inimigos pelo lado da perfeição da sua natureza. É o grande apostolo São Paulo quem a isso nos induz com estas sublimes palavras: "Tornai as armas de Deus, diz ele, porque não tendes de lutar contrai carne e o sangue", nem contra força alguma visível: Non est nobis collactatio adversus carnem et sanguinem, se adversus principatus et potestates, adversus mundi rectores, contra spiritudlia nequitiae in caelestibus; (Efésios, 6, 12) "senão contra os principados, contra as malícias espirituais" - spiritualia nequitiae. Porque exagera ele em termos tão violentos a natureza espiritual desses inimigos? É porque nos corpos, além da parte ativa, também a parte passiva, a que nós chamamos matéria. Ora, se compararmos as ações das causas naturais com as dos anjos, veremos que aquelas nos parecem frouxas, e inertes, pelo tato da matéria enfraquecer a virtude que elas tem. Pelo contrário, esses inimigos invisíveis, que se opõem a nossa felicidade, não são de carne nem de sangue, segundo diz São Paulo. Tudo neles é volátil, tudo neles é espírito, que o mesmo que dizer que tudo neles é força e tudo vigor. São da natureza daqueles de quem está escrito "que sustentam o mundo" (Jó 11, 13). E daqui devemos concluir que o seu poder é muito para recear. Mas talvez julgueis que a sua ruína os desarmou e que, pelo fato de caírem de tão alto, não puderam conservar todas as suas forças. Desenganai-vos, cristãos, que tudo neles existe integralmente, exceto a justiça e a santidade, e conseguintemente a beatitude. E a sólida razão disto está nos princípios de Santo Agostinho, que diz que a suprema felicidade dos espíritos não reside numa natureza proeminente nem num sublime raciocínio, nem na força, nem no vigor; mas consiste apenas na união com o Supremo Deus, por meio dum amor casto e duradouro. Quando pois dEle se afastam, não imagineis que seja necessário Deus alterar-lhes a natureza para lhes punir o desvario; o que faz, para se vingar deles, é unicamente, como diz Santo Agostinho, abandoná-los a sua própria razão: Quia superbia sibi placuerunt, Die justitia sibi donarentur. Deste modo, esses anjos rebeldes, ensoberbecidos com a glória da sua natureza, e com a vastidão dos seus conhecimentos, a ponto de quererem nivelar-se com Deus, nem por isso perderam os seus dons naturais. Esses ser-lhes-ão conservados; apenas haverá a diferença de se lhes converter em suplício o que lhes servia de ornamento, em virtude duma operação oculta da mão de Deus, que se serve das suas criaturas conforme lhe apraz, ora para o gozo duma soberana felicidade, ora para o exercício da sua justa e impiedosa vingança. Por consequência, meus senhores, não devemos crer que pelo fato de terem caído, se lhes tenham esgotado as forças porque toda a Escritura lhes chama fortes. "Os fortes atacaram-me, diz Davi" - Irruerunt in me fortes; (Salmo 58, 4) e, por estas palavras, entende Santo Agostinho que elas se referem aos demônios, Jesus Cristo chama a Satanás "o homem forte e armado" - fortis armatus (São Lucas 11, 21) Não só dispõe da sua força, isto é, da sua natureza e das suas faculdades, mas também possui as armas, que são as invenções e o saber: fortis armatus. Noutra parte chama-lhe "o príncipe do mundo" - princeps hujus mundi; (São João 12, 31) e São Paulo, "governador do mundos" - rectores mundi (Efésios, 6, 12). E diz-nos Tertuliano que os demônios adornaram os seus ídolos com togas semelhantes as que envergavam os magistrados e que levavam adiante de si os fasces e outras insígnias de autoridade pública, na qualidade de "verdadeiros magistrados e príncipes naturais do século" - Daemones magistratus sunt saeculi; porque Satanás não é apenas o príncipe, o magistrado e o governador do século mas, para não deixar dúvida alguma do seu temível poder, diz-nos São Paulo que "também é o deus desse século" - deus hujus saeculi (2 Coríntios 4, 4). E realmente, parece um deus sobre a terra, porque pretende imitar o onipotente. Não tem, como Ele, o poder de formar novas criaturas que se opusessem ao seu Criador; mas, no dizer de Tertuliano, tem como produto da sua ambição, a força necessária para corromper as criaturas de Deus e para as fazer insurgir o mais possível contra o Autor da criação. Excessivamente orgulhoso com os seus triunfos, deseja ter finalmente honras divinas; e então, exige sacrifícios, recebe votos, manda erigir templos, como um vassalo rebelde que, por desprezo ou por insolência afeta a mesma grandeza do seu soberano: Ut Dei Domini placita cum contumelia affectans. Tal é o poder do nosso inimigo; mas o que torna esse poder mais terrível é a maneira violenta como ele conjuga as suas forças no propósito de nos arruinar. Todos os espíritos angélicos, como muito bem diz Santo Tomás, são persistentes nas suas empresas. Enquanto nós vemos parcialmente os objetos e refletimos com madureza para afinal tomarmos resoluções imprecisas, os anjos, pelo contrário, no dizer de Santo Tomás, veem com largueza e nitidez o objeto que lhes prende a atenção, ponderam todas as circunstâncias que o rodeiam, e finalmente tomam uma resolução fixa, determinada e inabalável. Mas se eles tem qualquer pensamento enérgico, a que apliquem toda a sua inteligência, é por certo o de nos perder. "É um inimigo que nunca dorme, nem deixa nunca de fazer atuar a sua malícia" - Pervicacissimus hostis ille nunquam malitiae suae otium facit Embora triunfásseis dele, não conseguiríeis dominar-lhe a audácia, porque lhe excitaríeis a indignação. Tunc plurimum accenditur, dum extinguitur. "Quando a sua cólera parece estar completamente extinta, é então que ela se ateia mais violentamente" Esse orgulhoso, que pretendeu igualar-se a Deus, poderá acaso imaginar que uma criatura impotente seja capaz de lhe resistir? Apesar de viver eternamente em cárceres tenebrosos, não deixa contudo de empregar meios inúteis, mas obstinados, para embaraçar o mais que pode os desígnios de Deus. Ora, se ele para com Deus emprega meios de resistência, apesar de conhecer a inutilidade dos seus esforços, o que não empreenderá contra nós, cuja fraqueza tantas vezes experimentou? Por isso vos aconselho caríssimos irmãos, a que estejais sempre de sobreaviso e sempre em defesa. Se ficardes vitoriosos, assim mesmo ainda deveis recear dele, porque é então que envida os seus maiores esforços e se serve dos seus expedientes mais temíveis. Quereis vê-lo claramente na historia do nosso Evangelho? Vede como ele tenta por três vezes o Filho de Deus. Apesar de ser três vezes repelido vergonhosamente, não perde ainda assim o ânimo, "e apenas se ausenta Dele por algum tempo", como diz a Escritura - Recessit ab illo usque ad tempus (São Lucas 4, 13). Não se considerando vencido, nem perdendo a esperança de triunfar, aguarda uma hora mais conveniente, uma ocasião mais oportuna. Que havemos de dizer a isto cristãos? Se uma resistência tão vigorosa não consegue diminuir-lhe o furor, quando poderemos esperar que ele nos dê tréguas? E se a guerra é contínua, se um inimigo tão poderoso nos persegue constantemente acompanhado de todos os seus anjos, que inúmeros cuidados e vigílias e previdência e inquietações não deve ter a todos os momentos a vida cristã? E, contudo adormecemos?... E então não me admiro de vivermos tiranizados por esse espírito maligno, nem de cairmos nas suas ciladas e de sermos vítimas dos seus ardis e dos seus embustes. SEGUNDO PONTO Como o inimigo a que nos estamos referindo é tão poderoso e tão soberbo, talvez imagineis, senhores, que ele vos tente a força de armas, e que de nada valham os ardis para tamanho poder e tamanha audácia. Efetivamente, observa Santo Tomás, que o gênio do mal só comete empresas arrojadas, porque deseja aparentar coragem, é inimigo da surpresa e das argúcias, e habituou-se unicamente a estabelecer planos formais e decisivos. Inútil seria, portanto, admitir que Satanás gostasse de subterfúgios, "se ele é o príncipe de todos os soberbos", como lhe chama a Escritura Sagrada: Ipse est rex super universos filios saperbiae (Jó 41, 25) e se a mesma Escritura nos diz que, além de soberbo, é invejoso: Invidia diaboli (Sabedoria 2, 24) e, portanto, embusteiro e maligno. Ora, embora seja verdade a inveja ser urna espécie de orgulho, toda a gente sabe, porém, que é um orgulho covarde e tímido, que se oculta, que não se manifesta, que, envergonhando-se de si próprio (Apocalipse 12, 12) só realiza os seus fins por meio de intrigas secretas; e é por isso que Satanás, cujo coração é corroído eternamente por uma negra inveja, vomitando lavas de fel sobre nós, é compelido a recorrer a fraude, ao embuste e a maliciosos artifícios. Isso porém, pouco lhe importa, contanto que nos arraste à perdição. Mas donde lhe provém essa inveja que o torna mais ascoroso e mais perverso? Isto levaria muito a explicar-vos, e vós já estais com certeza suficientemente elucidados; pois não há ninguém que não saiba que esse insolente, que ousara atentar contra o trono do seu Criador, caiu fulminado do céu a terra, no meio duma grande raiva e dum grande desespero. Habens iram magnam. Conhecendo-se irremediavelmente perdido, e não sabendo em quem se vingar, dirige o seu ódio envenenado contra Deus, contra os anjos, contra os homens, contra todos as criaturas e contra si próprio. E depois dessa queda fatal, esse espírito perverso, hediondamente jubiloso por ter cúmplices, companheiros da sua miséria, projeta com os seus anjos arruinarem tudo, e envolverem, se possível fosse, todo o mundo no seu crime. Daí provém esse ódio e essa inveja que o faz bolsar sobre nós lavas de amargo e negro fel. Quereis vê-lo agora, cristãos, quereis ver esse espírito soberbo representado em Ezequiel com o nome de Faraó, rei do Egito? Que horroroso espetáculo! Em volta dele só se veem cadáveres de pessoas que foram cruelmente assassinadas. "Aqui jaz Assur, diz o profeta, com toda a sua gente; ali foi morto Elam e todos os que o seguiam; além, Mosoch e Thubal, reis de Idumeia e do Norte, com os seus príncipes e os seus capitães, e todos os mais que os acompanhavam; multidão imensa, povo inumerável", todos em volta dele se acham caídos por terra, nadando em sangue. "Faraó, no meio de toda aquela gente, consola-se com ver a carnificina e a ruína pavorosa do seu povo morto a ponta da espada. Faraó com todo o seu exército" é como Satanás com todos os seus cúmplices: Vidit eos Pharao, et consolatus est super (universa) multitudine sua quae interfecta est gladio: Pharao, et omnis exercitus ejus (Ezequiel 32, 22-31). À vista deste espetáculo, dirão os espíritos das trevas: "Afinal não somos nós os únicos; temos mais companheiros. Ó justiça divinal quiseste suplicio? Aí os tens. Sacia a tua vingança nesse sangue, nessa carnificina. Esses homens que Deus quis igualar a nós estão também sujeitos aos mesmos tormentos, e isso grandemente nos apraz. Mais vale morrer do que vê-los glorificados ao nosso lado! Ai dos covardes que, como nós, hão de sofrer horrivelmente! Se é preferível morrer, que morram eles conosco. Um dia teremos de ser julgados pelos mortais; mas já que Deus assim o quer, paciência! (Ah! Que raiva para os soberbos) Mas antes disso, continuam, quantos não hão de morrer as nossas mãos, deixando lugares vagos para outros! E quantos criminosos não poderiam sentar-se no meio dos juízes!" Em seguida, dirigindo-se aos santos anjos prosseguem: Tendes juízes ao vosso lado? Também nós não estamos sós, pois achamo-nos cercados de inúmeros povos e nações. Vangloriai-vos com o vosso pequeno número de eleitos, que a custo arrancastes das nossas mãos; mas reconhecei ao menos que a nossa multidão acinge a maior vitória. Que vos parece, irmãos, o longo arrazoado desses blasfemadores? Vede a raiva e a inveja que os assoberbam, e vede como triunfam da morte dos homens. É no que eles empregam todos os seus esforços, "é no que consiste toda a sua obra" - Operatio eorum est omnis eversio. Porque o não conseguem eles também vingar-se de Deus? Porque não permite o seu infinito poder. Dominados por uma raiva impotente, vomitam todo o seu fel sobre o homem, que é a sua imagem, e, destruindo essa imagem por completo, afagam no espírito invejoso uma falsa ideia de vingança. É a negra inveja, irmãos, causadora de fraudes e de embustes, que faz com que satanás se revolte contra nós, por meios secretos e impenetráveis. Ele não brilha como o relâmpago, nem ribomba como o trovão; assemelha-se a um vapor pestilento que atravessa as ares, devido a um contágio insensível e imperceptível aos nossos sentidos. É um gênio que inocula veneno no coração; ou, para me servir duma comparação que melhor o caracteriza, é um gênio que desliza como a serpente vil e ascorosa, falaz e perversa. Assim lhe chama a Escritura; (Apocalipse 12, 9) e Tertuliano descreve-nos admiravelmente essa serpente do seguinte modo: Abscondat se itaque serpens, totamque prudentiam suam in latebrarum ambagibus torqueat - "Oculta-se o mais que pode, servindo-se de mil subterfúgios para esconder a sua maliciosa prudência", isto usando de secretos conselhos e de astúcias profundamente estudadas. Tertuliano continua assim: "Foge a serpente para abismos profundos, temendo a luz; e escondendo a cauda, quando mostra a cabeça; nunca a move duma vez só; rasteja tortuosamente esse animal inimigo do dia, inimigo da luz" - Alte habitet, in caeca detrudatur, per anfractus seriem suam evolvat, tortuose procedat nec semel totus, lucifuga bestia. Estas palavras, senhores, representam-nos Satanás em toda a sua hediondez. É ele que nunca se move duma vez só; que apresenta uma fisionomia atraente, mais que oculta o resto do corpo onde guarda; a perfídia; que rasteja quando ainda vem longe; mas que morde traiçoeiramente assim que se tem aproximado. "Acautelai-vos, caríssimos irmãos", exclama o grande apóstolo São Paulo, "tomai conta, não sejais enganados (por) Satanás; pois nós não ignoramos os seus ardis" - Ut non circumveniamur a Satana, non erim ignoramus cogitationes ejus (2 Coríntios 2, 11). Sim, nós não ignoramos os seus ardis; sabemos que a sua malícia é engenhosa; que o seu espírito inventivo, requintado por uma longa prática e excitado por um ódio inveterado, só atua por artifícios muito sutis e por maquinações imprevistas. E quem poderia explicar-vos, irmãos, a grande penetração do espírito de Satanás, e os engenhos maliciosos de que essa serpente se serve? Se vos surpreende o espírito num estado de agitação, procura reforçar essa agitação cada vez mais com o fim de vos perder. Se no coração se vos acendeu qualquer pequena centelha de amor, ele começa a atear essa centelha energicamente até a converter em chama. E assim vos vai conduzindo do ódio a raiva, do amor ao transporte, e do transporte a loucura. Estais longe do crime, gozando as delícias sagradas duma pura consciência? Não o imagineis tão material que vos convide logo a imprudência. É o que diz São João Crisóstomo: Multa utitur versutia, perseverantia, attemperatione ad hominum perniciem, et a minimis statim congreditur. Multo, multo utitur condescensu ut nos ad mala praecipitet. Satanás usa para conosco duma grande, "condescendência"; e essa condescendência consiste em humilhar-se, mas duma maneira diferente da que Deus se humilha. O que ele, faria, se pudesse, era transmitir-vos, antes de mais nada, a mesma malícia que ele possui; porque "esse velho adultero só deseja corromper a integridade das almas inocentes", conduzindo-as, logo que nascem, á maior das infâmias. Mas como, para isso, vos não considera excessivamente audazes, vê-se obrigado a recorrer a meios mais suaves, e então humilha-se, como diz São João Crisóstomo, domando-se a vossa fraqueza e usando de condescendência para convosco. - Ah! Basta-me um olhar, pensará ele então, ou, quando muito, uma palavra cortês e um inocente afago, para conseguir tudo o que desejo. - Acautelai-vos, pois, irmãos, que a serpente vai se aproximando, e, se a deixardes, com certeza vos morderá. Se sentirdes uma chama percorrermos as veias e espalhar-se por todo o corpo, tratai logo de a abafar, de a extinguir, porque é sinal de que Satanás vos quer perder. Amante de torpezas provoca adultérios, perverte mulheres, mata-lhes os maridos, se elas os têm, chamando para cúmplices dos seus crimes a fraude e a perfídia. Davi, o desventurado Davi, cuja história não há ninguém que ignore, foi ele que o perdeu. A Judas inspirou-lhe o plano de vender o seu Mestre traiçoeiramente; mas, como o crime era horrível, operou gradualmente: fez com que ele o roubasse primeiro, e depois o vendesse. Aproveitando-se do espírito avarento de Judas, seduziu-o com o dinheiro para também o perder. E assim o levou da avareza ao latrocínio, do latrocínio a traição, da traição à força e da força ao desespero. Estai, portanto, alerta, irmãos; não vos deixeis seduzir por Satanás, porque agora, como já estais convenientemente elucidados, não ignorais os seus ardis: Non enim ignoramus cogitationes ejus (2 Coríntios 2, 11) e por isso fácil vos será vencê-lo, como passo a demonstrar-vos em poucas palavras, concluindo logo depois o meu discurso. TERCEIRO PONTO A este respeito, parece que estou em contradição e que vou destruir nesta parte o que estabeleci nas duas primeiras, quando digo que o nosso inimigo é fraco e fácil de vencer, tendo a princípio provado quanto ele era forte e terrível em todos os seus planos e empresas. Como hei de conciliar estas duas asserções, cristãos? Muito facilmente. É dizendo-vos apenas que esse inimigo é forte contra os covardes e os tímidos, mas que é muito fraco e impotente para com os que têm animo inquebrantável. E efetivamente, na própria Escritura Sagrada, vemos que ele se acha representado ora como um gênio, forte, ora como um espírito fraco, ora verdadeiramente orgulhoso, ora supinamente covarde. É que nunca jamais houve um animal mais monstruoso e mais rigorosamente hediondo. Ruge como o leão quando se arremessa contra nós, ou silva como a serpente que anda de rastos e que pretende atacar-nos; e contudo, nada mais fácil do que evitar que ele se aproxime. É terrível quando "se acerca de vós para vos devorar" - Circuit quaerens quem devoret; (1, Pedro, 5, 8) "mas basta, que empregueis meios de resistência para o suplantardes" - Resistite diabolo, et fugiet a vobis (São Tiago, 4, 7) Ouvi a maneira como ele fala ao Salvador, e apreciai um reparo de São Basílio de Selêucia: Quid mihi et tibi est, Jesu, Fili Dei Altissimi - "Que existe entre ti e mim, Jesus, Filho de Deus"? (São Lucas 8, 28). Que maneira tão insolente de um servo se dirigir ao seu senhor, diz São Basílio!. Mas não há de sustentar por muito tempo a mesma sobranceria. "Por quem és, não me atormentes, continua ele" - Obsecro te, ne me torqueas. Venisti ante tempus torquere nos (São Mateus 8, 29). E então, treme, ao ser azorragado impiedosamente pela onipotência divina. Ah! Se eu tivesse tempo bastante para passar em revista todas as coisas que no-lo fazem parecer terrível, fácil me seria provar-vos a fraqueza manifesta do gênio do mal. É certo que possui todas as suas forças para dela se servir em todas as suas empresas funestas; mas Aquele que lhas deu para seu suplício, conforme dissemos, pôs-lhe um freio nos dentes, soltando-o o suficiente para provar a paciência dos seus servos, ou para se vingar dos seus inimigos. É considerável o seu poder e vastíssimo o seu império; mas diz-nos Santo Agostinho que esse privilégio é para ele uma verdadeira tortura: Paena enim ejus est ut in potestate habeat eos qui Die praecepta contemnunt. E com efeito, se constitui uma soberana miséria o ser inimigo de Deus, mais miserável será o que foi chefe de todos os inimigos. Essa grandeza, esse luxo que Satanás ostenta olimpicamente, a sua inteligência que altamente o ensoberbece, as qualidades extraordinárias que possui e que o enaltecem, tudo isso o torna miserável, porque, assim mesmo, ainda nós lhe parecemos dignos de inveja. E, se bem que nos reconheça impotentes, exaspera-se, irrita-se, se não emprega a astúcia e a fraude para nos vencer. Ora, assim tão bem elucidados acerca do modo de ser de Satanás, facílimo nos é evitá-lo, "contanto, que trilhemos o caminho da verdade, como verdadeiros filhos da luz" - Ut filii lucis ambulate? (Efésios, 5, 8). Se quiserdes agora, senhores meus, conhecer a sua fraqueza, não já por meio do raciocínio, mas com o auxilio duma experiência indubitável, escutai o que diz Tertuliano na sua admirável Apologética, e ficareis admirados duma proposição audaciosa que ele apresenta. Censura ele os gentios por adorarem divindades que são verdadeiros espíritos maléficos, e para lhes fazer compreender está verdade recorre a uma experiência formal que facilmente os convence. Edatur aliquis sub tribunalibus vestris quem daemone agi constet: Ó juízes, que nos atormentais tão desumanamente, é a vós que me dirijo. Levai-me aos vossos tribunais, porque não quero falar num lugar oculto, mas diante de toda a gente. "Levai para lá um homem que se reconheça estar, evidentemente possesso", e de maneira que esse estado seja sabido de todos: quem daemone agi constet. Depois chamai qualquer fiel, não digo um fiel determinado, mas o primeiro que aparecer, "com a condição expressa de ser cristão" - jussus a quolibet christiano. Se na presença desse cristão o possesso não falar, nem vos declarar quem é, os embustes de que é capaz, se não tiver o arrojo de mentir a um "cristão", christiano mentiri non audentes (escutai agora estas palavras, senhores) "ali mesmo, no tribunal, sem mais delongas, sem correr outro processo, matai esse cristão que não soube manter, para o efeito, uma promessa tão extraordinária" - ibidem illius christiani procacissimi sanguinem fundite. É isto o que diz Tertuliano; e grande prazer será o dos fiéis ao ouvirem uma tal proposição, apresentada tão eminentemente e com tal energia por um homem tão grave e tão insuspeito, perfilhada por toda a Igreja, cuja pureza ele sustentou sempre com tamanho brilho! Como poderá esse espírito embusteiro, esse pai da mentira, esquecer-se de quem é, e ter o arrojo de mentir a um cristão? Cristiano mentiri non audentes! Na presença dum cristão esse homem audacioso curvará a cerviz; compelido pela voz dum fiel, perderá a sua impudência; e os cristãos tem tanta certeza de o obrigarem a falar como lhes convier, que arriscarão a própria vida, em presença dos seus próprios juízes. Quem não zombaria então desse inimigo impotente, que esconde tanta fraqueza em tão altivo aspeto? Não há, pois, motivo para o temer, irmãos; porque Jesus, que é o nosso capitão deu-lhe o desbarato, e ele já não pode lutar conosco, se nós não nos rendermos a ele covardemente. A quem nós devemos temer é a nós próprios; são os nossos vícios e as nossas paixões mais perigosas do que os próprios demônios. Escutai este belo exemplo da escritura: Saul é atacado pelo espírito maligno. Davi procurava expulsá-lo ao som da lira, ou melhor, por meio da sagrada melodia dos louvores a Deus, que ele perpetuamente entoava com sublimidade. Estranha coisa foi o que então sucedeu, senhores! Enquanto o demônio se ia retirando, Saul mais se enfurecia, procurando atravessar Davi com a lança, o que prova que existe qualquer coisa em nós que é pior do que o próprio demônio, que nos tenta de mais perto e que nos conduz a um combate mais perigoso. Diz São Thiago (Tiago 1, 14) que "a cobiça é que nos tenta e nos seduz". Mas moderemo-la por meio do jejum, castiguemo-la por meio do jejum, disciplinemo-la unicamente por meio do jejum. Ó jejum, que és o terror dos demônios, que és o alimento da alma, que lhe dás o gozo dos prazeres celestiais, que desarmas o diabo e que debilitas as paixões vis; tu és a medicina salutar contra os excessos das nossas ambições; e ai dos que te desprezam ou que te observam, murmurando contra uma perseguição tão necessária! Expulsemos os sentimentos perversos, irmãos; jejuemos espiritual e corporalmente. Assim como privamos muitas vezes o corpo do seu alimento habitual, privemos também a alma das vaidades em que todos os dias nos saciamos, afastemo-nos das conversações e dos divertimentos mundanos, moderemos os nossos risos e as nossas diversões, e, em seu lugar, escutemos com toda a atenção o Evangelho que, de todos os lados, explana nos púlpitos. São os trechos desse Evangelho que atemorizam os demônios... Santifiquemos depois o jejum por meio do jejum. A oração mais pura é a que provem dum corpo atenuado e duma alma fatigada dos prazeres sensuais. Acabemos com os bailes, com as danças, com as leviandades. Dediquemo-nos antes a prazeres mais puros e mais positivos. Aceitemos o prazer infinito, que Deus nos concede nesta Quaresma; mas lembremo-nos de que esse prazer, essa paz celestial, não deve ser acolhida com uma alegria dissoluta, senão com uma alegria digna dela, que brandamente se insinue em nossos corações. Quem é que não vê nesta obra a mão de Deus? Eu não me admiro da nossa grande rainha, ter trabalhado energicamente a favor da paz, porque essa paz que foi uma ação verdadeiramente divinal, só Deus lha podia inspirar, só Deus lhe podia incutir essa terna piedade que a excita, e esse espírito pacifico que a anima. Já há muito tempo que sabemos o cuidado que sempre tem tido de imitar Deus, cujo distintivo se lhe acha estampado no rosto, bem como as ideias de paz que sempre a tem acalentado e fortalecido. O que admira é o nosso jovem monarca, sempre augusto, estacar no meio das suas vitórias e perder todo o seu denodo, para deixar aumentar excessivamente o amor dedicado aos seus vassalos; preferiu semear benefícios a colher conquistas; achar mais glória nos prazeres da paz do que no soberbo luxo dos triunfos; e comprazer-se mais em ser o pai dos seus povos do que em ser o vitorioso dos seus inimigos. Quem, senão Deus, lhe inspirou todos estes sentimentos? E quem não abençoará esse grande rei, e a mão sábia e industriosa que tanto o protege?... Falemos sem receio. Eu sei que os Pregadores devem guardar a máxima reserva no tocante a elogios; mas o silêncio, nesta conjuntura, não seria reserva, mas uma certa inveja do bem público, que há de ser completo para ser perfeito. Regozijai-vos, pois, povos deste reino! E se algum vestígio funesto da malignidade passada existir ainda, caia hoje duma vez perante estes altares. Glorificai vibrantemente esse sábio ministro, que, negociando-nos a paz, soube provar quanto se interessa pelo bem do Estado e pela tranquilidade dos povos. Eu não mendigo favores, e Deus me livre, tão pouco de negociar no púlpito. Sou francês e cristão, e como tal reconheço a felicidade pública. E aqui agora, perante Deus, descarrego a minha consciência quanto a essa paz bem-aventurada, que tanto representa a tranquilidade da Igreja como do Estado. Mas não quero fatigar por mais tempo a vossa paciência, irmãos. Concluam agora os vossos votos o resto. Por nós é que deve começar o regozijo. Ao profeta Natan, ao grande sacerdote Sadoc, aos pregadores e ao sacrificador do Altíssimo é que competem soltar aclamações a frente do povo e bradar: Vivat rex Salomon - "Viva o rei, viva Salomão, o pacifico!" (1, Reis, 1, 39). Viva esse grande monarca, ó Deus; e para o recompensar dessa bondade que lhe fez preferir a glória da paz a das conquistas, oxalá que Ele goze por muito tempo e com felicidade a paz que nos deu; que não veja nunca perturbações, no seu Estado nem dissenções na sua casa a que o respeito e o amor se deem as mãos e o acompanhem sempre; que a fidelidade dos seus povos seja firme e inabalável, e finalmente, para assegurar por muito tempo a paz na terra, oxalá que ele faça reinar a justiça e as leis e Jesus Cristo, a quem eu peço que nos dê a todos o seu reino, a quem pertence toda honra e toda a glória, e que, na companhia do Pai e do Espírito Santo, vive e reina agora e por todos os séculos dos séculos. 2º Domingo da Quaresma - Sermão da Pregação Evangélica Sermão para o 2º Domingo da Quaresma Pregado em Paris, na capela das Carmelitas do faubourg Saint-Jaques, no dia 13 de março, de 1661. SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET Exordio. - O altar e o púlpito. Aliança. 1º Ponto. - Disposição do Pregador. Et si habes brachium sicut Deus, et si voce simili tonas... Non exigitur donatur. - São Pedro Crisólogo. 2º Ponto. - Atenção: sua espécie; onde deve existir; no coração e não no espírito. 3º Ponto. - Doutrina como na comédia. Movimentos artificiais, enganadores e de pouca duração. Espécies de ensinamentos divinos. Justificação pelas obras. Modéstia perante o sermão. Hic est Filius meus dilectus in quo mihi bene, complacui; ipsum audite Este é o meu amado filho, em quem me comprazo; escutai-o (São Mateus 17). Uma coisa, porém, noto eu, cristãos: é que ao mesmo tempo que se ouve a voz do Pai Eterno, ordenando-nos que escutemos seu Filho, Moisés e Elias desaparecem, e Jesus fica só. Et dum fieret vox, inventas est Jesus solus (São Lucas 9, 36) Porque é que Moisés e Elias se retiram ao ouvirem tais palavras? Aqui é que está o segredo, cristãos, que o Apóstolo passa contudo a desvendar. Diz Ele: Noutro tempo falava Deus diversamente pela boca dos seus profetas (escutai isto e notai muito: falavam os profetas noutro tempo) agora, porém, nestes últimos tempos, fala-nos Deus pela boca do seu próprio Filho. E aqui está porque ao mesmo tempo que Jesus Cristo aparece na qualidade de mestre, Moisés e Elias se retiram. A lei, com ser imperiosa, compraz-se em obedecer-Lhe; os profetas, com serem clarividentes, vão contudo esconder-se na nuvem: Intrantibus illis in nubem, nubes obumbravit eos; como se assim dissessem tacitamente ao Salvador! Antigamente falamos nós em nome e por ordem de vosso Pai; agora que abris a boca para explicar os segredos do céu, temos dada por finda a nossa missão, porque, confundindo-se a nossa autoridade com a autoridade suprema, e não passando nós duns servos humildes, é também humildemente que cedemos a palavra ao Filho de Deus. Ora é essa palavra do filho de Deus, cristãos, que de toda a parte se repercute nas tribunas evangélicas; não já na tribuna de Moisés, onde não estamos, mas na tribuna de Jesus Cristo, donde fazemos ecoar a Sua voz e donde pregamos o seu Evangelho. Vinde aprender a escutar a nossa palavra, ou antes a palavra do Filho de Deus, por meio das preces daquela que o concebeu, em primeiro lugar pela audição, como diz Santo Agostinho, e que, pela obediência que prestou à palavra eterna, se tornou digna de O conceber nas suas benditas entranhas. Ave-Maria.. O templo de Deus, irmãos, tem dois lugares augustos e veneráveis, que são o altar e o púlpito. Naquele apresentam-se as petições, neste publicam-se os resultados dessas petições; no altar, os ministros das coisas sagradas falam a Deus da parte do povo; no púlpito, falam ao povo da parte de Deus; no altar, faz-se Jesus Cristo adorar pela verdade do Seu corpo; no púlpito faz-se reconhecer pela verdade da Sua doutrina. Há, portanto, uma íntima aliança entre estes dois lugares sagrados, e as obras que neles se realizam relacionam-se admiravelmente. O mistério do altar prepara o coração para o púlpito; o ministério do púlpito convida à adoração do altar. Tanto dum lugar como doutro deriva para os fiéis um alimento celestial; e Jesus Cristo em ambos evangeliza. No altar, recordando-nos a memória da Sua paixão e ensinando-nos a sacrificarmo-nos com Ele, evangeliza-nos tacitamente; no púlpito dá-nos vivos ensinamentos pela palavra falada. E se quiserdes ainda maior relação, vede que no altar, pela eficácia do Espírito Santo e por meio de palavras místicas em que se não deve pensar sem temer, transformam-se. os dons oferecidos no corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo; no púlpito, pela eficácia do mesmo espírito e ainda pelo poder da palavra divina, devem ser secretamente transformados os fiéis de Jesus Cristo, a fim de se modelarem a rigor o seu corpo e os seus membros. Ora, é por esta admirável relação entre o altar e o púlpito que outros doutores antigos aconselharam energicamente aos fiéis que se aproximassem dum e doutro com igual veneração; e a este respeito, ides ouvir, cristãos, umas palavras notáveis de Santo Agostinho, altamente conceituadas pelos sábios, e que eu vou reproduzir integralmente já ao começo deste discurso, ao qual devem servir de fundamento. São as seguintes as palavras desse grande bispo: "Dizei-me, irmãos, qual das duas coisas vos parece que tenha maior dignidade, a palavra de Deus ou o corpo de Jesus Cristo? Se quiserdes dizer a verdade, respondereis certamente que a palavra de Jesus Cristo não vos parece menos digna de apreço do que o Seu corpo. E portanto, quanto maior for a precaução que tenhamos para não deixar cair por terra o corpo de Jesus Cristo que nos oferecem, tanto maior há de ser o cuidado que devemos ter para não deixar cair do coração a palavra de Jesus Cristo que nos anunciam; porque, aquele que escuta indiferentemente a palavra sagrada, não é menos criminoso do que o que deixa cair por culpa sua o próprio corpo, do Filho de Deus" Quid vobis plus esse videtur, verbum Dei, an corpus Christi? Si verum vultis respondere, hoc utique dicere debetis, quod non sit minus verbum Dei quam corpus Christi ministratur, ut nihil ex ipso de nostris manibus in terram cadat, tanta sollicitudine observemus ne verbum Dei, quod nobis erogatur, dum aliud aut cogitamus aut loquimur, de corde nostro depereat: quia non minus reus erit qui verbum Dei negligenter audierit quam ille qui corpus Christi in terram cadere negligentia sua permiserit. São estas as palavras textuais de Santo Agostinho, que me permitem examinar hoje mais profundamente a secreta relação que existe entre o mistério da Eucaristia e o ministério da palavra. É que eu acho que não há nada mais eficaz do que a palavra para atrair o respeito pela doutrina sagrada, nem mais conveniente para explicar os estados de espírito em que essa palavra deve ser ouvida. A relação a que nos referimos consiste em três coisas para as quais vos peço a maior atenção. A primeira é que, assim como desejais que vos deem no altar, com grande religiosidade, a verdade do corpo de Jesus Cristo, assim deveis desejar que vos preguem no púlpito, com a mesma religiosidade, a verdade da Sua palavra. Este é o primeiro estado de espírito, mas que só por si ainda não é suficiente. A segunda é que, assim como não basta que recebais externamente a verdade desse pão celestial, e que sejais compelidos a abrir antes a boca do coração do que a do corpo, assim também, para compreenderdes verdadeiramente a palavra sagrada, deveis escutar intimamente a voz do coração. Mas ainda isto não é suficiente, e só a terceira coisa poderá realizar a perfeição da aliança e o complemento do mistério. Essa terceira clausula é que, assim como ao receberdes no coração o alimento sagrado deveis proceder de maneira que pareça ao vosso espírito terdes sido alimentados à mesa do Filho de Deus, assim também deveis aproveitar convenientemente a Sua palavra divina, por forma a parecer-vos sempre que sois instruídos na sua escola. Ora, se o vosso espírito se encontrar hoje nestes três estados de pureza, escutareis Jesus Cristo da maneira que Ele deseja que o escutem: Ipsum audite. Escutareis externamente a verdade da Sua palavra; e internamente a Sua doutrina íntima. Finalmente, haveis de escutá-lo por meio duma prática fiel, mostrando-vos seus discípulos pela obediência: Ipsum audite. Senhora: Este assunto é digno da audiência que hoje nos dá Vossa Majestade. É principalmente aos reis da terra que convêm ensinar a escutar Jesus Cristo nas prédicas sagradas, para que eles ouçam ao menos em público essa verdade, que particularmente lhes dissimulam por tantas espécies de artifícios, e para que a palavra de Deus, que é um amigo que não lisonjeia, os desiluda das lisonjas dos seus cortesões. Vossa Majestade, real Senhora, pouca atenção poderá dar às adulações; porque, albergando em seu íntimo um grande amor pela verdade, facilmente adivinhará que o que eu vou agora provar é que se não deve buscar nos púlpitos senão a verdade eterna. PRIMEIRO PONTO Os cristãos mais exigentes que, não conhecendo a cruz do Salvador, que é o grande mistério do Seu reino, procuram por toda a parte o que os lisonjeia e os delicia, inclusive no templo de Deus, julgam-se inocentes por desejarem encontrar nos púlpitos os discursos que agradam e não os que comovem e que edificam, enervando assim por este meio toda a eficácia do Evangelho. Para os desiludir hoje deste erro tão pernicioso, avanço a dizer que, assim como não há homem algum bastantemente insensato que queira procurar no altar a verdade do mistério, assim também não deve haver homem temerário bastante que deseje encontrar no púlpito a pureza da palavra. É isto o que eu vou demonstrar neste primeiro ponto, esperando que a demonstração seja concludente. Para estabelecer a relação entre estes dois princípios, é necessário assentar no seguinte fundamento indispensável: Segundo a vontade de Deus na dispensação do mistério do Verbo Encarnado, devia Ele aparecer aos homens de duas maneiras diferentes. A primeira, na verdade da Sua carne; a segunda, na verdade da Sua palavra. E a sólida razão destas diferentes aparições é que, em virtude de Ele ser o Salvador do mundo, necessariamente devia aparecer ao mundo inteiro; pois não basta que apareça na Judeia ou em qualquer parte da terra, mas em todos os lugares onde a vontade de seu Pai lhe preparou eleitos. De maneira que esse mesmo Jesus que apenas apareceu na Palestina pela verdade da Sua carne, apareceu depois em todo o universo pela verdade da Sua palavra; e é assim, cristãos, que Ele agora se nos manifesta, enquanto não chega o dia bem-aventurado em que o havemos de ver em toda a Sua glória. Este mistério que eu vos anuncio acha-se mais claramente demonstrado no nosso Evangelho da Transfiguração. É uma coisa digna de notar-se que na mesma ocasião em que São Pedro, ao admirar Jesus cheio de luz divina, pretende domiciliar-se no Tabor para gozar eternamente da sua vista, nessa mesma ocasião, cristãos, adhuc eo loquente, desaparece a glória de Jesus Cristo, do céu desce uma nuvem a envolver os discípulos, e dessa nuvem sai esta voz do Eterno Pai: "Este é o meu amado filho, escutai-O" Era como se dissesse a São Pedro, ou antes pessoalmente aos fiéis que haviam de vir: Não é nesta vida mortal e efêmera que se deve admirar Jesus Cristo. Quando Ele regressar à glória do seio paterno, descerá do céu uma nuvem que o há de esconder da vossa vista. Não imagineis, porém, que O deixareis de ver completamente; pois que, deixando de o ver na verdade do Seu corpo, podereis sempre contemplá-lo na verdade da Sua doutrina. Basta que o escuteis e que admireis esse divino mestre na Sua palavra em que Ele propriamente se concentrou. Ipsum audite. É isto que faz dizer a Tertuliano, no livro da Ressurreição, que a palavra vida é como a carne do Filho de Deus: Itaque sermonem constituens vivificatorem..., eumdem etiam cantem suam dixit; e ao sábio Orígenes, que a palavra que alimenta as almas é uma espécie de corpo que o Filho de Deus tomou: Panis quem Deus corpus suum esse fatetur, verbum est nutritorium animarum. Que querem eles dizer com isto, senhores, e que semelhança puderam achar entre o corpo do nosso Salvador e a palavra do Seu Evangelho? A ideia deste pensamento é a seguinte: É que o Filho de Deus, ao afastar de nos essa visível aparência, e desejando contudo ficar ainda na companhia dos Seus fiéis, tomou como que um novo corpo, que vem a ser a palavra do Seu Evangelho, que efetivamente é uma espécie de corpo em que a verdade se envolve; e nesse novo corpo ainda Ele nos vê a nós e conversa conosco, opera e continua trabalhando para a nossa salvação, prega e todos os dias nos dá ensinamentos da vida eterna. É por este motivo que os santos doutores tantas vezes comparam a palavra do Evangelho com o sacramento da Eucaristia, e que Santo Agostinho temerariamente preconizou que a palavra de Jesus Cristo não é menos venerável do que o Seu próprio Corpo. Talvez estar palavras ainda venham a propósito noutro lugar. Agora, porém, para não confundirmos, raciocinemos acerca de toda a doutrina que já ficou expendida. Se bem a compreendestes, cristãos, deveis estar, convencidos de que os pregadores do Evangelho não sobem aos púlpitos com o fim de proferirem discursos vazios de sentido, e que se sirvam para passatempo de quem os ouve. Nada disso, nem Deus queira que tal imaginemos! Sobem, ao púlpito com a mesma intenção com que sobem ao altar: é para nele celebrarem um mistério muito semelhante ao da Eucaristia que no altar é celebrado. É que o corpo de Jesus Cristo não existe com mais realidade no sacramento adorável do que existe a Sua verdade na doutrina evangélica. No mistério da Eucaristia, as espécies que vedes representam símbolos; mas o que neles se encerra é o próprio corpo de Jesus Cristo. Nos discursos sagrados, as palavras que ouvis também representam símbolos; mas o pensamento que os produz, e o que vos é comunicado, representa a própria verdade do Filho de Deus. Interrogue agora cada um a sua consciência e veja qual o estado de espírito com que ouve a palavra divina. Pondere cada um na presença de Deus se não é um crime gravíssimo considerar, segundo o nosso costume, como um divertimento e um joguete, a mais nobre, a mais importante e a mais indispensável missão da Igreja, pois é assim que os sagrados concílios entendem o ministério da palavra. Mas imaginai agora a audácia dos que esperam ou exigem até dos pregadores outra coisa além do Evangelho; que pretendem que se melhore as verdades cristãs, ou que, para as tornar agradáveis, se misturem com invenções do espírito humano! Com a mesma licenciosidade, poderiam ter o louco desejo de ver violar a santidade do altar, por meio da falsificação dos mistérios. Causa-vos horror este pensamento? Mas sabei que há a restrita obrigação de tratar com verdade a santa palavra e os mistérios sagrados. Donde se conclui, para temor simultâneo de pregadores e ouvintes, que, assim como praticariam um crime aqueles que fizessem ou exigissem a celebração dos divinos mistérios de maneira diferente da que Jesus Cristo nos ensinou, assim também cometeriam um atentado os ouvintes e os pregadores, quando aqueles desejam que estes deem à palavra do Evangelho uma orientação diferente da que deu à Sua Igreja o célebre pregador cuja doutrina ordena que ouçamos: Ipsum audite. Ora, é de harmonia com estes princípios que o apóstolo São Paulo aconselha aos pregadores que, em vez de forcejarem por criar reputação com a eloquência, "se tornem antes recomendáveis à consciência dos homens pela manifestação da verdade" - In manifestatione veritatis commendantes nosmetitipsos ad omnem conscientiam hominum coram Deo (2 Coríntios 4, 2) E a propósito disto ensina-lhe em que lugar e por que meio eles se devem tornar recomendáveis. O lugar é nas consciências, e o meio é pela manifestação da verdade, visto que uma coisa é a consequência da outra. Adular os ouvidos com a cadência e com a boa disposição das palavras, recrear a imaginação com a delicadeza dos pensamentos, convencer, às vezes, o espírito com a verosimilhança do raciocínio, é uma coisa à primeira vista encantadora; mas a consciência quer a verdade, e como é à consciência que se dirigem os pregadores, devem eles recorrer, não a brilhantes que deslumbrem, nem a uma harmonia que deleite, nem a figuras de retórica que deliciem, mas a relâmpagos que impressionem, a trovões que abalem, a raios que despedacem os corações. Ora tudo isto só se encontrará na verdade luminosa e na palavra sagrada de Jesus Cristo. Deus é o senhor das tempestades; e se só Ele é que pode fazer ecoar nas nuvens o som do trovão, muito melhor poderá relampaguear e trovejar nas consciências, e despedaçar os corações duros com feixes de raios. Se houvesse um pregador bastantemente temerário que conseguisse da sua eloquência estes poderosos efeitos, inclino-me a crer que Deus lhe diria como disse a Jó: Si habes brachium sicat Deus, et si voce simili tonas - "Se imaginas ter o poder de Deus e trovejar com voz semelhante" (Jó 40, 4) completa a tua obra e sê Deus em tudo: "eleva-te nas nuvens, mostra-te cheio de glória, lança por terra os soberbos com a tua cólera", e dispõe das coisas humanas a teu talante: Circumda tibi decorem, et in sublime erigere, et esto gloriosus... Disperge superbos in furore tuo (Jó 3, 6). Como pode uma voz tão débil imitar o trovão do verdadeiro Deus! Não finjamos imitar a força onipotente da voz de Deus, por meio da nossa fraca eloquência. Se quiserdes agora saber qual o papel que pode desempenhar a eloquência nos discursos cristãos, Santo Agostinho vos dirá que só neles é permitida em resultado da sabedoria: Sapientiam, etc. Quanto a isto, há uma ordem que é preciso respeitar: a sabedoria caminha à frente como senhora; e a eloquência vem logo atrás como serva. Não notais a gravidade de Santo Agostinho, quando diz que a eloquência deve vir sem ser chamada? Quer ele dizer que a eloquência, para ser digna de tomar lugar nos discursos cristãos, não deve ser escrupulosamente procurada. É necessário que venha quase espontaneamente, atraída pela magnificência das coisas e para servir de interprete à sabedoria que pontifica. Mas que sabedoria há de ser essa que deve pontificar nos púlpitos, senão Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a sabedoria do Eterno Pai, a qual nos ordena que ouçamos hoje? Por isso, o pregador evangélico dá a palavra a Jesus Cristo. Não lhe imprime uma linguagem humana, porque receia dar um corpo estranho à verdade eterna; mas recorre as Escrituras, bebe nelas o espírito divino, e serve-se inclusivamente dos termos sagrados que elas encerram, não só para fortificar, mas também para embelezar o seu discurso. No empenho de conquistar as almas, só fala das coisas e dos sentimentos. Não é porque despreze, como diz Santo Agostinho, os ornamentos da elocução, quando os encontra de passagem e os vê brilhar na sua frente pela energia dos bons pensamentos que os produzem, mas também não finge adornar-se excessivamente com eles. Todo o ornato lhe parece bom, contanto que seja um espelho em que Jesus Cristo se possa refletir em toda a Sua verdade, um canal donde brotem em toda a Sua pureza as águas vivas do Seu Evangelho, ou, para maior viveza, um interprete fiel que não altere, nem destrua, nem confunda, nem restrinja a Sua santa palavra. Por aqui vedes, cristãos, o que deveis esperar dos pregadores. Eu sei que é pena não se seguir muitas vezes em toda a linha a orientação que deixo apontada; mas, se assim é, a culpa é unicamente vossa, irmãos, porque vós é que tendes obrigação de formar os pregadores. Talvez vos pareça mistério o que vos vou dizer; pois aos ouvintes é que compete formar os pregadores, não são os pregadores que se formam a si próprios: Não imagineis que a palavra divina se vai buscar ao céu quando se quer; pois não é a força do gênio, nem o trabalho assíduo, nem a veemente contenção que a obrigam a descer. Ela não pode ser violentada, diz um eminente pregador; é necessário que venha espontaneamente: Non exigitur, sed donatur, Deus nem sempre fala quando apraz ao homem; "fala aonde quer" - Spiritus ubi vult spirat (São João 3, 8) e quando quer. A palavra divina que dirige a nossa vontade não é dos impulsos desta que recebe a lei: Dominatur divinus sermo, non servit; et ideo non, cum jubetur, loquitur, sed jubet. Quereis saber quando Deus se compraz de falar? É quando os homens estiverem dispostos para o ouvir. Perfilhai a rigor a sã doutrina, e Deus vos dará verdadeiros pregadores. Preparado o campo convenientemente, não faltarão o bom grão, nem o lavrador, nem o orvalho do céu. Se, porém, fordes dos que não querem ouvir a verdade, e só desejam contos e agradáveis quimeras: Ad fabulas autem convertentur (2 Timóteo 4, 4) então Deus mandará às nuvens que não chovam sobre a terra - Nubibus mandabo ne pluant super eam (Isaías 5, 6) fará desaparecer a sã doutrina da boca dos pregadores, e, na Sua cólera, enviará profetas insensatos e temerários que proclamem a paz onde a paz não existe, e que invoquem o nome do Senhor, não os tendo Ele encarregado de comissão alguma. Tal é o mistério que eu vos prometi. São, portanto, os fiéis ouvintes que formam os pregadores evangélicos, porque, sendo os pregadores feitos para os ouvintes, recebem uns do céu o que outros merecem: Hoc doctor accipit, quod meretur auditor, Amai, pois, a verdade, cristãos, e ela vos será anunciada; ambicionai esse pão celestial, e ele vos será oferecido; desejai ouvir a palavra de Jesus Cristo, e Ele fará ecoar a Sua voz até aos arcanos do vosso coração. É assim que conseguireis desenvolver a atenção no vosso espírito, e é isto que eu tentarei provar-vos na segunda parte deste discurso. SEGUNDO PONTO A segunda analogia que notamos entre a palavra de Deus e a Eucaristia é ambas terem de dirigir-se ao coração, embora por caminhos diferentes: uma pela boca, outra pelo ouvido. Assim como o que bebe e come o seu julgamento, ao aproximar-se do mistério, prepara somente a boca do corpo e fecha a Jesus Cristo a boca do coração, assim também o que é condenado, ao ouvir falar Jesus Cristo, só o escuta externamente, ficando intimamente surdo à voz desse mágico celestial:Incantantis sapienter (Salmo 57, 6) o que equivale a não ouvir a sua voz divina. Se me perguntardes agora o que é escutar intimamente, dir-vos-ei numa palavra que é ouvir com muita atenção. Mas a atenção a que me refiro não é talvez a que imaginais; e então, para evitar um mal-entendido, vou explicar duas coisas: a suprema necessidade da atenção, e a parte da alma em que ela deve existir. Para bem compreendermos qual a atenção que devemos prestar à palavra divina, é necessário possuirmo-nos inteiramente dessa verdade cristã que, além do som que nos impressiona o ouvido, tem uma voz secreta que fala dentro de nós, constituindo esse discurso espiritual e interior a verdadeira doutrina, sem a qual será inútil tudo o que disserem os homens: Intus omnes auditores sumus. Não consente o Filho de Deus que tomemos audaciosamente o título de mestres: "Ninguém se chama mestre a si próprio, diz Ele, porque só há um único mestre e um único doutor" - Unus est enim magister vester (São Mateus 23, 8). Se atendermos ao verdadeiro sentido destas palavras, notaremos, diz Santo Agostinho, que nenhuma pessoa nos pode ensinar, a não ser Deus. Nem os homens, nem os anjos são capazes de tal. Poderão realmente falar-nos da verdade, e, para assim dizer, apontar-no-la com precisão; mas só Deus a poderá ensinar, porque só Ele nos dá luz para distinguirmos os objetos. A este respeito elucida-nos Santo Agostinho, por meio da comparação da vista. Inútil será designarem-nos com o dedo as diferentes pinturas desta igreja e chamarem-nos a atenção para a delicadeza dos traços e para a beleza das cores, se o sol não propague a sua luz, de maneira a podermos distinguir tudo o fitamos. E então, no meio de tantos objetos que nos preocupam o entendimento, por maior cuidado tenhamos em separar o verdadeiro do que é falso, nunca conseguiremos, sem Aquele "que alumia todo o homem que vem a este mundo" - Lux vera, quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum (São João 1, 9) não fizer incidir uma luz invisível sobre os objetos e sobre a inteligência. É, portanto, por meio da sua luz que conseguiremos estabelecer a diferença das coisas; Ele é que nos dá um determinado senso, chamado o "senso de Jesus Cristo" - Quis cognovit sensum Domini qui instruat eum? Nos autem Christi habemus; (1 Coríntios 2, 16) por meio do qual apreciamos o que é Deus; e é Ele também que nos abre o coração e que nos diz ao nosso íntimo: Se vos pregam a verdade, recebei-a, que ela é a verdadeira doutrina. O que fez dizer a Santo Agostinho: "Tenho um grande segredo a comunicar-vos, irmãos" - Magnum sacramentum, fratres "O som da palavra impressiona-nos os ouvidos, mas o mestre está no nosso íntimo" Fala-se do púlpito, mas a prédica incide no coração: Sonus verborum (nostrorum) aures percutit, magister intus est, É que há apenas um único mestre que é Jesus Cristo, e só Ele ensina os homens. Muitas vezes repetiu esse Mestre celestial estas palavras: "Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça" - Qui habet aures audiendi, audiat (São Mateus 13, 9). Bem sabia Ele que não falava a surdos; mas também não ignorava que há certos "que vendo não veem, e que ouvindo não ouvem" - Videntes non vident, et audientes non audiunt; (São Mateus 13, 13) que há ouvidos internos onde não penetra a voz humana e onde só Ele tem o direito de Se fazer ouvir. Ora são esses ouvidos que é necessário abrir para ouvirem a prédica. Não basta somente fitardes este púlpito material; é prêmio da boa dicção. Deste modo, concordo em que haja atenção da parte dos ouvintes, mas não a atenção que Jesus requer. Onde deve ela residir, irmãos? Onde existe esse lugar oculto em que Deus fala? Onde se realiza essa lição secreta de que Jesus disse no Seu Evangelho: "Todo aquele que de meu Pai ouviu e aprendeu, aproxime-se de mim?" (São João 6, 45). Onde se dão esses ensinamentos e onde existe essa escola, em que o Pai celestial fala tão energicamente do Filho, e em que o Filho ensina reciprocamente a conhecer o Pai celestial? Escutai a este respeito Santo Agostinho na obra admirável da Predestinação dos Santos: Valde remota est a sensibus carnis, haec schola, in qua Pater auditur vel docet, ut veniatur ad Filium, - "Quão afastada dos sentidos da carne se acha essa escola celestial, em que o Pai ensina o Filho a aproximar-se! Quão afastada dos sentidos da carne, torna ele, se acha essa escola onde Deus é o Mestre!" Valde, inquam, remota est a sensibus carnis haec schola, in qua Deus auditur et docet. Mas ainda mesmo que Deus falasse ao entendimento pela manifestação da verdade, ainda isso não, bastaria. Enquanto a sabedoria divina se limitar simplesmente à inteligência, não constitui a lição de Deus nem a escola do Espírito Santo, porque então, como diz Santo Agostinho, ensinava-nos Deus apenas de harmonia com a lei, e não de harmonia com a graça; ensinava-nos segundo a letra que mata e não segundo o espírito que vivifica. Ora, para estar atento à palavra do Evangelho, não é no sítio, onde se medem os períodos que se deve fixar a atenção, mas no lugar onde se regulam os costumes; não devemos concentrar-nos no sítio onde se apreciam os belos pensamentos, mas no lugar onde se produzem os bons desejos; não é tão pouco para o lugar onde se formam os conceitos que nos devemos afastar, mas sim para aquele onde se tomam resoluções. Finalmente, se algum sítio há ainda mais profundo e mais recôndito onde o coração delibere, onde se terminem todos os seus desígnios e se manifestem todos os seus impulsos, esse sítio é em Jesus Cristo, onde é preciso, estar para O ouvir com a maior atenção. Se lhe prestardes atenção, que é o mesmo que vos concentrardes no meio das palavras que ouvis e dos pensamentos que nascem no espírito, vereis como que um raio de luz entrar de repente no vosso coração e descer até à origem das vossas enfermidades, É que não foi sem razão que São Paulo disse que "a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que uma espada de dois gumes; desce até a medula do coração e até á divisão da alma e do espírito; é, conforme ele explica, a separação de todos os pensamentos e dos secretos desígnios cordeais. E foi isto que fez dizer ao mesmo Apóstolo que a prédica é uma espécie de profecia: Qui prophetat, hominibus loquitur ad aedificationem, et exhortationem, et consalationem (1 Coríntios 14, 3) por que Deus manda, às vezes, dizer aos pregadores qualquer coisa de incisivo que, através dos nossos caminhos tortuosos e das nossas multiplicadas paixões, vai dar com o pecado que escondemos e que dorme no fundo do coração. É então, irmãos, que é necessário escutar atentamente Jesus Cristo que contraria os nossos pensamentos, que nos perturba nos nossos prazeres e que põe o dedo nas nossas feridas; é então que devemos fazer o que diz o Eclesiástico: Verbum sapiens quodcumque audierit scius, laudabit et ad se adjiciet (Eclesiastes 21, 18). Se o golpe não for bastante profundo, peguemos nós mesmo na espada e façamos com que ela penetre mais fundamente. Oxalá profundássemos tanto o golpe que a ferida ficasse em carne viva, e o sangue nos corresse dos olhos, isto é, as lágrimas, a que Santo Agostinho chama tão elegantemente o sangue da alma!, Mas ainda não é bastante. É necessário que da angústia do coração nasçam as boas intenções, e que as boas, intenções derivem em resoluções determinadas, e que essas resoluções tomadas santamente se apliquem a boas obras, escutando nós sempre Jesus Cristo muito humildemente, e testemunhando-lhe uma fiel obediência à Sua palavra. TERCEIRO PONTO O Filho de Deus disse no seu Evangelho: "Aquele que comer a minha carne e beber o meu sangue permanecerá em mim e Eu nele" - Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego illo (São João 6, 57). Quer isto dizer que se sairmos da mesa sagrada nauseados com os prazeres mundanos, se uma divina ternura nos ligou para sempre e fielmente a Jesus Cristo e à Sua doutrina, é indício certo de que apreciamos verdadeiramente a mansidão do Senhor. O mesmo se dá com a palavra divina que ainda se relaciona com a divina Eucaristia. Assim como só ficamos sabendo que recebemos dignamente o corpo do Salvador, quando temos a impressão de que é um Deus que nos dá alimento, assim também só temos a consciência de que escutamos realmente a Sua divina palavra, quando nos pareça que é um Deus que nos dá ensinamentos. E, porque sucede muitas vezes qualquer homem enganar-se com imitações de verdadeiros sentimentos que lhe possam nascer no coração, é que se não deve acreditar em favores nem em desejos imperfeitos. A realidade ou a ficção desses sentimentos só as obras o podem demonstrar: Operibus credite (São João 10, 38). A este respeito, noto eu que um dos mais eloquentes pregadores, senão o mais eloquente, por certo que em todo o tempo edificou a Igreja, quero referir-me a São João Crisóstomo, censura muitas vezes os seus ouvintes por ouvirem os discursos eclesiásticos como quem assiste a uma comédia. Ora eu que encontrava a miúdo esta censura nas suas prédica divinas, tive o máximo empenho em desvendar o fundo daquele pensamento, e eis o que consegui saber: Há diversões que só têm por fim recrear o espírito, sem despertarem sentimentos afetivos, nem fazerem acionar as molas do coração. Outro tanto se não dá com esses espetáculos cheios de vida que se dão nos teatros. São perigosos, porque não agradam, se não comovem, se não interessam o espetador, e se não lhe fazem representar também o seu papel, embora não pisem o palco nem façam parte da tragédia, É nisto que esses espetáculos são para temer, porque o coração começa insensivelmente a agitar-se de boa fé, e então comove-se, sente-se transportado, rejubila e entristece-se com coisas que fundamentalmente lhe são indiferentes! E uma prova irrefragável de que esses impulsos não afetam o coração, é que desaparecem com a mudança de lugar. Essa comoção que fazia chorar, e essa cólera que enrubescia os olhos e o rosto, não eram mais do que falsas aparências com que o coração armava ao efeito, e que todavia produziam o mesmo resultado que as verdadeiras paixões; tal a facilidade que temos em nos enganarmos, tal o prazer que sentimos em nos tratarmos com ludibrio! Quando o sábio São João Crisóstomo receava que os seus ouvintes assistissem aos seus sermões como quem assiste a uma comédia, é porque via muitas vezes que eles se sentiam abalados, elevando-se no seu auditório gritos e vozes confusas que indicavam uma excitação nos corações, devido às palavras que proferia. Um homem que fosse, menos experimentado acreditaria numa conversão da parte dos seus ouvintes; mas São João Crisóstomo, que receava que tudo aquilo não passasse de sentimentos teatrais, artificiosamente provocados, achava que só tinha motivo para rejubilar quando visse os costumes corrigidos, porque só então é que tinha a certeza de que fora escutada a palavra de Cristo. Não vos fieis, portanto, cristãos, nessas visíveis comoções, se às vezes as sentirdes nas prédicas sagradas. Se tais sentimentos experimentardes, não imagineis que ouvis a palavra de Cristo, senão a do homem. Pode a sua voz comover, como comove um instrumento quando é bem tocado. Nunca, porém, conheceis que sois verdadeiramente edificados por Deus senão pelas obras. Santo Agostinho alude à maneira especial como Deus edifica, maneira tão elevada, tão insinuante, etc., que não consiste apenas na demonstração da verdade, senão na inspiração da caridade, que não só vos ensina aquilo que deveis amar, como também vos ensina a amar o que já conheceis: Si doctrina discenda est..., altius et inferius..., ut non ostendat tantummodo veritatem, verum etiam impertiat charitatem. De maneira que os que verdadeiramente pertencem à escola de Jesus Cristo, em breve o demonstrarão por meio das suas obras. E assim nos assegura São Paulo, quando escreve aos fiéis de Tessalônica: De charitate autem fraternitatis non necesse habemus scribere vobis - "Não haveis mister de que vos falem da caridade fraternal", ipsi enim vos a Deo didicistis ut diligatis invicem - "porque Deus vos disse que vos amasseis uns aos outros" E logo prova esta verdade, dizendo: "Com efeito, praticais fielmente o conselho de Deus para com os irmãos de Macedônia" - Etenim illud facitis (1 Tessalonicenses 4, 9-10). Deste modo, a prova irrefutável que o Filho de Deus vos edifica, é quando praticais os Seus ensinamentos, que são o distintivo que podeis, receber do divino Mestre. Os homens que se entremetem a edificar os outros, mostram-lhes quando muito o que necessitam saber; só ao divino Mestre, porém, a quem devemos escutar, compete ensinar-nos ao mesmo tempo o que nos convêm e dar cumprimento ao que já conhecemos: Simul donans et quid agant scire, et quod sciunt agere, Se, portanto, quiserdes pertencer ao número dos que O escutam, escutai-O verdadeiramente e obedecei às Suas palavras: Ipsum audite. Não sejais como aqueles de quem zomba o divino Salmista, como essas flores que só servem para iludir esperanças, que nunca vingam para dar fruto, ou como esses frutos que não amadurecem e que são o joguete dos ventos e a presa dos animais. Semelhantes árvores é que Deus não consente no seu jardim de delícias. Não vos fieis em afetos estéreis e infrutíferos, que nunca se traduzem em resoluções inabaláveis. Discípulos ou soldados com tal índole expulsa-os Jesus Cristo da Sua escola e do Seu exército. Escutai como Jesus, por assim dizer, zomba deles, pela boca do divino Salmista: Filii Ephrem intendentes et mittentes arcum, conversi sunt in die belli - "Os filhos de Efrem, que armavam o arco e preparavam as flechas, recuaram no dia da batalha" (Salmo 77, 9). Ao ouvirem a doutrina de Deus, pareciam afiar as armas contra os seus vícios; no dia da tentação, porém, entregaram-nas vergonhosamente. Durante o exercício davam muitas esperanças; mas no começo do combate começaram a fraquejar. Animados a princípio com o som da trombeta, debandaram logo, quando foi preciso lutar: Filii Ephrem, etc. Concluamos finalmente este discurso, do qual deveis ficar sabendo que para escutar Jesus Cristo é necessário cumprir a Sua santa palavra. Ele não fala para nos agradar, senão para nos edificar nas nossas consciências. "Eu sou o Senhor, diz Ele, que vos ensina coisas úteis" - Ego Dominus docens te utilia (Isaías 48, 17). Ele não institui pregadores para serem ministros da voluptuosidade e vítimas da curiosidade pública, mas para consolidarem o reino da verdade, provando assim que não quer na Sua escola contempladores ociosos, mas fiéis obreiros. Finalmente, quer ver nela discípulos que honrem com a sua vida exemplar a autoridade dum tal Mestre. Ora, para não termos receio doravante de sair da Sua escola sem melhorarmos os nossos costumes, escutemos de que maneira Ele se dirige aos que não aproveitam os Seus preceitos sagrados: Ipsum audite. Escutai, que é Ele próprio que vos fala: "Se alguém ouvir as minhas palavras e não tiver o cuidado de as cumprir, eu não o julgo, non judico eum, porque não vim para julgar o mundo, senão para o salvar" - non enim veni ut judicem mundum, sed ut salvificem mundum (São João 12, 47). Não imagine, contudo, esse alguém que deve ficar sem ser julgado, porque lá diz o divino Mestre: "Aquele que me desprezar e não receber as minhas palavras, tem um determinado juiz", habet qui judicet eum. Quem será esse juiz? "A palavra que eu preguei é que o há de julgar no dia final" - Sermo quem locutus sum, ille judicabit eum in novissimo die (São João 12, 48). Faltava-nos ainda isto para estabelecer a autoridade santa da palavra de Deus; faltava-nos ainda esta nova relação entre a doutrina sagrada e a Eucaristia. Esta, ao aproximar-se dos homens, vem distinguir as consciências com uma autoridade e um olhar justiceiro. Recompensa uns, e condena outros. Assim a divinal palavra, esse pão auricular, esse corpo espiritual da verdade. Aqueles a quem ela não consegue comover, julga-os; os que não converte, condena-os; e os que não alimenta, mata-os. Creio ser agora desnecessário exortar-vos com um longo discurso. Os que têm ouvidos cristãos prevenirão por meio dos seus sentimentos o que eu poderia dizer, porque estou certo de que estas verdades angélicas penetraram fundamente nas suas consciências. Mas se alguma coisa provei, se hoje vos mostrei a sagrada aliança que existe entre o púlpito e o altar, em nome de Deus vos peço, irmãos, que não violeis a santidade dessa aliança. Enquanto todos se reúnem para ouvir a divina palavra, de Cristo, quaisquer ares de desprezo, um simples murmúrio e às vezes um riso escandaloso bastariam para deslustrar publicamente a presença de Jesus Cristo! Templos augustos, altares sacrossantos, e vós, santo tabernáculo do verdadeiro Deus, havereis de ser privados da adoração que Vos é devida, por causa da tribuna evangélica? E nós, cristãos, em que pensamos? Queremos começar de honrar o púlpito com o desprezo do altar? Será por nos prepararmos para receber a palavra divina que faltamos ao respeito à Eucaristia? Se assim procederdes doravante, de nada vale o que eu disse, nem vós acreditastes nas minhas palavras. Meus irmãos, entre estes mistérios há a mais perfeita harmonia; não tenhamos a audácia de a quebrar. Adoremos Jesus Cristo antes de ouvirmos a Sua voz, e contemplemos no altar, com todo o respeito e com o maior silêncio, esse divino Verbo, antes de Ele vos edificar neste púlpito. Abramos os nossos corações à doutrina celeste, preparando-nos agora santamente! Fazei uso dessa doutrina, cristãos, e sirva-vos de mestre Nosso Senhor Jesus Cristo. Oxalá as águas sagradas do seu Evangelho intimidem as vossas almas de tal forma que elas se convertam numa fonte perene na vida eterna, que eu vos desejo, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Sermão sobre a Impenitência Final SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET Exordio. - A vida e a morte são menos dissemelhantes do que se diz e pensa. Proposição e divisão. 1º O homem mundano, insensível à miséria dos pobres e estranho ao pensamento da salvação, morre aterrorizado e cercado de dores cruéis; 2º Cai nas mãos de Deus sem ter o espírito preparado; 3º Vai à presença do Juiz sem ter quem o defenda. 1º Ponto. - O habito de não nos contentarmos com o que é lícito conduz em breve a afouteza de perseguirmos o que é verdadeiramente ilícito. E para depois modificar tão profundas inclinações, seria preciso um milagre. 2º Ponto. - As ambições, as inquietações e as curiosidades absorvem e tiranizam o homem mundano e o cortesão até ao último momento da vida. 3º Ponto. - O homem desmedidamente egoísta não ama o próximo; é cúpido, avaro, sente-se dominado pela embriaguez das paixões satisfeitas, até ao dia em que seja entregue ao tribunal divino por aqueles de quem ele se não compadeceu. Peroração. - Sejamos caritativos, principalmente numa época em que é mais horrível a miséria dos pobres. Mortuus est autem et dives O rico também morreu (São Lucas 16, 22). Deixemos Jesus Cristo no Tabor, no meio dos esplendores da Sua glória, e examinemos outro objeto menos agradável, é certo, mas que nos estimula mais fortemente a penitência. É o rico moribundo, e morrendo conforme viveu, escravo das suas paixões, vítima do pecado e sujeito ao sofrimento. Tendo planejado fazer durante esta semana a narração da triste aventura desse miserável, concebera a princípio a ideia de oferecer como que dois quadros dos quais um representasse a sua vida tempestuosa, e outro o seu fatal desenlace; mas lembrando-me de que os pecadores, sempre inclinados ao que lhes pode evitar a conversão, no caso de eu dividir o meu discurso se convencessem de que poderiam facilmente destacar o que, por desfortuna, anda muito relacionado, e lembrando-me ainda de que a esperança falta de corrigirem na morte o que faltasse na vida, lhes prolongasse a impenitência por mais tempo, por isso me resolvi a fazer-lhes ver neste único discurso a maneira como insensivelmente se pode cair duma vida licenciosa para uma morte desesperada. E assim, contemplando esses pecadores com os mesmos olhos tudo o que fazem e o que obtém o sítio onde estão e onde se debatem, podem desviar-se do caminho por que enveredaram, com receio de caírem no abismo onde esse caminho conduz. Antes, porém, ó divino Espírito, tornai eficaz este meu discurso, porque sem vós todos os meus pensamentos deixam de ser enérgicos, todas as minhas palavras deixam de ter ação, e, para alcançar o que desejo, bom é que implore a intercessão da Virgem Santíssima, rezando-lhe fervorosamente uma Ave-Maria. Acreditar que entre a vida e a morte haja uma disparidade tão grande como no-la representam os pintores e os poetas nas suas enfatuadas descrições, é coisa em que não devemos confiar demais e que nem nos deve surpreender. É necessário pintá-las com as mesmas tintas, descrevê-las com os mesmos traços. Por isso os homens se enganam quando, achando penosa a conversão durante a vida, imaginam que a morte há de aplanar tais dificuldades e que lhes será mais fácil essa conversão, quando a natureza atingir a sua evolução última e irremediável. Deveriam antes compreender que a morte não tem um ser distinto que a separe da vida, porque é propriamente uma vida que chega ao seu termo. Ora, quem é que ignora, cristãos, que no final da peça, aparecem em cena os mesmos personagens que anteriormente apareceram, do mesmo modo que procedem sempre da mesma origem as águas duma torrente, quando se reúnem? É, pois, este jogo, esta relação, que é necessário hoje compreendermos; e, para mais distintamente se perceber a maneira como acaba na morte o que se passa durante a vida, esbocemos aqui rapidamente a vida dum homem mundano. O homem mundano dedica todos os seus cuidados aos prazeres e aos negócios da vida. Pelo apego dos prazeres, não pertence a Deus; e pela ânsia dos negócios, não pertence a si mesmo. Estas duas coisas juntas tornam-no indiferente pelos males alheios. Assim o nosso mau rico, homem material e folgazão, e, se quiserdes, intendente em negócios e intriguista, fascinado pelos prazeres e atarefado pelos muitos serviços, nunca, ao passar, parava à porta do pobre Lazaro, para o ver morto de fome e cercado de miséria. É esta a vida dum homem mundano. E quem sabe se todos os que me escutam poderão entrar em breve nalguma parte da parábola. Mas vejamos o fim desta aventura. A morte que lentamente avançava, chega sem ser esperada, inopinadamente. Esse mundano insaciável, indiferente e impiedoso, sabe que chegou enfim a sua última hora; e então, acorda sobressaltado, como quem desperta duma modorra profunda, e começa a arrepender-se de se ter afeiçoado tanto ao mundo, que é obrigado a deixar finalmente. Deseja quebrar logo os laços que a ele o prendiam, mas conhece, se é que alguma coisa conhece, que é impossível, pelo menos de repente, fazer um rompimento tão brusco. Lavado em lágrimas, pede tempo para completar tão grande obra, mas vê que todo o tempo lhe foge. Ah! Numa ocasião tão urgente, em que todas as graças são poucas, implora ele um fervoroso auxílio; mas como ele próprio nunca teve dó de ninguém, por isso fica surdo tudo que o rodeia no dia do seu martírio. E assim, em virtude dos prazeres e das ocupações que se entregou com grande zelo, em virtude da dureza de coração que o caracteriza, chega esse infeliz, em primeiro lugar, ao maior desamparo sem um único socorro; em segundo lugar, ao mais penoso trabalho sem descanso; e finalmente a mais extrema miséria sem um auxílio. Ó Senhor Deus onipotente, tornai eficazes as minhas palavras, a fim de gravar nos corações dos que me ouvem tão importantes verdades! Comecemos por dissertar sobre o apego ao mundo. PRIMEIRO PONTO A opulência, a ventura, a vida indolente e cheia de voluptuosidades, comparam-se muitas vezes na Sagrada Escritura a rios impetuosos, que correm sem parar, e se despenham sem poderem sustentar o seu próprio peso. Mas se a felicidade mundana se compara a um rio na sua inconstância, assemelha-se-lhe também na força, porque, ao despenhar-se, impele-nos, e quando deriva, arrasta-nos: Attendis quia labitur, cave quia trahit, diz Santo Agostinho. Vou hoje, meus senhores, figurar-vos esse poderoso ímã, e mostrar-vos claramente os laços ocultos em que o vosso coração está preso. Mas, para compreenderdes todos os graus dessa deplorável servidão em que nos lançam os bens terrenos, vede o que em nós produz o apego dum coração que os utiliza, e o apego dum coração que a eles se entrega. Oh! Que cadeias e que escravidão! Mas digamos as coisas por sua ordem. É um erro da parte, das almas simples e ignorantes, que não foram bafejadas pela sorte, suporem que a posse dos bens terrenos liberta melhor a alma. Imaginam, por exemplo, que a avareza deixaria logo de existir, e que ninguém seria já afeiçoado as riquezas, se ao menos tivesse o necessário para viver. Ah! Dizemos nós, então é que o coração, escravizado pela necessidade, tomaria completa liberdade, passando a um estado tranquilo e feliz. Confessemos a verdade perante Deus. Todos os dias afagamos este pensamento, mas certamente nos iludimos, porque é deveras crasso o nosso erro. Realmente, é uma loucura imaginar que as riquezas curam a avareza, como se fossem uma água que pudesse saciar a sede duma vez. Nós sabemos, por experiência, que o rico, que tudo possui em abundância, não se irrita menos com os prejuízos que sofre do que o pobre a quem tudo falta. Ora isto não é de admirar, porque devemos compreender que não é só em relação a tudo quanto possuímos que dedicamos um afeto geral; também dedicamos um afeto particular a cada parcela da nossa riqueza, o que nos prova que a alma não deixa por isso de lhe ter menos apego, e que não é o prejuízo menos sensível na abundância do que na miséria. É como os cabelos, que produzem sempre a mesma dor, quer se arranquem duma cabeça calva, quer duma formosa cabeça toda coberta deles. A dor é sempre a mesma, porque cada cabelo, com a sua raiz, é sempre arrancado com a mesma violência. Ora, estando cada pequena parcela do bem que possuímos presa no fundo do coração pela sua raiz particular, claramente se conclui que a riqueza não é menos escravizada do que a indigência; pejo contrário, vive mais cativa, mais encarcerada, tem mais laços que a prendem, e um peso maior que a oprime. E assim, se afeiçoa o homem mundano, com imenso amor, a sua própria riqueza. Mas na sua abundância, como em tudo, ficaria pobre, se não soubesse servir-se da felicidade com que nasceu. Vejamos, portanto, o que ele faz; mas para procedermos sempre com método, ponhamos de parte os que se dedicam a dominar pelos excessos, e consideremos por um momento os outros, que se julgam moderados, quando afinal se entregam de todo as coisas lícitas. O mau rico da parábola deve fazer tremer esses até as entranhas. Quem não tem ouvido dizer sempre que o Filho de Deus não fala dos adultérios, dos latrocínios, nem das violências do mau rico? A sua vida folgada e licenciosa constitui só por si uma parte tão considerável do seu crime que pode dizer-se que é o único desmando que registra o nosso Evangelho. "É um homem, diz São Gregório, que se expôs a ser condenado pelas coisas lícitas, porque a elas se dedicou inteiramente, e porque delas fez um uso imoderado" Isto prova à saciedade, cristãos, que nem sempre o objeto proibido constitui crimes condenatórios, mas sim muitas vezes o apego que se tem a esse objeto: Divitem ultrix gehenna suscepit, non quia aliquid illicitum gessit, sed quia immoderato usa totum se licitis tradidit, Coisa estranha é esta, meu Deus, que até faz com que exclamemos com o Salvador: "Ah! Como é apertado o caminho que nos conduz á vida eterna!" (São Mateus 7, 14). Seremos, pois, tão infelizes que até no uso do que é lícito tenhamos de ver qualquer coisa que seja defeso? - Sem dúvida alguma, cristãos. Todo aquele que tem os olhos abertos para entender a força deste oráculo pronunciado pelo Filho de Deus: "Ninguém pode, servir a dois senhores" (São Mateus 6, 24) poderia facilmente compreender que seja qual for o bem a que o coração me incline, quer ele seja lícito, quer ilícito, deixa de pertencer a Deus, se a ele se dedicar inteiramente; do mesmo modo que pode haver inclinações condenáveis para coisas que, por sua natureza, sejam inocentes. Sendo assim, cristãos (e quem pode duvidar de que assim não seja após a confirmação da Verdade?) como me apavora a condição dos grandes e dos ricos do mundo! E como eu receio o mal que lhes possa acontecer pelos crimes graves e ocultos que estreitamente se confundem, e que apenas se acham dependentes dum secreto impulso do coração e dum afeto quase insensível! Mas nem todos compreendem estas palavras, e, portanto, passemos adiante, cristãos. Já que esta verdade é incompreensível para os mundanos, esforcemo-nos por lhes mostrar o estado deplorável a que chega a sua alma, devido a uma queda maior. Tendo os mundanos tão pouco cuidado em se moderar nas coisas que são permitidas, é impossível que depois se não lancem temerariamente atrás das que são manifestamente ilícitas, visto a organização do nosso espírito ser de maneira a não poder conter-se facilmente dentro dos limites marcados. Isto todos o sabem por experiência, e foi também por experiência que Jó o conheceu, quando disse: Pepigi faedus cum oculis meis: (Jó 31, 1) Eu fiz um pacto com meus olhos "de não pensar em nenhuma beleza mortal". Vede como ele regula a vista para deter o pensamento. Reprime olhares que poderiam ser inocentes, para deter pensamentos que aparentemente seriam criminosos. O que talvez não seja claramente proibido pela lei de Deus, considera-o, ele por meio dum contrato feito de propósito com os olhos. E porque? Porque sabe que, quem se entregou às coisas lícitas, sente todo o coração invadido por uma alegria mundana; e a alma, comprazendo-se em tudo o que lhe é permitido, começa, a irritar-se, se abusa do que lhe é lícito. Estranha condição a nossa! Vede agora, cristãos, se uma liberdade que caminha até as portas do vício não irá mais tarde até aos limites da licença, ultrapassando depois esses limites com um único passo, com certeza que, correndo vertiginosamente pelo vasto campo das coisas permitidas, não poderá passar um só momento, acontecendo-lhe necessariamente o que de si disse o grande São Paulino: "Eu vou além do meu dever, se não tiver o cuidado de me moderar dentro do que me é licito" - Quod non expediebat admisi, dum non tempero quod licebat. E depois, cristãos, se Deus não operar milagre, a licenciosidade dos afortunados não conhecerá limites. Prodiit quasi ex adipe iniquitas eorum: (Salmo 72, 7) "Na materialidade e na abundancia em que vivem, diz o Espírito Santo, criam um fundo de iniquidade que jamais se extingue" Daí provem os pecados dominantes que, não satisfeitos com serem tolerados ou mesmo perdoados, desejam também ser aplaudidos. E então há quem ostente o desprezo por todas as leis, insultando publicamente a honra do gênero humano. Ah! Se eu pudesse agora abrir-vos o coração dum Nabucodonosor ou dum Baltasar, ou de qualquer outro desses reis soberbos que se acham representados na História Sagrada, havíeis de ver apavorados o que pode, num coração que olvidou a Deus, o horrível pensamento de não termos coisa alguma que nos constranja. Havíeis de ver então como a cobiça vai todos os dias aumentando e sobrelevando-se a si mesmo; como se originam vícios desconhecidos, monstros de avareza, requintes de voluptuosidade e extremos de orgulho inqualificáveis. Mas o que é mais para admirar é que no meio de todos estes excessos, há muitas vezes quem, vivendo uma licença desmedida, cuide ser virtuoso porque enumera, dentre as virtudes que possui, todos os vícios de que quer ficar isento; e assim julga beneficiar a Deus e a justiça divina o não a irritar completamente. A impunidade torna o homem temerário; faz com que Ele não pense no juízo final, nem sequer na morte, até que um dia ela virá inesperadamente por termo à série de crimes, para dar começo à dos suplícios. É verdadeiramente extravagante imaginar que, sem a intervenção dum milagre, se possam num dado momento quebrar laços tão fortes, alterar inclinações tão inveteradas, destruir, enfim, com um só golpe todo o trabalho de muitos anos. E certo que, enquanto a enfermidade evita temporariamente os mais violentos assaltos da cobiça, é fácil a qualquer pessoa armar num fingido penitente, pelo receio que lhe possa causar a mesma enfermidade. O coração tem impulsos artificiosos que nascem e desaparecem muito de repente; mas os seus verdadeiros impulsos não é assim que se produzem. O espírito dum homem que se regenera não adquire um depuramento instantâneo, nem as suas afecções viciosas, tão intimamente inveteradas, desaparecem por meio dum único esforço. A própria morte não tem poder nem graça extraordinária para operar de repente uma transformação tão milagrosa. Talvez imagineis que a morte tudo nos rouba, e que, por esse motivo, nós resolvemos facilmente a privar-nos do que temos de perder. Desenganai-vos, cristãos; devemos antes recear um efeito contrário, porque é próprio do coração humano forcejar heroicamente por conservar o bem que pretendem tirar-lhe. Vede esse rei de Amalec, terno e voluptuoso, que, sentindo a morte próxima, clama, banhado em lágrimas: Siccine separat amara mors? "Então é assim que a morte cruel arrebata as coisas?" Naquele momento pensava ele na glória e nos prazeres; e, em presença da morte, que lhe rouba tudo o que ele possuí, todas as suas paixões abaladas se irritam e despertam violentamente. Deste modo, a privação brusca do objeto possuído aumenta, não só mais tenebrosamente o amor por esse objeto, mas também mais entranhada, mais intimamente. E o pesar amargo que se sente de ser privado de tudo, se pudesse explicar-se, em vez de refutar, confirmaria, por meio dum ato final, tudo o que se passou durante a vida. É isto, meus senhores, que faz com que eu receie que as belas conversões dos moribundos não passem de palavras, ou de exterioridades, ou de pensamentos excitados, e não fiquem indelevelmente gravadas na consciência. - Mas, poderão alegar-me, esses moribundos fazem atos maravilhosos de abnegação - Sim, mas podem ser violentados: podem ser inspirados pelo próprio amor que tenham aquilo que possuem. - Mas é que eles detestam todos os seus pecados, poderão retorquir-me. - É certo, mas porque talvez sejam condenados a retratar-se antes de sofrerem o último suplício. - Mas porque fazeis tão maus juízos? Poderão volver-me ainda. - Porque, havendo começado tarde demais a obra da sua completa abnegação, faltou-lhes o tempo para concluírem tão grande tarefa. SEGUNDO PONTO Todos os dias ouço dizer aos homens mundanos que não tem um momento de descanso, que todas as horas passam rapidamente, que todos os dias acabam muito depressa; e neste movimento eterno, a grande obra da salvação, que é sempre a que fica de reserva, só é lembrada inteiramente a hora da morte, com tudo o que ela tem de mais espinhoso. Duas causas vejo eu que evitam a realização dessa obra: a primeira, é a nossa ambição, a segunda, os nossos cuidados. A ambição estimula-nos e preocupa-nos até ao último dia; os cuidados, porém, isto é, a impaciência, motivada por um temperamento enérgico e turbulento, lança-se numa tal sede de ocupações que a morte, quando chega, ainda nos acha entregues a uma infinidade de coisas supérfluas. É baseado nestes princípios, ó homens mundanos, que eu vou dizer-vos qual será o vosso destino. Seja qual for a missão que desempenheis, ou a posição que vos garantam, nunca deixareis de ser ambiciosos. Quando, chegados ao fim da vossa carreira, imaginais que não tereis de percorrer mais nenhuma; outra carreira se vos abre inopinadamente, e maior é o vosso desejo de a encetar. A razão é esta: é que o vosso temperamento subsiste o mesmo, e a facilidade na conquista vai sempre aumentando. O que custa é começar; mas à medida que ides avançando, mais fácil se vos torna esse avanço. E se, corrêsseis com tanta rapidez, quando tivésseis de galgar precipícios, é fora de dúvida que não suspenderíeis repentinamente a vossa marcha, se désseis com um sítio plano. Deste modo, todos os dons da sorte serão para vós um estimulo para vos acrisolardes de todo a uma ambição infinita. Ainda mais: Quando deixar de haver quem vos dê, não deixareis vós de pedir. O mundo, pobre em efeitos, é sempre grandioso em promessas. Semelhante a um manancial de bens, que depressa se esgota, também ele ficaria completamente estéril, se não soubesse distribuir esperanças. Há lá pessoa que mais facilmente alcance do que aquela que espera, porque a si própria ajuda a iludir-se? O dia menor dissipa-lhe todas as trevas e consola-a de todos os enfados. E ainda mesmo que não lhe restasse uma única esperança, bastaria o longo hábito de esperar sempre, hábito adquirido na corte, para sempre se viver na expectativa e se conservar o título de pretendente, sem o qual pareceria impossível viver. E assim vamos arrastando continuamente essa longa cadeia de esperanças, e com essas esperanças, uma vida cheia de espinhos, e por entre essa vida espinhosa, quantos pecados! Quantas injustiças! Quantas ilusões! E quantas iniquidades a mistura! Vae, qui trahitis iniquitatem in funiculis vanitatis! "Ai de vós, diz o profeta, que arrastais tantas iniquidades pelas cordas da vaidade!" (Isaías 5, 18). Significa isto, a meu ver, que praticais muitas coisas, iníquas no mar infinito das vossas esperanças falazes. Que direi agora, senhores, desse temperamento irrequieto, amigo de saber novidades, inimigo do ócio, e impaciente com as horas do repouso? Porque é que ele nos agita constantemente, fatigando-nos e estimulando-nos em tudo com um afã incessante? Responde-nos a isto uma máxima muito verdadeira, mas mal aplicada: diz-nos a própria natureza que a vida consiste no movimento. Mas os mundanos, sempre dissolutos, não conhecem a eficácia desse movimento sereno e interior que é o objeto da alma. Parece-lhes a eles que se não desenvolvem, se se não agitarem, nem se movem, se não fizerem barulho; e então, imprimem à vida esse movimento acelerado e tumultuoso, e entregam-se a um comercio eterno de intrigas e de visitas cerimoniosas, que lhes não deixa um só momento livre. Às vezes, sentem-se incomodados com essa vida afanosa, e queixam-se dela; mas não os acrediteis cristãos, que eles dizem isso por zombaria, não sabem o que querem. Aquele que se queixa de trabalhar muito, não poderia suportar o repouso, se se visse livre desse trabalho. Trabalhando, parecem-lhe os dias excessivamente curtos; não trabalhando, serve-lhe o ócio de fardo penoso. Vive sujeito a outro? Mas essa sujeição apraz-lhe; e esse movimento perpétuo, que quase o escraviza, não deixa de o satisfazer, com a ideia numa liberdade vaga. É como uma árvore, diz Santo Agostinho, que o vento parece afagar, brincando com as folhas e com os ramos, e embora esse vento a afague, agitando-a apenas e inclinando-a ora para um, ora para outro lado, inconstantemente, diríeis contudo que a árvore se regozija com a liberdade do seu movimento. Do mesmo modo, diz o eminente bispo, embora os homens mundanos não tenham verdadeira liberdade, vendo-se quase sempre obrigados a cederem ao vento que os impele, imaginam, contudo, gozar duma certa aparência de liberdade e de paz, espalhando por todos os lados os seus desejos vagos e, indecisos: Tanquam olivae pendentes in arbore, ducentibus ventis, quasi quadam libertate aurae perfrunntur vago quodam desiderio suo. É este, parece-me, meus senhores, um verdadeiro traslado da vida mundana e da vida da corte. Que fazeis, porém, ó intendente em porque vos convencestes de que estais perigosamente doente. Mas o pior é que o tempo não chega para liquidar um negócio tão intrincado como é o da vossa vida, de que tendes de dar estreita conta! Eu não vou agora aqui falar da vossa família que vos suaviza as amarguras, nem da vossa doença que vos molesta, nem do receio que vos apavora, nem das sombras que vos entenebrecem, nem das dores que vos oprimem; apenas considero a urgência que tendes em vos salvardes. Atendei à maneira como vos batem à porta. Se a não abris depressa, não tardará que vo-la arrombem. Para que servem tantas sentenças e tantos adiamentos, se tendes de comparecer no tribunal da justiça divina? Escutai a solicitude com que Deus vós fala pela boca do seu profeta: "Chegou o fim da tua vida; a morte vai agora arrebatar-te, e a minha cólera cairá sobre ti, eu hei de julgar-te segundo as tuas ações, e tu saberás finalmente que eu sou o Senhor, teu Deus" Que ataque tão formidando, Deus de Justiça! Mas eis que surge novo assalto: "Chegou o fim da tua vida. A justiça, que tu julgavas dormindo, acordou para te fulminar; já bate á tua porta" Ecce Venit "O dia da vingança aproxima-se" Todos os terrores te pareciam vãos, e todas as ameaças ineficazes; e "agora, diz o Senhor, a maldição vai cair sobre ti, sobre a tua cabeça farei pesar todos os teus crimes, e tu saberás que sou eu o Deus de Justiça" - Venit tempus prope et dies occisionis... Nunc de propinquo effundam iram meam super te..., et imponam tibi omnia scelera tua... Et scietis quia ego sum Dominus percutiens (Ezequiel 7, 7-9). São estas, meus senhores, as palavras com que Deus nos empraza a comparecer no seu tribunal. O dia, porém, em que devemos comparecer é este: Ecce dies, ecce venit: egressa est contritio (Ezequiel 7, 10). O anjo que preside a morte afasta-se dum instante para o outro, para tornar mais longo o tempo da penitência; mas finalmente desce uma ordem do céu, que diz: Fac conclusionem: (Ezequiel 7, 23) Acabai depressa, que está aberta; a audiência, e o Juiz está já sentado na sua tribuna. Vinde advogar a vossa causa, ó réu. Pouco tempo tendes, porém, para vos preparardes! E quantos inúteis clamores haveis de soltar! Quantos suspiros amargos haveis de despedir do vosso peito, passados tantos anos perdidos em vão! E tudo para quê? Para não vos restar, já uma única parcela de tempo, pois ides entrar na mansão dá eternidade. Eu vejo-vos assombrado e atônito, na presença do vosso Juiz, fitando com insistência os vossos acusadores. E quem são eles? São os pobres que vão revoltar-se contra a vossa crueza inexorável. TERCEIRO PONTO Meus senhores: O grande apóstolo São Paulo, na segunda Epístola a Timóteo, ao referir-se a todos os egoístas e mundanos, chama-lhes "homens cruéis, insensíveis e impiedosos" - Sine affectione, immites, sine benignitate, voluptatum amatores; (2 Timóteo 3, 3-4) e eu muitas vezes me tenho admirado duma tão extraordinária contextura. Efetivamente, esse cego apego aos prazeres parece a primeira vista um meio para recrear o espírito, e não uma coisa cruel e nociva; mas é fácil convencermo-nos de que nesse bem aparente existe uma força maligna e perniciosa. E Santo Agostinho serve-se desta comparação para no-lo explicar: Olhai para as sarças eriçadas de espinhos, diz ele, que causam horror a quem as vê; tem uma raiz que é macia e que não fere; mas é precisamente essa raiz que dá esses bicos aguçados, que fazem gotejar sangue das mãos de quem lhes tocar. Tal o amor pelos prazeres. Quando ouço falar os voluptuosos no livro da Sabedoria, todas as suas palavras são um verdadeiro encanto e uma verdadeira sedução; tudo para eles são flores, banquetes, danças, divertimentos. Coronemus nos rosis: (Sabedoria 2, 8) "Ponhamos nas nossas cabeças coroas de flores, antes que elas murchem, dizem eles" Depois convidam toda a gente a tomar parte na sua crápula e nos seus prazeres dissolutos: Nemo nostrum exors sit luxuriae nostrae (Sabedoria 2, 8) Tem então palavras muito ternas! Tomam um caráter prazenteiro comunicam a todos a sua alegria, colocando-os muito a vontade! Mas vede que, se deixardes crescer essa raiz, os espinhos não tardarão a rebentar, como se depreende destas palavras, proferidas por eles: "Oprimamos o justo e o pobre" - Opprimamus pauperem justam (Sabedoria 2, 10). Não perdoemos a viúva nem ao órfão. Que mudança foi esta, senhores? Quem esperaria duma tão agradável ternura uma crueldade tão desumana? É o espírito da voluptuosidade a manifestar-se da voluptuosidade que se compraz em oprimir o justo e o pobre. O justo, porque é seu inimigo; o pobre porque deve constituir a sua preza. Contrariam-na no seu caráter? Ela enfurece-se logo. Exauriu-se a si própria? Recorre imediatamente aos saques para de novo se prover. E assim se torna cruel e insuportável essa voluptuosidade que era tão sedutora, tão farta e tão indulgente. Dir-me-hei certamente, senhores, que mui longe estais de chegar a tal ponto; e eu creio bem que neste auditório e na presença dum rei tão justo, não poderiam existir semelhantes desumanidades. Mas sabei que o crime da crueldade não consiste unicamente na opressão dos fracos e dos inocentes. O mau rico prova-nos, que, além desse ardor furioso que pratica violências, há ainda a dureza que não dá ouvidos a queixas, não abre as mãos a um auxílio, nem o peito a compaixão. É essa dureza, senhores, que criai ladrões que não roubam, e assassinos que não matam. Todos os santos Padres são unanimes em afirmar que o rico do Evangelho, por ser cruel, despiu o pobre Lázaro, sem o ter vestido, e matou-o barbaramente, sem lhe ter dado de comer: Quia non pavisti, occidisti. E esta dureza homicida derivou da abundancia e da crápula. em que ele vivia. Deus de justiça e de bondade! Foi para isto que destes aos grandes da terra um raio do vosso poder? Não. Vós enobreceste-los para que eles servissem de amparo aos pobres; a Vossa providência desviou todos os males de cima da cabeça deles, para que eles cuidassem dos males do próximo; proporcionastes-lhes um bem-estar e o gozo da liberdade, para que eles completassem a obra da proteção dos Vossos filhos. Mas a magnificência que desfrutam torna-os, pelo contrário, indiferentes pelas misérias alheias; a abundância em que vivem torna-os cruéis; a felicidade de que gozam torna-os insensíveis, ainda mesmo que todos os dias lhes batesse à porta a personificação da pobreza e da miséria, lacrimosa e gemebunda. Isto, porém, nada me admira, cristãos. Outros pobres mais importunos e mais famintos conquistaram melhor terreno, fazendo desaparecer secretamente as liberalidades que alcançaram. Sejamos mais explícitos: Há uns pobres que vivera dentro de nós e que apesar de satisfeitos, não deixam nunca de murmurar, mostrando-se sempre ávidos, sempre famintos, no meio da profusão e do excesso. Esses pobres são as nossas paixões e os nossos desejos cúpidos. De que serve, o pobre Lázaro, estares a gemer a porta da tua casa, se esses pobres estão já às portas do coração, assediando-o, em vez de se aproximarem, extorquindo, em vez de pedirem? Que audácia, meu Deus! Imaginai, cristãos, uma população furiosa, numa revolta, pedindo arrogantemente, e muito resolvida a empregar meios de extorsão, se lhe negam o que ela pede. Assim na alma do mau rico. E não é preciso ir procurá-lo na parábola, porque muitos o encontrarão na sua consciência. Na alma do mau rico, como na dos seus cruéis imitadores, em que a razão deixou de imperar e as leis deixaram de ter vigor a ambição, a avareza, a languidez e todas as outras paixões, horda amotinadora e desenfreada, atroam os ares por toda a parte com este grito sedicioso: "Traze, traze" - Dicentes: Affer, affer (Provérbios 30, 15). Traze sempre alimento à avareza, traze uma sumptuosidade mais requintada a este luxo singular e escrupuloso; traze prazeres mais esquisitos a este apetite nauseado com a abundância. E por entre os gritos furiosos desses pobres imprudentes e insaciáveis, como podereis ouvir a voz débil dos outros pobres que tremem na vossa presença, e que, habituados a vencerem a pobreza com o trabalho e com o suor do seu rosto, preferem morrer de fome a descobrirem a sua miséria? Morrem de fome, sim, meus senhores; morrem de fome nas cidades, nas aldeias, a porta das vossas casas ou nas proximidades, e ninguém acode a socorrê-los, quando eles vos pedem unicamente o supérfluo, umas migalhas, que vos cresçam da mesa, uns sobejos dos vossos lautos manjares. É que esses pobres que vós extraordinariamente sustentais dentro de vós esgotam tudo o que possuis. A profusão é o de que eles necessitam. Não carecem apenas do supérfluo, querem também o excesso; e deste modo os pobres de Jesus Cristo ficarão sem uma esperança, se não aplacardes esse tumulto e essa sedição interior. E, contudo, eles poderiam viver, se lhes désseis qualquer coisa do que desperdiça a vossa prodigalidade, ou do que economiza a vossa avareza. Mas independentemente de todas essas paixões violentas, basta a felicidade só por si para endurecer o coração humano. O bem-estar, a alegria e a abundância invadem a alma de tal modo que desvanecem todo o sentimento da miséria alheia, e, se não houver cuidado, podem extinguir de todo a compaixão. Desta forma, serão amaldiçoadas todas as pessoas felizes, e é então que o espírito do mundo mais parece opor-se ao espírito do cristianismo. E que outra coisa é o espírito do cristianismo senão um espírito de fraternidade, um espírito de amor e de compaixão, que nos faz sentir os males dos nossos semelhantes, compartilhar dos seus interesses e de todas as suas necessidades? O espírito do mundo, pelo contrário, isto é, o espírito de grandeza, é um excesso de amor-próprio, que, não pensando nos outros, só cuida em si, parecendo-lhe que nada mais existe. Escutai como ele fala no profeta Isaías: "Tu disseste intimamente: Eu sou, e só eu existo na terra" - Dixisti in corde tuo: Ego sum, et praeter me non est altera (Isaías 47, 10). O Eu sou! Esta maneira de se exprimir dá a entender que se considera um Deus, parecendo até imitar aquele que disse: "Eu sou quem sou" (Êxodo 3, 14). Eu sou, e só Eu existo. De maneira que tudo o mais nada vale, que é o mesmo que dizer que nada mais existe. Cada um só conta consigo, e, sem se importar com o resto, procura viver desafogadamente, uma soberana tranquilidade do respeito dos flagelos que oprimem o gênero humano. Ah! Mas Deus é justo e equitativo, e vós haveis de ter também, ó rico impiedoso, dias de necessidade e de angústia. Não imagineis que eu vos ameace com a mudança da vossa sorte, porque isso é uma coisa contingente; mas o que é certo é que pode acontecer. Num dia aprazado haveis de ser vítima duma doença funesta e, apesar de vos encontrardes no meio de inumeráveis amigos, de médicos e de servos, não haveis de ter uma só pessoa que vos acuda, e ficareis mais desamparado, mais ao abandono do que um pobre que morreu nas palhas e que não tem um lençol onde se embrulhe para descer à sepultura. Nessa doença fatal que vos há de acometer, os amigos só servirão para vos incomodar com a sua presença; os médicos para vos atormentar; e os servos para andarem dentro de vossa casa dum lado para o outro, muito açodados, mas mostrando um zelo inútil. Do que vós precisais é doutros amigos e doutros servos; e os únicos que seriam capazes de vos acudir são esses pobres que esmagastes com o vosso desprezo. Porque não pensastes a tempo em granjeardes esse amigos, que agora vos receberiam de braços abertos no tabernáculo eterno? Ah! Se tivésseis aliviado a sua miséria, se vos tivésseis condoído do seu desespero, se tivésseis escutado ao menos, os seus queixumes, a vossa misericórdia subiria ao céu a pedir a Deus por vós, e esses pobres, em recompensado lenitivo que désseis a amargura que os assoberbava, entornariam sobre vós, mananciais de bênçãos que vos dariam a alma um prazer infinito. Abençoados seríeis por eles, se os vestísseis, se lhes mitigásseis as dores e lhes saciásseis a fome. Os anjos da sua guarda velariam a roda do vosso leito como amigos oficiosos; e os médicos espirituais conferenciariam noite e dia para acharem o melhor meio de vos curar com remédios eficazes. Mas vós agrediste-os com o desprezo; e o profeta Jeremias representa-os a lançarem sobre vós uma condenação impiedosa. Assisti agora a este grande espetáculo, senhores; os santos Anjos no quarto dum mau rico moribundo. Enquanto os médicos dão o seu parecer acerca do estado da sua doença, e a família, cheia de terror, aguarda o resultado da conferência, outros médicos invisíveis discutem sobre uma doença muito mais perigosa: Curavimus Babylonem, et non est sanata - "Esteve Babilônia em tratamento nas nossas mãos, e não se curou" (Jeremias 51, 9). Também andamos empenhados no tratamento do rico cruel, ministrando-lhe emolientes, e ungindo-lhe o coração com brandas fomentações, e ele não embrandeceu, e a sua dureza não se quebrantou! Tudo foi contra a nossa expectativa; o doente piorou com os nossos remédios. "Deixemo-lo consigo, dizem eles, voltemos para casa, donde viemos para acudir-lhe" - Derelinquamus eum, et eamus unusquisque in terram suam (Jeremias 51, 9). Não lhe vedes na fronte o estigma dum réprobo? A dureza do seu coração endureceu contra ele o coração de Deus. Os pobres denunciaram-no ao Tribunal divino, e o processo foi-lhe instaurado no céu. E embora, à hora da morte, ele seja liberal na distribuição dos bens que já não pôde guardar, o céu é insensível às suas súplicas e para ele (para ele; para a sua alma) não há misericórdia possível: Pervenit usque ad caelos judicium ejus (Jeremias 51, 9). Vede, cristãos, se quereis morrer num abandono assim. E se este estado vos causa horror, escutai os brados da miséria, a fim de evitardes os clamores de censura que os pobres possam expedir contra vós. Ah! O céu ainda não perdoou os nossos crimes. Deus, quando deu a paz ao Seu povo, parecia ter aplacado a Sua justa ira; mas os nossos pecados contínuos fizeram-na atear, e Ele, dando-nos a paz, declarou-nos ao mesmo tempo a guerra. Para punir a nossa ingratidão, enviou contra nós as doenças, a mortalidade, a miséria extrema, uma medonha intempérie, e não sei que coisa desordenada em toda a natureza, que parece ameaçar-nos com funestas consequências, se não conseguimos aplacar-lhe a divina cólera. Nas províncias mais longínquas, e até nesta cidade no meio de tantos prazeres e de tantos excessos, há muitíssimas famílias que morrem de fome e de desespero. Isto é uma verdade evidente, pública e indestrutível. Ó dias calamitosos! Que alegria podemos ter, se por toda a parte vemos tão grandes infortúnios, desgraças tão eminentes, parecendo censurar-nos a cada passo perante Deus e perante os homens, por aquilo que perdemos com os sentidos, com a curiosidade e com o luxo? E não se procure saber até onde chega a obrigação de socorrer os pobres, porque a fome e o desespero que os domina decidem a questão. A situação única em que devemos estar e em que temos de permanecer, e que, além disso, é unanimemente defendida por todos os teólogos, é que cada um socorra o próximo dentro dos limites das suas forças; porque, se o não fizer, será responsável pela sua morte, terá de dar contas a Deus pelo sangue que ele derramar pela alma que possa corromper, e por todos os excessos a que a violência da fome e do desespero o possam conduzir. Que imenso prazer será o nosso em podermos dar vida ao nosso semelhante! Que unção divina e espiritual não há de invadir os nossos corações por aliviarmos a miséria do próximo, por consolarmos Jesus Cristo, que sofre por eles, por darmos, enfim, refrigério ao seu ventre esfaimado, como o diz o santo Apóstolo! Viscera sanctorum requieverunt per te, frater. Ah! Que prazer tão santo que deve de ser esse! Que prazer verdadeiramente real! Senhor, Vossa Majestade é partidário deste prazer, porque dEle tem dado sobejas provas que hão de afirmas-se mais nitidamente noutras ocasiões. Aos vassalos compete ter esperança; aos reis cabe dar essa esperança, por meio de fatos. Eles não podem tudo o que querem? Darão, pelo menos, conta a Deus do que podem. É o que se me oferece dizer a Vossa Majestade. O mais que tenho para dizer fica para Deus; e é apenas pedir-lhe humildemente que proporcione a um tão grande rei os meios de satisfazer com a possível brevidade o amor que ele nutre pelos seus povos, obrar de harmonia com a sua consciência, trabalhar pela conquista da sua maior glória, e estabelecer o apoio mais indispensável a sua salvação eterna. Sermão da Providência Quarta-feira ou Sexta-feira da 2ª Semana da Quaresma Pregado no Louvre, com a assistência de Luiz 14 (no dia 8 ou 10 de março de 1662). SUMÁRIO Exordio. - Como as muralhas de Samaria apenas serviram para fortificar a cidade santa que os samaritanos odiavam, recaem no ímpio as objeções deste contra a Providência. Proposição e divisão. - 1º Um conselho eterno e imutável oculta-se em todos os acontecimentos que o tempo parece desdobrar com uma tão estranha incerteza; 2º a fé na Providência dá-nos luz suficiente para não nos admirarmos de coisa alguma, e força bastante para nada temermos. 1º Ponto. - Apesar da desordem que existe na humanidade, não pode ser o homem a única criatura em que se não fixa o olhar da Providência. O mundo é um quadro que deve ser convenientemente examinado, e os desígnios de Deus devem referir-se pela norma da eternidade. 2º Ponto. - Como Deus tem em pouco apreço os favores temporais, devem os grandes homens parecer-nos desvalorizados. E como a causa primeira, sob o patrocínio da qual nos mantemos, encerra numa mesma ordem as causas inferiores, não devemos nós, portanto, temer estas. Peroração. - Como no dia final nos é inútil a abundância em que tivermos vivido, se não santificarmos as nossas riquezas, sejamos em todo o tempo humildes e caritativos. Filii, recordare quia recepisti bona in vita tua, Lazarus similiter mala; nunc autem hic consolatur, tu vero cruciaris Filho lembra-te de que recebeste, bens em tua vida, e Lazaro apenas recebeu males; por isso ele agora é consolado, e tu atormentado (São Lucas 16, 25). Diz-nos a História Sagrada, que o rei de Samaria mandou um dia edificar uma praça forte, que era o terror constante de todas as praças do rei da Judéia; e que este príncipe, tendo reunido o seu povo, reagiu por tal forma contra o inimigo que não só lhe arruinou a fortaleza, mas também empregou os materiais que a compunham para construir dois soberbos castelos com que fortificou as suas fronteiras. Ora eu, meus senhores, aproveitando-me do exemplo dessa empresa militar, vou hoje procurar o meio de fazer uma coisa análoga ao que então se fez. Os libertinos firmaram o propósito de declarar guerra a Providência divina, e, os meios de combate mais enérgicos de que dispõem a distribuição dos bens e dos males, que parece injusta e irregular, sem distinção alguma entre os que são bons e os que são maus. Nesta anomalia é que os ímpios se entrincheiram como numa fortaleza inexpugnável, asseteando ambiciosamente a sabedoria que rege o mundo. Mas nós, que precisamos de combater os inimigos de Deus, devemos unir-nos todos e destruir as muralhas soberbas destes novos samaritanos. Não satisfeitos com lhes provar que essa desigual distribuição de bens e males terrenos em nada ofende a Providência, demonstremos, pelo contrário, que foi ela quem a estabeleceu. Provemos com a própria desordem que há uma ordem superior que tudo regula por uma lei imutável; e edifiquemos as fortalezas de Judá com todas as ruínas das de Samaria. Tal é o tema deste discurso, que eu mais completamente desenvolverei (depois de havermos implorado, etc. Ave-Maria). O teólogo oriental, São Gregório Nazianzeno, ao contemplar a beleza do mundo, em cuja estrutura Deus se afirmou tão sábio e tão magnificente, chama-lhe com muita elegância, na sua língua, o prazer e as delícias do seu Criador. Vira em Moisés que o divino Arquiteto, à medida que construía este grande edifício, lhe admirava todas as partes: Vidit Deus lucem quod esset bona - "Deus viu que a luz era sublime"; (Gênesis 1, 4) que, depois de o ter construído, o exaltara, porque o achara "perfeitamente belo": Et erantvalde bona; (Gênesis 1, 31) e finalmente, que ficara de todo extasiado dom o espetáculo maravilhoso da sua própria obra. Aqui não há semelhança possível entre Deus e os artistas mortais; porque estes, afadigando-se muito nas suas empresas e receando sempre os acontecimentos, anseiam por que a conclusão das suas obras os liberte do trabalho e lhes garanta todo o bom êxito possível. Mas Moisés, examinando as coisas dum plano mais elevado, e prevendo que um dia os homens ingratos pudessem negar a Providência que rege o mundo, mostra-nos logo no princípio o imenso prazer que Deus sentiu em fazer esta obra-prima por suas mãos, para que esse prazer fosse para nós um penhor inabalável do desejo que ele devia ter em a dirigir, e não fosse permitido nunca duvidar de que ele desejasse governar o que fizera com tanto amor e o que propriamente julgara tão digno da sua sabedoria. Deste modo, devemos compreender que este universo, é particularmente o gênero humano, é o reino de Deus, governado por Ele segundo leis imutáveis. E nós hoje vamos precisamente ocupar-nos do exame dos segredos dessa política celeste que rege toda a natureza, e que, encerrando na sua ordem a instabilidade das coisas humanas, não oferece menos irregularidades e menos conturbações do que a política terrena, cujos acontecimentos excepcionais e memoráveis decidem muitas vezes da sorte dos impérios. Grande e admirável assunto é este, digno da atenção da corte mais augusta do mundo! Atendei, ó mortais, e escutai a palavra de Deus que vos vai comunicar os segredos do Seu governo, do alto desta tribuna, tomando-me a mim como intérprete dos Seus sábios ensinamentos, depois de me haver iluminado o espírito com a luz dos Seus oráculos infalíveis. Pouco nos importa a nós, cristãos, conhecer a sabedoria que nos governa, se não nos soubermos domar a ordem dos seus conselhos. Se há arte para bem governar, também deve havê-la para bem obedecer. Deus comunica o Seu espírito de sabedoria aos príncipes, para saberem dirigir os povos, e dá aos povos inteligência para poderem ser dirigidos ordenadamente; isto é, além da ciência dominadora que ensina o príncipe a reger, há outra ciência subalterna que também ensina os vassalos a serem dignos instrumentos da direção superior. E é a relação destas duas ciências que mantem o corpo dum Estado pela correspondência do chefe com os seus membros. Para estabelecer esta relação no império de Deus, assentemos hoje aqui em dois princípios. O primeiro é que, seja qual for a confusão, a desordem, ou até a injustiça que possa haver nos negócios humanos, e embora tudo pareça arrebatado pelo cego devastamento da sorte, devemos firmar bem no nosso espírito a ideia de que tudo neles deriva com uma certa ordem, tudo se dirige por meio de normas, porque há uma vontade eterna e imutável que se oculta em todos os acontecimentos que o tempo parece ir desdobrando com uma tão estranha incerteza. O segundo principio é que consultemos o nosso íntimo, e depois de termos perfeitamente compreendido qual o poder que em nós atua e qual a sabedoria que nos governa, estudemos os sentimentos que nos tornam dignos duma direção tão superior. Por esta forma, descobriremos, de harmonia com a mediocridade do espírito humano, não só o jogo e os movimentos da política sublime que rege o mundo mas também o uso e a aplicação dessa política, que, por ser divina, merece constituir todo o objeto deste discurso. Primeiro Ponto Quando penso na disposição confusa, desarmoniosa e irregular, das coisas humanas comparo-a muitas vezes a certos quadros que geralmente se expõem nas bibliotecas, dos curiosos para armar ao efeito. A simples vista apenas notamos traços informes e um misto confuso de cores, que mais parece o tentâmen dum aprendiz ou o brinquedo duma criança, do que o trabalho duma mão experimentada. Mas depois de alguém, que conhece o segredo de tudo, vos mostrar o espetáculo debaixo dum outro aspecto, imediatamente todas as linhas irregulares se harmonizam dum certo modo toda a confusão se desfaz, e então vedes um rosto, com os seus lineamentos e proporções, onde a princípio não havia uma aparência cívica de vigor humano. Tal é, meus senhores, a imagem natural do mundo, da sua confusão aparente e do seu equilíbrio oculto, que nunca poderemos observar verdadeiramente senão mirando-o pelo lado que nos mostra a fé em Jesus Cristo. "Eu vi na terra uma desordem extraordinária, diz o Eclesiástico; vi que se não confia geralmente as carretagens aos mais expeditos, as transações aos mais ajuizados, e a guerra aos mais animosos; mas sim que é o acaso e a ocasião que por toda a parte dominam" - Nec velocium esse cursum, nec fortium bellum..., sed tempus casumquein omnibus (Eclesiastes 9, 2). Vi, continua o mesmo Eclesiástico, que "tudo acontece do mesmo modo, tanto ao homem que é bom como ao que é mau, tanto ao que se sacrifica como ao que blasfema" - Quod universa aeque eveniant justo et impio, immolanti victimas et sacrificia contemnenti... eadem cunctis eveniunt (Eclesiastes 2, 3) Quase todos os séculos lamentam ter visto triunfar a iniquidade e submeter-se a inocência; mas, como nem sempre assim sucede, algumas vezes se tem visto, pelo contrário, imperar a inocência e render-se a iniquidade. Que estranha confusão a deste quadro! Parece que as cores foram nele postas ao acaso, com o fim de, por assim dizer, manchar a tela ou o papel!. O libertino irrefletido diz firmemente que não existe ordem no mundo; e, como consequência desta afirmação, diz que "não há Deus", ou que, pelo menos, esse Deus confia a vida humana aos caprichos da sorte: Dixit insipiens (Salmo 52, 1). Mas espera, infeliz! Não alargues o teu raciocínio numa questão tão importante, porque talvez te convenças de que o que parece confusão é uma arte invisível. Se souberes analisar as coisas convenientemente, verás que desaparecerão todas as irregularidades, e que só haverá sabedoria onde imaginavas que havia desordem. Sim, não duvides, infeliz; este quadro tem um lado especial por onde deve ser admirado. O próprio Eclesiástico, que nos descobriu a confusão, há de também mostrar-nos o lado por onde havemos de contemplar a ordem do mundo. Diz ele: "Eu vi na terra a impiedade no lugar da razão, e a iniquidade no lugar que devia ocupar a justiça" - Vidi sub sole in loco judicii impietatem, et in loco justitiae iniquitatem. Quer ele dizer que viu a iniquidade no tribunal, ou até mesmo no trono, onde só a justiça devia dominar. Não podia ela ascender mais alto ou ocupar um lugar imerecido. Que poderia imaginar Salomão ao ver tão grande desequilíbrio? Que Deus abandonava as coisas humanas ao acaso, não cuidando de as governar com a razão Soberana? Pelo contrário. O que esse príncipe disse, ao ver tal subversão, foi isto: "Eu ponderei logo firmemente: Deus sentenciará o justo e o ímpio, e então tudo será julgado" - Et dixi in corde meo: Justum et impium judicabit Deus, et tempus omnis rei tunc erit (Eclesiastes 3, 17). É este, meus senhores, um raciocínio digno do mais sábio dos homens. Ele vê no gênero humano uma extrema confusão, e no resto do mundo uma ordem encantadora. Acha que é impossível que a nossa natureza, única que Deus fez à Sua semelhança, seja também a única que deva ser confiada ao acaso. E por isso, verdadeiramente convencido de que deve haver ordem entre os homens, e não a vendo ainda estabelecida, necessariamente conclui que o homem tem qualquer coisa a esperar; e é nisto que consiste, cristãos, todo o mistério da vontade divina, porque é este o grande preceito de Estado da política celeste. Deus quer que vivamos sempre na esperança perpétua da eternidade. Ao colocar-nos no mundo, estabeleceu-nos uma ordem admirável para mostrar que a Sua obra é dirigida com sabedoria; e expõe-nos de propósito uma desordem aparente para mostrar que ainda a não concluiu de todo. Para que é isto? Para que perpetuamente aguardemos o grande dia da eternidade, em que tudo se há de distinguir por meio duma decisão última e irrevogável, e em que Deus, separando novamente a luz das trevas - Et divisit lucem a tenebris (Gênesis 1, 4) colocará nos seus devidos lugares a justiça e a impiedade, por meio duma sentença final; "é então como diz Salomão, cada coisa será convenientemente julgada" - Et tempus omnis rei tunc erit. Abri, pois, os olhos, ó mortais! E vede que é Jesus Cristo que vos fala neste admirável discurso, que fez em São Mateus, capítulo 6, e em São Lucas, capítulo 12, e do qual eu vou apresentar uma paráfrase. Contemplai o céu e a terra, e a sábia economia do universo. Haverá coisa melhor delineada do que este edifício? Melhor organizada do que esta família? Ou mais bem dirigida do que este império? Esse poder supremo que construiu o mundo, e que nada fez que não fosse admirável, formou, pelo menos, umas criaturas melhores do que outras. Fez os corpos celestes imortais, e os terrestres perecíveis. Criou animais admiráveis pela sua grandeza; e criou os insetos e as aves que são quase desprezíveis pela sua pequenez. Fez essas árvores enormes das florestas que vivem séculos inteiros; e fez as flores dos campos que desbotam durante o dia. Nas suas criaturas há desigualdade, porque a mesma perfeição que caracterizou as mais nobres não a quis imprimir as inferiores; mas desde as maiores até as mais pequenas se revela sempre a Sua providência. Às avezinhas que a invocam logo pela manhã com a melodia dos seus gorjeios dá ela o alimento; às flores, cuja formosura desaparece tão depressa, veste-as ela tão soberbamente durante o curto período da sua existência, que Salomão, no meio de toda a sua glória, não tem nada que se compare, às galas que as enfeitam - Considerate lilia quomodo crescunt: non laborant, neque nent; dico autem vobis, nec Salomon in omni gloria sua vestiebatur sicut unum ex istis (São Lucas 12, 27). E vós, ó homens, a quem Deus fez a Sua imagem, a quem iluminou com a Sua sabedoria, e a quem chamou ao Seu reino, podeis imaginar que Ele vos esqueça, e que sejais vós as únicas criaturas em que se não fixa o olhar sempre vigilante da Sua providência paternal? Nonne vos magis pluris estis illis? (São Mateus 6, 23). Se alguma desigualdade notais, se achais que a recompensa é demasiado lenta na sua aproximação da virtude, e que o castigo não persegue o vício com grande tenacidade, pensai na eternidade do primeiro Ser. Lembrai-vos de que os Seus desígnios, concebidos no seio imenso dessa imutável eternidade, não dependem dos anos, nem dos séculos, que Ele vê decorrer como se fossem momentos; mas sim da duração completa do mundo que dá inteiro cumprimento às ordens duma tão profunda sabedoria. Nós, miseráveis mortais, é que desejaríamos, nos nossos dias efêmeros, ver realizadas todas as obras de Deus. Quiséramos que o infinito se encerrasse em estreitos limites, e que manifestasse em pouco tempo tudo o que a Sua misericórdia prepara para os bons e o que a Sua justiça destina para os maus, só porque os nossos desígnios não são ilimitados como são os da Providência. Attendis dies tuos paucos, et diebus tuis paucis vis impleri omnia, et damnentur omnes impii, et coronentur omnes boni. Que cegueira a nossa! Deixemos obrar o Eterno segundo as leis da Sua eternidade; e em vez de a reduzirmos às nossas proporções, precisemos antes penetrar na Sua amplitude: Jungere aeternitati Dei, et cum illo aeternus esto. Se entrarmos nessa bem-aventurada liberdade de espírito, se aferirmos a vontade divina pela norma da eternidade, contemplaremos pacificamente este misto confuso das coisas humanas. E certo que Deus ainda não fez distinção entre os bons e os maus; mas porque escolheu um dia designado em que o há de fazer a face de todo o universo, quando o número duns e doutros estiver completo. Foi isto que fez dizer a Tertuliano estas sublimes palavras: "Deus, diz ele, tendo guardado o juízo final para a consumação dos séculos, não antecipa a descriminação, que é uma condição indispensável, e, entretanto, mostra-se quase imparcial para com toda a natureza humana" - Qui enim semel aeternum judicuum destinavit post saeculi finem, non praecipitat discretionem. Não notastes esta expressão admirável: "Deus não antecipa a descriminação"? Antecipar as coisas é o apanágio da fraqueza, que se vê obrigada a apressar-se na execução dos seus planos, porque depende das ocasiões, e essas ocasiões são certos momentos que fogem muito rápidos, causando, por isso, uma necessária precipitação aos que se veem obrigados a aproveitá-los. Mas Deus, que é o árbitro de todos os tempos, que do centro da Sua eternidade faz dimanar toda a ordem dos séculos, que conhece a Sua onipotência e que sabe que nada pode escapar as Suas mãos soberanas, Deus não antecipa a realização dos Seus desígnios. Sabe que a sabedoria não consiste em fazer sempre, as coisas com prontidão, mas em as fazer no seu tempo devido. Deixa que, os loucos e os temerários censurem os seus planos, mas não acha conveniente antecipar a execução deles, para evitar murmurações da parte dos homens. Basta-lhe que os seus amigos e os seus servos esperem humilde e respeitosamente o dia da verdadeira justiça; quanto aos outros, sabe o destino que lhes há de dar, porque se acha, já designado o dia em que os há de punir: Quoniam prospicit quod veniet dies ejus (Salmo 36, 13). Mas afinal, direis vós, Deus faz muitas vezes bem aos que são maus, e oprime com grandes flagelos os que são justos; e ainda mesmo que tal desequilíbrio fosse momentâneo, não deixava por isso de ser um atentado contra a justiça. - Não, cristãos. É preciso compreendermos hoje a diferença entre bens e males; que são de duas espécies. Há bens e males simultâneos, que dependem do uso que deles fazemos. Por exemplo, a doença é um mal; mas, santificada pela paciência, é um grande bem! A saúde é um bem; mas, abalada pela devassidão, será um mal perigosíssimo! E aqui temos bens e males simultâneos, que participam da natureza do bem e do mal, e que respeitam a um ou a outro, segundo o fim a que se aplicam. Mas sabeis agora, cristãos, que há um Deus Onipotente, que tem nos tesouros da Sua bondade um bem soberano que nunca pode ser um mal, e que esse bem é a felicidade eterna; assim como tem nos tesouros da Sua justiça certos males extremos que nunca poderão traduzir-se em bens para os que os sofrem, e que esses males são os suplícios dos réprobos. A norma da Sua justiça não permite nunca que os maus gozem esse soberano bem, nem que os bons sejam supliciados com esses males extremos. Por isso fará um dia a descriminação. No que respeita, porém, a bens e males simultâneos, concedê-los-á indiferentemente a uns e a outros. O santo e divino salmista estabeleceu divinamente esta bela distinção entre bens e males: "Eu vi na mão de Deus, diz ele, uma taça que continha três líquidos: Calix in manu Domini vini merí plenus mixto. O primeiro era vinho simples: vini meri. O segundo era vinho misturado: plenus mixto. O terceiro, finalmente, eram fezes: Verumtanen faex ejus non est exinanita" (Salmo 74, 9). Que significa o vinho simples? A alegria da eternidade sem uma sombra de amargura. Que significam as fezes? O suplício dos réprobos sem uma clareira de felicidade. E que representa o vinho misturado? Os bens e males como nós os sentimos na vida presente, e que podem ser alterados pelo uso. Ó distinção maravilhosa de bens e de males tão sublimemente estabelecida pelo Profeta! Ó sábia distribuição, feita pela Providência, dos bens que divinizam e dos males que infelicitam! Estamos chegados aos tempos da confusão, aos tempos da recompensa, em que é preciso preparar os bons para a merecerem, e suportar os pecadores para a alcançarem. Chovam simultaneamente nesta confusão os bens e os males tão proveitosos para os ajuizados e tão mal aplicados pelos insensatos; mas acabem duma vez tão calamitosos tempos. Vinde, espíritos inocentes, vinde beber o vinho puro de Deus, que é a sua felicidade extreme. E vós, ó corações endurecidos, ó maus eternamente separados dos justos; a felicidade para vós deixou de existir; os folguedos, os banquetes, as diversões, tudo acabou. Vinde beber toda a amargura da vingança divina: Bibent omnes peccatores terrae (Salmo 74, 9). É esta meus senhores, a descriminação que resolverá tudo por uma última e irrevogável sentença. "Quão grandiosas que são as vossas obras! Quão justos e flagrantes de verdade são os vossos desígnios, ó Senhor Deus onipotente! Quem vos não louva e vos não bendiz, ó Rei dos séculos?" - Magna et mirabilia sunt opera tua, Domine Deus omnipotens: justae et verae sunt viae tuae, Rex seculorum. Quis non timebit te, Domine, et magnificabit nomen tuum? (Apocalipse 15, 3-4) Quem não admira a vossa providência e não teme os vossos juízos? Ah! É preciso que "o homem insensato não compreenda estas coisas e o louco as não conheça" - Vir insipiens non cognoscet, et stultus non inteliget haec (Salmo 19, 6) "Só olham para aquilo que veem, mas iludem-se" - Haec cogitaverunt, et erraverunt (Sabedoria 2, 21). Quisestes, ó grande Arquiteto, que a beleza do vosso edifício só fosse admirada depois dele concluído; e o vosso Profeta vaticinou que "só no dia final seria conhecido o mistério da vossa vontade" - In, novissimis diebus intelligetis concilium ejus (Jeremias 23, 20). Mas, senhores meus, para esse dia será tarde demais penetrarmos no conhecimento tão necessário desse mistério. Antecipemos a hora designada. Assistamos em espírito ao dia de juízo, e do limiar desse tribunal, perante o qual havemos de comparecer, contemplemos as coisas humanas. No temor, no assombro, no silêncio universal de toda a natureza, com que irrisão hão de ser ouvidas as ponderações dos ímpios, que se firmavam no crime, porque viam outros crimes impunes! Eles próprios, pelo contrário, hão de admirar-se de não terem visto que essa pública impunidade era um aviso eloquente do extremo rigor que contra eles se devia praticar no dia de juízo. E eu mesmo confirmo que Deus em todos os séculos dá provas da Sua vingança. Os castigos exemplares que Ele exerce em alguns não me parecem tão terríveis como a impunidade de todos os outros. Se Ele agora punisse todos os criminosos, eu daria toda a Sua justiça por acabada, e não viveria na esperança duma descriminação mais rigorosa. Neste momento, porém, a Sua própria bondade e a Sua paciência não me permitem duvidar da possibilidade duma oscilação, porque ainda as coisas não estão no seu devido lugar. Lazaro sofre ainda, embora inocente; e mau rico, embora criminoso, continua gozando dum certo bem-estar. Deste modo, nem o sofrimento, nem repouso estão ainda no lugar onde devem estar verdadeiramente. O que se dá é uma violência que não pode durar sempre. Não vos fieis nesta irregularidade, ó homens mundanos, pois é preciso que as coisas mudem. Ouvi e admirai: "Meu filho, se é certo haveres recebido bens em tua vida, também é certo que Lazaro recebeu males" Ora este desequilíbrio seria admissível nos tempos da confusão, em que Deus preparava uma obra mais grandiosa; mas sob os auspícios dum Deus tão bom como justo, é, insustentável tal confusão. Agora que haveis chegado ambos ao lugar da vossa eternidade, nunc autem, nova disposição vai ser iniciada. São palavras de Abraão. Cada coisa terá o seu lugar, contínua ele. O castigo não se separará mais do criminoso a quem compete, nem a consolação será negada ao justo que a soube esperar: Nunc autem hic consolatur, tu vero cruciaris. É esta, meus senhores, a vontade de Deus, fielmente exposta pela sua Escritura. Vejamos agora em poucas palavras qual o uso que dela havemos de fazer, e terei concluído o meu discurso. Segundo Ponto Todo aquele que está convencido de que uma sabedoria divina o governa e uma vontade inquebrantável o conduz a um fim eterno, só lhe parece grande e terrível o que se relaciona com a eternidade. Por isso, os dois sentimentos inspirados pela fé da Providência consistem, o primeiro em não admirar coisa alguma, o segundo em nada recear do que se termina com a vida presente. A razão por que nada para Ele é objeto de admiração é a seguinte: A sábia e eterna Providência que fez, conforme dissemos, duas espécies de bens, que distribui na vida presente bens impuros, e que reserva os bens puríssimos para a vida futura, estabeleceu que todo o que se tivesse comprazido nos bens medíocres não compartilharia dos bens supremos. E Santo Agostinho diz-nos que Deus quer que saibamos distinguir os bens espalhados na vida presente e que servem de consolação aos cativos, dos bens reservados para a vida futura e que farão a felicidade de seus filhos: Aliud solatium captivorum, aliud gaudium liberorum. A sábia e verdadeira liberalidade exige que se saiba distinguir os seus dons; ou, para falar mais a rigor, quer Deus que saibamos distinguir os bens verdadeiramente desprezíveis, que tantas vezes concede aos seus inimigos, dos que Ele preciosamente guarda para só os destinar aos seus servos: Haec omnia tribuit etiam malis, ne magni pendantur a bonis, diz Santo Agostinho. É realmente, cristãos, quando, remontando aos fatos passados, vejo tantas vezes as galas mundanas entre as mãos dos ímpios; quando vejo os filhos de Abraão, e o único povo que adora a Deus, e que vive desterrado na Palestina, num pequeno canto da Ásia, cercado das soberbas monarquias dos orientais infiéis, e, para me referir mais propriamente a nós, quando vejo esse inimigo, que usa um nome cristão, sustentar com tantos exércitos as blasfêmias de Maomé contra o Evangelho, derrubar com o seu crescente a cruz de Jesus Cristo, Salvador nosso, diminuir todos os dias a cristandade com armas tão fortunosas; e além disso quando considero que, embora adversário de Cristo, este sábio distribuidor de coroas o vê, do ponto mais culminante dos céus, sentado no trono do grande Constantino, e não receia confiar-lhe um tão grande império, como se fora uma dádiva de pequena importância; quando tudo isto vejo, compreendo facilmente o pouco apreço em que ele tem semelhantes graças e todos os bens que concede na vida presente! E tu, ó vaidade e grandeza humana, triunfo dum dia, nulidade soberba, como me pareces insignificante a minha vista, quando por este lado te considero! Imaginareis que talvez me esqueça do lugar onde estou falando, quando chamo aos impérios e as monarquias uma dádiva de pequena importância. Não, senhores, não me esqueço; não ignoro quão magnânimo e augusto é o monarca que nos honra com a sua audiência, e quão beneficente é Deus, pela Sua parte, em confiar à Sua direção uma tão grande e tão nobre parte do gênero humano, para a proteger como Seu poder. Mas também sei, cristãos, que, embora os soberanos religiosos não vejam, na ordem das coisas humanas, coisa superior ao seu cetro, nem coisa mais sagrada do que a sua pessoa, nem mais inviolável do que a sua majestade, devem contudo sacrificar o reino que por si só governam ao valor dum outro reino, em que não é desdouro a igualdade, e em que será grato, aos reis cristãos, associarem-se com os seus vassalos, a que a graça de Jesus Cristo e a visão beatífica os terá feito seus dignos companheiros: Plus amant illud regnum in quo non timent habere consortes. Deste modo, a fé da Providência, apresentando sempre aos filhos de Deus a decisão final, priva-os de admirar tudo o mais; mas ainda produz um efeito maior, que é libertá-los do receio. E que receariam eles, cristãos, se nada os indigna, nada os ofende, e nada lhes repugna? Há uma diferença notável entre as causas particulares e a causa universal do mundo. Aquelas colidem umas com as outras. Assim, o frio combate o calor, e o calor ataca o frio. Mas a causa primeira e universal, que encerra ordenadamente as partes e o todo, não tem coisa alguma que brigue com ela; porque, se as partes colidem entre si, harmonizam-se com o todo, cuja unidade formam pela sua discordância. Este raciocínio, cristãos, levaria muito tempo a desenvolver; não obstante, como desejo aplicá-lo ao nosso caso, vou tentar fazê-lo, embora resumidamente. Todo aquele que tem particulares intentos, ou se prende a causas particulares; mais claramente: todo o que deseja obter um benefício dum príncipe, ou pretende fazer fortuna por meios ilícitos, dá com outros pretendentes que o contrariam, ou com obstáculos imprevistos que lhe transtornam os planos, e, tal como uma mola que, não funcionando a tempo, faz parar a máquina, assim a intriga deixa de produzir o seu efeito, e todas as esperanças ficam perdidas. Mas aquele que imutavelmente recorre ao todo e não às partes, aos meios fáceis, como são o poderio, a proteção e a intriga, o que recorre a causa primeira e fundamental, a Deus, à Sua vontade e a Sua providência, nada encontra que se Lhe oponha ou que altere os Seus planos; pelo contrário, tudo concorre e tudo coopera para a execução deles, porque, como diz o santo Apóstolo, tudo contribui também para o efeito da sua salvação, que é a sua grande obra, e em que se acham consubstanciados todos os seus pensamentos: Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum (Romanos 8, 28). Aplicando-se desta maneira à Providência, que é tão vasta, tão ampla, que encerra em seus desígnios todas as causas e todos os efeitos, amplia-se e dilata-se ele a si próprio, e ensina a aplicar-se a tudo o que é lícito. Se Deus lhe dá prosperidades, recebe-as do céu com submissão, e rende culto a misericórdia que o beneficia, espalhando-a pelos miseráveis que tanto carecem dela. Se é vitima da adversidade, sabe que "a provação produz a esperança" - Tribulatio patientiam operatur, patientia autem probationem, probatio vero spem (Romanos 5 3-5) que a guerra é a origem da paz, e que, se a sua virtude combate, será um dia gloriosamente coroada. Nunca desespera, porque nunca, vive sem remédio. Parece-lhe sempre ouvir ao Salvador estas sublimes palavras, que se lhe gravam no fundo do coração: "Não temais, ó pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos um reino" - Nolite timere, pusillus grex, quia complacuit Patri vestro dare vobis regnum (São Lucas 12, 32). Deste modo, sejam quais forem os extremos de miséria a que possam chegar, o homem justo nunca ouvira da sua boca palavras infiéis que traduzam a perda completada sua felicidade. Nunca poderá maldizer da sua sorte, visto que ainda tem um reino imenso, que é o reino de Deus. Que força o poderá, pois, esmagar, se ele acalenta sempre uma tão bela esperança? Eis o que se opera agora no seu espírito, à vista dos acontecimentos que se dão com as outras pessoas. De tudo ele colhe sentimentos novos. Tudo o confunde e o edifica; tudo o assombra e o alenta; tudo o faz ponderar maduramente; tanto as derrocadas mortais, como as ações justas e rigorosas, tanto o abatimento duns, como a perseverança doutros, tanto os exemplos de fraqueza, como os exemplos de força, tanto a paciência de Deus, como a sua justiça exemplar. Se ele lança o anátema sobre os criminosos, lava logo as mãos no sangue deles, diz Santo Agostinho; isto é, purifica-se com receio de sofrer igual suplício. Se eles prosperam visivelmente, e a sua felicidade parece fazer morrer na terra a esperança do homem de bem, este ergue os olhos para Deus, e ouve com grande fé como que uma voz celeste, dizendo aos maus afortunados, que desprezam o justo oprimido: Ó erva terrestre! Erva rasteira! Atreves-te a comparar-te à árvore de fruto, durante o rigor do inverno, só porque ela perdeu o viço e tu conservas o teu na invernosa estação? Lá virá o tempo do estio, o ardor do juízo final, que te há de secar até à raiz e fará germinar os frutos imortais das árvores cultivadas pela paciência. São estes os pensamentos sagrados que a fé da Providência inspira. Meditemos sobre tudo isto, cristãos, que bem merece ser meditado. Não confiemos na sorte nem nas suas galas enganadoras, porque este estado há de apresentar as suas vicissitudes, e toda esta ordem que nos admira há de ser destruída. De que servirá termos vivido independentes, no meio dos prazeres, da abundância, se afinal Abraão nos disse: Meu filho, é certo que recebeste bens em tua vida, mas agora as coisas vão mudar. Quer isto dizer que a grandeza e o poderio acabaram duma vez, e não deixaram nenhum vestígio? Não; grandes vestígios vejo eu ainda e bem sensíveis. Prova-o o Espírito Santo, esse oráculo da sabedoria, que diz: "Os poderosos serão poderosamente atormentados" - Potentes potenter tormenta patientur (Sabedoria 6, 7). Quer isto dizer que, se se não acautelarem, serão os primeiros a receber o castigo eterno, como foram os primeiros a desfrutar ostentação. Confidimus autem de vobis meliora (Hebreus 6, 9). Ah! Mas embora isto assim seja, "eu espero de vós coisas melhores". Há poderes que são sagrados, como, por exemplo, o de Abraão que, condenando o mau rico, foi também rico e poderoso; mas santificou o seu poder pela humildade, pela moderação, pela obediência a Deus, e pelo socorro aos pobres. Se seguirdes este exemplo, evitareis o suplício do rico cruel, e ireis, como o pobre Lázaro, descansar no seio do rico Abraão, e, como ele, recebereis as riquezas eternas. Sermão sobre o Amor pelos Prazeres Sermão para o 3º Domingo da Quaresma SUMÁRIO Exordio. - A história do Filho pródigo é um quadro da vida humana e uma perfeita imagem das graças da penitência. Proposição e divisão. - 1º Os prazeres são mananciais de dores; 2º As dores são mananciais de prazeres. 1º Ponto. - Como sucedeu com o pródigo, os cristãos que se entregam aos prazeres caem, pelo próprio excesso desses prazeres, num abismo de dores; e o corpo e a alma desses infelizes são vítimas de perniciosos efeitos; são como que escravos de si mesmos. 2º Ponto. - A semelhança do pródigo, podem por meio da dor, estar na posse tranquila duma perfeita alegria. As tristezas da Penitência são salutares, e são fecundas em consolações e alegrias. Peroração. - O homem desprendido dos prazeres não achará a morte inexorável, nem cruel. Homo quidam habuit duos filios, et dixit adolescentior ex illis patri: Pater, da mihi portionem substantiœ quœ me contingit. Um homem tinha dois filhos, e o mais novo disse um dia ao pai: Meu pai, dê-me a parte da herança que me cabe. A parábola do Filho pródigo foi-nos ontem presente pela Santa Igreja na celebração dos mistérios, e hoje, cristãos, se mo consentis, vou oferecer-vos um tão belo como útil espetáculo; porque, realmente, toda a história desse pródigo, a sua infeliz retirada da casa paterna, as suas viagens ou, para melhor dizer, os seus desvarios por um país longínquo, a sua avidez para alcançar a herança e a sua servidão, as suas dores após os prazeres e a miséria extrema a que ficou reduzido, por ter sacrificado ao prazer tudo o que possuía; finalmente, a variedade infinita é todo o conjunto das suas criaturas, tudo isto, representa um quadro da vida humana verdadeiramente natural. Depois, o regresso à casa paterna, onde ele encontra em abundância todos os bens que havia perdido, exprime uma imagem tão perfeita das graças da penitência, que eu, por certo, faltaria inteiramente ao santo ministério de que estou investido, se desprezasse os ensinamentos que Jesus Cristo encerrou neste Evangelho. Não vou, portanto, referir-me a um ponto determinado desta matéria tão vasta, mas a toda ela, porque toda me parece importante, tendo, para isso, de pronunciar hoje um discurso muito longo. Meu Deus, fazei com que a minha atenção incida sobre o que for mais proveitoso para este ilustre auditório, e dai-me a luz do Vosso divino Espírito, por intercessão da Virgem bem-aventurada, a quem eu saúdo com uma Ave-Maria. Desde, a nossa antiga desobediência, quis Deus, ao que parece acabar com toda a verdadeira alegria com que brindara o mundo durante a inocência primitiva, de maneira que o que hoje lisonjeia os nossos sentidos não passa dum divertimento perigoso e duma ilusão transitória. Assim o compreendei o sábio, quando disse estas palavras: Risus dolore miscebitur, et extrema gaudii luctus occupat - "O riso será velado pela dor, e as alegrias acabarão em tristezas" (Provérbios 14, 13). Quem assim fala dos prazeres mundanos é porque sabe o que é o mundo; e esse grande homem, nas suas palavras, demonstrou, em primeiro lugar, que os prazeres não são puros, porque são misturados com dores; em segundo lugar, que são transitórios, porque a tristeza os acompanha de perto. Efetivamente, nós não gozamos hoje duma alegria extrema. A felicidade dos homens mundanos é tão múltipla que não pode ser completa; e basta o grande império que a dor exerce na vida humana para nos impedir o gozo prolongado dum certo bem-estar. É esta a conclusão que tiramos da parábola do Filho pródigo. Para dar mais livre curso às suas paixões, renuncia ele as comodidades e as delícias da habitação paterna, e, por tal preço, compra uma liberdade que lhe é funesta. O prazer de gozar de toda a legítima é seguido dum completo esbanjamento. Os excessos, a ilimitada prodigalidade e a vida viciosa que resolveu tomar reduzem-no a servidão, a fome e ao desespero. Os prazeres em breve dão lugar a uma infinita amargura: Extrema gaudii luctus occupat. Mas o espetáculo nem por isso é menos notável. A adversidade bastante longa de que foi vítima faz meditar profundamente o estouvado mancebo, fá-lo concentrar, desperta-lhe uma saudade intensa pelo lar que loucamente abandonara, e ei-lo correndo na direção da casa paterna, arrependido e consternado por todos os seus desvarios, e enlaçado já pelos braços do pai, que tudo perdoa ao filho pródigo, a quem os erros do coração inexperto haviam feito perder o que só as lágrimas e as saudades conseguiram recuperar. Estranhas vicissitudes! Engolfado, pelos seus desregrados prazeres, num abismo de dores, entra, pela própria dor do arrependimento, na posse tranquila duma perfeita, alegria. Tal é o milagre da penitência, cristãos, que hoje me proporciona o meio de vos provar, com a loucura e o pesar desse pródigo, estas duas verdades importantes: os prazeres como origem de dores, e as dores como origens fecundas de novos prazeres. Eis no que consiste o meu discurso, para o qual eu peço a vossa esclarecida atenção. Primeiro Ponto Diz o apostolo São Paulo que "todos os que piamente quiserem viver em Jesus Cristo terão de ser perseguidos" - Omnes qui pie volunt vivere in Christo Jesu, persecutionem patientur (2 Timóteo 3, 12) Efetivamente, havia ainda pouco tempo que a própria Igreja tinha alvorecido, e já todas as potências do mundo se armavam contra ela. Mas não imagineis que ela fosse perseguida somente pelos tiranos, inimigos declarados do cristianismo. Não, cada um de seus filhos se havia também instituído seu perseguidor; mas, enquanto eles afixavam em todos os pelourinhos e em todas as praças públicas sentenças e proscrições contra os fiéis, condenavam-se também a si próprios, embora de maneira diferente. Se os imperadores os exilavam da pátria, todo o mundo se constituía para eles num exílio, porque não havia parte alguma, em país nenhum da terra, que lhes servisse de domicilio fixo e estável. Eram uns verdadeiros nômades que se haviam imposto o degredo da peregrinação. Se lhes arrancavam a vida a força, libertavam-se eles voluntariamente dos prazeres, e razão tem Tertuliano em dizer que esta santa e inocente perseguição ainda mais alheava o espírito do mundo do que a outra: Plures invenias, quos magis periculum voluptatis quam vitœ avocet ab hac secta, cum alia non sit et stulto et sapienti vitœ gratia, nisi voluptas. Significa isto que o motivo por que muitos se divorciavam do cristianismo era mais pelo receio de perderem as voluptuosidades do que pelo receio de perderem a vida; preferiam não possuir bens nenhuns a possuí-los sem a liberdade de os poderem gozar. De maneira que se os rigores dos imperadores contra a Igreja eram motivo para temer, mais o era ainda a severidade da disciplina que ela se infligia a si própria, donde resultava o fato de muitos preferirem que lhes tirassem a vida do que lhes tirassem os prazeres, sem os quais a vida seria para eles um verdadeiro tédio. Este martírio não há de acabar nunca, senhores; e esta santa perseguição, por meio da qual combatemos os prazeres dos nossos próprios sentidos, há de durar enquanto a Igreja existir. O ódio cego e injusto que os grandes do mundo professavam contra o Evangelho acabou, porque o tempo lhe marcou o limite; mas o ódio dos cristãos contra si mesmos e contra a sua própria corrupção, deve de ser imortal, porque é ele que há de prolongar até á consumação dos séculos, o martírio verdadeiramente maravilhoso em que cada um se sacrifica a si mesmo, em que o perseguidor e o paciente são igualmente sublimes, e em que Deus tanto mantem o sofrimento do que padece, como coroa a fronte do que persegue. Eu sei que muitas pessoas hão de agora murmurar contra a severidade do Evangelho e desejariam que Deus proibisse o que pode prejudicar o próximo; mas também devem compreender que a virtude não consiste na privação dos prazeres, porque os limites que neste sentido se acham marcados lhes haviam de parecer intoleráveis. Se, porém, se não harmonizasse melhor com a dignidade desta tribuna admitir como indubitáveis as máximas do Evangelho do que prová-las por meio do raciocínio, facilmente poderia mostrar-se que era absolutamente indispensável que Deus regulasse, por meio das suas santas leis, todas as nossas ações; que, havendo-nos presente ouso que devemos de fazer dos nossos bens, não devia deixar de nos ensinar o uso que devemos fazer dos nossos sentidos; e que, se alguns prazeres lhes proporcionou, acendendo a franqueza deles, também, para honrar a razão, havia mister marcar-lhe limites, e não entregar inteiramente o homem à vida da matéria, para prejuízo e vergonha do espírito. Não é, pois, de admirar, cristãos, que Jesus Cristo nos ordene a perseguição própria do amor pelos prazeres, visto que, mostrando ser nossos amigos, nos causam verdadeiros males. Dizia sabiamente um antigo, que os inimigos mais perniciosos são os aduladores, e eu firmemente acrescento que os piores de todos os aduladores são os prazeres. Onde nos conduzem estes perigosos conselheiros com as suas adulações? Que vergonha e que infâmia e que ruína nas melhores fortunas, que dissolução nos espíritos, e até que enfermidades nos corpos não tem originado o excessivo amor pelos prazeres? Não vemos nós todos os dias caírem muitas casas em ruína, devido mais a sensualidade do que aos desastres, muitas dissenções nas famílias, mais por causa dos prazeres do que pelos inimigos mais artificiosos, e muitos mancebos morrerem devido mais aos prazeres do que as guerras e aos combates? Os tiranos em que a pouco falamos inventaram alguma vez torturas mais insuportáveis do que as infligidas pelos prazeres aos que a eles se entregam? Vede cristão, que eles só trouxeram ao mundo males desconhecidos para o gênero humano; e afirmam unanimemente os médicos que as funestas complicações de sintomas e de doenças que enganam a ciência, que confundem as experiências e tantas vezes desmentem os antigos aforismos, tem a sua origem unicamente nos prazeres. Porque não havemos, pois, de fazer a justiça de os perseguir tanto mais firmemente quanto mais cruelmente eles perseguem a vida humana? Mas ponhamos agora de parte o mal que fazem aos nossos corpos e as nossas fortunas, e falemos só do mal que fazem as nossas almas, cujo curso é inevitável. A vida concentrada exclusivamente nos prazeres faz com que nos divorciemos de Deus; e se o nosso coração não nos disser que fomos feitos só para o servir, não haverá palavras que possam curar a nossa cegueira. Ora, sabendo nós perfeitamente que Deus é um espírito, há de ser necessariamente por meio do espírito, que O podemos alcançar. Quem não vê, portanto, que quanto mais andamos pela região dos sentidos, mais nos vamos afastando da nossa terra natal, e mais andamos perdidos por uma terra estranha? O pródigo dá-nos sobejas provas do que deixo dito; e é com razão que se acha escrito no nosso Evangelho que, ao sair da habitação paterna, "andara por um país muito longínquo" - Peregre profectus est in regionem longinquam (São Lucas 15, 13) Esse filho desnaturado e esse servo fugitivo, que abandona tudo para se entregar a uma vida licenciosa, faz duas viagens singulares: afasta de Deus o seu coração, e depois afasta dEle até o pensamento. Não há nada que tanto faça separar o coração de Deus como o apego cego aos prazeres sensuais; e se todas as paixões chegam a atuar no espírito, a separação então é completa, é formal. Deus não existe no teu coração, ó homem sensual; o ídolo que tu incensas, esse é que é o deus a quem adoras. Mas não tarda que desças nova escaleira. Se Deus não existe no teu coração, em breve deixará de existir no teu espírito. A tua memória demasiado fiel ao teu coração ingrato riscá-lO-á de si mesma dentro em pouco. Os prazeres de tal modo absorvem o espírito que as santas verdades de Deus e os Seus justos preceitos não deixam nele sequer o mais leve sinal. Auferentur judicia tua a facie ejus (Salmo 10, 4). Não há separação mais cruel nem viagem mais funesta do que termos o coração e o pensamento longe de Deus! Onde estás, ó pródigo! Em que vil país escolheste a tua habitação, que tão longe te achas da tua pátria?. Dizer-vos agora, senhores, até que ponto chegará esse desvairamento, até onde vos conduzirão os prazeres sensuais, é o que eu não intento fazer, pois já bastam os maus conselhos que esses aduladores vos hão de dar. O que vos posso dizer é que a razão, uma vez entregue ao prazer dos sentidos e dominada por esse vinho espumoso, considera-se irresponsável e ignora onde a conduzirá a embriaguez. Mas de que serve recordar hoje o que já disse nesta mesma tribuna, quando me referia correlação dos pecados? Para que vos hei de estar a dizer que existe entre eles uma atração mútua, se basta um só para nos perder, e que, independente doutras injustiças que possamos praticar, é já uma injustiça bem criminosa recusarmos o nosso coração a Deus, que o reclama com tanto direito? É a esta injustiça enorme que todos os dias nos induz o amor pelos prazeres. Mas a crueldade desse amor é muito maior ainda: não satisfeito com nos ter separado totalmente de Deus, não deixa que dele nos aproximemos, por meio duma verdadeira conversão; e a razão é a seguinte: É que para nos convertermos necessitamos de prender o espírito a qualquer coisa que nos dê vida, energia d'alma; e o apego aos prazeres sensíveis coloca-nos numa disposição perfeitamente contrária. Inconstantes como somos por índole, fazemos consistir na variedade todo o prazer dos sentidos, e por isso a Escritura diz que "a concupiscência é inconstante" - Inconstantia concupiscentiae (Sabedoria 4, 12) porque, em toda a plenitude das coisas sensíveis não há situação, por mais aprazível, que o tempo não torne fastidiosa e insuportável. Todo aquele que se acrisola ao que é sensível tem necessariamente de vaguear de objeto em objeto, e, por assim dizer, de se iludir a si próprio com a simples mudança de lugar; e então a vida desse homem é uma vida sensual, sem impulso alternativo do apetite para o desprazer e do desprazer para o apetite, e a alma flutua sempre incerta entre o ardor que afrouxa ao ardor que se renova: Inconstantia concupiscentice. É nisto que consiste a vida sensual. Entretanto, nesse movimento perpétuo há um gozo constante despertado pela imagem duma liberdade vaga: Quasi quadam libertate aurae perfruuntur vago quodam desiderio suo. Mas também quando surge circunscrever o espírito a um determinado assunto, a alma, habituada desde muito tempo a andar errante por toda a parte onde veja campo livre, habituada a respeitar o seu temperamento e os seus caprichos, e a deixar-se irresistivelmente prender pelos objetos que lhe agradam, não pode de forma alguma conformar-se com um estado que a imobilize que a obrigue a dedicar-se a assuntos estranhos aqueles em que vive. Essa constância, essa uniformidade, essa severa regularidade da virtude mete-lhe medo, porque deixa de ver as delícias, as gratas alternativas, a variedade constante que seduz os sentidos, os agradáveis errores (enganos) em que eles parecem andar livremente. E então o espírito ora luta com os prazeres, ora lhes dá tréguas, briga a princípio com eles desesperadamente para depois lhes assinar a paz mais desejável. Daí provém esses constantes adiamentos, esse amanhã que nunca chega, esse momento que nunca se aproxima, essa obra que nunca se acaba e por cuja conclusão se espera sempre. Ó alma inconstante e irresoluta, ou antes audaciosa e temerária demais, pelo fato de não poderes tornar-te viril, hás de andar sempre errante, sem nunca te dedicares ao verdadeiro bem? Que tens lucrado com essa eterna inconstância, com todos esses prazeres? Apenas um desprendimento pelo bem uma dedicação pelo mal, a extrema fadiga do corpo e a completa cegueira do espírito. Haverá coisa mais digna de dó? Vejamos agora qual é o cativeiro a que nos reduzem os prazeres sensuais. O cativeiro, sim, porque o pródigo da parábola, não andou apenas transviado e errante; escravizou-se também. Embora o nosso espírito seja inconstante e, portanto, ande sempre vago, como disse a pouco, é certo que estaciona dentro da amplitude das coisas sensíveis, e nisto consiste a nossa servidão. Ora o que assim nos faz escravos dos sentidos, não é mais do que a funesta aliança do prazer com o hábito. Se o hábito por si só tem energia bastante para nos cativar, o prazer, fortificado com o hábito, de que potência não há de dispor? Venumdatus sub peccato - "Eu sou vendido à sujeição do pecado"; (Romanos 7, 14) isto é, o pecado compra-nos, dando-nos em troca o prazer. Meditai comigo sobre este ponto, senhores. Embora a natureza não nos arraste a mentira, e embora mesmo se não possa compreender o prazer que muitas pessoas sentem com isso, o que é certo é que todo aquele que se deixa vencer por essa fraqueza vergonhosa não encontra palavras mais belas nem mais dignas dos seus mentirosos discursos do que as que a audácia tem o poder de inventar. Além disso, jura e mente ao mesmo tempo com igual facilidade; e, por uma horrível profanação, habitua-se a confundir a verdade primeira com o que se lhe opõe. Mais ainda: Embora um homem, censurado pelos seus amigos e vexado consigo mesmo, se envergonhe do seu procedimento que lhe aniquila toda a crença, assim mesmo o hábito prevalece sobre todas as suas intenções. Ora, se um costume desta espécie, que tanto repugna a natureza como a própria razão, é contudo tão poderoso e tirânico, que coisa mais invencível haverá do que o temperamento fortificado com o hábito, a força da inclinação e do prazer aliada a energia do costume? Se o prazer faz amar o vício, o hábito considera-o como indispensável. Se o prazer nos precipita num cárcere, o hábito, diz Santo Agostinho, fecha-nos-a todas as portas e nem uma só nos deixará aberta. Nesta situação, cristãos, se alguma ideia do que somos nos restar ainda, que dó nos deve causara nossa miséria! Ainda, ao menos se nós pudéssemos suspender a carreira vertiginosa dos prazeres e identificá-los, por assim dizer, conosco, como nós nos identificamos com eles, talvez que a nossa cegueira tivesse uma certa desculpa. Mas que nos afeiçoemos tão ardentemente por esses falsos amigos que tão depressa nos abandonam, terem eles uma força tal para nos cativar e nós não dispormos de nenhuma para lhes resistir; finalmente, ser o nosso apego tão violento como rápida é a sua fuga, é que é tudo o que há de mais deplorável no mundo! Chora, pródigo, chora, que não há coisa mais miserável do que sentir-se um homem como que violentado pelos seus hábitos viciosos a amar os prazeres, e ver-se depois forçado pela fatal necessidade a perde-los irremediavelmente para sempre. Ainda mesmo que, cercados por tantas misérias, pudéssemos viver felizes e satisfeitos, esse bem-estar ainda nos causava mais horror do que a própria miséria. Não é em vão que está escrito: "Abri meus olhos, Senhor, para que a morte m'os não feche"; (Salmo 12, 4) e também isto: "Eles passam os seus dias muito tranquilos, e de repente descem aos infernos" (Jó 21, 13). E ainda isto que o Salvador pronunciou no seu Evangelho: "Ai de vós que agora rides, porque haveis de chorar depois" (São Lucas 6, 25). Efetivamente, se os que riem no meio dos seus pecados pudessem conservar sempre essa alegria neste mundo e no outro, prevaleceriam sobre Deus e insultariam a sua onipotência. Mas como Deus é que é o Senhor de tudo, força é que esses risos de alegria se convertam mais tarde em eternos gemidos; e eles mesmo têm tanto mais a certeza de chorar um dia quanto menos desejo têm agora de chorar. Abri, portanto, os olhos, ó pecadores, e vede à beira de que precipício adormecestes, no meio de que ondas e de que tempestades vos julgais seguros, e facilmente, no meio de que infortúnios e em que escravidão viveis contentes. Oh! Quanto vos seria talvez melhor que Deus vos despertasse com um castigo formal e vos corrigisse com alguma desgraça! Mas não quero irmãos, fazer tais votos. Peço-vos, pelo contrário, que não obrigueis o Onipotente a empregar revezes para vos abrir os olhos; evitai a Sua ira, que afinal é muito justa; temei o futuro e a funesta modificação com que Jesus Cristo vos ameaça; e, para que a vossa alegria não se converta em lágrimas, procurai na penitência, como fez o pródigo, uma tristeza que se converta em alegria. É por aqui que vou concluir o meu discurso. Segundo Ponto Diz nos a História Sagrada, no primeiro livro de Esdras, que quando este grande profeta reedificou o tempo de Jerusalém, destruído pelo exército assírio, o povo, misturando a triste memória de tal ruína com uma tão feliz reedificação, soltava dum lado gritos lúgubres que abalavam os ares, do outro manifestações de regozijo que se repercutiam muito longe. Era tal a celeuma, diz o autor sagrado, "que era impossível distinguir os gemidos plangentes dos clamores de alegria" - Nec poterat quisquam agnoscere vocem clamoris laetantium, et vocem fletus populi (livro de Esdras, 3, 13). Este conjunto misterioso de dor e de prazer é uma imagem muito natural (Imperfeita) do que se dá na penitência. A alma, enfraquecida na graça, vê o templo de Deus derrubado sobre ela. É que não foram os assírios que fizeram essa destruição terrível; foi ela própria que destruiu e vergonhosamente profanou esse templo sagrado do seu coração para o converter num templo idólatra. Agora chora e geme, recusando, porém, qualquer alívio; mas no meio das suas dores e das lágrimas que lhe derivam copiosas, vê ela que o Espírito Santo, comovido com essas lágrimas e com esses gemidos, começa de erguer essa casa santa, exige-lhe o altar caído por terra, e presta finalmente a primeira honra a sua consciência, onde pretende fazer a sua morada. Desta maneira, a alma terá a certeza de encontrar nesse novo santuário um verdadeiro recolhimento, em que poderá viver feliz e tranquila, sob o agradável patrocínio de Deus que nele habitará. Que vos parece esta tristeza sagrada, cristãos? Uma alma, a qual as suas dores proporcionam semelhante graça, não preferiria sofrer com os seus pecados a viver com o mundo? Cabe agora aqui dizer, como Santo Agostinho, "que feliz daquele que assim sofrer!" - Quam felix est, qui sic miser est!. Quisera neste ponto poder reunir tudo o que há de mais eficaz nas Escrituras divinas para vos representar dignamente essas delícias íntimas, esse manancial de paz de que fala Isaías (Isaías 66, 12) essa alegria do Espírito Santo, finalmente, essa admirável serenidade duma boa consciência. Difícil, porém, irmãos, é fazer compreender essas verdades e antegostar esses prazeres castos aos homens mundanos; mas assim mesmo, vamos tentar, como pudermos, dar-lhes uma ideia do que isso é. Nesta inconstância das coisas humanas e no meio de tantas conturbações diferentes que nos perturbam (Perseguem) ou que nos ameaçam, parece-me ser feliz, aquele que puder alcançar um refúgio; porque, expostos como estamos aos assaltos da adversidade, difícil será encontrá-lo. Deixemos por agora a habitual veemência do discurso, e pesemos as coisas friamente. Vós, que estais costumados a vida da Corte, podeis ter, não o nego, uma situação desafogada, embora eu não considere a natureza das vossas ocupações; mas, ainda bem não haveis esquecido as tempestades que tantas vezes agitam esse mar, já confiais na completa bonança que possa sobrevir. Por isso eu não vejo homem nenhum de bom senso que, escolhendo um lugar de retiro, o não considere logo como um porto onde irá parar, quando for impelido por ventos contrários. Esse asilo, porém, com que vos defendeis da adversidade provêm dela mesma; e, por maior que seja a vossa previdência, nunca conseguireis igualar os seus caprichos. Quando imaginais estar precavido dum lado, surge-vos a desgraça do outro; se consolidais o edifício nas partes superiores, ele ruirá pelo fundamento; e se o fundamento é solido, virá um raio do céu que o destruirá por completo. Eu com isto apenas quero dizer, e sem imagens, que os infortúnios assaltam-nos e invadem-nos por tantos lados que é impossível estarmos de todo precavidos. Não há coisa alguma no mundo em que nos firmemos, que não só possa falhar, mas também converter-se em amargura infinita; e muito leigos seriamos nós na história da vida humana, se necessitássemos de que alguém nos provasse esta verdade. Admitidas, portanto, todas as contingências, podem elas sobrevir tanto às outras pessoas como a vós mesmos. Vós não vos podeis salvaguardar do infortúnio, porque não tendes isenção nem privilégio que possais opor às fraquezas comuns. Se a vossa fortuna for devorada por um desastre imprevisto, ou a vossa família vitimada por uma morte desastrosa, ou a vossa saúde arruinada por uma longa e pertinaz doença, e se não tiverdes refrigério algum para a vossa dor, tereis de suportar todo, o furor dos ventos e da tempestade. E onde poderíeis encontrar esse refrigério? A passear pelos campos? Mas o ar livre não dissiparia os nossos cuidados. Dentro de casa? Serieis perseguidos por eles. E se vos metêsseis no quarto e vos deitasses no leito, aí mesmo vos importunariam, obrigando-vos a dar um sem número de voltas e impossibilitando-vos de procurardes um lugar que vos servisse de remanso, que vos desse tranquilidade. Aguilhoados e perseguidos por toda a parte, só vejo um único refugio capaz de vos apaziguar o espírito: a vossa própria consciência. Mas se essa consciência está mal com Deus, ou não consegue a paz, ou, se a consegue, é ela mais ruinosa do que todas as convulsões, Que fareis então, desgraçados? Manifestada externamente uma animadversão, apelaríeis para o vosso íntimo e nele vos concentraríeis; mas se o íntimo se encontra num estado de agitação profunda, arremessa-vos violentamente para o exterior. O mundo não vos alivia o vosso infortúnio; o céu não vos perdoa os vossos pecados. E assim, vivendo num completo abandono, não há miséria que se compare a vossa. Se, porém, o vosso coração está de harmonia com Deus, nEle achareis o vosso asilo, o vosso refúgio, fê-lO-eis no meio de vós, porque Deus nunca abandona um homem de bem: Deus in medio ejus, non comovebitur (Salmo 45, 6) diz o Salmista. Deus, habitando em vós, dará alento ao vosso coração aflito, unindo-o santamente a um Jesus martirizado e aos mistérios da Sua cruz e dos Seus sofrimentos. Mostrar-vos-á o que são as aflições, origens fecundas de bens infinitos, e, alimentando uma boa esperança na vossa alma compungida, dar-vos-á alívios que o mundo não pode dar. Mas, para possuirdes no vosso íntimo esse invisível Consolador, que é o Espírito Santo (O Espírito Santo, a quem o Salvador deu este nome) e para com Ele gozardes a paz duma sã consciência, é necessário que essa consciência se purifique, o que só pode conseguir se por meio das lágrimas. Derivai pois, ó lágrimas da penitência; derivai como uma torrente, ondas bem-aventuradas; limpai essa consciência maculada, lavai esse coração profanado (Esse altar) e "dai-lhe essa alegria divina" que é o fruto da justiça e da inocência: Redde mihi laetitiam salutaris tui (Salmo 50, 14). Depois de tudo isto quem poderá supor que vivamos neste mundo sem prazer, para ter de provocar indevidamente um prazer material e grosseiro, e pretender comunicá-lo do corpo ao espírito, da parte terrena e mortal a parte divina e incorruptível? Ah! Supor tal coisa seria um erro singular e deveras indigno dum homem. Jesus Cristo não desceu inutilmente até vós desse paraíso de delícias onde abundam os verdadeiros prazeres. Trouxe-nos desse lugar de paz e de felicidade eterna um princípio de glória dentro do benefício da graça, um olhar suavíssimo de Deus dentro do dogma da fé, um penhor e uma parte de felicidade dentro da esperança que sorri e finalmente, uma voluptuosidade castíssima, formada, como diz Tertuliano, do desprezo das voluptuosidades sensuais. Ora um prazer assim tão sublime, quem não desejará alcançá-lo para o gozar? Prazer sempre uniforme e sempre perfeito, que, em vez de nascer da alma agitada, nasce da alma tranquila; em vez da alma enferma, nasce dá alma sã; em vez da alma apaixonada, nasce da alma racional; e em vez do fervor inquieto e sempre inconstante dos seus desejos, nasce da retidão imutável da sua consciência. Prazer, por consequência, verdadeiro, que não agita a vontade, mas que a acalma; que não obscurece a razão, mas que a ilumina; que não lisonjeia superficialmente os sentidos, mas que arrasta inteiramente o coração para Deus! Só a penitência, porém, conseguirá abrir o coração a essas alegrias divinas. Não há ninguém que, sendo digno de gozar desses castos e verdadeiros prazeres, não tenha primeiro lamentado o tempo que dedicou aos prazeres efêmeros. O nosso pródigo não gozaria as inefáveis comoções da bondade paterna, nem a abundância da sua casa, nem as delícias da sua mesa, se não tivesse chorado amargamente as suas devassidões, os seus desvarios e os seus prazeres dissolutos. Arrependamo-nos, pois, dos nossos erros passados, que o arrependimento mais justo é o das faltas que cometemos. Porque é que Deus e a natureza instilaram nos nossos corações essa fonte amarga de pesar e de desgosto? Foi certamente para nos afligirmos não tanta pelas nossas desditas como pelas nossas culpas. Os males que fatalmente nos sobrevêm trazem sempre consigo uma espécie de lenitivo; mas o único refrigério que pôde haver para as nossas culpas são as lágrimas do arrependimento. Só elas as podem reparar e desvanecer, Por isso, cristãos, abramos o coração a essa dor salutar; e se nos sentirmos comovidos e pesarosos, embora levemente, com os nossos desmandos, regozijemo-nos com esse pesar, dizendo com o Salmista: Tribulationem et dolorem inveni, et nomen Domini invocavi - "Eu encontrei a dor e a aflição, e invoquei o nome de Deus" (Salmo 114, 3-4). Notai esta madeira de dizer: "Eu encontrei a aflição e a dor", isto é, encontrei a aflição frutuosa, a dor medicinal da penitência. Noutro salmo diz o mesmo Salmista que "as penas e as angústias vieram procurá-lo": Tribulatio et angustia invenerunt me (Salmo 118, 143). E efetivamente há um sem número de dores e de aflições que constantemente nos perseguem; e as angústias como diz o mesmo Salmista, procuram-nos sempre com a maior facilidade: Adjutor in tribulationibus quae invenerunt nos nimis (Salmo 45, 3) Mas, diz o santo Profeta, eis que encontrei finalmente uma dor que era bem digna de que eu a procurasse: é a dor dum coração contrito e duma alma arrependida dos seus pecados. Encontrei essa dor, e invoquei o nome de Deus. Arrependi-me dos meus crimes, e Deus passou uma esponja por cima deles. O meu arrependimento fez a minha felicidade, e os remorsos da minha consciência deram-me a paz: Tribulationem et dolorem. A ocasião, porém, mais oportuna em que o homem poderá gozar mais utilmente os frutos dessa dor salutar, será a ocasião da morte; e antes de acabar este discurso vou precisamente procurar gravar esta verdade nos vossos corações. Para isso consideremos por um momento as disposições dum homem que morre depois de ter vivido no meio dos prazeres. Se ele tiver um vestígio de consciência, não poderá evitar um grande arrependimento; porque, ou se arrependerá de se ter entregado a eles, ou lamentará a necessidade de os perder ou de os deixar para sempre. Ó dor suprema que te divides em duas! Uma é o fundamento da penitência, a outra é a regeneração de todos os crimes. Qualquer delas não se pode evitar, irmãos, assim como se não pode saber qual será a que vence no dia final. A minha opinião, contudo, é que será a segunda. Talvez imagineis que, ao passo que a morte tudo nos arrebata, a nós não nos custe essa série de latrocínios, ou que fiquemos indiferente por tudo o que possamos perder. Mas se estudardes o íntimo dos corações, vereis que há um efeito contrário que se deve temer. É próprio do homem empregar todos os esforços para que lhe não tirem aquilo que possui. Evidentemente, quando nos privam daquilo que estimamos, sentimos todos os dias que essa violência irrita a nossa vontade, e então, a alma, fazendo um supremo esforço para conquistar a coisa subtraída, produz em si mesmo essa paixão a que chamamos pena e desgosto. Por isso Agag, rei dos Amalecistas, que as Escrituras nos representam como um homem sensual e folgazão, Agag pinguissimus, solta este brado íntimo na ocasião em que lhe foge a vida que ele achara tão deliciosa: Siccine separai amara mors? - "É assim que a morte crua nos priva de tudo?" De maneira que na presença da morte que lhe arrebata violentamente o que ele mais preza, todos os seus desejos despertam, devido a um íntimo pesar, e então, a privação real do bem terreno aumenta naquele instante a energia da vontade. Quem não receará, pois, cristãos, que a nossa alma fugitiva volte de repente, no dia de juízo, a entregar-se ao que excessivamente lhe aprouve no mundo, que o nosso último suspiro seja um gemido secreto por perdermos tantos prazeres, e que esse último pesar de tudo abandonarmos seja, por assim dizer, a última confirmação de tudo o que se passou durante a vida? Ó pesar funesto e deplorável, que num momento renovas todos os crimes, que fazes desaparecer todas as dores da penitência, e que entregas a nossa alma infeliz e cativa a uma série eterna de dores cruéis e desesperadoras, que nunca terão um alívio nem um remédio! Por outro lado, um homem de bem, a quem as dores da penitência desprenderam verdadeiramente dos prazeres sensuais, nada terá a perder nesse dia. O desprendimento dos prazeres divorcia-o do corpo; e depois de haver desatado ou partido os fracos laços que a ele o prendiam, pouca dificuldade terá (Não terá dificuldade alguma) em se separar dele. Um homem assim divorciado do mundo, que vive esperançado na vida futura, ao ver aproximar-se a morte, não lhe chama cruel nem inexorável; estende-lhe, pelo contrário, os braços, e mostra-lhe propriamente o sítio onde ela deve descarregar o último golpe. E então dirá com grande firmeza de espírito: Ó morte! Não imagines que me fazes mal, pois nada me firas do que me é caro; apenas me separarás deste corpo mortal, o que é muito para te agradecer, visto que nesse trabalho andei empenhado toda a minha vida. Procurei sempre castigar os meus apetites carnais, mas nunca o consegui, porque o teu auxílio, ó morte, era-me indispensável para os destruir por completo. Por isso, em vez de interromperes o curso dos meus desígnios, apenas vens concluir a obra que eu comecei; em vez de destruíres aquilo que eu desejo, vens, pelo contrário, pôr-lhe termo. Acaba pois a tua obra, ó morte favorável, e não ardes em entregar-me Àquele a quem amo..

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Luziânia:

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