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Sisters of St. Joseph - Contra as Heresias - Santo Irineu Denúncia e refutação da falsa gnose TERCEIRO LIVRO -- DOUTRINA CRISTÃ (Neste terceiro Livro, Ireneu indica a fonte de sua argumentação: a tradição apostólica e o ensinamento eclesiástico e suas duas teses básicas contra os gnósticos: 1º - Deus é único e o próprio criador, e 2º - Jesus, o Filho de Maria, é o único Redentor - apesar de ter muitos nomes. Há também duas digressões neste texto: a salvação de Adão e a questão da justiça e providência de Deus). PREFÁCIO - Tu, caríssimo, nos pediste que expuséssemos as doutrinas secretas - pelo menos é assim que eles pensam - dos discípulos de Valentim, e mostrássemos as divergências que há entre eles e os refutássemos. Por isso, começamos por Simão, pai de todos os hereges, denunciando as suas doutrinas e conseqüências e refutando-as uma por uma; mas se para a simples exposição foi suficiente um livro, foram necessários vários para a refutação: por este motivo te enviamos mais livros. O primeiro contém as teorias de cada um, os seus costumes e as características da sua conduta. No segundo, refutamos suas teorias perversas, desvendando-as e mostrando-as como realmente são. Neste terceiro livro aduziremos as provas tiradas das Escrituras para cumprir exatamente as tuas ordens, que até ultrapassei, para te fornecer argumentos oportunos para refutar completamente todos os que de qualquer forma ensinam a mentira. Assim a caridade divina, rica e sem ciúme, concede sempre mais do que pedimos. Lembra-te, portanto, do que dissemos nos primeiros dois livros e, acrescentando o que agora diremos, terás fartíssima argumentação contra todos os hereges e te oporás a eles com segura e determinada firmeza em favor da única fé, verdadeira e vivificante, que a Igreja recebeu dos apóstolos e comunica a seus filhos. Com efeito, o Senhor de todas as coisas deu aos seus apóstolos o poder de pregar o Evangelho e por meio deles nós conhecemos a verdade, isto é, o ensinamento do Filho de Deus. A eles o Senhor disse: "O que vos ouve, a mim ouve, e o que vos despreza, a mim despreza e a quem me enviou" (Cf Mt 28,18-19; Lc 10,16). A TRADIÇÃO APOSTÓLICA Origem apostólica da tradição -- Não foi, portanto, por ninguém mais que tivemos conhecimento da economia da nossa salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o Evangelho, que eles primeiro pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas Escrituras, para que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé (A “tradição” é maior que as próprias Escrituras, pois ela primeiramente foi pregada e só posteriormente fixada em textos escriturísticos. Inclusive, esta tradição viva é força para alguns grupos que não tiveram outro conhecimento senão a antiga tradição dos apóstolos - o que lhes dá inclusive contra os que anunciam um “evangelho” diverso ou herético. Todavia, a tradição conservada nas Igrejas, especialmente nas instituídas pelos apóstolos - como, por exemplo, a de Éfeso ou de Esmirna, e particularmente a de Roma: a de maior apostolicidade, pois foi fundada por Pedro e Paulo, - deve ser mantida e transmitida com fidelidade em todas as Igrejas). Nem é lícito afirmar que eles pregaram sem antes possuir a gnose perfeita, como ousam dizer alguns que se gloriam de corrigir os apóstolos, por que, depois da ressurreição de nosso Senhor dos mortos, os apóstolos foram revestidos da força do alto, pela vinda do Espírito Santo (Cf At 1,8), foram repletos de todos os dons e possuíram o conhecimento perfeito. Foi então que foram até as extremidades da terra anunciando a boa nova dos bens que Deus nos concede e a paz celeste para os homens: eles possuíam todos e cada um o Evangelho de Deus (Cf Rm 1,1; 15,16; 2Cor 11,7). Assim, Mateus publicou entre os judeus, na língua deles, o escrito dos Evangelhos, quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundavam a Igreja. Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu por escrito o que Pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo, punha num livro o Evangelho pregado por ele. E depois, João, o discípulo do Senhor, aquele que recostara a cabeça ao peito dele, também publicou o seu Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia. -- Eles todos nos transmitiram que há um só Deus, Criador do céu e da terra, anunciado pela Lei e pelos profetas, e um só Cristo, Filho de Deus. E se alguém não acredita neles despreza os que tiveram parte com o Senhor, despreza ao mesmo tempo o próprio Senhor, como também despreza o Pai (Cf Lc 10,16); e ele mesmo condena-se, ao resistir e opor-se à própria salvação. E é isto que fazem todos os hereges. Atitude dos hereges -- Quando são vencidos pelos argumentos tirados das Escrituras retorcem a acusação contra as próprias Escrituras, dizendo que é texto corrompido, que não tem autoridade, que se serve de expressões equívocas e que não podem encontrar a verdade nele os que desconhecem a Tradição. Com efeito - dizem eles - a verdade não foi transmitida por escrito, mas por viva voz, o que levou Paulo a dizer: "É a sabedoria que pregamos entre os perfeitos, não, porém, uma sabedoria deste século" (1Cor 2,6). E cada um deles diz que esta sabedoria é a que ele descobriu, ou melhor, inventou, e assim se torna normal que a verdade se encontre ora em Valentim, ora em Marcião, ora em Cerinto e depois em Basílides ou nalgum outro contendente, sem nunca ter podido afirmar nada acerca da salvação. Cada um deles está tão pervertido que, falsificando a regra da verdade, não cora de vergonha ao pregar a si mesmo. -- E quando, por nossa vez, os levamos à Tradição que vem dos apóstolos e que é conservada nas várias igrejas, pela sucessão dos presbíteros, então se opõem à tradição, dizendo que, sendo eles mais sábios do que os presbíteros, não somente, mas até dos apóstolos, foram os únicos capazes de encontrar a pura verdade. Com efeito, os apóstolos teriam introduzido, junto com as palavras do Salvador, as prescrições da Lei; e não somente os apóstolos, mas até o próprio Senhor, teriam pronunciado palavras provindas ora do Demiurgo, ora do Intermediário, ora da Potência suprema. Quanto a eles, conheceriam o mistério escondido, sem a mínima dúvida, sem contaminação e confusão. Ora, esta é a maneira mais desavergonhada de blasfemar contra o seu Criador! Acontece com isso que já não concordam nem com as Escrituras nem com a tradição. -- Nossa batalha, caríssimo, é contra estes, que escorregadios como serpentes, tentam se esgueirar de todos os lados. Por isso, de todos os lados lhes devemos resistir, na esperança de poder trazer de volta à verdade alguns deles, refutados e confundidos. De fato, se é difícil que uma alma, tomada pelo erro, mude de opinião, contudo não é completamente impossível que possa evitar o erro quando se lhe apresenta a verdade. Onde está a verdadeira tradição -- Portanto, a tradição dos apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em toda Igreja por todos os que queiram ver a verdade. Poderíamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos nas Igrejas pelos apóstolos e os seus sucessores até nós; e eles nunca ensinaram nem conheceram nada que se parecesse com o que essa gente vai delirando. Ora, se os apóstolos tivessem conhecido os mistérios escondidos e os tivessem ensinado exclusiva e secretamente aos perfeitos, sem dúvida os teriam confiado antes de a mais ninguém àqueles aos quais confiavam as próprias Igrejas. Com efeito, queriam que os seus sucessores, aos quais transmitiam a missão de ensinar, fossem absolutamente perfeitos e irrepreensíveis em tudo, porque, agindo bem, seriam de grande utilidade, ao passo que se falhassem seria a maior calamidade. -- Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos. -- Os bem-aventurados apóstolos que fundaram e edificaram a Igreja transmitiram o governo episcopal a Lino, o Lino que Paulo lembra na carta a Timóteo (Cf 2Tm 4,21). Lino teve como sucessor Anacleto. Depois dele, em terceiro lugar, depois dos apóstolos, coube o episcopado a Clemente, que vira os próprios apóstolos e estivera em relação com eles, que ainda guardava viva em seus ouvidos a pregação deles e diante dos olhos a tradição. E não era o único, porque nos seus dias viviam ainda muitos que foram instruídos pelos apóstolos. No pontificado de Clemente surgiram divergências graves entre os irmãos de Corinto. Então a Igreja de Roma enviou aos coríntios uma carta importantíssima para reuni-los na paz, reavivar-lhes a fé e reconfirmar a tradição que há pouco tempo tinham recebido dos apóstolos, isto é, a fé num único Deus todo-poderoso, que fez o céu e a terra, plasmou o homem e provocou o dilúvio, chamou Abraão, fez sair o povo do Egito, conversou com Moisés, deu a economia da Lei, enviou os profetas, preparou o fogo para o diabo e os seus anjos. Todos os que o quiserem podem aprender desta carta que este Deus é anunciado pelas Igrejas como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e conhecer a tradição apostólica da Igreja, porque mais antiga do que os que agora pregam erradamente outro Deus superior ao Demiurgo e Criador de tudo o que existe. A este Clemente sucedeu Evaristo; a Evaristo, Alexandre; em seguida, sexto depois dos apóstolos foi Sisto; depois dele, Telésforo, que fechou a vida com gloriosíssimo martírio; em seguida Higino; depois Pio; depois dele, Aniceto. A Aniceto sucedeu Sóter e, presentemente, Eleutério, em décimo segundo lugar na sucessão apostólica, detém o pontificado. Com esta ordem e sucessão chegou até nós, na Igreja, a tradição apostólica e a pregação da verdade. Esta é a demonstração mais plena de que é uma e idêntica a fé vivificante que, fielmente, foi conservada e transmitida, na Igreja, desde os apóstolos até agora. -- Podemos ainda lembrar Policarpo, que não somente foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham visto o Senhor, mas que, pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo na Ásia, na Igreja de Esmirna. Nós o vimos na nossa infância, porque teve vida longa e era muito velho quando morreu com glorioso e esplêndido martírio. Ora, ele sempre ensinou o que tinha aprendido dos apóstolos, que também a Igreja transmite e que é a única verdade. E é disso que dão testemunho todas as Igrejas da Ásia e os que até hoje sucederam a Policarpo, que foi testemunha da verdade bem mais segura e digna de confiança do que Valentim e Marcião e os outros perversos doutores. É ele que no pontificado de Aniceto, quando esteve em Roma, conseguiu reconduzir muitos destes hereges, de que falamos, ao seio da Igreja de Deus, proclamando que não tinha recebido dos apóstolos senão uma só e única verdade, aquela mesma que era transmitida pela Igreja. E há os que ouviram dele que João, o discípulo do Senhor, tendo ido, um dia, às termas de Éfeso e tendo notado Cerinto lá dentro, precipitou-se para a saída, sem tomar banho, dizendo ter medo que as termas desmoronassem, porque no interior se encontrava Cerinto, o inimigo da verdade. O próprio Policarpo, quando Marcião, um dia, se lhe avizinhou e lhe dizia: "Prazer em conhecê-lo", respondeu: "Eu te conheço como o primogênito de Satã"; tanta era a prudência dos apóstolos e dos seus discípulos, que recusavam comunicar, ainda que só com a palavra, com alguém que deturpasse a verdade, em conformidade com o que Paulo diz: "Foge do homem herege depois da primeira e da segunda correção, sabendo que está pervertido e é condenado pelo seu próprio juízo" (Tt 3,10-11). Existe também uma carta importantíssima de Policarpo aos filipenses na qual os que desejam e se importam com a sua salvação podem conhecer as características da sua fé e a pregação da verdade. Também a igreja de Éfeso, que foi fundada por Paulo e onde João morou até os tempos de Trajano, é testemunha verídica da tradição dos apóstolos. -- Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar noutras pessoas aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os apóstolos trouxeram, como num rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um que o deseje, encontre aí a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à vida e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da verdade. Ora, se surgisse alguma controvérsia sobre questões de mínima importância, não se deveria recorrer a Igrejas mais antigas, onde viveram os apóstolos, para saber delas, sobre a questão em causa, o que é líquido e certo? E se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir a ordem da tradição que transmitiram àqueles aos quais confiavam as Igrejas? -- Muitos povos bárbaros que crêem em Cristo se atêm a esta maneira de proceder; sem papel nem tinta (Cf 2Jo 12), levam a salvação escrita em seus corações pelo Espírito, guardam escrupulosamente a antiga tradição, crêem num só Deus, Criador do céu e da terra e de tudo o que está neles e em Jesus Cristo, Filho de Deus, o qual, pela sua imensa caridade para com os homens, a obra por ele modelada, submeteu-se à concepção da Virgem para unir por seu meio o homem a Deus; padeceu sob Pôncio Pilatos, ressuscitou, foi assunto na glória e, na glória, virá como Salvador dos que se salvarão e Juiz dos que serão julgados e enviará ao fogo eterno os deformadores da verdade e os que desprezam seu Pai e sua vinda. Os iletrados que aceitaram esta fé são uns bárbaros quanto a nossa língua, mas, no que se refere ao pensamento, aos usos e costumes, são, pela fé, sumamente sábios e agradáveis a Deus e vivem na completa justiça, pureza e sabedoria. E se alguém, falando na língua deles, lhes anunciasse as invenções dos here ges, logo tapariam os ouvidos e fugiriam bem longe para sequer escutar esses discursos blasfemos. Assim, graças à antiga tradição dos apóstolos, não admitem absolutamente se possa pensar em nenhuma das invenções mentirosas dos hereges. O fato é que entre os hereges nunca houve agrupamento nem ensinamento devidamente instituído: -- Antes de Valentim não houve os discípulos de Va lentim; antes de Marcião não houve os discípulos de Mar cião, nem algum dos sistemas perversos, que catalogamos precedentemente, antes que aparecessem esses iniciadores e inventores de perversidades. Com efeito, Valentim foi a Roma no pontificado de Higino, teve o sucesso maior no de Pio e ficou aí até Aniceto. Cerdão, predecessor de Marcião, apareceu no tempo de Higino, que foi o oitavo bispo, ia muitas vezes à igreja e fazia penitência pública, mas acabou da mesma maneira: ora ensinando secretamente a sua heresia, ora fazendo novamente penitência dos erros de que era acusado, afastando-se, depois, definitivamente da comunidade dos irmãos. Marcião, que lhe sucedeu, atingiu o seu apogeu no tempo de Aniceto, que ocupou o décimo lugar no episcopado. Todos os outros, que são chamados gnósticos, têm sua origem em Menandro, discípulo de Simão, como mostramos; cada um, conforme a teoria adotada, se tornou presbítero e bispo do grupo que o seguia. Todos eles, porém, se encaminharam para a apostasia, em tempo bastante recente, quando os tempos da Igreja chegaram aos seus ambientes. Cristo, verdade perfeita -- É assim, portanto, que a tradição apostólica se apresenta na Igreja e perdura entre nós. Voltemos agora à prova tirada das Escrituras, deixadas pelos apóstolos que compuseram o Evangelho, em que expuseram a doutrina sobre Deus, demonstrando que nosso Senhor Jesus Cristo é a Verdade (Cf Jo 14,6) e que nele não há falsidade. É o que predisse Davi, falando do nascimento dele de uma Virgem e da sua ressurreição dos mortos: A verdade brotou da terra. Também os apóstolos, discípulos da Verdade, estão acima de qualquer suspeita, porque não há união entre mentira e verdade, como não há entre trevas e luz: presente uma, exclui-se a outra. Com efeito, nosso Senhor não mentia, por ser a Verdade; por isso não teria proclamado Deus, Senhor de todas as coisas, Grande Rei e seu próprio Pai, quem sabia ser fruto de degradação; sendo perfeito, nunca teria dado estes títulos ao imperfeito; sendo espiritual, ao psíquico; estando no Pleroma, àquele que está fora do Pleroma. Como também os seus discípulos nunca teriam chamado Deus e Senhor a mais ninguém, a não ser àquele que é verdadeiramente Deus e Senhor de todas as coisas. Porém, estes sofistas, mais que tolos, afirmam que os apóstolos ensinavam hipocritamente de acordo com as disposições dos ouvintes e respondiam conforme os preconceitos dos interrogantes; aos cegos falavam de acordo com a cegueira deles, aos doentes conforme a doença, aos que estavam no erro em conformidade com o erro; aos que acreditavam que o Demiurgo é o único Deus eles anunciavam este Demiurgo; aos que entendiam o Pai inefável exprimiam o mistério inexprimível, mediante parábolas e enigmas. Assim o Senhor e os apóstolos não teriam ensinado a verdade como realmente é, mas teriam comunicado o seu ensinamento hipocritamente, de acordo com as disposições de cada um. -- Ora, isso não é coisa de quem cura ou vivifica, mas antes de quem piora e aumenta a ignorância. Seria, portanto, muito mais verdadeira do que eles a Lei que amaldiçoa quem desvia o cego para o caminho do erro (Cf Dt 27,18). Mas os apóstolos, enviados a procurar os perdidos, a iluminar os cegos e a curar os doentes, com certeza não falavam segundo a opinião do momento, mas para manifestar a verdade. Por certo não agiria bem quem, ao ver os cegos prestes a cair no precipício, os exortasse a continuar por aquele caminho perigosíssimo como se fosse o bom e não os levasse a bom termo. Qual é o médico que para curar o doente procede conforme os desejos do paciente e não segundo as regras da medicina? Ora, é o próprio Senhor a afirmar que veio como médico para os que passam mal, com estas palavras: "Os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os enfermos. Não vim chamar os justos, mas os pecadores à penitência" (Lc 5,31-32). Portanto, como recuperarão a saúde os doentes e como os pecadores farão penitência? Continuando como antes, ou, ao contrário, aceitando mudança profunda e afastando-se da sua antiga maneira de viver que causou neles a doença grave e os numerosos pecados? Ora, a ignorância, mãe de todos esses males, é eliminada pelo conhecimento. Portanto, o Senhor comunicava o conhecimento aos seus discípulos e por meio dele curava os doentes e afastava os pecadores dos seus pecados. Não falava, portanto, de acordo com as suas velhas opiniões, nem respondia de acordo com os preconceitos dos interrogantes, e sim ensinava a doutrina da salvação sem hipocrisia nem preferências pessoais. -- Isso aparece também pelas palavras do Senhor que, falando a circuncisos, lhes mostrava que o Cristo anunciado pelos profetas era o Filho de Deus, isto é, manifestava-se a si mesmo como aquele que veio trazer aos homens a liberdade e oferecer-lhes a herança da incorruptibilidade (“Trazer a liberdade aos homens” é a missão imediata do redentor que encontra suas criaturas sob o domínio do pecado; a encarnação de Cristo já é o início da destruição do pecado. Contudo, o plano salvador de Deus consiste primariamente em “oferecer a herança da incorruptibilidade”, isto é, tornando os homens aptos a receberem os bens divinos , prepara-os para participarem da vida de Deus). Por sua vez, os apóstolos ensinavam os pagãos a abandonarem os falsos ídolos de madeira e de pedra que eles consideravam deuses e a adorar o Deus verdadeiro que criou e constituiu todo o gênero humano e que por meio da sua criação o alimenta, desenvolve, lhe dá segurança e subsistência. Ensinavam-nos a esperar a vinda do Filho de Deus, Jesus Cristo, que nos resgatou da Apostasia a custa de seu sangue, para que nos tornemos, nós também, o povo santificado; que descerá dos céus, na glória do Pai, para julgar todos os homens e oferecer os bens divinos aos que observarem os seus mandamentos. É ele que nos últimos tempos apareceu como a pedra angular principal, recolheu e uniu os de longe e os que estavam perto, isto é, os circuncisos e os incircuncisos, engrandecendo Jafet e fazendo-o morar na casa de Sem. DEUS, ÚNICO E SENHOR, PAI DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO 1º. Visão geral Testemunho dos profetas -- Portanto, nem o Senhor, nem o Espírito Santo, nem os apóstolos, nunca chamaram Deus, no sentido próprio do termo, senão ao verdadeiro Deus; como também nunca chamaram de Senhor a ninguém, de maneira própria, a não ser a Deus Pai que domina sobre todas as coisas e a seu Filho que recebeu do Pai o domínio sobre toda a criação. Com efeito, assim está escrito: "Disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te à minha direita até que ponha os teus inimigos como escabelo dos teus pés" (Sl 110,1). Aqui o Pai é apresentado falando com seu Filho ao qual dá em herança as nações e lhe submete todos os inimigos. Justamente, portanto, o Espírito Santo chamou o Pai e o Filho com o nome de "Senhor" porque efetivamente o são. Além disso, quando fala da destruição de Sodoma, a Escritura diz: "O Senhor fez chover sobre Sodoma e Gomorra o fogo e o enxofre provindos do Senhor do céu" (Cf Gn 19,24). Isto significa que o Filho, aquele que falou com Abraão, recebeu do Pai o poder de condenar os sodomitas por causa da iniqüidade deles. É o mesmo que se diz no texto seguinte: "O teu trono, ó Deus, subsistirá por todos os séculos; o cetro de teu reino é cetro de retidão. Amaste a justiça e aborreceste a iniqüidade; por isso, ó Deus, o teu Deus te consagrou pela unção" (Sl 45,7-8). O Espírito aqui designou com o nome de Deus tanto o Filho que recebe a unção como o Pai que a confere. E ainda diz: "Deus se apresentou na assembléia dos deuses e no meio deles julga os deuses" (Sl 82,1). Aqui se fala do Pai, do Filho e de todos os que receberam a adoção filial: estes constituem a Igreja, que é a assembléia de Deus, que Deus, isto é, o Filho, reuniu ele mesmo e por si mesmo. É ainda deste Filho que se diz: "O Deus dos deuses, o Senhor, falou e chamou a terra" (Sl 50,1). Quem é este Deus? É aquele de quem se diz: "Deus virá de maneira manifesta, o nosso Deus, e não se calará" (Sl 50,2-3): isto é, o Filho que veio entre os homens numa manifestação de si mesmo, e por isso diz: "Manifestei-me abertamente àqueles que não me procuram" (Is 65,1). E quem são estes deuses? São aqueles aos quais diz: "Eu disse: todos vós sois deuses e filhos do Altíssimo" (Sl 82,6), isto é, os que receberam a graça da filiação divina, "pela qual podemos chamar: Abba, Pai!” (Rm 8,15; Cf Gl 4,5-6). -- Nenhum outro, portanto, como eu disse acima, é chamado Deus e Senhor, exceptuando-se aquele que é Deus e Senhor de todas as coisas, que disse a Moisés: "Eu sou aquele que sou;" e: Assim dirás aos filhos de Israel: "Aquele que é me enviou a vós" (Êx 3,14); e o seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor, que torna filhos de Deus os que crêem no seu nome. É ainda o Filho que diz a Moisés: "Eu desci para libertar este povo" (Êx 3,8). Com efeito, é ele que desceu e subiu pela salvação dos homens. Assim, por meio do Filho que está no Pai e que tem em si o Pai, manifestou-se o Deus que é, o Pai dando testemunho ao Filho e o Filho anunciando o Pai, conforme o que diz também Isaías: "Eu sou testemunha, diz o Senhor Deus, e também o Servo que escolhi para que saibais e acrediteis e entendais que eu sou" (Is 43,10). -- Ao contrário, quando a Escritura fala dos falsos deuses, nunca os apresenta, como já disse, de maneira absoluta, mas acrescenta alguma indicação suplementar e algum sentido pelos quais mostra que não são deuses. Assim, em Davi: "Os deuses das nações, ídolos dos demônios" (Sl 96,5); e ainda: "Não ireis atrás de deuses estrangeiros" (Sl 81,10). Pela razão mesma que os chama "deuses das nações" - as nações, sabe-se, ignoram o verdadeiro Deus - e de "deuses estrangeiros", exclui que sejam deuses. Por outro lado, falando absolutamente, afirma que eles são, de fato, "ídolos dos demônios". A mesma coisa afirma Isaías: "Sejam confundidos todos os que fabricam deuses, entalham coisas vãs " (Is 44,9-10). Ele nega que estas coisas sejam divindades, somente usa a palavra para nos fazer entender do que se trata. Jeremias diz a mesma coisa: "Estes deuses, que não fizeram o céu e a terra, sejam exterminados da terra que está debaixo do céu!” (Jr 10,11). Falando do seu extermínio mostra claramente que não são verdadeiras divindades. Elias, por sua vez, depois de ter convocado todo Israel no monte Carmelo, diz-lhes, para afastá-los da idolatria: "Até quando andareis coxeando com os pés em dois estribos? Um só é o Senhor Deus, vinde atrás dele!” (1Rs 18,21). E, pela segunda vez, diante do holocausto, fala assim aos sacerdotes dos ídolos: "Vós invocareis o nome dos vossos deuses e eu invocarei o nome do Senhor, meu Deus: e o Deus que hoje nos escutar é o Deus verdadeiro" (1Rs 18,24). Falando assim, o profeta indicava que os que julgavam deuses não eram divindades reais e os convidava a dirigir-se ao Deus em que ele cria, que era verdadeiramente Deus e que ele invocava assim: "Senhor Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, escuta-me hoje, e que todo este povo entenda que tu és o Deus de Israel!” (1Rs 18,36). Oração -- Eu também te invoco, ó Senhor, Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó e de Israel, que és o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo; ó Deus, que na abundância da tua misericórdia te comprazeste em nós para que te conhecêssemos; que criaste o céu e a terra, que dominas sobre todas as coisas e que és o único verdadeiro Deus acima do qual não há outro Deus; que por nosso Senhor Jesus Cristo nos ofereces o dom do Espírito Santo, concede a quem lê este escrito que reconheça que só tu és Deus, seja confirmado em ti e se afaste de toda doutrina herética, negadora de Deus e sacrílega. Testemunho dos apóstolos -- Também o apóstolo Paulo ao dizer: "Enquanto no passado servistes a divindades falsas, agora conheceis o verdadeiro Deus, ou melhor, sois conhecidos por ele, distingue os que não são Deus do que realmente é Deus" (Gl 4,8-9). Ainda, a propósito do Anticristo que se opõe e se eleva acima de tudo o que é chamado Deus e honrado como tal, quer falar dos que são chamados deuses pelos que desconhecem o verdadeiro Deus, isto é, dos ídolos (Cf 2Ts 2,4). Com efeito, o Pai de todas as coisas é chamado Deus e o é; e não é acima dele que se elevará o Anticristo, mas acima dos que são chamados deuses e não o são. Isso é tão verdade que o próprio Paulo diz: "Sabemos que o ídolo não é nada e que existe um único Deus. De fato, se há nos céus e na terra uns seres chamados deuses, para nós existe um único Deus Pai de quem derivam todas as coisas e para o qual nós vamos, e um único Senhor, Jesus Cristo, do qual provêm todas as coisas e para o qual vamos" (1Cor 8,4-6). Com isso distingue e separa os seres chamados deuses, e que não o são, do único Deus, o Pai, do qual provêm todas as coisas e confessa de maneira absoluta e categórica um só Senhor, Jesus Cristo. As palavras "nos céus e na terra" não são, como explicam os hereges, alusão a pretensos criadores do mundo, mas devem ser comparadas com estas de Moisés: "Não farás de nenhum dos seres imagem de Deus, quer se trate dos que estão no alto, nos céus, quer dos que estão em baixo, na terra, quer dos que estão nas águas debaixo da terra" (Dt 5,8). E ele próprio explica o que são estas coisas que estão nos céus, dizendo: "Para que, ao levantar os olhos aos céus e vendo o sol, a lua, as estrelas e todas as belezas do céu, não caias no erro de adorá-los e de lhes prestar culto" (Dt 4,19). Quanto a Moisés, mesmo sendo verdadeiro homem de Deus, foi constituído deus diante do faraó; contudo, os profetas nunca o chamam Senhor ou Deus, no sentido próprio da palavra, mas o Espírito o chama de o fiel Moisés, servo e familiar de Deus, o que ele era efetivamente. -- Apoiados naquelas palavras explícitas de Paulo, na segunda carta aos coríntios: "Nos quais o deus deste século cegou as mentes dos incrédulos" (2Cor 4,4. Para a Bíblia de Jerusalém, o “deus deste século” é satanás), deduzem que um é o Deus deste século e outro o que está acima de todo Principado, Dominação e Potestade. Ora, não é nossa culpa se eles que dizem conhecer os mistérios mais altos de Deus, sequer sabem ler Paulo! É conhecido o hábito de Paulo fazer inversão de palavras, como mostraremos com muitos outros exemplos; ora, se alguém lê: "nos quais Deus" e, depois de uma pausa, todo o resto: "cegou as mentes dos incrédulos deste século", indica o sentido, pela pausa que faz. Com efeito, Paulo não fala de um Deus deste século como se conhecesse outro que está acima dele, mas afirma que Deus é Deus e acrescenta que os incrédulos deste século não herdarão aquele futuro de incorruptibilidade. Como Deus tenha cegado a mente dos incrédulos o mostraremos em seguida, com as palavras do próprio Paulo, para não desviar a nossa atenção do presente argumento. -- Que o Apóstolo use freqüentemente de inversões devido à agilidade do raciocínio ou à impetuosidade do Espírito que está nele, podemos constatá-lo em muitos outros lugares. É assim que se exprime na carta aos Gálatas: "A que serve a Lei das obras? Foi estabelecida até que aparecesse a posteridade à qual tinha sido feita a promessa, editada pelo ministério dos anjos com o concurso de mediador" (Gl 3,19). A ordem do pensamento é a seguinte: "A que serve a Lei das obras? Editada pelo ministério dos anjos com o concurso de mediador, foi estabelecida até que aparecesse a posteridade à qual tinha sido feita a promessa", como se houvesse um homem que faz a pergunta e o Espírito respondesse. Ainda, na segunda carta aos Tessalonicenses, ao falar do Anticristo, Paulo diz: "Então se manifestará esse iníquo a quem o Senhor Jesus matará com o sopro da sua boca e destruirá com o esplendor de sua vinda, que se dará pela intervenção de Satã, com toda espécie de milagres, sinais e prodígios mentirosos" (2Ts 2,8-9). A ordem do pensamento é a seguinte: "Então se manifestará esse iníquo e a sua vinda se dará pela intervenção de Satã, com toda espécie de milagres, sinais e prodígios mentirosos e o Senhor Jesus o matará com o sopro da sua boca e destruirá com o esplendor de sua vinda". Com efeito, não será a vinda do Senhor que se dará pela intervenção de Satã, e sim a vinda do iníquo, que nós também chamamos Anticristo. Efetivamente, se não se prestar atenção à maneira de ler e se se deixar de indicar, por meio de pausas, de qual pessoa Paulo entende falar, pronunciar-se-á não somente uma incoerência, mas até uma blasfêmia, deixando entender que a vinda do Senhor se dará pela intervenção de Satã. Assim como em textos desta espécie é necessário fazer notar a inversão das palavras pela maneira de ler, para salvaguardar a ordem do pensamento do Apóstolo, também, no caso visto acima, nós não leremos o "Deus deste século", mas com razão chamaremos Deus àquele que é Deus e saberemos que os incrédulos e os cegos deste século não terão a herança do século futuro, que é aquele da vida. Afirmações de Cristo -- Com a refutação desta calúnia dos hereges fica demonstrado claramente que nem os profetas, nem os apóstolos nunca chamaram Deus e Senhor a não ser ao único e verdadeiro Deus. Isto é mais verdadeiro acerca do Senhor que manda dar a "César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Cf Mt 22,21), chamando César de César e reconhecendo a Deus como Deus. Da mesma forma a frase: "Não podeis servir a dois senhores" (Mt 6,24) é explicada pelo próprio Senhor quando diz: Não podeis servir a Deus e a Mamon; reconhece Deus como Deus e a Mamon dá o nome que lhe pertence. Ele não chama Mamon de Senhor quando diz: "Não podeis servir a dois senhores", mas ensina aos discípulos que quem serve a Deus não deve estar submetido a Mamon e dominado por ele: Porque, ele diz, quem comete o pecado é escravo do pecado. Como dá o nome de escravo do pecado a quem comete o pecado sem com isso chamar Senhor, ao pecado assim dá o nome de escravos de Mamon aos que servem a Mamon, sem contudo chamar Mamon de Senhor. A palavra "Mamon", no dialeto hebraico falado pelos samaritanos, significa "ávido", que deseja possuir mais do que é conveniente. No hebraico, usado na forma de adjetivo, se diz "Mamuel" e significa "intemperante", que não sabe regular-se quanto à gula. Ora, quer num, quer noutro sentido, não podemos servir a Deus e a Mamon. -- É também o Senhor que chama o diabo de forte, não, porém, de forma absoluta, mas em relação a nós, enquanto apresenta a si mesmo como o forte no sentido próprio da palavra e com plena verdade, quando diz que ninguém se pode apoderar dos móveis do forte sem antes o amarrar: então pode saquear toda a casa (Cf Mt 12,29). Nós éramos os móveis e a casa do diabo quando estávamos na apostasia, porque se servia de nós como queria e o espírito imundo habitava em nós. Não era forte contra aquele que o amarrou e lhe saqueou a casa, mas o era em relação aos homens que mantinha submissos, porque fizera com que os pensamentos deles ficassem longe de Deus. O Senhor libertou estes homens, como diz Jeremias: O Senhor libertou Jacó e o arrancou das mãos de um mais forte do que ele (Jr 31,11). Se não tivesse mostrado aquele que amarra o forte e lhe tira os móveis e se tivesse limitado a chamá-lo de forte, o diabo seria invencível. Mas o Senhor mencionou o vencedor, que é o que amarra, enquanto o amarrado é o vencido. E tudo isto sem comparações para não pôr no mesmo plano o Senhor e um escravo apóstata. Com efeito, não somente aquele, mas absolutamente nada de tudo o que foi criado e lhe está submetido pode ser comparado ao Verbo de Deus, por meio do qual foram feitas todas as coisas e que é o Senhor nosso Jesus Cristo. -- Que também os Anjos e os Arcanjos, os Tronos e as Dominações foram criados por Deus, que é superior a todas as coisas, e feitos por meio de seu Verbo, João o indica quando diz que o Verbo de Deus estava no Pai: Todas as coisas foram feitas por meio dele e nada foi feito sem ele (Jo 1,1-3). Também Davi, depois de ter enumerado os motivos de louvor das criaturas, lembrando todos os seres por nós indicados, os céus e todas as suas potências, continua: "Porque deu uma ordem e todas foram criadas, disse uma palavra e todas foram feitas" (Sl 148,5; 32,9). A quem deu a ordem? Ao Verbo, pois diz ele: "é por obra dele que os céus foram criados e é pelo Sopro da sua boca que existe todo o poder deles". E que fez todos os seres livremente e como quis é ainda Davi quem o diz: "O nosso Deus fez tudo o que quis no céu e na terra" (Sl 114,11). Os seres criados distinguem-se do Criador e os seres feitos daquele que os fez. Ele não foi feito e não tem princípio nem fim, não precisa de ninguém, basta a si mesmo e, mais que isso, confere a existência a todos os outros seres. Pois os seres criados por ele tiveram início e todos os seres que tiveram início podem ter fim, estão submetidos e dependem daquele que os fez. Por isso é também necessário que estes seres sejam designados com vocábulo diferente pelos que têm um pouco de discernimento dessas coisas, e assim o Criador de todos os seres, juntamente com o seu Verbo, é o único a ser chamado legitimamente Deus e Senhor, enquanto os seres criados não podem receber este apelativo nem se arrogar legitimamente este título, pois pertence exclusivamente ao Criador. 2º. Testemunho dos apóstolos e dos discípulos Dos evangelhos de Mateus -- Fica portanto demonstrado - e será demonstrado com evidência maior - que nem os profetas, nem os apóstolos, nem o Cristo Senhor reconheceram absolutamente como Senhor e Deus a nenhum outro a não ser aquele que é de maneira exclusiva Senhor e Deus; que os apóstolos e os profetas, ao confessar o Pai e o Filho como Deus, não chamaram Deus e Senhor a ninguém mais; e que, por sua vez, o próprio Senhor não deu a conhecer aos discípulos nenhum Deus e Senhor além do próprio Pai que é o único Deus e domina sobre todos os seres. Por isso, se somos os discípulos deles devemos aceitar este testemunho. O apóstolo Mateus conhece um só e idêntico Deus, que prometeu a Abraão multiplicar-lhe a descendên cia como as estrelas do céu e nos chamou por meio de seu Filho, Jesus Cristo, do culto dos ídolos de pedra ao seu conhecimento, para que o "não povo se tornasse povo e a que não era amada se tornasse amada" (Rm 9,25; Cf Profeta Oséias, 2,25). Refere-se a como João preparava o caminho ao Cristo e como, aos que se gloriavam de parentesco carnal, enquanto alimentavam sentimentos completamente diferentes e cheios de malícia, pregava a penitência, convidando-os a se converterem da sua malícia, dizendo: "Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? Produzam frutos dignos de penitência e não digam entre si: Nós temos Abraão por Pai! Pois eu lhes digo que Deus pode, destas pedras, suscitar filhos a Abraão" (Cf Mt 3,7-9). Aquele precursor de Cristo pregava-lhes a penitência que os afastaria da sua malícia, mas nem por isso lhes anunciava outro Deus fora daquele que fizera a promessa a Abraão. Mateus, como Lucas, diz ainda acerca dele: "Este é aquele de quem falou o Senhor por meio do profeta: Voz daquele que grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai os caminhos do nosso Deus. Todo vale será enchido e toda montanha e colina será rebaixada; os caminhos tortuosos serão endireitados e os irregulares serão aplainados e toda carne verá a Salvação de Deus" (Mt 3,3; Lc 3,4-6; Is 40,3-5). Único e idêntico é, portanto, Deus, Pai de nosso Senhor, que por meio dos profetas prometeu enviar o precursor e depois tornou visível a toda carne a sua Salvação, isto é, o próprio Verbo feito carne, para que ficasse patente a todos que ele é o seu Rei. De fato, era conveniente que conhecessem o seu juiz os que deviam ser condenados e o doador da glória os que receberiam o dom da glória. -- Ao falar do anjo, Mateus diz: "O anjo do Senhor apareceu em sonho a José" (Mt 2,13; 1,20). E explica imediatamente de qual Senhor se trata: "Para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta: Chamei meu Filho do Egito". "Eis que a Virgem conceberá em seu seio e dará à luz um Filho e o chamarão com o nome de Emanuel, que significa Deus-conosco" (Mt 2,15; Profeta Oséias, 11,1; Mt 1,22-23; Is 7,14). Davi falou também deste Emanuel, nascido de uma Virgem: "Não desvies a tua face do teu Cristo. O Senhor jurou a verdade a Davi e não o enganará: Porei no meu trono um fruto de teu seio. E ainda: Deus é conhecido na Judéia, o seu lugar se tornou Paz e a sua habitação Sião" (Sl 132,10-11; Sl 76,2-3). Portanto, uno e idêntico é Deus, pregado pelos profetas, anunciado pelo Evangelho e o seu Filho, que é o fruto do seio de Davi, isto é, da Virgem descendente de Davi, o Emanuel. A sua estrela foi assim profetizada por Balaão: "Uma estrela surgirá de Jacó e um chefe aparecerá em Israel" (Nm 24,17). Ora, Mateus refere que os magos, vindos do Oriente, disseram: "Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo" (Mt 2,2); e que foram conduzidos por ela à casa de Jacó, até o Emanuel, e que mostraram, com os dons que ofereceram, quem era aquele que adoravam: a mirra significava que era ele que devia morrer e ser sepultado em favor do gênero humano; o ouro, que ele era o Rei cujo reino não tem fim; e o incenso, que ele era o Deus que se deu a conhecer na Judéia, e se manifestou aos que não o procuravam. -- Mateus diz ainda que no batismo: "Os céus se abriram e viu o Espírito de Deus descer sobre ele na forma de pomba. E eis que se ouviu uma voz do céu que dizia: Este é o meu Filho amado no qual me deleitei" (Mt 3,16-17). Não que o Cristo tenha descido em Jesus naquele momento, nem se pode pensar que um é o Cristo e outro é Jesus; mas o Verbo de Deus que é o Salvador de todos e Senhor do céu e da terra, que é Jesus, como demonstramos acima, que assumiu a natureza humana e foi ungido pelo Pai com o Espírito, tornou-se Jesus Cristo. Como diz Isaías: "Sairá um rebento da raiz de Jessé e uma flor brotará da sua raiz; e sobre ele pousará o Espírito de Deus, Espírito de sapiência e de inteligência, Espírito de conselho e de força, Espírito de ciência e de piedade, e será repleto do Espírito do temor de Deus. Não julgará segundo as aparências e não condenará por ter ouvido dizer, mas fará justiça aos pequenos e condenará os poderosos da terra" (Is 11,1-4). Ainda o próprio Isaías prenunciando a finalidade desta unção, diz: "O Espírito de Deus está sobre mim, pois ungiu-me para que leve a boa-nova aos humildes, enviou-me a curar os contritos de coração, a pregar a redenção aos cativos, a visão aos cegos, a proclamar o ano de graça do Senhor e o dia da retribuição, para consolar todos os que choram" (Is 61,1-2). Assim o Verbo de Deus, enquanto homem, da descendência de Jessé e filho de Abraão, tinha sobre si o Espírito de Deus e era consagrado para levar a boa-nova aos humildes; enquanto Deus, não julgava segundo as aparências e não condenava por ouvir dizer; com efeito, "ele não precisava de testemunhos acerca de nenhum homem, pois ele sabia o que há no homem" (Jo 2,25). Consolava os homens que choravam e dava a libertação aos que eram mantidos escravos pelo pecado, libertando-os dos laços de que fala Salomão: Todos estão amarrados pelos laços dos seus pecados (Pr 5,22). O Espírito de Deus que pelos profetas prometeu conferir-lhe a unção, desceu sobre ele para que nós, recebendo da superabundância da unção dele, nos salvássemos. Este é o testemunho de Mateus. Dos evangelhos de Lucas -- Lucas, companheiro e discípulo dos apóstolos, falando de Zacarias e de Isabel, dos quais nasceu João, diz: "Ambos eram justos diante de Deus, e, de modo irrepreensível, seguiam todos os mandamentos e estatutos do Senhor" (Lc 1,6). E diz ainda de Zacarias: "Ora, aconteceu que, ao desempenhar ele as funções sacerdotais diante de Deus, no turno de sua classe, coube-lhe por sorte, conforme o costume sacerdotal, oferecer o incenso"; e veio para oferecer o sacrifício, "e entrou no Santuário do Senhor" (Lc 1,8-9). Evidentemente, estando diante do Senhor, adorava com pura, absoluta e firme fé aquele que elegeu Jerusalém e estabeleceu a legislação sacerdotal, de quem Gabriel é o anjo (Lc 1,11 19), porque não conhecia outro Deus superior a este; se tivesse pensado num Deus e Senhor mais perfeito, diferente deste, não teria reconhecido como Deus e Senhor, no sentido próprio e absoluto do termo, alguém que sabia ser o fruto de decadência, como expusemos acima. Ele também, falando de João, diz: "Pois ele será grande diante do Senhor e converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus; e caminhará à sua frente, com o espírito e o poder de Elias, para preparar ao Senhor um povo bem disposto" (Lc 1,15-17). Para quem preparará um povo e na presença de qual Senhor se tornou grande? Com certeza, diante daquele que disse que João era "mais do que profeta" e, "entre os nascidos de mulher, ninguém era maior do que João Batista" (Lc 7,28; Mt 11,11). Ele preparava o povo, prenunciando a seus companheiros de cativeiro a vinda do Senhor, pregando-lhes a penitência para que, na presença do Senhor, estivessem preparados a receber o perdão, por se terem convertido àquele do qual se tinham afastado com seus pecados e transgressões, de acordo com o que diz Davi: "Os pecadores transviaram-se desde o seio materno, erraram desde o tempo de sua concepção" (Sl 58,4). Eis por que, reconduzindo-os ao Senhor, preparava para o Senhor um povo bem disposto, no espírito e no poder de Elias. -- E, ao falar do anjo, diz ainda: "Naquele mesmo tempo, o anjo Gabriel foi enviado por Deus e disse à Virgem: Não temas, Maria, encontraste graça junto de Deus" (Lc 1,26 30). E a respeito do Senhor, o anjo diz: "Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim" (Lc 1,32-33). Quem mais há de reinar sem interrupção e para sempre na casa de Jacó, senão Jesus Cristo, nosso Senhor, o Filho de Deus Altíssimo, que prometeu, por meio da Lei e dos profetas, tornar visível a sua Salvação a toda carne, de forma tal que este Filho de Deus se tornaria homem para que, por sua vez, o homem se tornasse filho de Deus? Por isso Maria, exultando, cantava profeticamente, em nome da Igreja: "A minha alma glorifica o Senhor e meu espírito exulta em Deus meu Salvador. Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre" (Lc 1,46-47). Com estas palavras de tanta importância, o Evangelho mostra que o Deus que falou aos pais, isto é, aquele que deu a Lei por meio de Moisés e pela qual sabemos que falou aos pais, é o mesmo Deus que, na sua imensa bondade, efundiu sobre nós a sua misericórdia. Por causa desta misericórdia "visitou-nos o Astro das alturas e apareceu aos que jazem nas trevas e na sombra da morte e dirigiu nossos passos no caminho da paz" (Lc 1,78-79). É com estas palavras que Zacarias, ao ser libertado do mutismo, causado pela sua incredulidade, repleto de novo Espírito, de maneira nova bendizia a Deus. Com efeito, tudo era novo, pelo fato de que o Verbo vinha dispondo de maneira nova a vinda na carne, para reconduzir a Deus o homem que se afastara dele. Por isso, este homem aprendia a honrar a Deus de maneira nova, não, porém, um Deus novo, "pois não há senão um só Deus que justifica os circuncisos em previsão da fé e os incircuncisos pela fé" (Rm 3,30). -- Zacarias, repleto do Espírito Santo, profetizou: "Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e suscitou-nos uma força de salvação, na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde tempos remotos, pela boca de seus santos profetas, salvação que nos liberta dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam, para usar de misericórdia com nossos pais, lembrado de sua aliança sagrada, do juramento que fez ao nosso pai Abraão, de nos conceder que, sem temor, libertos da mão de nossos inimigos, nós o sirvamos com santidade e justiça, em sua presença, todos os nossos dias" (Lc 1,68-75). Depois, diz a João: "E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; pois irás à frente do Senhor, para preparar-lhe os caminhos, para transmitir a seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão de seus pecados" (Lc 1,76-77). Este conhecimento da salvação, isto é, do Filho de Deus, é o que lhes faltava e João o produzia ao dizer: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu disse: depois de mim, vem um homem que passou adiante de mim, porque existia antes de mim e de sua plenitude todos nós recebemos" (Jo 1,29-30 15-16). Esta é a gnose da salvação: reconhecer não outro Deus ou outro Pai ou o Abismo ou o Pleroma dos trinta Éões ou a Mãe das Ogdôadas! Mas o conhecimento da Salvação é o conhecimento do Filho de Deus que é chamado e é realmente Salvação, Salvador e Poder salvador: - Salvação, neste texto: "Esperei na tua salvação, Senhor" (Gn 49,18); - Salvador, neste outro: "Eis o meu Deus salvador, confiarei nele" (Is 12,2); - Poder salvador, neste terceiro: "O Senhor manifestou a sua ação salvadora diante das nações" (Sl 98,2). Com efeito, ele é Salvador enquanto Filho de Deus e Verbo de Deus; ação salvadora, enquanto espírito, porque, está escrito, o "espírito do nosso rosto é o Cristo Senhor;" (Lm 4,20) finalmente é Salvação enquanto carne, porque o "Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1,14). Este era o conhecimento da Salvação que João dava a todos os que faziam penitência e acreditavam no Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. -- Lucas diz ainda que o anjo do Senhor apareceu aos pastores, anunciando-lhes a grande alegria: "nasceu na casa de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor" (Lc 2,9-10). Depois juntou-se "uma multidão do exército celeste a louvar a Deus, dizendo: Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama" (Lc 2,13-14). Os falsos gnósticos dizem que estes anjos saíram da Ogdôada e revelaram a descida do Cristo do alto. Porém manifestam logo o seu erro quando dizem que o Cristo e Salvador do alto não nasceu, mas desceu, na forma de pomba, na pessoa do Jesus da economia, quando do batismo dele. Por isso, segundo eles, mentem os anjos da Ogdôada, dizendo que Nasceu para vós, hoje, na cidade de Davi, um Salvador que é o Cristo Senhor, porque, para eles, naquele momento, não nasceu nem o Cristo, nem o Salvador, mas o Jesus da economia, que está às dependências do Demiurgo e que só depois do batismo, isto é, depois de trinta anos, é que desceu nele o Salvador do alto. Então, por que acrescentaram na cidade de Davi se não era para anunciar realizada a promessa de um Rei eterno, fruto de seu seio, que Deus fez a Davi? Com efeito, foi o Criador deste universo que fez essa promessa a Davi, como diz o próprio Davi: "O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra" (Sl 121,2); e ainda: "Ele tem nas mãos as profundezas da terra e dele são os cumes das montanhas; é dele o mar, pois foi ele quem o fez, e a terra firme, que plasmaram as suas mãos. Entrai, prostrai-vos e inclinai-vos, de joelhos, diante do Senhor que nos fez, pois ele é o nosso Deus" (Sl 95,4-7). O Espírito anuncia claramente pela boca de Davi, aos que o ouvem, que haverá daqueles que desprezarão quem nos plasmou e que é o único Deus. Com as palavras que acabamos de citar, ele queria dizer: "Não vos deixeis enganar: nem fora, nem acima deste, existe outro Deus para o qual vos devais dirigir", e assim nos queria predispor à piedade e ao agradecimento para com o Deus que nos criou, nos fez e nos alimenta. O que acontecerá, então, com os que inventaram tão grande blasfêmia contra o seu Criador? Os anjos dizem o mesmo. Com estas palavras: "Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra," glorificam a Deus que fez as alturas, isto é, as regiões supracelestes e criou tudo o que se encontra na terra, que enviou do céu à obra que modelou, isto é, "aos homens", a sua bondade salvadora. Eis por que diz: "Os pastores voltaram, glorificando a Deus por tudo o que viram e ouviram, conforme lhes fora anunciado" (Lc 2,20). Ora, não era a outro Deus que os pastores glorificavam, mas aquele que fora anunciado pela Lei e os profetas, Criador de todas as coisas, o mesmo que era glorificado pelos anjos. Se os anjos da Ogdôada glorificavam um Deus e os pastores outro, era a mentira e não a verdade que lhes fora anunciada pelos anjos da Ogdôada. -- Lucas diz ainda, acerca do Senhor: "Quando se completaram os dias para a sua purificação, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo macho que abre o útero será consagrado ao Senhor, e para oferecer em sacrifício, como é dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos" (Lc 2,22-24); chamando Senhor, de maneira absoluta, àquele que estabeleceu a Lei. E continua: Simeão bendisse a Deus, dizendo: "Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, porque meus olhos viram a tua Salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória de teu povo Israel" (Lc 2,28-32). Ana, a profetisa, por sua vez, glorificava, do mesmo modo, a Deus e "falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém" (Lc 2,38). Todas estas citações são para mostrar que existe um só Deus que abriu aos homens o Novo Testamento de liberdade, pela nova economia da vinda de seu Filho. Dos evangelhos de Marcos -- Por isso, Marcos, companheiro e intérprete de Pedro, inicia assim a redação do Evangelho: "Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus, conforme está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu mensageiro diante de ti, para preparar-te o caminho. Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as veredas do nosso Deus" (Mc 1,1-3). Está claro que o início do Evangelho está nas palavras dos santos profetas e aquele que confessaram Senhor e Deus é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual prometeu enviar um anjo que o precedesse. Este foi João, que no espírito e no poder de Elias gritava no deserto: "Preparai o caminho do Senhor, endireitai as veredas diante do nosso Deus". Com efeito, os profetas não anunciavam ora um Deus ora outro, mas o único e idêntico Deus, servindo-se de vários sinais e de muitos nomes, porque o Pai é múltiplo e rico, como mostramos no livro precedente e como mostraremos ao longo de nosso escrito, por meio dos escritos dos profetas. E, no final do Evangelho, Marcos diz também: "Ora, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus" (Mc 16,19), confirmando assim o que foi dito pelo profeta: Disse o Senhor ao meu Senhor: "Senta-te à minha direita até que ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés" (Sl 110,1). Assim, existe um só e idêntico Deus e Pai, anunciado pelos profetas, transmitido pelo Evangelho, que nós, cristãos, honramos e amamos de todo o coração, Criador do céu e da terra e de tudo o que está neles. Dos evangelhos de João -- Esta mesma fé é pregada por João, discípulo do Senhor, que quis, com o seu Evangelho, extirpar o erro semeado entre os homens por Cerinto, e muito antes, pelos chamados nicolaítas (Cf Ap 2,6 15), uma ramificação separada da falsa gnose, e refutá-los, demonstrando que existe somente um Deus, que criou todas as coisas pelo seu Verbo e que é falso o que eles dizem, isto é, que um é o Demiurgo e outro é o Pai do Senhor; que um é o Filho do Demiurgo e outro é o Cristo do alto, que teria ficado impassível quando da sua descida a Jesus, o Filho do Demiurgo, voltando depois para o seu Pleroma; que o Princípio é o Unigênito, ao passo que o Logos é Filho deste Unigênito; e finalmente, que o nosso mundo não foi criado pelo primeiro Deus, e sim por alguma Potência muito inferior e afastada de toda comunicação com as realidades invisíveis e inexprimíveis. Ora, querendo o discípulo do Senhor extirpar todos estes erros e estabelecer na Igreja a regra da verdade, a saber, que existe um só Deus onipotente, que por meio de seu Verbo fez todas as coisas, as visíveis e as invisíveis; indicando também que por este Verbo, pelo qual fizera a criação, Deus deu a salvação aos homens que se encontravam nesta criação, assim começou a ensinar no seu Evangelho: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; no princípio ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam" (Jo 1,1-5). Diz: Tudo foi feito por meio dele. Entre todas estas coisas é evidente que há também esta criação, pois não lhes podemos conceder que a expressão "todas as coisas" designe o que se encontra no interior de seu Pleroma. Com efeito, se o seu Pleroma contém também as coisas que nos envolvem, o nosso grande mundo criado não está fora dele, como demonstramos no livro precedente; se, ao contrário, estas coisas estão fora do Pleroma, o que nos pareceu impossível, o seu Pleroma já não é todas as coisas. Portanto, não se pode excluir desta totalidade nada de toda esta criação. -- Por outro lado, o próprio João eliminou de nós toda divergência, dizendo: "Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam" (Jo 1,10-11). Porém, segundo Marcião e seus semelhantes, nem o mundo foi feito por meio dele, nem ele veio entre os seus, mas entre estrangeiros. Segundo alguns gnósticos, este mundo foi feito pelos Anjos e não por meio do Verbo. Segundo os valentinianos foi feito não por meio do Verbo, e sim pelo Demiurgo. Com efeito, o Verbo fazia que as coisas fossem semelhantes às do mundo superior, como eles dizem, e o Demiurgo cumpria a obra da criação. Dizem que ele foi emitido pela Mãe como Senhor e Demiurgo da economia da criação e este mundo foi feito por ele, mas o Evangelho diz expressamente que todas as coisas foram feitas pelo Verbo que no princípio estava com Deus, e este "Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1,14). -- Segundo os hereges, porém, o Verbo não se fez carne, nem o Cristo, nem o Salvador de todos. E sustentam até que o Verbo e o Cristo não vieram a este mundo e que o Salvador não se encarnou e padeceu, mas que desceu, na forma de pomba sobre o Jesus da economia e, depois de ter anunciado o Pai incognoscível, voltou para o Pleroma. Para alguns, quem se encarnou e padeceu foi o Jesus da economia, depois de ter passado por Maria, como a água por um tubo; para outros, foi o Filho do Demiurgo, no qual desceu o Jesus da economia; para outros ainda, Jesus nasceu de José e de Maria e nele é que desceu o Cristo do alto, sem carne e impassível. Ora, em nenhuma destas opiniões heréticas se admite que "O Verbo de Deus se fez carne"; e se alguém examina a regra de fé de todos eles verá que apresentam o Verbo de Deus e o Cristo do alto sem carne e impassíveis. Alguns pensam que se manifestou na forma de homem, mas não admitem tenha nascido e se tenha encarnado; outros não concedem sequer a forma de homem e dizem que desceu, na forma de pomba, sobre o Jesus que nasceu de Maria. Todos eles são declarados testemunhas falsas pelo discípulo do Senhor que diz: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós". -- E para que não procuremos de qual Deus o Verbo se fez carne, ele mesmo no-lo ensina, dizendo: "Houve um homem enviado por Deus e seu nome era João. Este veio como testemunha para dar testemunho da luz. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz" (Jo 1,6-8). Por qual Deus foi enviado João, o precursor e a testemunha da luz? Certamente, por aquele de quem Gabriel é o anjo, que também anunciou a boa nova do seu nascimento e que prometeu por meio dos profetas que enviaria o seu mensageiro diante da face de seu Filho para lhe preparar o caminho, isto é, para dar testemunho da luz, no Espírito e no poder de Elias. E, por sua vez, Elias foi servo e profeta de qual Deus? Daquele que fez o céu e a terra, como ele próprio confessa. Ora, se João foi enviado pelo Criador deste mundo, como poderia dar testemunho a uma luz que tivesse descido de regiões invisíveis e inexprimíveis? Todos os hereges afirmam que o Demiurgo ignora a Potência que está acima dele de quem João é testemunha e indicador. É por este motivo que o Senhor disse que o tinha em conta de alguém maior do que profeta, porque os outros profetas anunciaram a vinda da luz do Pai e desejavam ser dignos de ver aquele que prenunciavam; João o prenunciou, como os outros, porém o viu quando veio, indicou-o e levou muitos a crerem nele, tornando-se ao mesmo tempo profeta e apóstolo. Ora, é isso que quer dizer "mais do que profeta", porque primeiro há os apóstolos e depois os profetas, e os mesmos são enviados por um só e idêntico Deus. -- O vinho que Deus produziu da videira pelo processo natural e que foi bebido em primeiro lugar era bom, de sorte que nenhum dos que o beberam o criticaram e o próprio Senhor tomou dele. Mas aquele que o Verbo fez instantaneamente e simplesmente usando a água que servia aos convidados às bodas era melhor. Ora, se bem que o Senhor tivesse o poder de fornecer o vinho aos convidados e de saciar de alimentos os famintos sem precisar de nenhuma das coisas criadas, não o fez. Assim, tomando os pães que provinham da terra e dando graças, e, outra vez, mudando a água em vinho, saciou os que estavam sentados na relva e dessedentou os convidados às bodas. Mostrava, com isso, que o Deus que fez o céu e a terra e lhe ordenou que produzisse frutos, que estabeleceu as águas e fez as fontes jorrarem, é ainda ele que nos últimos tempos dá ao gênero humano a bênção do Alimento e a graça da Bebida, por meio de seu Filho: o Deus incompreensível por meio daquele que pode ser compreendido, o Deus invisível, por aquele que pode ser visto, pois este não está fora dele, mas está no seio do Pai. -- João diz: "Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único que está no seio do Pai, este o deu a conhecer" (Jo 1,18). Pois o Pai que é invisível é dado a conhecer a todos pelo Filho que está em seu seio. Por isso o conhecem aqueles aos quais o Filho o revela, e, por seu lado, o Pai dá a conhecer o seu Filho, por meio do próprio Filho, aos que o amam. Foi porque instruído pelo Pai que Natanael o conheceu e recebeu do Senhor o testemunho de que era verdadeiro israelita, no qual não havia engano. Este israelita conheceu o seu Rei e lhe disse: "Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (Jo 1,49). Como também foi porque instruído pelo Pai que Pedro conheceu o Cristo, Filho do Deus vivo e disse: "Eis o meu Filho bem-amado em que me comprazo. Porei o meu Espírito sobre ele e fará conhecer o julgamento às nações. Ele não discutirá, nem clamará, nem sua voz se ouvirá nas praças. Ele não quebrará o caniço rachado, nem apagará a mecha que ainda fumega até que conduza o direito ao triunfo; e no seu nome as nações porão sua esperança" (Mt 12,18-21). O Evangelho: único e quadriforme (A revelação do Evangelho precede sua forma quádrupla, transformada em rica simbologia, cuja unidade é assegurada pelo Espírito Santo). -- Estas são as verdades fundamentais anunciadas pelo Evangelho: um só Deus criador deste universo, que foi anunciado pelos profetas, que deu a economia da Lei por meio de Moisés, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, fora do qual não conhecem outro Deus ou outro Pai. O valor dos evangelhos é tão grande que recebe o testemunho até dos próprios hereges, os quais tentam confirmar as suas teorias apoiados nalguns dos seus textos. Assim os ebionitas, que se servem somente do Evangelho segundo Mateus, são convencidos somente por ele a não pensar corretamente acerca do Senhor. Marcião, que mutila o Evangelho segundo Lucas, demonstra-se blasfemador do único e verdadeiro Deus, pelos simples fragmentos que ainda conserva. Os que distinguem Jesus do Cristo e dizem que o Cristo permaneceu impassível enquanto Jesus sofria, podem ser corrigidos pelo Evangelho segundo Marcos, que eles preferem, se o lerem com amor à verdade. Finalmente, os valentinianos, aceitando inteiramente o Evangelho segundo João, para demonstrar as suas sizígias, são acusados por este mesmo Evangelho de não dizer nada de certo, como mostramos no primeiro livro. A partir do momento que os nossos adversários usam estes evangelhos, dando-lhes o testemunho, é maior o valor da nossa argumentação baseada neles. -- Por outro lado, os evangelhos não são, nem mais nem menos, do que estes quatro. Com efeito, são quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro são os ventos principais e visto que a Igreja é espalhada por toda a terra e como tem por fundamento e coluna o Evangelho e o Espírito da vida, assim são quatro as colunas que espalham por toda parte a incorruptibilidade e dão vida aos homens. Por isso é evidente que o Verbo, Artífice de todas as coisas, que está sentado acima dos querubins e mantém unidas todas as coisas, quando se manifestou aos homens, nos deu um Evangelho quadriforme, sustentado por um único Espírito. Por isso Davi, ao invocar a sua vinda, diz: "Tu que te assentas acima dos querubins, aparece" (Sl 80,2). Ora, os querubins têm quatro aspectos, e suas figuras são a imagem da atividade do Filho de Deus. Ele diz: "O primeiro animal é semelhante a leão" (Ap 4,7), caracterizando o poder, a supremacia e a realeza; "o segundo é semelhante a novilho" (Ap 4,7), manifestando a sua destinação ao sacrifício, ao sacerdócio; "o terceiro tem rosto semelhante a homem" (Ap 4,7), o que lembra claramente a sua vinda em forma humana; e "o quarto assemelha-se à águia que voa" (Ap 4,7), sinal do dom do Espírito que sopra sobre a Igreja. Os evangelhos, portanto, correspondem a estes animais, acima dos quais está sentado Jesus Cristo. Um conta a geração preeminente, poderosa e gloriosa que tem do Pai, com estas palavras: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus; e: Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito" (Jo 1,1). É por isso que este Evangelho está cheio de pensamentos sublimes; pois este é o seu aspecto. O Evangelho segundo Lucas, portador de caráter sacerdotal, começa com o sacerdote Zacarias que oferece a Deus o sacrifício do incenso, porque já estava pronto o vitelo gordo que devia ser imolado por causa da volta do filho menor. Mateus, por sua vez, narra a sua geração humana, dizendo: "Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (Mt 1,1). E em seguida: "A origem de Jesus Cristo foi assim" (Mt 1,18). É portanto, o Evangelho da humanidade de Cristo, por isso Jesus é constantemente apresentado como homem humilde e manso. Marcos, por sua vez, inicia pelo Espírito profético que do alto investe o homem: "Princípio do Evangelho; conforme está escrito no profeta Isaías" (Mc 1,1-2), dando uma imagem alada do Evangelho. Por isso exprime-se de maneira concisa e rápida: é o estilo profético. É assim que o próprio Verbo de Deus falava conforme a sua divindade e glória aos patriarcas que viveram antes de Moisés; aos que viveram no tempo da Lei conferia função ministerial e sacerdotal; em seguida, quando se fez homem, para nós enviou o Espírito celeste a toda a terra para nos proteger com suas asas. Em suma, da forma como se apresenta a atividade do Filho de Deus assim é o aspecto dos animais, e igual ao aspecto dos animais é a característica do Evangelho: quadriformes os animais, quadriforme o Evangelho, quadriforme a atividade do Senhor. Por isso também foram concluídas quatro alianças com a humanidade: uma, nos tempos de Adão, antes do dilúvio; a segunda, depois do dilúvio, nos tempos de Noé; a terceira, que é o dom da Lei, nos tempos de Moisés; e a quarta, finalmente, que, por meio do Evangelho, renova o homem e as recapitula todas em si, e eleva os homens, fazendo-os levantar vôo para o reino celeste. -- Sendo esta a realidade, são estultos, ignorantes e, além disso, irreverentes os que rejeitam a forma com que se apresenta o Evangelho e introduzem número maior ou menor de formas do que as que apresentamos; alguns para dar a entender que acharam algo mais do que a verdade e outros para rejeitar as economias de Deus. Assim, Marcião, rejeitando todo o Evangelho, ou melhor, separando-se do Evangelho, ainda encontra motivos para gloriar-se de possuir uma parte do Evangelho. Outros, para negar o dom do Espírito difundido nos últimos tempos sobre o gênero humano (Cf At 2,16-17), pelo beneplácito do Pai, não admitem a forma do Evangelho segundo João, no qual o Senhor promete enviar o Paráclito: rejeitam ao mesmo tempo o Evangelho e o Espírito profético. Verdadeiramente infelizes, porque, para evitar o perigo dos falsos profetas, não reconhecem à Igreja a graça da profecia, da mesma forma dos que, por medo de se contaminar com pecadores ocultos, não conservam sequer relações com os irmãos. É fácil entender por que eles também não admitem o apóstolo Paulo, o qual, na carta aos coríntios, fala claramente dos carismas proféticos mencionando homens e mulheres que profetizam na Igreja (Cf 1Cor 11,4-5). Por causa disso tudo, eles pecam contra o Espírito de Deus, caindo em pecado irremissível. Os valentinianos, indo além de todo pudor e publicando seus próprios escritos, gloriam-se de ter mais do que está nos evangelhos e tiveram a grande ousadia de intitular "Evangelho da verdade" a um seu escrito recente que é completamente diferente dos evangelhos dos apóstolos, de tal forma que entre eles, sequer o Evangelho está isento de ser blasfemado. Ora, se o deles é o evangelho da verdade e é diferente dos evangelhos que os apóstolos nos transmitiram, os que o quiserem, podem se dar conta, por meio das próprias Escrituras, que não é aquele transmitido pelos apóstolos, o evangelho da verdade. Mas nós mostramos, com tantos e tão fortes argumentos, que somente os evangelhos dos apóstolos são os verdadeiros e autênticos, e que não pode haver nem mais nem menos do que foi dito. Com efeito, se Deus fez todas as coisas com ordem e harmonia, havia também de fazer com que a forma dos evangelhos se apresentasse com ordem e harmonia. Agora, depois de ter examinado o pensamento dos que nos transmitiram o Evangelho, desde os inícios deles, passemos aos outros apóstolos e vejamos o seu pensamento sobre Deus; a seguir ouviremos também as próprias palavras do Senhor. 3º. Testemunho dos Atos dos Apóstolos -- Testemunho de Pedro -- O apóstolo Pedro, depois da ressurreição do Senhor e da sua ascensão ao céu, querendo completar o número dos doze apóstolos com a eleição que Deus faria, de um dos presentes no lugar de Judas, disse: "Irmãos, era preciso que se cumprisse a Escritura, em que, por boca de Davi, o Espírito Santo havia, de antemão, falado a respeito de Judas, que se tornou o guia dos que prenderam Jesus e era contado entre os nossos: Fique deserta a sua morada e não haja quem nela habite, e: Outro receba o seu encargo" (At 1,16-17 20; Sl 69,26; 109,8). Pedro completava assim o número dos apóstolos, baseando-se no que Davi dissera. Em seguida, depois que o Espírito Santo desceu sobre os discípulos e como todos profetizassem e falassem línguas diversas e alguns fizessem troça deles como se estivessem ébrios pelo vinho doce, Pedro declarou que não estavam embriagados, pois era apenas a terceira hora do dia, mas que se cumpria a palavra do profeta: "Sucederá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne e profetizarão" (At 2,15-17). O Deus que prometera, por meio do profeta, que enviaria o seu Espírito sobre o gênero humano, enviou-o realmente e este Deus anunciado por Pedro é o que cumpre as promessas. -- Pedro, pois, diz: "Homens de Israel, ouvi estas minhas palavras. Jesus de Nazaré foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais que Deus operou por meio dele entre vós, como bem sabeis. Este homem, entregue segundo o desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias dos infernos, pois não era possível que ele fosse retido em seu poder. De fato, é a respeito dele que diz Davi: Eu via sem cessar o Senhor diante de mim: ele está à minha direita, para que eu não vacile. Por isso alegra-se o meu coração e minha língua exulta. Mais ainda, também minha carne repousará na esperança, porque não abandonarás minha alma nos infernos, nem permitirás que teu santo veja a corrupção" (At 2,22-27; Sl 15,8-10). Em seguida lhes fala com coragem do patriarca Davi que morreu e foi sepultado e o sepulcro dele estava ali entre eles até este dia. Mas sendo profeta - continua - e sabendo que Deus lhe havia assegurado com juramento que um descendente seu tomaria assento em seu trono, previu e anunciou a ressurreição de Cristo, o qual, na verdade, não foi abandonado nos infernos, nem sua carne viu a corrupção. A este Jesus - continua - Deus o ressuscitou, e disto nós todos somos testemunhas. Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto o que vedes e ouvis. Pois Davi, que não subiu aos céus, afirma: "Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita até que eu faça de teus inimigos um estrado para teus pés. Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes" (Sl 110,1; At 2,36). E à multidão que lhe perguntava: "Que devemos fazer?" Pedro respondeu: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo" (At 2,37-38). Portanto, os apóstolos não pregavam outro Deus ou outro Pleroma, nem um Cristo que padeceu e ressuscitou distinto de outro que teria subido e permanecido impassível, mas um único e mesmo Deus Pai e um único e mesmo Jesus Cristo, que ressuscitou dos mortos. E anunciavam a fé no Filho de Deus aos que não criam nele e lhes demonstravam pelos profetas que Deus lhes enviara o Cristo que prometera enviar, na pessoa deste mesmo Jesus que eles crucificaram e que Deus ressuscitara. -- Ainda, quando Pedro acompanhado de João viu o coxo de nascimento, sentado diante da porta do templo, chamada Formosa, a pedir esmola, disse-lhe: Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho, isso te dou: Em nome de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e anda. E imediatamente se lhe consolidaram os pés e os tornozelos, e andava. "Entrou com eles no templo, andando, saltando e louvando a Deus" (At 3,2 6-8). Como grande multidão se ajuntasse em volta deles por causa do milagre, Pedro tomou a palavra e disse: "Israelitas, por que vos admirais disto e pondes os olhos em nós, como se por nosso poder, ou por nossa piedade, tivéssemos feito andar este homem? O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou o seu Filho Jesus, a quem vós entregastes e negastes diante de Pilatos, sendo ele de opinião que se soltasse. Mas vós negastes o Santo e o Justo e pedistes que vos fosse dado um homicida; matastes o autor da vida, a quem Deus ressuscitou dos mortos, do que nós somos testemunhas. Mediante a fé do seu nome é que o seu mesmo nome deu firmeza a este que vós vedes e conheceis; a fé que vem dele foi que deu a este cura perfeita à vista de todos nós. Agora, irmãos, eu sei que procedestes por ignorância. Porém Deus cumpriu o que tinha anunciado por boca de todos os profetas: que padeceria o seu Cristo. Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que os vossos pecados vos sejam perdoados, para que venham os tempos da consolação diante do Senhor e envie aquele Jesus Cristo que vos foi destinado, o qual convém que o céu receba até os tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou antigamente pela boca dos seus santos profetas. Moisés disse a nossos pais: O Senhor vosso Deus vos suscitará um profeta dentre vossos irmãos, como eu; a este ouvireis em tudo o que vos disser. Todo aquele, pois, que não ouvir este profeta será exterminado do meio do povo. E todos os profetas que falaram desde Samuel em diante, anunciaram estes dias. Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com nossos pais, dizendo a Abraão: `Na tua posteridade serão abençoadas todas as famílias da terra'. Deus, tendo ressuscitado o seu Filho, vo-lo enviou primeiramente a vós, para vos abençoar, a fim de que cada um se converta da sua iniqüidade" (At 3,12-26; Cf Dt 18,15 19; Gn 22,18). Pelo discurso que Pedro fez, juntamente com João, anunciando cumpridas em Jesus as promessas que Deus fez aos pais, aparece claramente que ele não pregou outro Deus, mas o verdadeiro Filho de Deus feito homem, que padeceu e conduziu Israel ao conhecimento verdadeiro da salvação; pregou a ressurreição dos mortos em Jesus e indicou que tudo o que os profetas predisseram da paixão de Cristo, Deus o tinha cumprido. -- Por isso, Pedro disse ainda com coragem aos chefes dos sacerdotes reunidos: "Chefes do povo e anciãos de Israel, já que hoje somos interrogados a respeito de benefício feito a homem enfermo, para saber de que modo foi curado, seja notório a todos vós e a todo o povo de Israel, que é em nome de nosso Senhor Jesus Cristo de Nazaré, que vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dos mortos, é neste nome que este está são diante de vós. Ele é a pedra que foi rejeitada por vós que edificais, a qual foi posta por pedra angular. Não há salvação em nenhum outro, porque, sob o céu, nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos" (At 4,8-12). Eis, portanto, que os apóstolos não trocavam de Deus, mas anunciavam ao povo que o Cristo era Jesus crucificado e ressuscitado por Deus; tinha-o ressuscitado o mesmo Deus que enviara os profetas e nele deu a salvação aos homens. -- Confundidos, quer pelo milagre - pois, diz a Escritura, o homem para o qual se deu esta cura miraculosa, tinha mais de quarenta anos, - quer pelo ensinamento dos apóstolos e pela explicação dos profetas, os chefes dos sacerdotes soltaram Pedro e João, que voltaram aos outros apóstolos e discípulos do Senhor, isto é, à Igreja, e contaram tudo o que tinha acontecido e como tinham agido com coragem no nome de Jesus. Ao ouvir isto, diz Lucas, "levantaram unânimes a voz a Deus e disseram: Senhor, és tu que fizeste o céu e a terra, o mar e tudo o que há neles; que, mediante o Espírito Santo, pela boca do nosso pai Davi, teu servo, disseste: Por que se agitaram as gentes, e os povos fizeram vãos projetos. Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se coligaram contra o Senhor e contra o seu Cristo. Porque verdadeiramente se coligaram nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e com os povos de Israel, para executarem o que a tua mão e a tua vontade determinaram que se fizesse" (At 4,24-28). Esta é a voz da Igreja, da qual tiveram origem todas as igrejas; estas as vozes da Cidade mãe dos cidadãos da nova Aliança; estas eram as vozes dos apóstolos, as vozes dos discípulos do Senhor; eles eram verdadeiramente perfeitos, por terem sido tornados perfeitos pelo Espírito, depois da ascensão do Senhor; e invocavam a Deus que fez o céu, a terra e o mar, anunciado pelos profetas e o seu Filho Jesus, que Deus ungiu, e não conheceram outro Deus. Não havia, então, Valentim, nem Marcião, nem nenhum destes que perdem a si mesmos e aos que acreditam neles. Por isso o Deus Criador de todas as coisas os escutou: "Tremeu o lugar onde estavam reunidos, diz, e ficaram todos cheios do Espírito Santo e anunciavam com firmeza a palavra de Deus aos que estavam dispostos a crer" (At 4,31). Com grande coragem - continua - davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, dizendo-lhes: "O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem vós matastes, suspendendo-o num madeiro. A este elevou Deus com a sua destra como Príncipe e Salvador, para dar a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. Nós somos testemunhas destas coisas e também o Espírito Santo, que Deus deu a todos os que lhe obedecem" (At 5,30-32). "E todos os dias - continua - não cessavam de ensinar e de anunciar a Boa-nova de Jesus, o Cristo, Filho de Deus, no templo e pelas casas" (At 5,42). Este é o conhecimento da Salvação, que torna perfeitos para Deus os que conhecem a vinda de seu Filho. -- Visto que alguns deles dizem impudentemente que, ao pregar aos judeus, os apóstolos não lhes podiam anunciar nenhum outro Deus a não ser aquele em quem criam, nós lhes responderemos que se os apóstolos tivessem falado de acordo com a opinião que os homens tinham desde os tempos antigos, ninguém teria chegado à verdade por meio deles, nem mesmo pelo Senhor, bem antes deles, porque, na opinião dos hereges, ele próprio já tinha falado desta maneira. Por conseguinte, nem os próprios hereges conheceriam a verdade, porque teriam sido instruídos segundo uma idéia preconcebida de Deus, acomodada ao seu entendimento. Usando este princípio ninguém possuiria regra da verdade e todos os discípulos podem dizer a todos que foram instruídos conforme o que pensavam antes e conforme sua capacidade de entender. Desta forma, a vinda do Senhor teria sido inútil e supérflua se era para deixar que todos conservassem a idéia que tinham de Deus até então. Acrescente-se a isso que deveria ser bastante difícil anunciar aos judeus que o homem que viram e crucificaram era o Cristo Filho de Deus e seu eterno Rei. Ora, isso não era falar de acordo com a opinião anterior deles, pois para quem lhes lançava em rosto o título de assassinos do Senhor teria sido mais fácil anunciar-lhes o Pai que está acima do Demiurgo no lugar daquele em que todos criam. Tanto mais que o seu pecado seria bem menor, visto que o Salvador do alto, ao qual teriam de subir, era impassível e por conseguinte não poderia ser crucificado por eles. Da mesma forma que os apóstolos não falavam aos pagãos segundo as opiniões deles e lhes diziam abertamente que os deles não eram deuses, mas ídolos dos demônios, assim teriam anunciado aos judeus um Pai diferente e mais perfeito se o tivessem conhecido, sem alimentar e favorecer a idéia falsa que se tinham formado de Deus. E, finalmente, ao destruir o erro dos pagãos e ao afastá-los dos deuses deles, não os levavam a outro erro, mas afastando os que não eram deuses, lhes indicavam aquele que é o único Deus e o verdadeiro Pai. -- Ainda, pelas palavras de Pedro ao centurião Cornélio e aos pagãos que estavam com ele, os primeiros aos quais foi dirigida a palavra de Deus, em Cesaréia, podemos conhecer a pregação dos apóstolos e a sua concepção a respeito de Deus. Este Cornélio, dizem os Atos, "era religioso e temente a Deus com toda a sua casa, dava muitas esmolas ao povo e orava a Deus assiduamente. Este viu claramente, numa visão, cerca da hora nona, que um anjo de Deus se apresentava diante dele e lhe dizia: As tuas esmolas subiram como memorial à presença de Deus. Agora envia homens a Simão, que tem por sobrenome Pedro" (At 10,2-5). Por sua vez, depois de ter a revelação, na qual a voz celeste lhe respondia que não chamasse impuro o que Deus purificou - com efeito, Deus, que na Lei distinguiu as coisas puras e impuras, agora purificou todas as nações pelo sangue de seu Filho; e este é o Deus adorado por Cornélio, - Pedro foi a ele e lhe disse: "Na verdade, reconheço que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer nação, aquele que o teme e pratica a justiça, lhe é agradável" (At 10,34-35). Assim ele declara expressamente que o Deus antes adorado por Cornélio, de quem ouvira falar por meio da Lei e dos profetas, pelo amor do qual dava as esmolas, era o verdadeiro Deus. Faltava-lhe, porém, o conhecimento do Filho e por isso Pedro acrescentou: "Vós sabeis o que aconteceu por toda a Judéia, começando pela Galiléia, depois do batismo que João pregou; como Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder Jesus de Nazaré; o qual andou de lugar em lugar fazendo o bem e sarando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com ele. Nós somos testemunhas de tudo o que ele fez no país dos judeus e em Jerusalém; mas, mataram-no, suspendendo-o num madeiro. Deus, porém, ressuscitou-o ao terceiro dia e fez que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus escolhera antes, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dos mortos. Mandou-nos pregar ao povo e dar testemunho de que ele é aquele que Deus constituiu Juiz dos vivos e dos mortos. Dele dão testemunho todos os profetas de que todos os que crêem nele, recebem, por meio de seu nome, a remissão dos pecados" (At 10,37-43). Portanto, os apóstolos anunciavam o Filho de Deus aos que antes não o conheciam e a sua vinda aos que conheciam só a Deus; mas não apresentavam um Deus diferente. Se Pedro tivesse conhecido outro Deus, com certeza pregaria aos pagãos que o Deus dos cristãos era diverso do Deus dos judeus e eles, ainda sob a impressão da visão angélica, teriam crido em tudo o que lhe tivesse falado. Mas, pelas palavras de Pedro, está claro que os deixou na fé no Deus que já antes conheciam e somente lhes testemunhou que Jesus Cristo é o Filho de Deus, o Juiz dos vivos e dos mortos, em nome do qual deviam ser batizados para receberem a remissão dos pecados; e não somente isso, mas testemunhou que o próprio Jesus é o Filho de Deus, este Jesus que, por ter recebido a unção do Espírito Santo, é chamado Jesus Cristo, e é o mesmo que nasceu de Maria, como está implícito no testemunho de Pedro. Ou será que Pedro não tinha ainda a gnose perfeita que esses hereges descobriram depois? Ora, a acreditar neles, Pedro seria imperfeito, os outros apóstolos também, e seria necessário que, ressuscitados, se tornassem discípulos deles para serem perfeitos. Mas isso seria ridículo. Na realidade, porém, é evidente que essa gente são os discípulos de suas teorias errôneas e não dos apóstolos; é por isso que cada um pensa de modo diverso dos outros, conforme a capacidade de se embrenhar no erro. A Igreja, porém, espalhada por toda a terra, iniciada pelos apóstolos, persevera firmemente numa só e idêntica fé em Deus e no seu Filho. Testemunho de Filipe -- Ainda, de quem falou Filipe, sozinho, ao eunuco da rainha da Etiópia, que, voltando sozinho de Jerusalém, lia o profeta Isaías? Não era aquele de quem o profeta disse: "Como ovelha foi levado ao matadouro e como cordeiro mudo diante do que o tosquia, assim ele não abriu a boca? Quem poderá contar a sua geração? pois que a sua vida será arrancada da terra" (At 8,32-33). Demonstrou-lhe que aquele era Jesus no qual se cumprira a Escritura, como dizia o eunuco ao crer e ao pedir logo o batismo: "Creio que Jesus é o Filho de Deus" (At 8,37). Em seguida, foi enviado à região da Etiópia a pregar aquele em quem ele tinha crido, isto é, um Deus único, pregado pelos profetas, cujo Filho apareceu como homem, levado ao sacrifício como cordeiro e tudo o resto que disseram dele os profetas. Testemunho de Paulo -- Também Paulo, depois que o Senhor lhe falou, do céu, e lhe mostrou que ao perseguir os seus discípulos perseguia o Senhor, e o enviou a Ananias para recuperar a visão e ser batizado, em Damasco, "começou a pregar nas sinagogas, com a maior isenção, que este é o Cristo Filho de Deus" (At 9,19-20). Este é o mistério que diz ter-lhe sido revelado (Cf Ef 3,3), isto é, que aquele que padeceu sob Pôncio Pilatos é o Senhor de todos os homens, seu Deus, Rei e Juiz, por ter recebido o poder do Deus de todas as coisas, pois, se fizera obediente até a morte, e a morte de cruz (Fl 2,8). E, por ser verdade, anunciando o Evangelho aos atenienses, no areópago, onde, na ausência dos judeus, podia pregar com toda isenção o verdadeiro Deus, dizia: "Deus, que fez o mundo e tudo o que há nele, sendo ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens, nem é servido pelas mãos dos homens, como se necessitasse de alguma coisa, ele que dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas e de um só fez todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da terra, fixando aos povos a ordem dos tempos e os limites da sua habitação, para que busquem a Deus e o encontrem como que às apalpadelas embora ele não esteja longe de cada um de nós. Porque nele vivemos, nos movemos e existimos, como até o disseram alguns dos vossos poetas: Somos verdadeiramente de sua linhagem. Sendo nós, pois, linhagem de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra lavrada por arte e indústria do homem. Porém Deus, não levando em conta os tempos desta ignorância, anuncia agora aos homens que todos, em todo o lugar, se arrependam, porque fixou um dia em que há de julgar o mundo conforme a justiça, por meio de um homem, Jesus, acreditando-o junto a todos, no qual fundou a fé, ressuscitando-o dos mortos" (At 17,24-31). Neste trecho não somente afirma, na ausência dos judeus, o Deus Criador do mundo, mas ainda mais, que ele fez habitar na terra todo o gênero humano, como diz Moisés: "Quando o Altíssimo separou as nações, como dispersara os filhos de Adão, estabeleceu os confins dos povos de acordo com o número dos anjos de Deus" (Dt 32,8); e o povo que crê em Deus não está em poder dos anjos, "mas do Senhor, pois o seu povo Jacó se tornou porção de Deus, e a porção de sua herança foi Israel" (Dt 32,9). E quando Paulo se encontrava com Barnabé em Listra da Licaônia e, no nome do Senhor Jesus Cristo, fez andar o coxo de nascimento e a multidão os queria honrar como divindades, por causa do milagre, lhe disse: "Nós somos homens mortais como vós, e vos pregamos que vos convertais destas coisas vãs ao Deus vivo que fez o céu e a terra, o mar e tudo o que há neles; o qual, nos séculos passados, permitiu que todas as nações seguissem os seus caminhos. Todavia, não deixou de dar testemunho de si mesmo, fazendo benefícios, dando chuvas do céu e estações favoráveis para os frutos, dando em abundância o mantimento e a alegria aos vossos corações" (At 14,15-17). Mostraremos, ao expor a doutrina do Apóstolo, em lugar oportuno, como todas as suas epístolas concordam com estas pregações. E enquanto labutamos sobre as provas das Escrituras para compendiar e abreviar o que lá se diz de muitas maneiras, dedica-te, com paciência, tu também, a elas, e não penses que seja tudo palavreado: deves entender que as provas que se encontram nas Escrituras só podem ser produzidas citando as Escrituras. Testemunho de Estêvão -- Também Estêvão, escolhido pelos apóstolos como primeiro diácono, que primeiro seguiu o Senhor no martírio, o primeiro de todos os homens que foi morto pela confissão do Cristo, falou com coragem ao povo e ensinando-o dizia: "O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrar. E o fez passar a esta terra, na qual vós agora habitais. E não lhe deu herança nela, nem o espaço de uma passada, mas prometeu dar-lhe a posse dela a ele e à sua posteridade depois dele. Deus disse-lhe que a sua descendência seria peregrina em terra estranha e a reduziriam à escravidão e a maltratariam pelo espaço de quatrocentos anos, e a nação de quem tiver sido escrava, eu a julgarei, disse o Senhor, e, depois disto, sairão e me adorarão neste lugar. E deu-lhe a aliança da circuncisão, e assim gerou Isaac" (At 7,1-8). E o resto do discurso anuncia o mesmo Deus que esteve com José, com os patriarcas e conversou com Moisés (Cf At 7,9-44). -- Todo o ensinamento dos apóstolos anuncia um só e idêntico Deus que fez emigrar Abraão, lhe fez as promessas da herança, estipulou com ele, no tempo oportuno, a aliança da circuncisão, chamou do Egito a sua descendência, conservada visivelmente pela circuncisão, que lhes fora dada para que não se assemelhassem aos egípcios. Anuncia ainda que este é o Criador de todas as coisas, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus da glória. Os que o quiserem, pelas próprias palavras e atos dos apóstolos, podem aprender tudo isto e dar-se conta de que ele é o único Deus, acima do qual não existe outro. Se, por acaso, existisse outro acima deste, nós diríamos que, comparado com ele, este é infinitamente melhor do que aquele; pois o melhor se manifesta pelas obras, assim como já dissemos, e como os hereges não podem mostrar nenhuma obra do seu Pai, fica provado que este somente é Deus. Se alguém é espírito doente que se ocupa de questões de palavras, e pensa que deve entender alegoricamente o que os apóstolos anunciaram a respeito de Deus, veja que tudo o que dissemos, até agora, demonstra que existe um só Deus, Criador e Autor de todas as coisas e que refutamos e destruímos tudo o que eles afirmam. Constatará que a nossa doutrina está de acordo com a dos apóstolos e com tudo o que ensinavam e criam, isto é, que existe um só Deus, Criador de todas as coisas. Afastará assim da sua mente erro tão grave e blasfêmia contra Deus. Entenderá, por sua conta, os motivos que o levarão a crer que a Lei de Moisés e a graça do Novo Testamento, adaptadas ambas aos seus tempos, foram concedidas pelo único e idêntico Deus, para a utilidade do gênero humano. -- Todos os que têm opiniões erradas, impressionados pela legislação de Moisés, que julgam diversa e contrária à do Evangelho, deixaram de estudar as causas desta diferença entre os dois Testamentos. Desprovidos do amor do Pai e inflados por Satanás voltaram-se para a doutrina de Simão, o mago, afastando-se com o seu pensamento do verdadeiro Deus e acreditaram, inventando outro Deus, ter encontrado algo mais do que os apóstolos, os quais teriam anunciado o Evangelho pensando ainda da mesma forma que os judeus, ao passo que eles seriam mais independentes e sábios do que os apóstolos. Por isso, Marcião e os seus discípulos puseram-se a recortar as Escrituras, rejeitando completamente algumas, mutilando o Evangelho de Lucas e as cartas de Paulo e tendo por autênticas somente as que mutilaram. Nós, apoiados nos textos que ainda conservam, e com a ajuda de Deus, argumentaremos contra eles, em outro livro. Outros, inflados pelo nome da falsa gnose, admitem as Escrituras, mas lhes pervertem o sentido, como expusemos no primeiro livro. Os discípulos de Marcião blasfemam, logo no início, o Criador, declarando-o autor do mal, partindo de princípio dos mais intoleráveis, dizendo que há dois deuses, separados por natureza um do outro, um bom e o outro mau. Os valentinianos, por sua vez, usam nomes mais nobres, proclamando o Criador Pai, Senhor e Deus, mas o seu propósito e sua teoria se revelam mais blasfematórios, ao dizerem que ele não foi produzido por algum dos Éões do Pleroma, mas pela desviação que foi expulsa do Pleroma. A tanto os levou a ignorância da Escritura e da economia de Deus. Nós mostraremos, nas páginas que seguirão, o porquê da diferença entre os Testamentos e também a sua unidade e harmonia. -- Os apóstolos e os seus discípulos ensinavam exatamente o que a Igreja prega: por isso foram perfeitos e chamados à perfeição. Estêvão, que ensinava estas coisas, quando ainda vivo, "viu a glória de Deus e Jesus à sua direita, e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do homem, de pé, à direita de Deus" (At 7,55-56). Dito isto, foi lapidado e coroou assim o ensinamento perfeito, imitando em tudo o Mestre do martírio, rezando pelos que o matavam e dizendo: "Senhor, não lhes imputes este pecado" (At 7,60). É deste modo que eram perfeitos os que conheciam um só e idêntico Deus, que do princípio ao fim dos tempos, socorre, de vários modos, o gênero humano, como diz o profeta Oséias: "Eu multipliquei as visões e fui representado pela mão dos profetas" (Profeta Oséias, 12,11). Os que entregaram sua vida até a morte pelo Evangelho de Cristo, como podiam falar segundo as opiniões comuns dos homens? Se o tivessem feito não teriam sofrido, mas sofreram justamente por pregar coisas contrárias aos que recusavam a verdade. Está claro que não atraiçoavam a verdade, mas pregavam com toda isenção aos judeus e aos gregos: aos judeus pregavam que o Jesus por eles crucificado era o Filho de Deus, o Juiz dos vivos e dos mortos, que recebera do Pai o reino eterno em Israel, como temos mostrado; e aos gregos anunciavam o único verdadeiro Deus, Criador de todas as coisas e o seu Filho, Jesus Cristo. Os apóstolos, reunidos em concílio -- Isto aparece mais claramente ainda pela carta que os apóstolos enviaram, não aos judeus ou aos gregos, mas aos pagãos que acreditavam em Cristo, para confirmá-los na fé. Alguns vieram da Judéia a Antioquia, onde, pela primeira vez, os discípulos do Senhor foram chamados cristãos (At 15,1; 11,26) por causa da sua fé em Cristo, e procuravam convencer os que haviam crido em Cristo a se fazerem circuncidar e a observarem as outras prescrições da Lei. Então Paulo e Barnabé foram a Jerusalém para tratar desta questão com os outros apóstolos. Reuniu-se toda a igreja e Pedro disse: "Homens irmãos, vós sabeis que Deus, há muito, me escolheu entre vós para que da minha boca ouvissem os gentios a palavra do Evangelho e cressem. Deus, que conhece os corações, deu testemunho em favor deles, conferindo-lhes o Espírito Santo, como também a nós. Não fez diferença alguma entre nós e eles, purificando com a fé os seus corações. Logo, por que tentais agora a Deus, impondo um jugo nas cervizes dos discípulos, que nem nossos pais, nem nós podemos suportar? Mas pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, cremos ser salvos, do mesmo modo que eles" (At 15,7-11). Em seguida Tiago disse: "Homens irmãos, Simão contou como Deus cuidou em tirar do meio dos gentios um povo para o seu nome. Com isto concordam as palavras dos profetas, como está escrito: Depois disto voltarei e reedificarei o tabernáculo de Davi que caiu, repararei as suas ruínas e o levantarei, a fim de que busquem a Deus todos os outros homens e todas as gentes, sobre os quais foi invocado o meu nome, diz o Senhor que faz estas coisas. Deus conhece desde a eternidade a sua obra: por isso eu sou de opinião que não se devem inquietar os que dentre os gentios se convertem a Deus, mas que se lhes prescreva que se abstenham das contaminações dos ídolos, da fornicação e do sangue, que não façam aos outros o que não querem que se faça a eles" (At 15,13-20). Tendo todos concordado com estas palavras, escreveram-lhes o seguinte: "Os apóstolos e os presbíteros, vossos irmãos, aos irmãos convertidos dos gentios, que estão em Antioquia, na Síria e na Cilícia, saúde. Tendo nós sabido que alguns, indo do meio de nós, sem nenhuma ordem da nossa parte, vos perturbaram com discursos que agitaram as vossas almas, dizendo: Fazei-vos circuncidar e observai a Lei, aprouve a nós, depois de nos termos reunido, escolher alguns homens e enviá-los a vós com os nossos muito amados Barnabé e Paulo, homens que têm exposto as suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, que lhes exporão as mesmas coisas de viva voz. Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor mais encargos além destes indispensáveis: que vos abstenhais das coisas imoladas aos ídolos, do sangue e da fornicação e o que não quereis que se vos faça, não o façais aos outros; ao guardar-vos destas coisas fareis bem e caminhareis no Espírito Santo" (At 15,23-29). É, portanto, evidente, de tudo isso, que os apóstolos não ensinavam outro Pai, mas anunciavam a nova Aliança da liberdade aos que, de maneira nova, pelo Espírito Santo, criam em Deus. E, por esta mesma razão que se perguntavam se ainda era necessário circuncidar os discípulos ou não, demonstravam abertamente não possuírem idéia de outro Deus. -- Se não fosse assim não teriam pelo Antigo Testamento reverência tão grande que sequer queriam comer com os gentios. Com efeito, Pedro, mesmo que enviado a eles para os instruir, impressionado pela visão que tivera, lhes falava com grande temor: "Vós sabeis como é coisa abominável para um homem judeu unir-se a estrangeiro ou aproximar-se dele. Mas Deus mostrou-me que a nenhum homem chamasse profano ou impuro. Por isso vim sem hesitação" (At 10,28-29). Com estas palavras dá a entender que se não lhe fosse ordenado não teria ido a eles, nem lhes teria dado tão facilmente o batismo se não os tivesse escutado profetizar pela ação do Espírito Santo descido sobre eles. Por isso dizia: "Porventura pode alguém recusar a água do batismo aos que receberam o Espírito Santo como nós?" (At 10,47). Querendo dizer aos que o acompanhavam que se o Espírito Santo não tivesse descido sobre eles, alguém poderia ter-lhes proibido o batismo. Os apóstolos com Tiago davam liberdade aos pagãos, confiando-os ao Espírito de Deus, mas, quanto a eles mesmos, sabendo que se tratava do mesmo Deus, perseveravam nas observâncias antigas. E até Pedro, que antes comia com os convertidos do paganismo, convencido pela visão e pelo fato de o Espírito ter descido sobre eles, se apartou e já não comia com eles, quando chegaram alguns de Tiago, para não ser acusado por eles. E Paulo diz que também Barnabé fez o mesmo (Cf Gl 2,12-13). Assim os apóstolos, tornados testemunhas de tudo o que o Senhor disse e fez - Pedro, Tiago e João estiveram com Jesus em todo lugar, - observavam com respeito as disposições da Lei mosaica, indicando que provinham de um só e idêntico Deus. Eles não se teriam portado assim, como já dissemos anteriormente, se tivessem aprendido do Senhor um Deus diverso do que deu os preceitos da Lei. 4º. Solidariedade dos hagiógrafos Escritos não paulinos -- Os que sustentam que somente Paulo conheceu a verdade, pois lhe foi "manifestado o mistério por revelação" (Ef 3,3), são refutados pelo próprio Paulo quando diz que um só e idêntico Deus confiou a Pedro o apostolado entre os circuncisos e a ele entre os gentios (Gl 2,8). Pedro era apóstolo do mesmo Deus de quem o era Paulo; e este mesmo Deus e o Filho de Deus que Pedro anunciava entre os circuncisos, Paulo o anunciava entre os gentios. Pois nosso Senhor não veio somente para salvar Paulo, nem Deus é tão pobre para ter somente um apóstolo que conheça a economia de seu Filho. O próprio Paulo dizendo: "Quanto são belos os pés dos que evangelizam o bem, e evangelizam a paz" (Rm 10,15; Is 52,7); afirma claramente que não era um só, e sim muitos a evangelizar a verdade. Ainda, na carta aos coríntios, depois de ter enumerado os que viram o Senhor depois da ressurreição, acrescenta: "Tanto eu como eles pregamos assim e assim vós crestes"; proclamando que a pregação de todos os que viram a ressurreição do Senhor é uma só e idêntica (1Cor 15,11). -- O Senhor respondia assim a Filipe que queria ver o Pai: "Há tanto tempo estou convosco e ainda não me conheceste, Filipe? Quem me vê, vê também o Pai. Como dizes pois: Mostra-nos o Pai? Eu estou no Pai e o Pai está em mim, e vós já o conhecestes e ouvistes" (Jo 14,9-10 7). Ora, dizer que não conheceram a verdade aqueles aos quais o Senhor dá o testemunho de que conheceram e viram nele o Pai, e o Pai é a Verdade, é coisa de homens que afirmam o fal so e dos que se afastaram da doutrina de Cristo. Como o Senhor enviaria os doze apóstolos às ovelhas desgarradas da casa de Israel, se não conhecessem a verdade? E como os setenta poderiam pregar sem antes conhecer a verdade que pregariam? Como podia ignorá-la Pedro, a quem o Senhor disse que nem a carne, nem o sangue lha revelaram, mas o Pai que está nos céus? Justamente como "Paulo, apóstolo não enviado pelos homens ou por obra dos homens, mas por obra de Jesus Cristo e de Deus Pai" (Gl 1,1). O Filho levou os apóstolos ao Pai e o Pai lhes revelou o Filho. -- Se Paulo consentiu aos que o citaram diante dos apóstolos por causa de questão controvertida e foi com Barnabé a Jerusalém para ver os apóstolos, não foi sem motivo, mas para que fosse confirmada por eles a liberdade dos gentios. É o que ele próprio diz na carta aos Gálatas: "Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalém com Barnabé, tomando também comigo Tito. Subi em conseqüência de uma revelação e conferi com eles o Evangelho que prego entre os gentios". E diz ainda: "Naquele momento cedemos à injunção para que a verdade do Evangelho permanecesse entre vós" (Gl 2,1-2 5). Ora, se quisermos saber exatamente, dos Atos dos apóstolos, a época em que se deu esta subida a Jerusalém por causa da questão mencionada, veremos que concorda com a de que fala Paulo. Eis, portanto, que a pregação de Paulo e o testemunho de Lucas relativo aos apóstolos são concordes e, por assim dizer, idênticos. Os escritos de Lucas -- Que este Lucas tenha sido inseparável de Paulo e seu colaborador na pregação do Evangelho, é ele próprio que no-lo dá a conhecer, não para gloriar-se, mas levado pela própria verdade. Com efeito, quando Barnabé e João, chamado Marcos, se separaram de Paulo e embarcaram para Chipre, nós viemos a Trôade (Cf At 15,39; 16,8); e, tendo Paulo visto em sonho um homem da Macedônia que lhe dizia: "Paulo, passa à Macedônia e ajuda-nos!”, "logo, diz Lucas, procuramos partir para a Macedônia, certificados de que Deus nos chamava a ir lá a evangelizar. Partindo, portanto, de Trôade, dirigimos o navio para Samotrácia". Depois, indica de maneira precisa toda a viagem restante até Filipos e como anunciaram pela primeira vez a palavra: "Sentados, ele diz, falávamos às mulheres que tinham concorrido" (At 16,9-11 13); e, depois de dizer quem e quantos creram, continua: "Nós, depois dos dias dos ázimos, embarcamos em Filipos e chegamos a Trôade, onde nos demoramos sete dias" (At 20,6). E relata na ordem o resto da viagem com Paulo, indicando com todo cuidado os lugares, as cidades, o número dos dias para chegar a Jerusalém. Descreve o que ali aconteceu a Paulo: como, acorrentado, foi enviado a Roma, o nome do centurião que o tomou aos seus cuidados, as insígnias dos navios; como naufragaram e qual a ilha em que se salvaram; como foram recebidos com humanidade, enquanto Paulo curava o primeiro magistrado da ilha; como navegaram até Putéolos e de lá chegaram a Roma e quanto tempo permaneceram aí. Estando presente a todos estes acontecimentos, Lucas anotou-os diligentemente sem que se possa achar nele mentira, nem a ilação, por serem acontecimentos conhecidos, e por ele ser mais ancião do que todos os que hoje ensinam o erro, e por não desconhecer a verdade. Que ele não só foi o companheiro, mas também o colaborador dos apóstolos, especialmente de Paulo, é o que o próprio Paulo declara em suas cartas, quando diz: "Demas abandonou-me e foi para Tessalônica, Crescente foi para a Galácia, Tito para a Dalmácia, só Lucas está comigo" (2Tm 4,10-11). O que bem mostra como Lucas esteve sempre unido a Paulo e nunca se separou dele. Ele diz ainda na carta aos Colossenses: "Saúda-vos Lucas, o médico muito amado" (Cl 4,14). Ora, se Lucas, que sempre pregou e evangelizou com Paulo, que teve confiada a missão de nos transmitir o Evangelho, não aprendeu dele nenhuma outra coisa diferente, como provamos por meio de suas palavras, como podem estes, que nunca estiveram com Paulo se gloriar de ter aprendido mistérios ocultos e inexprimíveis? -- Que Paulo ensinasse com simplicidade o que sabia não somente aos seus discípulos, mas a todos os que o escutavam, ele mesmo o declara. Tendo convocado a Mileto os bispos e os presbíteros de Éfeso e das cidades vizinhas, quando estava para ir a Jerusalém para celebrar o Pentecostes, depois de lhes ter atestado muitas coisas e dito o que lá lhe devia acontecer, acrescentou: "Agora sei que não tornareis mais a ver a minha face. Por isso eu vos protesto neste dia que estou limpo do sangue de todos, porque não me esquivei a anunciar-vos todas as disposições de Deus. Atendei a vós mesmos e a todo o rebanho, sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para governardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu com seu próprio sangue" (At 20,25-28). Depois, denunciando os falsos doutores que viriam, disse: "Eu sei que depois da minha partida, se introduzirão, entre vós, lobos arrebatadores, que não pouparão o rebanho. Dentre vós mesmos hão de levantar-se homens a ensinar doutrinas perversas, para levarem atrás de si discípulos" (At 20,29-30). "Não me esquivei, disse, a anunciar-vos todas as disposições de Deus": assim os apóstolos, com simplicidade, sem inveja de ninguém, comunicavam a todos o que tinham aprendido do Senhor; e é assim também que Lucas nos transmitiu, sem ciúme algum, o que tinha aprendido deles, como ele mesmo diz: "Como nos referiram os que, desde o princípio, foram as testemunhas oculares e os servos do Verbo" (Lc 1,2). -- Ora, se alguém rejeita Lucas com o pretexto de ele não ter conhecido a verdade, evidentemente rejeita o Evangelho de que pretende ser o discípulo. Com efeito, muitos e importantíssimos acontecimentos do Evangelho os conhecemos somente por meio dele, como a geração de João e a história de Zacarias; a anunciação do anjo a Maria; a exclamação de Isabel; a descida dos anjos aos pastores e as palavras que lhes disseram; o testemunho de Ana e de Simeão acerca de Cristo; a perda de Jesus, em Jerusalém, aos doze anos; o batismo de João, com quantos anos Jesus foi batizado e o ano, isto é, o décimo quinto de Tibério César. E com referência ao magistério de Jesus, as palavras que disse aos ricos: "Ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação!” e: "Ai de vós os que estais saciados, porque tereis fome; os que agora rides, porque chorareis!” e: "Ai de vós, quando os homens vos louvarem, porque assim faziam aos falsos profetas, vossos pais". Muitas coisas como estas só aprendemos de Lucas, como ficamos conhecendo por meio dele o muito que Jesus fez, e os hereges servem-se disso, por exemplo: o grande número de peixes pescados pelos que estavam com Pedro, quando o Senhor deu a ordem de lançar as redes; aquela mulher que sofria há dezoito anos e que foi curada em dia de sábado; o hidrópico que o Senhor curou em dia de sábado e como o Senhor se explicou por tê-lo sarado naquele dia; como ensinou os discípulos a não procurarem os primeiros lugares; como se devem convidar os pobres e pequenos que não têm possibilidade de retribuir; aquele que, em plena noite, foi bater à porta e pedir uns pães, que lhe foram dados por causa da importunação; o que se passou quando Jesus estava jantando em casa do fariseu e a mulher pecadora lhe beijava e ungia os pés com ungüento e tudo o que, então e por causa dela, o Senhor disse a Simão acerca dos dois devedores; a parábola do rico que armazenou em celeiro novo a sua colheita e ao qual foi dito: "Esta noite virão pedir a tua alma, e o que armazenaste de quem será?" E também aquela do rico que se vestia de púrpura e se banqueteava alegremente e do pobre Lázaro; a resposta aos seus discípulos que lhe tinham pedido: "Aumenta em nós a fé"; a conversação com Zaqueu, o publicano; o fariseu e o publicano que rezavam juntos no templo; os dez leprosos que foram purificados no caminho; a ordem de reunir das praças e das estradas os coxos e os cegos para a festa de casamento; a parábola do juiz que não temia a Deus e que pela importunação da viúva teve que lhe fazer justiça; a figueira plantada na vinha e que não produzia frutos; e muitas outras coisas que se poderiam encontrar e que foram relatadas somente por Lucas, e que também Marcião e Valentim usam; e sobretudo as palavras que, depois da ressurreição, o Senhor disse aos discípulos ao longo do caminho, e como o reconheceram ao partir o pão. -- Os hereges deveriam, por isso, aceitar necessariamente tudo o restante que foi dito por Lucas ou então renunciar também ao que acabamos de lembrar, porque ninguém que tenha bom senso lhes concederia aceitarem algumas palavras de Lucas como se fossem verdade e rejeitarem outras como se não tivesse conhecido a verdade. Se os marcionitas as recusarem não terão o Evangelho, porque é mutilando o evangelho de Lucas, como dissemos acima, que se gloriam de ter o Evangelho. E os valentinianos deveriam calar sua abundante loquacidade, porque é justamente deste Evangelho que tiraram muitos pretextos para suas subtilezas e tiveram a ousadia de interpretarem mal o que foi bem expresso. Se, porém, forem levados a aceitar também o resto, isto é, o Evangelho na sua integralidade e a doutrina dos apóstolos, é necessário que façam penitência para serem salvos do perigo. Os escritos paulinos -- Repetiremos os mesmos argumentos para os que não aceitam o apóstolo Paulo. Como devem renunciar às outras palavras do Evangelho de que tivemos conhecimento somente por meio de Lucas e não se servir delas, assim, se as aceitarem todas, obrigatoriamente deverão aceitar o seu testemunho em favor de Paulo. É Lucas que diz que o Senhor falou em primeiro lugar a Paulo, do alto do céu, dizendo: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" Eu sou Jesus Cristo que tu persegues (At 9,4-5; 22,7-8; 26,14-15); e, em segundo lugar a Ananias, acerca de Paulo: "Vai, porque ele é para mim vaso de eleição, para levar o meu nome diante das nações, dos reis e dos filhos de Israel. E eu lhe mostrarei quanto deverá sofrer pelo meu nome" (At 9,15-16). Os que não aceitam que foi escolhido pelo Senhor para levar com coragem o seu nome às nações já mencionadas, desprezam a escolha do Senhor e separam a si mesmos da comunhão com os apóstolos. Com efeito, não podem sustentar que Paulo não era apóstolo, porque foi eleito justamente para isto, nem podem tachar de mentiroso Lucas, que nos anuncia a verdade com toda diligência. Talvez seja por isso que Deus quis que muitíssimas notícias do Evangelho nos fossem reveladas somente por Lucas e que todos precisassem servir-se delas para que, deixando-se guiar pelo testemunho subseqüente a respeito dos atos e a doutrina dos apóstolos, guardassem inalterada a regra da verdade e pudessem ser salvos. Assim, o seu testemunho é veraz e o ensinamento dos apóstolos é claro, firme e vem de homens que nada ocultaram, que nunca ensinaram uma coisa em particular e outra em público. Atitude dos hereges -- Com efeito, é esta a artimanha que usam os simuladores, os sedutores perversos e os hipócritas e é precisamente assim que agem os valentinianos. Eles fazem discursos ao povo com a finalidade de atingir os que pertencem à Igreja, que eles chamam de gente comum ou gente de igreja, e assim enganam e atraem os mais simples, simulando a nossa maneira de falar, para que venham mais vezes a escutá-los. E se queixam de nós porque, mesmo pensando como nós, nós nos recusamos, sem motivo, a estar em comunhão com eles: dizem as mesmas coisa que nós, professam a mesma doutrina e, mesmo assim, os chamamos hereges! Mas quando, à força de apresentar dificuldades, convencem alguém a abandonar a fé, e a levar os ouvintes a não contradizê-los, então, separadamente, desvendam-lhes o mistério inexprimível de seu Pleroma. Enganam-se os que acreditam poder distinguir só pelas palavras o que é verossímil do que é verdadeiro, porque o erro é convincente, verossímil, disfarçado, ao passo que a verdade é sem véus e, por isso, acessível também aos pequenos. E se algum dos ouvintes pede esclarecimentos ou lhes apresenta objeções, dizem-lhe que não entende a verdade e não recebeu do alto a semente da Mãe deles; então se recusam a responder-lhe, porque, dizem, pertence ao Intermediário, isto é, aos psíquicos. Se alguém entrega-se a eles como cordeirinho, uma vez iniciado nos seus mistérios e tornado beneficiário da sua redenção, envaidece-se de forma tal que já não pensa estar na terra, nem no céu, mas de ter entrado no Pleroma e de ter abraçado o seu anjo; e então anda com ares de importância, olhando do alto, como galo enfatuado. Alguns dentre eles dizem que é necessária boa conduta para receber em si o homem que vem do alto e por isso afetam gravidade cheia de desprezo, mas a maioria afastam estes escrúpulos e, a pretexto de serem já perfeitos, vivem sem discrição e no desprezo de tudo, definem a si mesmos espirituais e pretendem conhecer desde já, no seio do Pleroma, o seu lugar de refrigério. -- Mas voltemos ao nosso argumento. Foi demonstrado claramente que os pregadores da verdade e os apóstolos da liberdade não chamaram Deus ou Senhor a nenhum outro a não ser o verdadeiro Deus Pai e ao seu Verbo, que tem a primazia sobre todas as coisas. E também foi mostrado à evidência que os apóstolos confessaram como Senhor e Deus somente o Criador do céu e da terra, aquele que conversou com Moisés, que deu a economia da Lei, que chamou os patriarcas e não conheceram mais ninguém. E assim, ficou patente, pelas próprias palavras dos apóstolos e dos seus discípulos, o que eles pensavam sobre Deus. JESUS CRISTO É UMA ÚNICA PESSOA, VERBO ENCARNADO E SALVADOR Erros dos hereges -- Há alguns que dizem que Jesus foi o receptáculo do Cristo; nele Cristo teria descido do alto sobre Jesus em forma de pomba e, depois de ter revelado o Pai inexprimível, teria reentrado, de forma incompreensível e invisível, no Pleroma. Tudo isto teria ficado ignorado não somente pelos homens, mas também pelas Potências e Virtudes que estão no céu; Jesus é o Filho, Cristo é o Pai e o Pai de Cristo é Deus. Outros dizem que Cristo sofreu somente na aparência, sendo impassível por natureza. Os valentinianos, por sua vez, ensinam que o Jesus da economia é aquele que passou por Maria; sobre ele desceu o Salvador do alto, também chamado Cristo, porque traz o nome de todos os que o emitiram; este comunicou o seu poder e o seu nome ao Jesus da economia a fim de que, por seu meio, a morte fosse vencida e, por meio do Salvador descido do alto, o Pai fosse conhecido. Este Salvador é o receptáculo do Cristo e de todo o Pleroma. Assim, com as palavras confessam um só Jesus Cristo, mas no pensamento distinguem várias pessoas - com efeito, de acordo com a sua regra de fé, que já apresentamos, o Cristo emitido pelo Unigênito para reparar o Pleroma é distinto do Salvador, emitido para a glorificação do Pai, distinto, ainda, do homem da economia e somente este teria sofrido a paixão, ao passo que o Salvador, trazendo o Cristo, voltava ao Pleroma. É necessário, portanto, que apresentemos por inteiro a doutrina dos apóstolos acerca de nosso Senhor Jesus Cristo, demonstrando que não somente nada disso passou pelas suas cabeças, mas que, inspirados pelo Espírito Santo, até deram a conhecer antecipadamente aqueles que, sob o influxo de Satanás, teriam ensinado estas coisas, para corromper a fé de muitos e afastá-los da vida. O Verbo identifica-se com o Cristo -- Quanto a João, já demonstramos suficientemente com as próprias palavras dele, que conheceu um só e idêntico Verbo de Deus, o Filho Unigênito, que se encarnou para nossa salvação, nosso Senhor Jesus Cristo. Mateus, também, conhece um só e mesmo Jesus Cristo, de quem narra a geração humana da Virgem, segundo a pro messa feita por Deus a Davi de suscitar do fruto de seu seio um rei eterno, como muito antes já prometera a Abraão. Diz ele: "Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (Mt 1,1). Depois, para eliminar de nossa mente toda suspeita em relação a José, diz: "A geração de Cristo foi assim: estando desposada com José, achou-se ter concebido por obra do Espírito Santo, antes de coabitarem" (Mt 1,18). Depois, como José pensasse em repudiar Maria por estar grávida, um anjo de Deus se lhe apresentou e lhe disse: "Não temas receber em tua casa Maria, tua esposa, porque o que nela foi concebido é obra do Espírito Santo. Dará à luz um filho, ao qual darás o nome Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta, que diz: "Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe darão o nome de Emanuel, que quer dizer: Deus conosco" (Mt 1,20-28; Is 7,14). Com isto afirma claramente que se realizou a promessa feita aos pais, do nascimento do Filho de Deus da Virgem e que justamente este é o Cristo Salvador, anunciado pelos profetas, sem distinguir, como os hereges, um Jesus nascido de Maria e um Cristo descido do alto. Mateus poderia dizer de outra forma: "A geração de `Jesus' deu-se assim"; -- mas o Espírito Santo, ao prever estes intérpretes perversos e ao precaver-nos contra as suas fraudes, disse por meio de Mateus: "A geração de `Cristo' deu-se assim" -- e acrescenta que ele é o Emanuel, para que não o julgássemos simples homem - com efeito, não foi pela vontade da carne ou pela vontade do homem, mas pela vontade de Deus que o Verbo se fez carne - e para que sequer suspeitássemos que um era Jesus e outro o Cristo e soubéssemos que é única e idêntica pessoa. -- A mesma coisa afirmou Paulo ao escrever aos romanos: "Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus, o qual tinha prometido antes pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca do seu Filho, que nasceu da posteridade de Davi, segundo a carne, declarado Filho de Deus, com poder, segundo o seu Espírito de santificação, pela sua ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo Senhor nosso" (Rm 1,1-4). Na mesma carta aos Romanos ele diz ainda, a respeito de Israel: -- "Dos quais são os patriarcas e dos quais descende o Cristo, segundo a carne, o qual está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos" (Rm 9,5). Diz ainda na carta aos Gálatas: "Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, a fim de que remisse os que estavam sob a Lei, para que recebêssemos a adoção de filhos" (Gl 4,4-5). Afirma, portanto, claramente que existe um único Deus que prometeu enviar o Filho, um único Jesus Cristo, Senhor nosso, da descendência de Davi pela concepção que teve de Maria, predestinado a ser Filho de Deus, Jesus Cristo, pelo seu poder, por meio do Espírito de santidade, em seguida à ressurreição dos mortos, para ser o primogênito dos mortos, como é o primogênito de toda a criação, Filho de Deus, feito Filho do homem, para que recebêssemos a adoção de filhos, enquanto o homem traz, contém e abraça o Filho de Deus. Eis por que também Marcos diz: "Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus, conforme está escrito nos profetas" (Mc 1,1-2). Ele reconhece um único Filho de Deus Jesus Cristo, anunciado pelos profetas, nascido do fruto do seio de Davi, Emanuel, mensageiro do grande desígnio do Pai, por meio do qual fez nascer o Oriente, o justo, sobre a casa de Davi, levantou o poder de sua salvação, suscitou um testemunho em Jacó, como diz Davi, explicando os motivos de seu nascimento, e "pôs uma lei em Israel, para que a soubesse a geração seguinte; os filhos que hão de nascer e se hão de levantar, o contarão também a seus filhos, para que ponham em Deus a sua esperança e busquem com cuidado os seus mandamentos" (Sl 78,5-7). Assim também o anjo dando a boa-nova a Maria, diz: "Este será grande, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi" (Lc 1,32), proclamando que o Filho do Altíssimo é também filho de Davi. E o próprio Davi, conhecendo pelo Espírito a economia de sua vinda, pela qual reina soberanamente sobre todos os vivos e os mortos, proclama que é o Senhor que está sentado à direita do Pai altíssimo. -- Também Simeão, "que recebera do Espírito Santo o oráculo de que não morreria antes de ver o Cristo" (Lc 2,26), quando recebeu em suas mãos Jesus, o primogênito da Virgem, louvou a Deus, dizendo: "Agora, Senhor, deixa partir o teu servo em paz segundo a tua palavra; porque os meus olhos viram a tua salvação que preparaste ante a face de todos os povos; luz para iluminar as nações, e glória de Israel, teu povo" (Lc 2,28-32); reconhecendo que a criança que tinha entre os braços, Jesus, o filho de Maria era o Cristo, Filho de Deus, luz dos homens e glória de Israel, paz e refrigério dos que adormeceram. Pois, esta criança já despojava os homens, tirando-lhes a ignorância e concedendo-lhes o conhecimento de si mesmo e tornando seus despojos os que o conheciam, segundo a palavra de Isaías: "Dá-lhe o nome: Toma depressa os despojos, Faze velozmente a presa" (Is 8,3). Esta, com efeito, é a obra de Cristo. Era, portanto, o Cristo em pessoa que Simeão segurava enquanto abençoava o Altíssimo; era por ter visto o Cristo que os pastores glorificavam a Deus; era o Cristo, no seio de Maria, que João, estando no seio de sua mãe, reconhecia e saudava com alegria, como o seu Senhor; era o Cristo que os magos viram e adoraram, depois de lhe ter oferecido os dons de que falamos antes, e se ter prostrado aos pés do Rei eterno, após o que voltaram por outro caminho e não mais pelo caminho dos assírios, "porque antes que a criança saiba dizer papai e mamãe, terá em mãos o poder de Damasco e os despojos de Samaria, diante do rei dos assírios" (Is 8,4), manifestando de modo velado, mas poderoso, que o Senhor, com mão secreta, triunfava de Amalec. Era ainda por isso que tirava as crianças da casa de Davi que tiveram a sorte de nascer naquele momento, para enviá-las à frente dele ao seu reino; ele, criança, preparava para si crianças mártires, entre os filhos dos homens, porque foi justamente por Cristo, que nasceu em Belém de Judá, na cidade de Davi, que elas foram mortas, como dizem as Escrituras. -- É ainda por este motivo que o Senhor dizia aos dois discípulos, depois da sua ressurreição: "Ó estultos e tardos de coração para crer tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que o Cristo sofresse tais coisas e que assim entrasse na sua glória?" (Lc 24,25-26). E diz ainda aos discípulos: "Isto são as coisas que eu vos dizia, quando ainda estava convosco, que era necessário que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos" (Lc 24,44). Então abriu-lhes o entendimento, para compreenderem as Escrituras; e disse-lhes: "Assim está escrito, e assim era necessário que o Cristo padecesse e ressuscitasse dos mortos e que em seu nome se pregasse a penitência e a remissão dos pecados a todas as nações" (Lc 24,44-47). Este é aquele que nasceu de Maria, porque "é necessário que o Filho do homem padeça muitas coisas, que seja rejeitado, que seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia" (Mt 16,21; Mc 8,31; Lc 9,22). O Evangelho não conhece, pois, nenhum outro Filho do homem senão o que nasceu de Maria e padeceu, e certamente não conhecia um Cristo que teria levantado vôo de Jesus, antes da paixão; só conhece naquele que nasceu Jesus Cristo, o Filho de Deus, e que o mesmo padeceu e ressuscitou. A mesma coisa afirma João, o discípulo do Senhor: "Estas coisas foram escritas a fim de que creiais que Jesus é o Cristo, Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome" (Jo 20,31). Ele prevê antecipadamente essas teorias blasfemas desses tais que, quanto a eles, dividem o Senhor, declarando-o composto por esta e aquela outra substância. Eis por que, na sua carta, nos dá ainda este testemunho: "Filhinhos, é a última hora. Como ouvistes dizer, o Anticristo está para vir, mas digo-vos que já agora há muitos anticristos, donde conhecemos que é a última hora. Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos, porque se tivessem sido dos nossos, ficariam certamente conosco; mas aconteceu para que se conheça que nem todos são dos nossos. Sabei que toda mentira é estranha e não vem da verdade. Quem é mentiroso se não aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o Anticristo" (1Jo 2,18-19 21-22). Jesus identifica-se com o Cristo -- Todos estes, de quem falamos, quando confessam um só Cristo com a boca, ridicularizam a si mesmos, falando uma coisa e pensando outra. A teoria deles, aliás muito variada, como demonstramos, apresenta aquele que padeceu e nasceu, isto é, Jesus, distinto do que desceu nele e depois subiu, isto é, o Cristo: o primeiro derivaria do Demiurgo, ou seria o Jesus da economia, ou o filho de José, capaz de sofrer; o outro teria descido das regiões invisíveis e inexprimíveis e é invisível, incompreensível e impassível. Assim se extraviam longe da verdade porque o seu pensamento se afasta do verdadeiro Deus. Eles não entendem que o Verbo Unigênito de Deus, sempre achegado ao gênero humano, que se uniu intimamente à sua obra pelo beneplácito do Pai, e se fez carne, outro não é senão Jesus Cristo nosso Senhor, que por nós sofreu, ressuscitou e voltará, na glória do Pai, para ressuscitar todo homem, revelar a salvação e aplicar a regra do justo juízo a todos os que estão submetidos ao seu poder. Portanto, existe um só Deus Pai, como dissemos, e um só Jesus Cristo, nosso Senhor, que se torna presente por meio de toda a economia e recapitula em si todas as coisas. Neste "todas as coisas" está incluído o homem, criatura de Deus, e, recapitulando em si também o homem, de invisível que era tornou-se visível, de incompreensível, inteligível, de impassível, passível, de Verbo, homem. Recapitulou todas as coisas em si para que ele, que como Verbo de Deus tem a primazia entre os seres celestes, espirituais e invisíveis, a tivesse também entre os seres visíveis e corporais, e para que, ao assumir em si esta primazia e ao tornar-se cabeça da Igreja, atraísse a si todas as coisas, no tempo oportuno. -- Não há nada de inconveniente ou de intempestivo nele, como não há nada de incoerente no Pai, que prevê todas as coisas, depois realizadas pelo Filho de maneira conveniente, oportuna e no tempo devido. Por isso, quando Maria quis apressar o sinal maravilhoso do vinho para participar antes do tempo da taça antecipada, o Senhor moderou a sua pressa intempestiva e lhe disse: "Que importa a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora" (Jo 2,4), porque esperava a hora prevista pelo Pai. Por isso, ainda, mesmo tendo muitas vezes a vontade de o prender, "ninguém lhe lançou as mãos, porque não tinha ainda chegado a hora" (Jo 7,30) de ser preso, o tempo da paixão previsto pelo Pai, como diz também o profeta Habacuc: "Quando chegarem os anos tu serás reconhecido, quando se avizinhará o tempo te manifestarás; quando a minha alma estará perturbada por causa da tua cólera, lembrar-te-ás da tua misericórdia" (Hb 3,2). E Paulo, por sua vez, diz: "Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho" (Gl 4,4). Pode-se ver, de tudo isto, que todas as coisas previstas pelo Pai são realizadas com ordem e tempestivi dade, no tempo prefixado e conveniente, por nosso Se nhor, único e idêntico, rico e multímodo, porque obedece à vontade rica e multíplice do Pai e é ao mesmo tempo Salvador dos que se salvam, Senhor dos que estão submetidos ao seu poder, Deus das coisas criadas, Unigênito do Pai, Cristo profetizado e Verbo de Deus, encarnado quando veio a plenitude do tempo em que o Filho de Deus se devia tornar Filho do homem. -- Deste modo estão todos fora da economia os que, a pretexto da gnose, entendem como distintos Jesus, o Cristo, o Unigênito, o Verbo e o Salvador que seria a emissão de todos os Éões lançados na decadência, como afirmam estes discípulos do erro, que por fora são ovelhas, porque a linguagem exterior os faz parecer semelhantes a nós, pelo fato de dizer as mesmas coisas que nós, mas por dentro são lobos, porque a sua doutrina é homicida enquanto inventa uma pluralidade de deuses, imagina uma multidão de pais e faz em pedaços e divide, de várias formas, o Filho de Deus. O Senhor nos preveniu para que tomássemos cuidado com eles e o seu discípulo João, na carta já citada, nos ordena evitá-los, dizendo: "Muitos sedutores se têm levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo veio na carne. Estes tais são os sedutores, são os anticristos. Tomai cuidado com eles para não perder o fruto do vosso trabalho" (2Jo 7-8). E ainda na carta: "Muitos falsos profetas vieram ao mundo. Nisto se conhece o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne, é de Deus; todo o espírito que divide Jesus, não é de Deus, mas do anticristo" (1Jo 4,1-3). Estas palavras são semelhantes às do Evangelho, em que se diz: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós". Eis por que ele ainda proclama, na sua carta: "Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus" (Jo 1,14; 1Jo 5,1), reconhecendo um único e mesmo Jesus Cristo, para quem se abriram as portas do céu pela sua assunção na carne e que, na mesma carne em que sofreu, nos virá revelar a glória do Pai. -- Paulo é do mesmo parecer quando escreve aos romanos: -- "com maior razão os que recebem a abundância da graça e da justiça pela vida, reinarão por obra do único Jesus Cristo" (Rm 5,17). Ele não conhece um Cristo que tenha levantado vôo de Jesus, como não conhece um Salvador do alto, incapaz de sofrer, porque se um sofreu e o outro ficou impassível, um nasceu e o outro desceu nele e depois o deixou, evidentemente já não se trata de único indivíduo, mas de dois. E porque o Apóstolo reconhece um único Jesus Cristo, que nasceu e sofreu, diz ainda na mesma carta: "Não sabeis que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, também nós vivamos vida nova?" (Rm 6,3-4). Outra vez, para indicar que o mesmo Cristo que sofreu é o Filho de Deus que morreu por nós e nos resgatou pelo seu sangue, no tempo preestabelecido, diz: "Por que motivo, pois, quando nós ainda estávamos enfermos, morreu Cristo pelos ímpios, no tempo determinado? Deus manifesta a sua caridade para conosco, porque, quando ainda éramos pecadores, no tempo oportuno, morreu Cristo por nós. Pois muito mais agora, que somos justificados pelo seu sangue, seremos salvos da ira por ele mesmo. Porque se, sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida" (Rm 5,6 8-10). Paulo afirma aqui, claramente, que o mesmo que foi capturado, sofreu e derramou o seu sangue por nós, é o Cristo, Filho de Deus, que ressuscitou e foi elevado ao céu. Em outro lugar ele diz: "Cristo morreu, mas também ressuscitou, ele que está sentado à direita de Deus" (Rm 8,34). E ainda: "Sabendo que Cristo, ressuscitado dos mortos, já não morrerá" (Rm 6,9). Disse antecipadamente estas palavras que citamos, porque via, no Espírito, as distinções destes maus mestres e para tirar todo pretexto a divergências. E um pouco mais adiante diz: "Se o Espírito do que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais" (Rm 8,11). Parece ouvi-lo gritar aos que querem ouvir: Não vos enganeis, um e idêntico é Jesus Cristo, o Filho de Deus que pela sua paixão nos reconciliou com Deus, ressuscitou dos mortos, está sentado à direita do Pai e é perfeito em tudo; açoitado, não devolvia os golpes, sofrendo, não ameaçava, tratado injustamente, pedia ao Pai perdoasse aos que o crucificavam. Somente ele nos salvou verdadeiramente, ele o Verbo de Deus, o Unigênito do Pai, nosso Senhor Jesus Cristo. A pomba, símbolo do Espírito Santo, não do Salvador do alto -- Com efeito, os apóstolos poderiam ter dito que o Cristo desceu em Jesus, ou o Salvador do alto sobre o da economia, ou aquele que vem das regiões invisíveis no filho do Demiurgo, mas não conheceram nem disseram nada disso; porque se o soubessem eles o diriam. E dis seram, de fato, como as coisas eram, isto é, que o Espírito de Deus desceu sobre ele na forma de pomba, o Espírito de que fala Isaías: "E repousará sobre ele o Espírito de Deus", como explicamos acima; e ainda: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu" (Is 42,1; 61,1; Lc 4,18). O Espírito de quem o Senhor diz: "Já não sois vós que falais, mas é o Espírito de vosso Pai que fala em vós" (Mt 10,20). E ao dar a seus discípulos o poder de fazer renascer os homens em Deus, lhes dizia: "Ide ensinai todos os povos e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19). Com efeito, prometera por meio dos profetas derramar nos últimos tempos este Espírito sobre seus servos e servas, a fim de profetizarem. Eis a razão por que ele desceu também no Filho de Deus, feito filho do homem, acostumando-se com ele a habitar nos homens e repousar entre eles, a habitar nas criaturas de Deus, realizando nelas a vontade do Pai e renovando-as do velho homem para a nova vida em Cristo. -- É este Espírito que Davi pediu para o gênero humano, ao dizer: "Confirma-me pelo teu Espírito que dirige" (Sl 51,14). É ainda este Espírito que Lucas nos diz ter descido, depois da ascensão do Senhor, sobre os discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de introduzir na vida todos os povos e abrir-lhes novo testamento. Eis por que, na harmonia de todas as línguas, cantavam hinos a Deus, enquanto o Espírito reunia na unidade as raças diferentes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações. Foi por essa razão que o Senhor prometera enviar o Paráclito que nos faria dignos de Deus. Assim como a farinha seca não pode, sem água, tornar-se uma só massa, nem um só pão, também nós não nos poderíamos tornar um só em Cristo, sem a água que vem do céu. E assim como a terra seca não pode frutificar sem receber água, também nós, que éramos antes lenho seco, jamais daríamos frutos de vida, sem a chuva generosa enviada do alto. Com efeito, nossos corpos receberam, pelo banho do batismo, a unidade que os torna incorruptíveis e as nossas almas, por sua vez, a receberam pelo Espírito; por isso, ambos são necessários porque ambos levam à vida de Deus. Nosso Senhor indicou-o na misericórdia que mostrou à samaritana infiel, que não se manteve unida a um só homem e fornicou em diversas núpcias, prometendo-lhe uma água viva, pela qual não teria mais sede, nem precisaria mais de água obtida com fadiga, porque teria em si uma Bebida a jorrar para a vida eterna, essa mesma Bebida que o Senhor recebeu como dom do Pai, e que, por sua vez, doou a todos os que têm parte com ele, enviando o Espírito Santo a toda a terra. -- Foi em previsão deste dom que Gedeão, aquele israelita que Deus escolheu para libertar o povo de Israel da dominação estrangeira, mudou o seu pedido, profetizando que o velo de lã sobre o qual se tinha acumulado o orvalho e que era a figura do povo de Israel, viria a seca, isto é, não receberia mais de Deus o Espírito Santo, conforme o que diz Isaías: "Mandarei às nuvens para não chover sobre ela", ao passo que, sobre toda a terra, haveria o orvalho, isto é, o Espírito de Deus, aquele que desceu sobre o Senhor, "Espírito de sabedoria e de inteligência, Espírito de conselho e de fortaleza, Espírito de ciência e de piedade, Espírito de temor de Deus" (Is 11,2-3). O mesmo Espírito que, por sua vez, o Senhor deu à Igreja, enviando do céu o Paráclito sobre toda a terra, aonde, disse ele, o demônio foi projetado como raio. Por esse motivo nos é necessário o orvalho de Deus para que não sejamos queimados nem permaneçamos infrutíferos e, onde temos um acusador, tenhamos também o Paráclito, pois o Senhor confiou ao Espírito Santo o homem que é seu, aquele que caíra em poder dos ladrões, de quem ele se compadeceu e cujas feridas enfaixou, dando dois denários reais para que nós, tendo recebido pelo Espírito a imagem e a inscrição do Pai e do Filho, façamos frutificar os dons que nos foram confiados e os restituamos multiplicados ao Senhor. -- Portanto, o Espírito desceu, por causa da economia de que falamos, e o Filho unigênito de Deus, que é também o Verbo do Pai, veio na plenitude do tempo, encarnou-se no homem por causa do homem e toda a economia acerca do homem foi realizada por Jesus Cristo nosso Senhor, único e idêntico, como o próprio Senhor testifica, os apóstolos confessam e os profetas proclamam. Com isso demonstram-se falsas as teorias todas de todos os que inventaram as Ogdôadas, Tétradas e Décadas e excogitaram distinções sobre distinções; que eliminam o Espírito; que pensam ser o Cristo diverso de Jesus; que ensinam que existiu não um, mas muitos Cristos; e quando se apresentam unidos acrescentam que um sofreu a paixão enquanto o outro permaneceu impassível; um voltou ao Pleroma, enquanto o outro parou no Intermediário; aquele se banqueteia alegremente nas regiões invisíveis e indescritíveis e este está ao lado do Demiurgo neutralizando-lhe o poder. Por isso é necessário que tu e todos os que lêem este escrito e têm o cuidado de sua salvação, não vos rendais espontaneamente ao ouvir o som das palavras deles. Como dissemos antes, eles falam de maneira semelhante à dos fiéis, mas não somente pensam coisas diferentes e até opostas e repletas de blasfêmias, com as quais matam espiritualmente os que pela semelhança das palavras recebem o veneno de idéias completamente diversas. É como quem engana com a semelhança da cor, dando gesso misturado com água em lugar do leite, disse alguém superior a nós, ao falar de todos os que de qualquer forma torcem as coisas de Deus e adulteram a verdade: É condenável misturar gesso ao leite de Deus. O Salvador é Jesus -- Demonstrado até a evidência que o Verbo existia, desde o princípio junto de Deus, que por sua obra foram feitas todas as coisas, que sempre esteve presente ao gênero humano e que justamente ele, nestes últimos tempos, segundo a hora estabelecida pelo Pai, se uniu à obra de suas mãos, feito homem passível, está refutada toda afirmação contrária dos que dizem: se nasceu nestes últimos tempos, houve um tempo em que o Cristo não existia. Era necessário que o Verbo sofresse para a nossa salvação Com efeito, demonstramos que a existência do Filho de Deus não teve início naquele momento, existindo desde sempre junto do Pai; mas quando se encarnou e se fez homem, recapitulou em si toda a longa série dos homens, dando-nos em resumo a salvação, de forma que o que tínhamos perdido em Adão, isto é, a imagem e semelhança de Deus, o recuperássemos em Jesus Cristo (A doutrina da recapitulação, tomada de Ef 1,20, reafirma que Cristo encarnando-se fez-se cabeça, concentrou em si, recapitulou na sua pessoa toda a criação. Antes do pecado, tudo estava harmoniosamente dirigido para Deus. Agora Cristo, representando individual e coletivamente a criação toda, restabelece por sua imortalidade a incorruptibilidade, a harmonia universal - que atingirá sua plenitude na ressurreição e na visão de Deus). -- Sendo impossível ao homem, vencido e decaído pela desobediência, reformar-se e conquistar a palma da vitória, e, por outro lado, por estar em poder do pecado, obter a salvação, o Filho, Verbo de Deus, operou ambas as coisas: ele, que era o Verbo de Deus, desceu de junto do Pai, encarnou-se, rebaixou-se até a morte e assim atuou perfeitamente a economia da nossa salvação. Exortando-nos a uma fé sem hesitações neste Filho, Paulo diz ainda: "Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? Isto é, para fazer descer a Cristo, ou quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos" (Rm 10,6-7). E acrescenta: "Porque, se confessares com a tua boca que Jesus Cristo é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo" (Rm 10,9). E indica o motivo pelo qual o Verbo de Deus fez isto, dizendo: "Com efeito, Cristo morreu e ressuscitou para ser o senhor dos mortos e dos vivos" (Rm 14,9). Novamente, escrevendo aos coríntios, diz: "Quanto a nós, anunciamos o Cristo Jesus crucificado. E acrescenta: O cálice da bênção que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo?" (1Cor 1,23; 10,16). -- Ora, quem é aquele com o qual nos comunicamos por meio do alimento? Será o Cristo do alto, imaginado por esta gente, que se teria estendido até o Limite e formado a Mãe deles, ou não será antes o Emanuel, nascido da Virgem, que comeu manteiga e mel, de quem o profeta disse: "É homem e quem o conhecerá?" É este mesmo Cristo que foi anunciado por Paulo, quando diz: "Transmiti-vos, em primeiro lugar, que o Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras" (1Cor 15,3-4). Está claro que Paulo não conheceu outro Cristo excetuando-se unicamente este que nasceu, que chama de homem, que padeceu, foi sepultado e ressuscitou. De fato, depois de ter dito: "Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos", acrescenta, dando o motivo desta encarnação: "Visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos" (1Cor 15,12 21). E onde quer que fale da paixão de nosso Senhor, da sua humanidade e sua morte, usa o nome de Cristo. Assim, por exemplo: "Não queiras, por causa da tua comida, causar a perda daquele por quem o Cristo morreu" (Rm 14,15); e ainda: "Agora, em Cristo, vós que uma vez estáveis longe, vos aproximastes, no sangue de Cristo" (Ef 2,13); e ainda: "O Cristo nos remiu da maldição da Lei, tornando-se por nós maldição, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro" (Gl 3,13); e ainda: "E, assim, por causa da tua ciência perecerá o fraco, esse irmão pelo qual Cristo morreu!” (1Cor 8,11). Paulo mostra com estes textos que nunca um Cristo impassível desceu em Jesus, mas que Jesus, sendo o Cristo, sofreu por nós, adormeceu, ressuscitou, desceu e subiu, ele, o Filho de Deus feito filho do homem, como indica o seu próprio nome. O nome de Cristo, com efeito, indica alguém que ungiu, aquele que foi ungido e a própria unção: quem ungiu é o Pai, quem foi ungido é o Filho, que o foi no Espírito, que é a unção. Como diz o Verbo pela boca de Isaías: "O Espírito de Deus está sobre mim, porque me ungiu" (Is 61,1), indicando ao mesmo tempo o Pai que ungiu, o Filho que foi ungido e a Unção que é o Espírito. -- O próprio Senhor indica claramente quem é o que padeceu. Tendo perguntado aos discípulos: "O que dizem que sou, eu, o Filho do homem?" e tendo Pedro respondido: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,13-16), o Senhor o louvou "porque não foram nem a carne, nem o sangue que lho revelaram, mas o Pai que está nos céus" (Mt 16,17), e manifestou que este Filho do homem é o Cristo, o Filho do Deus vivo. "Desde então, diz o evangelista, começou a expor aos seus discípulos que era necessário ir a Jerusalém, sofrer muito por parte dos sumos sacerdotes, ser condenado e crucificado e ressuscitar ao terceiro dia" (Mt 16,21). Assim, aquele que Pedro reconheceu como Cristo, e que o declarou bem-aventurado porque o Pai lhe revelara o Filho do Deus vivo, anunciava que devia sofrer muito e ser crucificado. Na mesma ocasião repreendeu Pedro porque partilhava a idéia que os homens tinham do Cristo e recusava a paixão e disse aos discípulos: "Se alguém quiser vir após mim, renegue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua alma perdê-la-á e quem a perder por minha causa salvá-la-á" (Mt 16,24-25; Mc 8,34-35). Evidentemente Cristo dizia isto porque ele era o Salvador dos que, por tê-lo confessado, seriam condenados à morte e perderiam a vida. -- Se, porém, não devia sofrer, mas abandonar Jesus, por que exortava os discípulos a tomar a sua cruz e a seguir a ele que, segundo os hereges, não a tomaria e desertaria da economia da paixão? O que prova que o Cristo não falava do conhecimento de uma cruz do alto, como alguns têm a ousadia de dizer, e sim da paixão que ele deveria sofrer e que também os discípulos deveriam sofrer, está nestas palavras: "Quem quiser salvar a sua alma perdê-la-á e quem a perder salvá-la-á". É por que os seus discípulos haveriam de sofrer por sua causa que diz aos judeus: "Eis que vos envio profetas, sábios e doutores e os matareis e os crucificareis". E aos discípulos dizia: "Sereis levados diante de governadores e de reis por minha causa e sereis flagelados, mortos e perseguidos de cidade em cidade". Ele sabia quais seriam perseguidos, quais flagelados e mortos por sua causa; por isso, não falava de outra cruz, mas da paixão que ele, primeiro, sofreria e da que sofreriam os seus discípulos, depois dele. A sua palavra era como a de quem quer infundir coragem: "Não tenhais medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes os que têm o poder de mandar o corpo e a alma à geena" (Mt 16,25; 10,39; 23,34; 10,18-28), e convidar a perseverar na confissão dele. E prometia confessar diante de seu Pai os que confessariam o seu nome diante dos homens e renegar os que o renegariam e se envergonhar dos que teriam vergonha de confessá-lo. Contudo, alguns chegaram a tal ponto de temeridade que desprezam até os mártires e condenam os que morrem por ter confessado o Senhor, que suportam tudo o que foi predito pelo Senhor e procuram imitar-lhe a paixão, tornando-se testemunhas do Cristo paciente. Nós os entregamos aos próprios mártires, porque, quando se pedirá conta do sangue deles e receberão a glória, então será o Cristo que confundirá todos os que desprezaram o martírio deles. Também, pelas palavras que o Senhor disse na cruz: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 23,34), revela-se a longanimidade, a paciência, a misericórdia e a bondade de Cristo que, enquanto sofria, desculpava os que o maltratavam. Ele, o Verbo de Deus, que nos disse: "Amai os vossos inimigos e rezai pelos que vos odeiam" (Mt 5,44; Lc 6,27-28), foi o primeiro a praticar na cruz este mandamento, amando o gênero humano e rezando pelos que o faziam morrer. Se, ao contrário, alguém que admite a existência de dois seres distintos, estabelece comparação entre eles, verá que aquele que nas feridas, chagas e outras sevícias se mostrou benéfico e esquecido do mal feito contra ele, é bem melhor, mais paciente e bom do que o outro que se teria afastado sem sofrer nenhuma injustiça e nenhuma humilhação. -- O mesmo vale para os que dizem que ele sofreu só aparentemente. Com efeito, se não sofreu realmente, não se lhe deve nenhuma gratidão, porque não houve nenhuma paixão; e quando nós teremos que sofrer realmente, nos parecerá impostor a aconselhar que se ofereça a outra face a quem nos esbofeteia, quando ele não foi capaz de sofrer isto primeiro; e como enganou os homens de então, apresentando-se por aquilo que não era, engana também a nós, exortando-nos a suportar o que ele próprio não suportou. Seríamos superiores ao Mestre quando sofrermos e suportarmos o que ele não sofreu, nem suportou. Mas como nosso Senhor é o único e verdadeiro Mestre, o Filho de Deus, verdadeiramente bom, suportou o sofrimento, ele, o Verbo de Deus, feito Filho do homem. Ele lutou e venceu: era o homem que combatia pelos pais, pagando a desobediência pela obediência; amarrou o forte e libertou o fraco e deu a salvação à obra modelada por ele, destruindo o pecado. Porque o Senhor é cheio de misericórdia e compaixão e ama o gênero humano. Efeitos da paixão -- Aproximou e reuniu, como dissemos, o homem a Deus (São significativas as três afirmações precedentes: a primeira afirma o que mais tarde será chamado “união hipostática” do Verbo como homem e Deus; a segunda enfatiza a “união moral” entre Deus e o homem ; a terceira é uma oração moral, isto é: como acontece a filiação, ou seja: do Verbo com Deus mediante a comunhão e do homem com Deus mediante a encarnação. A noção de encarnação é condição essencial na teologia de Ireneu para compreender a dimensão redentora cumprida por Cristo). Se um homem não tivesse vencido o inimigo do homem a vitória não seria justa; por outro lado, se a salvação não tivesse vindo de Deus, não a teríamos de maneira segura; e se o homem não estivesse unido a Deus não poderia participar da incorruptibilidade. Era necessário, portanto, que o Mediador entre Deus e os homens, pelo parentesco entre as duas partes, restabelecesse a amizade e a concórdia, procurando que Deus acolhesse o homem e o homem se entregasse a Deus. De fato, como poderíamos participar da filiação adotiva de Deus se não tivéssemos recebido a comunhão com ele por meio do Filho, se o seu Verbo não tivesse entrado em comunhão conosco encarnando-se? E justamente por isso, passou por todas as idades da vida, conferindo a todos os homens a comunhão com Deus. Aqueles, portanto, que dizem que se manifestou só aparentemente, que não nasceu na carne, nem foi verdadeiro homem, estão ainda debaixo da antiga condenação, concedendo direitos ao pecado, porque, segundo eles, ainda não foi vencida a morte "que reinou desde Adão até Moisés, sequer nos que não tinham pecado por uma semelhança com a transgressão de Adão" (Rm 5,14). A Lei, que veio, por meio de Moisés, revelar o pecado como pecado, e tirar-lhe o império, apresentando-o não como rei, e sim como ladrão e homicida, ao mesmo tempo oprimiu o homem que trazia em si o pecado, apresentando-o como digno de morte. Mas a Lei, mesmo sendo espiritual, manifestou somente o pecado, porém não o suprimiu, porque o pecado não dominava sobre o Espírito, mas sobre o homem. Era preciso, portanto, que o que estava para eliminar o pecado e resgatar o homem, digno de morte, se tornasse exatamente o que era este homem reduzido à escravidão pelo pecado e mantido debaixo do poder da morte, para que o pecado fosse morto por um homem e assim o homem saísse da morte. Como pela desobediência de um só homem, que foi o primeiro e modelado da terra virgem, muitos foram constituídos pecadores e perderam a vida, assim pela obediência de um só homem, que foi o primeiro e nasceu da Virgem, muitos foram justificados e receberam a salvação. Portanto, o Verbo de Deus se fez carne, como diz Moisés: A obra de Deus é veraz. Ora, se ele não tivesse realmente assumido a carne, mas somente a aparência, a sua obra não seria veraz. Mas apareceu o que era na realidade: o Deus que recapitulava em si a modelagem antiga, o homem, para destruir o pecado, abolir a morte e vivificar o homem; por isso, a sua obra é veraz. Não é somente homem -- Além disso, os que dizem ser homem pura e simplesmente, gerado por José, permanecem na antiga escravidão da desobediência e morrem nela, porque ainda não unidos ao Verbo de Deus Pai, não recebem a liberdade por meio do Filho, como ele próprio diz: "Se o Filho vos emancipar, sereis verdadeiramente livres" (Jo 8,36). Ignorando o Emanuel, nascido da Virgem, são privados do seu dom, que é a vida eterna, e não recebendo o Verbo da incorruptibilidade, permanecem na carne mortal, devedores da morte, sem o antídoto da vida. É para estes que o Verbo fala, quando explica o dom que faz da sua graça: "Eu disse: todos vós sois deuses e filhos do Altíssimo; mas, como homens, morrereis" (Sl 82,6-7). Estas palavras são dirigidas aos que recusam o dom da adoção filial, desprezam este nascimento sem mancha que foi a encarnação do Verbo de Deus, privam o homem da sua elevação a Deus e manifestam ingratidão para com o Verbo de Deus, que se encarnou por eles. Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus Filho do homem: para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de Deus (É a resposta de Ireneu à célebre e histórica questão: “cur Deus homo?” - por que Deus se fez homem?). Nunca poderíamos obter a incorrupção e a imortalidade a não ser unindo-nos à incorrupção e à imortalidade. E como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a imortalidade se tornassem o que somos, a fim de que o corruptível fosse absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade, e deste modo pudéssemos receber a adoção de filhos? -- Por isso, quem contará a sua geração? Embora seja homem, quem o reconhecerá? (Cf Is 53,8; Jr 17,9). Aquele a quem o revelar o Pai que está nos céus, dando-lhe a entender que o Filho do homem que nasceu não pela vontade da carne, nem pela vontade do homem, é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Já demonstramos pelas Escrituras que nenhum dentre os filhos de Adão é chamado Deus ou Senhor, no sentido absoluto da palavra; e que somente ele, à diferença de todos os homens de então, foi proclamado, na plena acepção do termo, Deus, Senhor, Rei eterno, Filho único e Verbo encarnado, por todos os profetas, pelos apóstolos e pelo próprio Espírito; é realidade que pode ser constatada por todos os que atingiram ainda que ínfima parcela da verdade. As Escrituras não dariam este testemunho se ele não fosse senão homem igual a todos os outros. Mas como só ele, entre todos, teve esta geração ilustre, que lhe vem do Pai Altíssimo, também foi ilustre o nascimento que lhe vem da Virgem, por isso as Escrituras lhe dão o testemunho desta dupla geração divina. Por um lado, ele é homem sem beleza, sujeito ao sofrimento, montado num burrinho, dessedentado com vinagre e fel, desprezado pelo povo, descido à região da morte; por outro, é o Senhor santo, o Conselheiro admirável, sobressaindo pela beleza, o Deus forte, que há de vir nas nuvens juiz universal. Tudo isso foi prenunciado pelas Escrituras a respeito dele. -- Era, ao mesmo tempo homem para poder ser tentado e Verbo para poder ser glorificado. A atividade do Verbo estava suspensa para que pudesse ser tentado, ultrajado, crucificado e morto; e o homem era absorvido quando o Verbo vencia, suportava o sofrimento, ressuscitava e era levado ao céu. É, portanto, o Filho de Deus nosso Senhor, Verbo do Pai e ao mesmo tempo Filho do homem, que de Maria, nascida de criaturas humanas e ela própria criatura humana, teve nascimento humano, tornando-se Filho do homem. Por isso, o próprio Senhor nos deu um sinal que se estende da mais profunda mansão dos mortos ao mais alto dos céus, sinal não pedido pelo homem, porque sequer poderia pensar que uma virgem, permanecendo virgem, pudesse conceber e dar à luz um filho, nem que este filho fosse o Deus conosco, que desceria ao mais baixo da terra, em busca da ovelha perdida, que era a obra que ele modelara; que subiria depois às alturas para apresentar e recomendar ao Pai o homem assim reencontrado. Ele se constituiu primícia da ressurreição, porque, como a cabeça ressuscitou dos mortos, assim devem ressuscitar os outros membros - isto é, todos os homens que serão encontrados na vida, passado o tempo da condenação devida à desobediência, - mantidos juntos por meio de articulações e junturas e fortalecidos pelo desenvolvimento produzido por Deus, tendo no corpo o seu lugar conveniente. São muitas as mansões, na casa do Pai, porque muitos são os membros do corpo. A "economia" divina: magnanimidade do desígnio -- Deus, portanto, usou de longanimidade diante da apostasia do homem, prevendo a vitória que lhe haveria de dar pelo Verbo. Constituindo-se a força na fraqueza, revelava-se então a benignidade de Deus e seu esplêndido poder. Como permitiu que Jonas fosse engolido pelo monstro marinho, não para desaparecer e perecer totalmente, e sim para que vomitado, fosse mais dócil a Deus e glorificasse mais aquele que lhe dava a salvação de maneira inesperada; e para que levasse os ninivitas ao firme arrependimento e à conversão ao Senhor que os livraria da morte, atemorizando-os com o sinal que se cumpria em Jonas. A Escritura, falando deles, diz assim: "E todos voltaram atrás da sua vida má e da iniqüidade de suas mãos, dizendo: Quem sabe se Deus se arrependerá e desviará de nós a sua cólera e assim não pereceremos?" (Jn 3,8-9). Assim, desde o princípio, Deus permitiu que o homem fosse engolido pelo grande monstro, autor da transgressão, não para que desaparecesse e perecesse totalmente, e sim a fim de preparar o desígnio da salvação significada por Jonas, operada pelo Verbo para os que, como Jonas, pensam e confessam a respeito do Senhor: "Sou servo do Senhor e venero o Senhor, Deus do céu, que fez o mar e a terra firme" (Jn 1,9). Assim Deus quis que o homem, ao obter dele a salvação, de maneira inesperada, ressuscite dentre os mortos, glorifique a Deus e diga juntamente com Jonas: "Eu gritei ao Senhor meu Deus na minha tribulação e me escutou no seio do inferno" (Jn 2,3). E quer que o homem permaneça firme na glorificação de Deus e que o agradeça sem parar pela salvação que dele recebeu, de forma que nenhum homem se glorie diante do Senhor, e não aceite nenhum sentimento contrário em relação a Deus, como seria a consideração natural da incorruptibilidade que receberá, e que não abandone a verdade por causa da presunção, como se fosse naturalmente semelhante a Deus. Este orgulho, tornando-o ingrato para com seu Criador, impedia-o de ver o amor de que era objeto por parte de Deus, obscurecia-lhe a mente impedindo-o de ter pensamentos dignos de Deus e levava-o a comparar-se com Deus e a julgar-se-lhe igual. -- Foi, portanto, grande a bondade de Deus que permitiu ao homem passar por todas as experiências, conhecer a morte, chegar à ressurreição dos mortos, e, por sua experiência, ver de que mal foi libertado. Assim, poderá agradecer, para sempre, a Deus pelo dom da incorruptibilidade e o amará mais, porque aquele a quem mais foi perdoado mais ama; poderá conhecer que ele é mortal e fraco ao passo que Deus é imortal e poderoso ao ponto de conceder a imortalidade ao mortal e a eternidade ao temporário, como também conhecerá todas as outras obras prodigiosas que Deus realizou nele, e, instruído por elas, pense sobre Deus de modo digno de Deus. Com efeito, Deus é a glória do homem e o homem é o receptáculo da obra, de toda a sabedoria e do poder de Deus. Como o médico mostra o seu valor com os doentes, assim Deus com os homens. Por isso Paulo diz: "Deus encerrou todas as coisas na incredulidade para usar de misericórdia com todos" (Rm 11,32). E não fala dos Éões pneumáticos, mas do homem desobediente a Deus e privado da imortalidade, que, em seguida, alcançou misericórdia por obra do Filho de Deus e a filiação adotiva. Aquele que possui, sem orgulhosa jactância, o verdadeiro conceito da criatura e do Criador, que é Deus, superior a todos em potência, que a todos dá a existência, e permanece no seu amor, submetido e agradecido, receberá dele glória maior e progredirá até se tornar semelhante àquele que por ele morreu. Com efeito, ele veio ao mundo na semelhança da carne do pecado para condenar o pecado, e, condenado, expulsá-lo da carne, e, por outro lado, para chamar o homem a tornar-se semelhante a ele na imitação de Deus, para elevá-lo ao reino do Pai, e torná-lo capaz de ver a Deus e conhecer o Pai. Pois ele é o Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito do Pai (O homem não perde jamais sua identidade humana, mas se humaniza em plenitude na glória de Deus, pela obediência e pela ação do Espírito Santo, que vive nele). -- Este é o motivo pelo qual o próprio Senhor deu o Emanuel, nascido da Virgem, como sinal da nossa salvação, porque era o próprio Senhor que salvava os que não se podiam salvar sozinhos. É neste sentido que Paulo afirma a fraqueza do homem: "Sei que na minha carne não habita o bem", indicando que o bem da nossa salvação não vem de nós, e sim de Deus. Ele diz ainda: "Que homem miserável eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte?" E apresenta em seguida o Libertador: a graça de Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 7,18 24-25). A mesma coisa disse Isaías: "Confortai as mãos frouxas e robustecei os joelhos débeis. Coragem, pusilânimes; tomai ânimo e não temais; eis que o nosso Deus trará a vingança e as represálias. Deus mesmo virá e vos salvará (Is 35,3-4). Isto para indicar que seremos salvos pela ajuda de Deus e não por nós mesmos". -- Ainda: que aquele que nos devia salvar não seria simplesmente homem, nem ser sem carne - os anjos é que são sem carne, - profetizava-o, dizendo: "Não será ancião, nem anjo, mas o próprio Senhor que os salvará, porque os ama, terá piedade deles e os salvará" (Is 63,9). E que seria homem verdadeiro e visível ao mesmo tempo que Verbo salvador, é ainda Isaías que o diz: "Eis, cidade de Sião, os teus olhos verão a nossa salvação" (Is 33,20). E que não era simplesmente homem aquele que morria por nós, Isaías o diz: "O Senhor, o Santo de Israel, lembrou-se de seus mortos adormecidos na terra da sepultura e desceu para lhes anunciar a boa-nova da salvação com que os salvaria" (Em 4, 22,1 e Demonstração 78, o autor repete a citação atribuindo-a, porém, a Jeremias. Todavia, tal texto não se encontra na Bíblia atual; antes parece ser um midraxe sobre Jeremias, cultivado em ambiente judaico-cristão, onde se discutia a sorte dos santos, patriarcas e profetas de Israel falecidos. E sua importância dogmática se prende ao objetivo da descida de Cristo aos mortos: não apenas para anunciar-lhes a libertação futura, mas libertar de imediato os justos ressuscitando-os corporalmente , antecipando a ressurreição escatológica). Que o Filho de Deus, que é Deus, viria da região que se encontra ao meio-dia da herança de Judá e que de Belém, onde nasceu o Senhor, se espalharia o seu louvor sobre toda a terra, di-lo o profeta Habacuc: "Deus virá do meio-dia, e o Santo do monte Efrém; a sua glória cobriu os céus e a terra está cheia de seu louvor; diante da sua face andará o Verbo e avançarão nos campos os seus pés" (Hb 3,3 5), afirmando assim claramente que é Deus, que virá de Belém e do monte Efrém que está dos lados do meio-dia da herança e que é homem, porque os seus pés, como diz, avançarão nos campos, e isso é marca própria do homem. O sinal da Virgem -- Foi, portanto, Deus que se fez homem, o próprio Senhor que nos salvou, ele próprio que nos deu o sinal da Virgem. Por isso não é verdadeira a interpretação de alguns que ousam traduzir assim a Escritura: "Eis que uma moça conceberá e dará à luz um filho" (Is 7,14), como fizeram Teodocião de Éfeso e Áquila do Ponto, ambos prosélitos judeus; seguidos pelos ebionitas, que dizem que Jesus nasceu de José, destruindo assim, por aquilo que está em seu poder, esta grande economia de Deus e reduzindo a nada o testemunho dos profetas, que é o de Deus. Trata-se de profecia feita antes da deportação do povo para Babilônia, isto é, antes que os medos e os persas tomassem o poder e foi traduzida para o grego pelos próprios judeus muito tempo antes da vinda de nosso Senhor, para que não fique nenhuma suspeita de que traduziram assim para nos agradar. Com efeito, se tivessem sabido da nossa existência e que nos serviríamos do testemunho das Escrituras, não teriam hesitado em queimar com as suas próprias mãos as suas Escrituras que declaram abertamente que todas as outras nações participariam da vida, ao passo que os que se gloriam de pertencer à casa de Jacó e de ser o povo de Israel seriam deserdados da graça de Deus. -- Antes que os romanos estabelecessem o seu império, quando os macedônios mantinham ainda a Ásia em seu poder, Ptolomeu, filho de Lago, que havia fundado em Alexandria uma biblioteca, desejava enriquecê-la com os escritos de todos os homens, pediu aos judeus de Jerusalém uma tradução, em grego, das suas Escrituras. Eles, então, que ainda estavam submetidos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, os mais competentes nas Escrituras e no conhecimento das duas línguas, para executar o trabalho que desejava. Ele, para os pôr à prova e mais, por medo de que concordassem entre si em falsear a verdade das Escrituras, na sua tradução, fê-los separar uns dos outros e mandou que todos traduzissem toda a Escritura; e fez assim com todos os livros. Quando se reuniram com Ptolomeu e confrontaram entre si as suas traduções, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas verdadeiramente divinas, porque todos, do início ao fim, exprimiram as mesmas coisas com as mesmas palavras, de forma que também os pagãos presentes reconheceram que as Escrituras foram traduzidas sob a inspiração de Deus. Aliás, não há que admirar por ter Deus agido desta forma, se se lembrar que, destruídas as Escrituras durante a escravidão do povo sob Nabucodonosor, quando, depois de setenta anos, no tempo de Artaxerxes, rei dos persas, os judeus voltaram à sua terra, Deus inspirou Esdras, sacerdote da tribo de Levi, a reconstruir de memória todas as palavras dos profetas anteriores e restituir ao povo a Lei dada por Moisés. -- As Escrituras, pelas quais Deus preparou e fundou a nossa fé em seu Filho, foram, pois, traduzidas com tanta fidelidade, pela graça de Deus, e conservadas, em toda a sua pureza, no Egito, onde se tornou grande a família de Jacó, depois de ter fugido da fome, em Canaã, e onde também foi salvo nosso Senhor ao escapar à perseguição de Herodes; e como esta tradução foi feita antes do advento de nosso Senhor à terra e antes do aparecimento dos cristãos - pois nosso Senhor nasceu por volta do quadragésimo primeiro ano do império de Augusto, e Ptolomeu, no tempo do qual foram traduzidas as Escrituras, é muito mais antigo - revelam-se verdadeiramente impudentes e temerários os que agora pretendem fazer outra tradução, quando nós os refutamos com estas mesmas Escrituras e os obrigamos a crer na vinda do Filho de Deus. É, portanto, sólida, não forçada, única verdadeira, a nossa fé que tem sua prova evidente nas Escrituras, traduzidas da forma que dissemos, e é isenta de toda interpolação a pregação da Igreja. Ora, os apóstolos, que são bastante anteriores a esta gente, estão de acordo com a tradução mencionada acima e a nossa versão concorda com a dos apóstolos. Pedro, João, Mateus, Paulo, todos os outros apóstolos e seus discípulos anunciaram as coisas profetizadas na forma em que estão contidas na tradu ção dos anciãos. -- Único e idêntico é, pois, o Espírito de Deus que nos profetas anunciou as características da vinda do Senhor e que nos anciãos traduziu bem as coisas profetizadas. Foi ainda ele que, pelos apóstolos, anunciou ter chegado a plenitude dos tempos da adoção filial, que o Reino dos céus estava próximo e que se encontrava dentro dos homens que criam no Emanuel nascido da Virgem. Assim eles testemunharam que antes que José morasse com Maria, enquanto era virgem, achou-se grávida pelo Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe disse: "O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, por isso o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus" (Lc 1,35); e que o anjo disse a José, em sonho: "Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor dissera pelo profeta: Eis que a Virgem conceberá" (Mt 1,22-23). Eis como os anciãos traduziram as palavras de Isaías: "O Senhor continuou a falar com Acaz, dizendo: Pede para ti ao Senhor teu Deus um sinal, quer no fundo da terra, quer no mais alto do céu. Acaz disse: Não pedirei tal, nem tentarei ao Senhor. Isaías disse: Ouvi, pois, casa de Davi, porventura não vos basta ser molestos aos homens, senão que também ousais sê-lo ao meu Deus? Pois, por isso o próprio Senhor vos dará este sinal: Uma Virgem conceberá e dará à luz um filho e o seu nome será Emanuel. Ele comerá manteiga e mel; antes de conhecer ou escolher o mal, escolherá o bem; porque antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem ele rechaçará o mal para escolher o bem" (Is 7,10-16). Com estas palavras o Espírito Santo indicou exatamente a sua geração virginal e a sua natureza divina: Deus - é isto que significa o nome de Emanuel - e homem - o que é indicado pela frase "comerá manteiga e mel", por chamá-lo "menino" e pelas palavras "antes de conhecer o bem e o mal": sinais todos que caracterizam o homem e a criança. - E com as palavras: "rechaçará o mal para escolher o bem" exprime algo próprio de Deus. Isso para que as palavras "comerá manteiga e mel" não nos levem a ver nele somente um homem, e ao contrário, o nome de "Emanuel" não nos leve a supor um Deus não revestido de carne. -- Além disso, as palavras: "escutai, casa de Davi" significam que o Rei eterno que Deus prometeu suscitar a Davi do fruto de seu seio é o mesmo que nasceu da Virgem, descendente de Davi. Por isso prometeu um Rei que seria o fruto do seu seio, expressão que indica virgem grávida, e não o fruto de seus lombos, nem o fruto de sua virilidade, expressão que caracterizaria homem que gera e mulher que concebe por obra deste homem. Assim, nesta promessa, a Escritura exclui o poder gerador do homem, mais ainda, sequer o lembra, porque não devia ser efeito da vontade do homem, aquele que estava para nascer. Porém afirma vigorosamente que era fruto do seio para sublinhar a concepção do que devia nascer de Virgem. É o que afirma Isabel, repleta de Espírito Santo, dizendo a Maria: "Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu seio" (Lc 1,42); querendo o Espírito Santo indicar, para quem quiser entender, que a promessa feita por Deus a Davi, de suscitar um Rei, fruto de seu seio, foi cumprida quando a Virgem, isto é, Maria, deu à luz. Os que mudam o texto de Isaías "eis que uma moça conceberá em seu seio" para dizer que é filho de José, que mudem também o texto da promessa feita a Davi, a quem Deus prometeu suscitar, do fruto de seu seio, um poder, isto é, o reino de Cristo. Mas não entenderam, do contrário teriam mudado também este. -- Quanto à expressão de Isaías: "no fundo da terra ou no mais alto do céu", ela significa que aquele que desceu é o mesmo que subiu; e com as palavras: "o pró prio Senhor vos dará um sinal" sublinha o caráter inesperado de sua geração que nunca teria acontecido se o Senhor, o Deus de todas as coisas, não a tivesse dado como sinal para a casa de Davi. O que haveria de especial e como poderia ser sinal o fato de moça conceber de homem e dar à luz? É coisa comum a todas as mulheres que se tornam mães. Mas como o inesperado era a salvação que se devia realizar para os homens, pelo socorro de Deus, inesperado também devia ser uma Virgem dar à luz filho, como sinal de Deus e não por obra de homem. -- Por isso, também Daniel, ao prever a sua vinda, falava de pedra que se desprendeu sem a intervenção de mão de homem e que veio a este mundo. Com efeito, é isto que significa "sem a intervenção de mão de homem"; a sua vinda ao mundo se deu sem o trabalho de mãos humanas, como o destes canteiros que lavram as pedras, isto é, sem a ação de José, visto que somente Maria haveria de cooperar à economia; esta pedra se desprende da terra, mas pelo poder e pela arte de Deus. Por isso Isaías diz: "Assim fala o Senhor: eis que porei como fundamento em Sião uma pedra preciosa, escolhida, angular, ilustre, para que entendamos que a sua vinda não se deve à vontade do homem, e sim à de Deus" (Is 28,16). -- Por isso Moisés, com gesto simbólico e profético, lançou ao chão a verga, para que, encarnando-se, vencesse e engolisse toda a prevaricação dos egípcios que se levantava contra a economia de Deus e para que os próprios egípcios testemunhassem que é o dedo de Deus que opera a salvação do povo e não filho de José. Porque se fosse filho de José como poderia ser superior a Salomão ou a Jonas ou a Davi, sendo da linhagem e filho deles? E por que teria chamado bem-aventurado a Pedro, que o reconhecia como o Filho do Deus vivo? -- Além do mais, se era filho de José, não poderia ser nem o rei, nem o herdeiro de quem fala Jeremias. De fato, José aparece como filho de Joaquim e de Jeconias, segundo aparece na genealogia apresentada por Mateus. Ora, Jeconias e todos os seus descendentes foram excluídos do reino, como diz Jeremias: "Pela minha vida, diz o Senhor, ainda que Jeconias, filho de Joaquim, fosse anel na minha mão direita, eu o arrancaria dela e o entregaria na mão dos que procuram a sua vida". E mais: Jeconias foi desonrado como vaso de que não se necessita, porque foi expulsado para terra que não conhecia. Terra, escuta a palavra do Senhor: Inscreve este homem como rejeitado, porque nenhum da sua descendência engrandecerá tanto que possa sentar-se no trono de Davi e tornar-se príncipe em Judá. Deus diz ainda acerca de Joaquim, seu pai: "Portanto, isto diz o Senhor contra Joaquim, rei de Judá: Não sairá dele quem se sente no trono de Davi; o seu cadáver será exposto ao ardor do dia e à geada da noite. Castigá-los-ei a ele, à sua linhagem, e farei cair sobre eles, sobre os habitantes de Jerusalém e sobre a terra de Judá todo o mal com que os ameacei" (Jr 22,24-25 28-30; 36,30-31). Portanto, os que dizem ser gerado por José e põem nele a sua esperança, excluem-se a si mesmos do reino, caindo sob a maldição e o castigo que atingiram Jeconias e a sua descendência. Com efeito, estas coisas foram ditas a Jeconias porque o Espírito já sabia o que um dia diriam estes falsos doutores, para que entendessem que não nasceria do seio dele, isto é, de José, mas, segundo a promessa de Deus, o Rei eterno nasceria do seio de Davi e recapitularia em si todas as coisas. Cristo, segundo Adão, recapitula todas as gerações Ele recapitulou também em si a obra modelada no princípio. -- Como pela desobediência de um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, assim pela obediência de um só homem foi introduzida a justiça que traz como fruto a vida ao homem morto. E como a substância de Adão, o primeiro homem plasmado, foi tirada da terra simples e ainda virgem - "Deus ainda não fizera chover e o homem ainda não a trabalhara" (Gn 2,5) - e foi modelado pela mão de Deus, isto é, pelo Verbo de Deus - com efeito, "todas as coisas foram feitas por ele", e o "Senhor tomou do lodo da terra e modelou o homem" (Gn 2,7), - assim o Verbo que recapitula em si Adão, recebeu de Maria, ainda virgem, a geração da recapitulação de Adão. Se o primeiro Adão tivesse homem por pai e tivesse nascido de sêmen viril teriam razão em dizer que também o segundo Adão foi gerado por José. Mas se o primeiro Adão foi tirado da terra e modelado pelo Verbo de Deus, era necessário que este mesmo Verbo, efetuando em si a recapitulação de Adão, tivesse geração semelhante à dele. E, então, por que Deus não tomou outra vez do limo da terra, mas quis que esta modelagem fosse feita por Maria? Para que não houvesse segunda obra modelada e para que não fosse obra modelada diferente da que era salvada, mas, conservando a semelhança, fosse aquela primeira a ser recapitulada. -- Erram, portanto, os que sustentam que o Cristo nada recebeu da Virgem, para poder rejeitar a herança da carne; mas rejeitam assim, ao mesmo tempo, a semelhança. Com efeito, se aquele primeiro recebeu a sua modelagem e substância da terra pela mão e arte de Deus e este não, então não conservou a semelhança com o homem que foi feito à imagem e semelhança de Deus, e o Artífice pareceria inconstante e sem nada que demonstre a sua sabedoria. Isto quer dizer que ele apareceu como homem sem sê-lo realmente e que se fez homem sem tomar nada do homem! Mas se não recebeu de nenhum ser humano a substância da sua carne, ele não se fez nem homem, nem Filho do homem. E se não se fez o que nós éramos, não tinha importância nem valor o que ele sofreu e padeceu. Ora, não há quem não admita que nós somos feitos de corpo tirado da terra e de alma que recebe de Deus o Espírito. E é isso que se tornou o Verbo de Deus ao recapitular em si mesmo a obra por ele plasmada, e é este o motivo pelo qual se declara Filho do homem e declara bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Por seu lado, o apóstolo Paulo, na carta aos Gálatas, disse abertamente: "Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher"; e na carta aos romanos diz: -- "acerca do seu Filho, que nasceu da posteridade de Davi, segundo a carne, declarado Filho de Deus, com poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo Senhor nosso" (Gl 4,4; Rm 1,3-4). -- De outra forma, a sua descida em Maria seria supérflua; pois para que desceria nela se não devia receber nada dela? Se não tivesse recebido nada de Maria então nunca teria tomado alimentos terrenos com os quais se alimenta um corpo tirado da terra; após o jejum de quarenta dias, como Moisés e Elias, seu corpo não teria experimentado a fome e não teria procurado alimento; João, seu discípulo, não teria escrito: "Jesus, cansado pela caminhada, estava sentado"; nem Davi teria dito dele: "E acrescentaram sofrimento à dor das minhas feridas"; não teria chorado sobre o túmulo de Lázaro; não suaria gotas de sangue, nem teria dito: "A minha alma está triste" (Jo 4,6; Sl 69,27; Mt 26,38); e de seu lado transpassado não teriam saído sangue e água. Tudo isso são sinais da carne tirada da terra, que recapitulou em si, salvando a obra de suas mãos. -- Por isso Lucas apresenta genealogia de setenta e duas gerações, que vai do nascimento do Senhor até Adão, unindo o fim ao princípio, para dar a entender que o Senhor é o que recapitulou em si mesmo todas as nações dispersas desde Adão, todas as línguas e gerações dos homens, inclusive Adão. Por isso Paulo chama Adão figura do que devia vir, porque o Verbo, Criador de todas as coisas, prefigurara nele a futura economia da humanidade de que se revestiria o Filho de Deus, pelo fato de Deus, formando o homem psíquico, ter dado a entender que seria salvo pelo homem espiritual. Por isso, visto que já existia como salvador, devia tornar-se quem devia ser salvo (Devia tornar-se quem devia ser salvo”, isto é, devia tornar-se homem histórico. Aqui outra vez vem evidenciado que, para além do pecado, o Verbo haveria de se encarnar. Convém ter presente que para Ireneu “salvar” significa primariamente “unir o homem a Deus”, “dar-lhe a incorruptibilidade”, “elevá-lo à ordem sobrenatural”. A salvação forma parte do plano inicial do Criador, que quer a criatura participando de sua glória. O pecador será redimido, re - plasmado, refeito em Cristo em vista do plano salvífico de Deus. Assim - como diz José Ignácio Gonzales Faus - o Redentor não veio combater o Criador, mas levar a cumprimento sua obra ), para não ser o Salvador de nada. -- Da mesma forma, encontramos Maria, a Virgem obediente, que diz: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra", e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era virgem. Como esta, ainda virgem se bem que casada - no paraíso estavam nus e não se envergonhavam, porque, criados há pouco tempo ainda não pensavam em gerar filhos, sendo necessário que, primeiro, se tornassem adultos antes de se multiplicar, - pela sua desobediência se tornou para si e para todo o gênero humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo quem lhe fora predestinado e sendo virgem, pela sua obediência se tornou para si e para todo o gênero humano causa da salvação. É por isso que a Lei chama a que é noiva, se ainda virgem, de esposa daquele que a tomou por noiva, para indicar o influxo que se opera de Maria sobre Eva. Com efeito, o que está amarrado não pode ser desamarrado, a menos que se desatem os nós em sentido contrário ao que foram dados, e os primeiros são desfeitos depois dos segundos e estes, por sua vez, permitem que se desfaçam os primeiros: acontece que o primeiro é desfeito pelo segundo e o segundo é desfeito em primeiro lugar. Eis por que o Senhor dizia que os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros. E o profeta diz a mesma coisa: Em lugar dos pais nasceram filhos para ti. Com efeito, o Senhor, o primogênito dos mortos, reuniu no seu seio os patriarcas antigos e os regenerou para a vida de Deus, tornando-se ele próprio o primeiro dos viventes, ao passo que Adão fora o primeiro dos que morrem. Eis por que Lucas, iniciando a genealogia a partir do Senhor subiu até Adão, porque não foram aqueles antepassados que lhe deram a vida, e sim foi ele que os fez renascer no evange-lho da vida. Da mesma forma, o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria, e o que Eva amarrara pela sua incredulidade Maria soltou pela sua fé (O paralelo entre Eva e Maria pertence, originariamente, a São Justino. Ireneu o desenvolve, encontrando na redenção as etapas da redenção exatamente “sub specie contrario”. Outra afirmação teológica importante: a “recirculatio” . No caso: de Eva a Maria existe um caminho de degeneração e desobediência; de Maria a Eva, um caminho de obediência e regeneração. Esta “recirculatio” está forte e primariamente subordinada à “recirculatio” mais original presente em Cristo e Adão. Cristo, encarnado - ressuscitado, é a meta recapituladora de toda a criação, já prefigurada em Adão). Redenção também para Adão -- Portanto, foi necessário que o Senhor, que veio à procura da ovelha perdida e para recapitular economia tão grande, procurando a obra que ele próprio plasmara, salvasse também o homem que ele fizera à sua imagem e semelhança, isto é, Adão, encerrando os tempos da condenação, fixados pelo Pai, no seu poder, por causa da desobediência, porque toda a economia da salvação do homem se desenvolveu segundo o beneplácito do Pai, para que Deus não fosse vencido nem fosse anulada a sua arte. Com efeito, se este homem, que Deus criara para a vida, a tivesse perdido pelo engano da serpente sedutora, sem esperança de recuperá-la, e se visse lança-do definitivamente na morte, Deus seria vencido e a malícia da serpente levaria a melhor sobre a vontade de Deus. Mas, sendo Deus invencível e longânime, começou a usar de longanimidade na provação de todos os homens e na sua correção, como já dissemos, e por obra do segundo homem, amarrou o forte, apossou-se de todos os seus vasos e destruiu a morte, devolvendo a vida ao homem que fora morto. Adão fora o primeiro vaso a cair em poder do forte, que o retinha em seu poder, por tê-lo injustamente precipitado na transgressão, e, com o pretexto de imortalidade, lhe dera a morte; com efeito, prometendo-lhes que seriam semelhantes a deuses, o que estava absolutamente fora de seu poder, causou-lhes a morte. Por isso justamente foi de novo encarcerado o que levara o homem ao cárcere e assim foi solto o vínculo da condenação do homem que fora aprisionado. -- Por outros termos, trata-se de Adão, o homem modelado em primeiro lugar, acerca do qual a Escritura refere que Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26). Nós todos derivamos dele e por causa disso herdamos o seu nome. Ora, se o homem foi salvo, também salvo deve ser o homem que foi modelado em primeiro lugar. De fato, seria por demais irracional dizer que não é libertado pelo vencedor do inimigo quem diretamente foi ferido pelo mesmo inimigo e que foi o primeiro a experimentar a escravidão, ao passo que seriam libertados os filhos gerados por ele na mesma escravidão. Nem pareceria verdadeiramente vencido o inimigo se ficassem com ele os antigos despojos. Seria como se os inimigos, depois da vitória, levassem prisioneiros os vencidos e os retivessem na escravidão por bastante tempo para ter filhos. Ora, se alguém, tendo compaixão destes escravos, combatesse e vencesse os inimigos, não se comportaria com justiça libertando somente os filhos dos escravos do poder dos que reduziram os pais à escravidão, deixando estes, aos quais foi imposta a escravidão e em favor dos quais se insurgiram para a vingança, sujeitos aos inimigos. É coisa boa que os filhos obtenham a liberdade por meio da vingança feita em favor dos seus pais, mas também não devem ser abandonados os próprios pais que sofreram a escravidão. Mas Deus não é fraco, nem injusto, e veio em socorro ao homem e lhe restituiu a liberdade. -- Por isso, no início, quando da transgressão de Adão, como refere a Escritura, Deus não amaldiçoou Adão, e sim a terra que ele trabalharia. Como diz um dos Anciãos: Deus transferiu sua maldição à terra para que não ficasse no homem. Como pena da transgressão, porém, o homem foi condenado ao penoso trabalho da terra, a comer o seu pão à custa do suor da sua fronte e a voltar àquela terra da qual fora tirado. À mulher, por sua vez, foram reservados as penas, os cansaços, os gemidos e as dores do parto e do serviço sob o poder de seu marido. De tal forma que, não sendo amaldiçoados por Deus, não perecessem de maneira definitiva, e, por outro lado, não ficando impunes, não desprezassem a Deus. A maldição, porém, recaiu sobre a serpente que os seduzira: E Deus disse à serpente: "Por ter feito isso, maldita és entre todos os animais doméstico e todas as feras da terra" (Gn 3,14). É a mesma maldição que o Senhor, no Evangelho, lança contra os que estiverem à sua esquerda: "Ide, malditos, ao fogo eterno, que meu Pai preparou para o diabo e os seus anjos" (Mt 25,41), indicando que o fogo eterno não foi preparado propriamente para o homem, e sim para os que seduziu e fez o homem pecar e que é o iniciador da apostasia e para os anjos que se tornaram apóstatas como ele. É o mesmo fogo que, com toda justiça, haverão de suportar os que, impenitentes e obstinados como os anjos, perseverarão nas obras do mal. -- Da mesma forma que Caim, o qual, depois de ter recebido de Deus o conselho de se acalmar porque não partilhava corretamente a comunhão com seu irmão, imaginando poder dominá-lo com inveja e malícia, longe de se acalmar acrescentou pecado a pecado, manifestando as suas disposições pelos seu atos. Executou o que pensara: dominou e matou o irmão, submetendo Deus o justo ao injusto para que a justiça daquele se manifestasse no que sofria e a injustiça deste fosse revelada pela ação que cometeu. E sequer assim se acalmou e desistiu do mal feito. Como Deus lhe perguntasse onde estava o seu irmão, respondeu: "Não sei, por acaso sou o guarda de meu irmão?" (Gn 4,9), agravando e multiplicando a sua culpa com esta resposta. Porque, se era mal matar o irmão, era mal muito maior responder com esta audácia e irreverência a Deus, que conhece todas as coisas, como se o pudesse enganar! Por isso, ele também carregou a maldição por transferir de si o pecado, faltando de respeito a Deus e por não se envergonhar do seu fratricídio. -- Quanto a Adão não aconteceu nada disso, antes, pelo contrário. Seduzido por outro a pretexto de imortalidade, foi logo tomado pelo temor e se escondeu, não para fugir de Deus, mas cheio de confusão por ter transgredido o seu mandamento e por se julgar indigno de estar na sua presença e de conversar com ele. Ora, "o temor de Deus é princípio de inteligência e a inteligência" (Pr 1,7; 9,10) da transgressão leva à penitência e a quem se arrepende Deus concede a sua benignidade. De fato, Adão manifesta o seu arrependimento cobrindo-se com cinto de folhas de figueira quando havia muitas outras espécies de folhas muito menos incômodas para o seu corpo, mas ele, tomado pelo temor de Deus, se fez uma veste correspondente à desobediência; para reprimir o ímpeto petulante da carne, por ter perdido o espírito ingênuo e infantil e o seu pensamento se ter desviado para o mal, revestiu a si mesmo e sua mulher com freio de continência, esperando com temor a chegada de Deus, como que a dizer: desde que perdi com a desobediência a veste recebida pelo Espírito de santidade, reconheço-me merecedor desta veste que não traz nenhuma satisfação e até pica e arranha o corpo. E, sem dúvida, teriam trazido para sempre aquela indumentária para se humilhar, se o Senhor, que é misericordioso, não os tivesse revestido com túnicas de pele em lugar das folhas de figueira. Por isso Deus interroga-os para que a acusação recaia sobre a mulher; em seguida interroga esta para que desvie a acusação para a serpente. De fato, ela disse o que tinha acontecido: "A serpente me seduziu e eu comi" (Gn 3,13). Deus, porém, não interroga a serpente, pois sabia que era a instigadora da transgressão e lançou primeiramente sobre ela a maldição e somente em seguida aplica o castigo ao homem; pois Deus odiou aquele que seduziu o homem, enquanto lentamente e aos poucos, teve compaixão do homem que fora seduzido. -- Eis por que o afastou do paraíso e o levou para longe da árvore da vida, não por causa do ciúme da árvore da vida, como alguns têm a ousadia de afirmar, mas por compaixão do homem, para que não ficasse para sempre culpado e para que o pecado, que estava nele, não fosse imortal e o mal não fosse sem fim e incurável. Parou, portanto, a transgressão, interpondo a morte e fazendo cessar o pecado, estabelecendo-lhe um limite na dissolução da carne na terra, para que, cessando de vez de viver no pecado e morrendo para ele, começasse a viver para Deus. -- Por isso Deus estabeleceu a inimizade entre a serpente e a mulher com a sua descendência, para que se espreitassem mutuamente: uma seria mordida ao calcanhar, mas capaz de pisar a cabeça do inimigo; a outra teria mordido, matado e impedido a caminhada do homem até a vinda do descendente destinado a pisar-lhe a cabeça, o filho de Maria, de quem o profeta diz: "Sobre a áspide e o basilisco andarás e calcarás aos pés o leão e o dragão" (Sl 91,13). Isto quer dizer que o pecado que se levantava e se desenvolvia contra o homem tirando-lhe a vida, seria destruído e com ele o império da morte, e seria pisado pela descendência da mulher; que o leão, isto é, o Anticristo que assalta o homem, nos últimos tempos, aquele dragão, a antiga serpente, será acorrentado e submetido ao po der do homem, o vencido de então, que lhe esmagará todo o poder. Adão fora vencido e privado de toda vida; por isso, sendo vencido, por sua vez, o inimigo, Adão recebeu a vida, porque será vencida a morte, o último inimigo, que antes retinha o homem em seu poder. Então, libertado o homem, "realizar-se-á o que está escrito: a morte foi absorvida na vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (1Cor 15,54-55). O que não se poderia dizer legitimamente se não fosse libertado também aquele que foi o primeiro a ser dominado pela morte, pois a destruição da morte supõe a salvação dele e a mor-te foi destruída enquanto o Senhor restituiu a vida ao homem, isto é, a Adão. -- Mentem, portanto, todos os que negam a salvação de Adão, e excluem-se a si mesmos e para sempre da vida, pois não crêem que a ovelha perdida foi reencontrada. Ora, se ela não foi encontrada, ainda estão em poder da perdição todas as gerações humanas. E mentiroso foi Taciano, o primeiro a introduzir esta doutrina, ou melhor, esta ignorância, esta cegueira. Transformado em conexão de todas as heresias, como demonstramos, ainda foi capaz de inventar isso de sua cabeça, de forma que acrescentando alguma coisa mais que os outros, com palavras vazias pudesse ter ouvintes vazios de fé diante dos quais passar por mestre. Com essa finalidade procura usar palavras como estas, muito freqüentes em Paulo: "Nós todos morremos em Adão", mas ignorava que "onde abundou o pecado, superabundou a graça" (1Cor 15,22; Rm 5,20). Esclarecido isso, envergonhem-se todos os seus seguidores que se lançam contra Adão como se tivessem muito a ganhar com a sua condenação, quando isso não lhes traz vantagem alguma! É como a serpente, que nada ganhou ao seduzir o homem, e até se revelou transgressora, encontrando no homem o início e a matéria da sua apostasia, sem conseguir vencer a Deus. Assim, os que negam a salvação de Adão nada têm a ganhar, tornam-se a si mesmos hereges e apóstatas da verdade, e se revelam advogados da serpente e da morte. CONCLUSÃO O depósito da fé -- Apresentando todos os que introduzem doutrinas ímpias sobre Deus (Os gnósticos insistem sobre a incompreensibilidade e a incomunicabilidade do Deus supremo. Contrariamente, Ireneu reafirma tanto a unidade e transcendência do Deus Criador quanto sua livre, gradual e amorosa revelação em Cristo) que nos criou e modelou, que criou este mundo, sobre o qual não existe outro Deus, e refutando, com seus próprios argumentos, os que ensinam o falso sobre a natureza de nosso Senhor e a economia que atuou em prol do homem, sua criatura, demonstramos, ao mesmo tempo, a constante identidade da pregação da Igreja, em todo o mundo, da doutrina à qual dão testemunho os profetas, os apóstolos e todos os discípulos. Foi isso que mostramos, englobando o princípio, o meio e o fim, isto é, a totalidade da economia de Deus e da sua ação infalivelmente ordenada à salvação do homem e a estabelecer a nossa fé. E nós guardamos fielmente, com cuidado, pela ação do Espírito de Deus, esta fé que recebemos da Igreja, como depósito de grande valor em vaso precioso, que se renova e renova o próprio vaso que a contém. Este dom de Deus foi confiado à Igreja, como o sopro de vida inspirado na obra modelada, para que sejam vivificados todos os membros que o recebem. É nela também que foi depositada a comunhão com o Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor de incorrupção, confirmação da nossa fé e escada para subir a Deus. Com efeito, "Deus estabeleceu apóstolos, profetas e doutores na Igreja" (1Cor 12,28) e todas as outras obras do Espírito, das quais não participam todos os que não acorrem à Igreja, privando-se a si mesmos da vida, por causa de suas falsas doutrinas e péssima conduta. Onde está a Igreja, aí está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus ali está a Igreja e toda a graça. E o Espírito é Verdade. Por isso os que se afastam dele e não se alimentam para a vida aos seios da Mãe, não recebem nada da fonte puríssima que procede do corpo de Cristo, mas cavam para si buracos na terra como cisternas fendidas e bebem a água pútrida de lamaçal; fogem da Igreja por medo de serem desmascarados e rejeitam o Espírito para não serem instruídos. -- Tornados estranhos à verdade são condenados a revolver-se em todo erro, agitados pelas ondas, mudando os seus pensamentos sobre as mesmas coisas, segundo os tempos, sem nunca ter uma opinião estável, porque preferem ser sofistas de palavras a ser discípulos da verdade. O seu fundamento não é a única rocha, mas a areia composta de numerosas pedras. Por isso, fabricam para si muitos deuses, e têm sempre a desculpa de procurar, pobres cegos, sem nunca conseguir encontrar, e não sem motivo, porque blasfemam o seu Criador, isto é, o verdadeiro Deus que dá a graça de encontrar, pois pensam ter encontrado acima dele outro Deus, outro Pleroma, outra economia. Por isso não brilha sobre eles a luz de Deus porque o injuriaram e desprezaram, julgando-o uma nulidade, porque no seu amor e na sua superabundante bondade se deu a conhecer aos homens. Ele revelou não a sua grandeza nem a sua natureza íntima, visto que nunca ninguém o mediu ou o tocou, mas levando-nos a entender que quem fez e plasmou os homens, inspirando neles o sopro de vida, que nos sustenta por meio da criação, que tudo consolida pela obra do seu Verbo e tudo unifica com a sua Sabedoria, é o único verdadeiro Deus. Estes, porém, sonham um Deus superior a este, que não existe, e julgam ter encontrado um deus grande que ninguém pode conhecer, que não comunica com o gênero humano nem se interessa pelas coisas terrenas; e assim acabaram por encontrar o deus de Epicuro que não é útil para si, nem para os outros, isto é, um deus sem providência. A bondade de Deus -- Deus, porém, cuida de todas as coisas e por isso dá conselhos, e dando conselhos, está presente aos que cuidam da própria conduta. É, portanto, necessário que as coisas beneficiadas e governadas conheçam quem as dirige, pelo menos as que não são irracionais nem frívolas e se apercebam desta Providência de Deus. Por isso, alguns pagãos, que menos serviram aos prazeres ilícitos e não se deixaram levar por tantas superstições idolátricas, por pouco que fossem sensíveis à sua providência, chegaram a reconhecer que o Criador deste universo é o Pai que cuida de todas as coisas e administra o nosso mundo. -- Além disso, para negar ao Pai o poder de repreender e de julgar, pensando não ser isso digno de Deus, e convencidos de ter encontrado um deus sem cólera e bom, distinguem um deus que julga e um deus que salva, sem perceber que assim privam os dois de inteligência e de justiça. Com efeito, se o deus que julga não é ao mesmo tempo bom para perdoar os que deve perdoar e repreender os que o merecem, não pode ser tido por juiz justo e sábio; mas se for somente bom e não discerne as pessoas que quer agraciar com sua bondade, será alienado da justiça e da bondade e a sua própria bondade se mostrará impotente, por não salvar todos os homens, visto que se exerce sem julgamento. -- Marcião, portanto, que distingue dois deuses, um bom e o outro juiz, nega a ambos a divindade. Se o deus juiz não é bom não pode ser deus porque lhe falta a bondade; e se o deus bom não é juiz, terá a mesma sorte do primeiro e não poderá ser reconhecido por deus. E como podem chamar sábio o Pai de todas as coisas se não lhe atribuem também o poder de julgar? Se é sábio, distingue, e o distinguir supõe o juízo e o juízo a justiça para agir justamente; a justiça provoca o juízo que, feito com justiça, se liga à sabedoria; o Pai supera em sabedoria toda sabedoria humana e angélica, porque é o Senhor, o justo Juiz, superior a todos; mas é também misericordioso, bom e paciente e salva os que convém. De forma que não lhe falta a bondade por causa da justiça, nem sua sabedoria é diminuída pelo fato de salvar os que devem ser salvos e condenar quem justamente deve ser condenado; e a própria condenação não é cruel, porque precedida e prevenida pela bondade. -- Assim, Deus, que com bondade, faz o seu sol levantar para todos e faz chover sobre os justos e os injustos, julgará todos os que receberam de modo igual da sua bondade, porém não se comportaram de maneira condigna ao dom recebido, mas entregues aos prazeres e às paixões carnais, contrariam a sua bondade e até blasfemam quem os cumulou de benefícios. -- Bem mais religioso do que eles parece Platão, que reconheceu um Deus, ao mesmo tempo justo e bom, com poder sobre todos e que pronuncia pessoalmente o julgamento. Ele diz: "Segundo o dito antigo, Deus, possuindo o princípio, o meio e o fim de todas as coisas existentes, vai reto a seu fim, como é de sua natureza; e é sempre acompanhado pela justiça que castiga as infrações à lei divina". E afirma que o Autor e Criador deste universo é um ser bom: "Naquele que é bom nunca nasceu a inveja de nada". E estabelece como princípio e causa da criação a bondade de Deus e não a ignorância, nem um Éon desgarrado ou fruto de degradação, nem uma Mãe chorosa e queixosa, nem outro Deus ou outro Pai. -- Justamente a Mãe chora sobre os inventores de semelhantes fábulas, porque suas mentiras recaíram justamente sobre suas cabeças. Com efeito, a Mãe está fora do Pleroma, isto é, do conhecimento de Deus e a soma de seus rebentos não foi senão aborto sem forma, nem figura, porque não sabe nada da verdade. Ela caiu no vazio e na sombra e assim a doutrina deles não é senão vazio e trevas. O Limite não permitiu a ela entrar no Pleroma e o Espírito não recebe a eles no refrigério, porque o Pai deles, ao gerar a ignorância, produziu neles paixões de morte. Isto não são calúnias, pois são eles que afirmam, ensinam e se gloriam destas coisas; orgulham-se eles de sua Mãe, que dizem gerada sem Pai, isto é, sem Deus, mulher de mulher, isto é, do erro a corrupção. Votos apostólicos -- Quanto a nós, rezamos para que não permaneçam na fossa que cavaram para si mesmos, se separem de tal Mãe, saiam do Abismo, se afastem do vazio, abandonem as trevas, sejam gerados como filhos legítimos, convertendo-se à Igreja de Deus, o Cristo seja formado neles, conheçam o Criador e o Autor deste universo como único verdadeiro Deus, Senhor de todas as coisas. Esta é a nossa oração para eles e com isso os amamos realmente muito mais do que eles julgam amar a si mesmos. O nosso amor, sendo verdadeiro, lhes é proveitoso se o aceitarem; parece-se a remédio doloroso que faz desaparecer a carne inútil e supérflua da ferida: expele-lhes o orgulho e a presunção. Por isso não nos cansamos e continuaremos a estender-lhes as mãos. Continuaremos sobre este argumento no livro seguinte, onde aduziremos as palavras do Senhor, na esperança de convencer alguns deles, por meio da própria doutrina de Cristo, a deixar o erro e a renunciar a esta blasfêmia proferida contra o Criador, que é o único Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém..

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