Introducao De Um Relatorio Cientifico

Daemen College - As Chamas do Amor de Jesus. Apresento-lhes este profundo livro escrito pelo Abade Dom Pinnard em 1923, trazendo-nos reflexões profundas sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Introdução Quando sinceramente alguém se aplica a considerar o imenso amor que nos testemunhou Jesus Cristo em sua vida e especialmente na sua morte, submetendo-se por nossa salvação a tantos trabalhos, tantos sofrimentos, tantos tormentos, impossível é não se sentir tocado e como que abrasado do desejo de amar um Deus que, com um ardor tão vivo, nos amou. As chagas do nosso Redentor tão grande virtude encerram, que ferem de amor os corações mais duros, inflamam os espíritos mais enregelados. Confirma esta verdade a experiência de todos os dias; mostra-nos que nunca uma alma faz progresso no amor de Deus que quando medita sem cessar os mistérios da vida e paixão de Jesus Cristo. Seria possível com efeito não amar a Jesus, quando para cativar o nosso amor o vemos nascer no curral, viver por trinta anos na obscuridade e privações, morrer no meio de dores e opróbrios? Não, não é possível. Todos os Santos compreenderam esta verdade e sempre fizeram todas as suas delícias da meditação destes mistérios: por este meio é que se elevaram a um alto grau de perfeição e santidade. Quereis, diz o devoto Thomaz de Kempis, aprender a amar a Jesus de todo o vosso coração? Quereis purificar inteiramente a vossa alma das suas manchas, enriquecê-la do toda a sorte de virtudes? Quereis alcançar gloriosas vitórias dos inimigos da nossa salvação, receber abundantes consolações em vossas penas e mágoas? Quereis fazer grandes progressos na oração, obter a perseverança final, morrer santamente e reinar no céu por toda a eternidade? Exercei-vos na meditação continua da vida e morte do nosso Divino Salvador. A paixão de Jesus Cristo é o tesouro oculto onde Deus deposita as suas mais preciosas graças; é a plenitude de todas as virtudes, a perfeição da santidade; quanto mais nela se medita, mais consolações e doçuras ali se descobrem, é a fonte da compunção, e o foco mais ardente do amor divino. Mil vezes feliz aquele que ali sabe beber! Deus, segundo refere Pedro de Blois, revelou um dia a Santa Gertrudes que todas as vezes que alguém olhasse com devoção para a imagem de Jesus crucificado, atraía sobre si os olhos da Divina Misericórdia. Aproveitemo-nos deste aviso e pensemos frequentemente em tudo quanto por nosso amor o Senhor quis sofrer. A fim de ajudarmos a isto, segundo nossas posses, as almas que sinceramente desejam fazer progressos no amor de Jesus, imos, nesta pequena obra, tentar fazer conhecer, conforme nos atestam as divinas escrituras, a ternura que este tão amantíssimo Salvador por nós teve, a tudo o que fez para nos obrigar a amá-lo. Tiraremos daqui ocasião de nos excitarmos ao reconhecimento e à dor das nossas faltas e ingratidões passadas. Ó Jesus! Diremos então com Santo Agostinho, ó doce Jesus! Dignai-vos gravar em meu pobre coração todas as vossas chagas, afim que sempre nelas leia a vossa dor e o vosso amor: nossa dor, ó meu Jesus, me ensinará a sofrer em paz e resignação todas as penas que vos aprouver enviar-me: dir-me-á incessantemente o vosso amor que vos ame e despreze outro qualquer amor que não o Vosso. RESOLUÇÕES PRÁTICAS É NECESSÁRIO VENCER-NOS A NÓS MESMOS Não são os que se contentam com dizer: Senhor! Senhor! que entrarão no reino dos céus, mas os que fizerem a vontade de meu Pai, diz Jesus Cristo. Não basta repetir a Deus que o amamos, é preciso prová-lo com obras. Não nos iludamos: o amor de Deus não consiste em protestos da fidelidade ao seu serviço, nas expressões de ternura, etc.; consiste no cumprimento de Sua Vontade. Ora, se a Sua Vontade é que nos tomemos santos e perfeitos, devemos trabalhar por isso. Para o que se faz necessário é que sejamos fiéis em cumprir todos os Seus mandamentos e todos os da Sua Igreja. Digo todos porque São Tiago nos ensina que quem viola a lei num só ponto é culpável como se a violasse toda. É para facilitar as almas piedosas os meios de verdadeira e solidamente amarem a Deus que pus no fim de todos os capítulos desta obra alguma breve instrução sob o título de RESOLUÇÕES PRÁTICAS. Nelas achar-se-á o segredo de toda a santidade, que consiste simplesmente em nos vencermos a nós mesmos em todas as coisas, não por agradar à criatura, mas unicamente por amor de Deus. Vince et ipsum, vence-te a ti mesmo. Estas duas palavras andavam continuamente na boca de Santo Inácio de Loyola e de São Francisco Xavier. É coisa sabida o uso que delas fizeram para sua própria santificação. Ama et fac quod vis: são palavras de Santo Agostinho; ama e faze depois tudo o que quiseres: porque se verdadeiramente amas, as tuas ações não desmentirão os sentimentos do teu coração. Pede incessantemente a Deus, meu querido Teótimo, este amor verdadeiro que se prova por obras. Nunca percas de vista que a santidade consiste propriamente na destruição dos vícios, e de nenhum modo nas consolações espirituais, diz Bloisius, Speculum religios, capítulo 2º, número 2. Sofre por Deus, obra por Deus, faze em todas as coisas a Vontade de Deus: eis o Verdadeiro Amor. Capítulo I - Jesus Cristo fez-se homem para nos fazer compreender o amor que nos tem, e nos excitar a amá-lo - "Jesus Cristo nos amou e a si mesmo se entregou por nós" (Ef 5,2). Para atrair a si os corações dos homens e captar seu amor, havia-os Deus enchido de toda a sorte de benefícios; longe porém de corresponderem às suas solicitações e dar-lhe amor por amor, os homens ingratos nem sequer por seu Deus e Senhor o quiseram reconhecer; ante ídolos de pedra e madeira curvaram vergonhosamente a fronte, e às mais vis criaturas prostituíram suas homenagens e adorações. E se apenas num pequeno canto da terra, se na Judeia, era este Deus do universo como tal reconhecido por um povo que escolhera, ainda ali mesmo mais era temido do que amado. Porém mais amado que temido quer ser Ele, e por isso fez-se homem como nós, e veio habitar na terra, passou entre nós uma vida pobre, laboriosa e desconhecida; entregou-se a uma morte cruel e ignominiosa: e isto para quê? Tudo para nos mostrar o imenso amor que nos tem e ganhar os nossos corações. Sim, não quis nosso divino Salvador nascer num curral e expirar numa cruz, senão para patentear o quanto nos ama e quanto de nós deseja ser amado. Dilexit non et tradidit semetipsum pro nobis O que seria de nós depois do pecado do nosso primeiro pai, se Jesus Cristo não se dignasse resgatar-nos? Ai! Abandonados à nossa fraqueza, escravos de nossas concupiscências, ter-nos-íamos precipitado em todo o crime, e passaríamos uma vida desgraçada. Esmagados sob o peso de um Deus irado, jamais sentiríamos o nosso coração palpitar de gozo com a doce esperança do céu, nunca haveríamos experimentado os encantos do amor divino, em tempo algum gozaríamos as doçuras da paz, fruto de uma consciência pura. Que pobres e miseráveis! Sujeitos sempre às nossas paixões, sempre em contínua guerra conosco e nossos semelhantes, só conheceríamos esta terra para a amaldiçoarmos, só deixaríamos esta testemunha de nossos males e lágrimas para cair nos abismos do inferno. Que horrível sorte! Por bem nosso, Jesus, bondade e misericórdia infinita, teve dó da nossa desgraça. Apesar da nossa revolta, amou-nos e consentiu em resgatar-nos. Se isto não fizera e nos deixasse vítimas do inferno que tínhamos merecido, não ficaria mais pequeno ou menos perfeito, sua felicidade em nada sofreria decrescimento. Excitado porém por seu amor, resolveu abrir-nos as portas do céu pelos mais penosos trabalhos, pelos tormentos mais horríveis, como se da nós dependera a sua felicidade. Sem sofrer nos poderia bem remir; não o fez porém assim; e dentre tantos meios que tinha para nos salvar preferiu Ele o mais humilhante e molesto, quis por sua própria morte livrar-nos da morte eterna, para por esta via mais direitos adquirir ao nosso reconhecimento e ao nosso amor. Uma simples súplica de Jesus, uma só lágrima sua, uma gota do seu sangue precioso seria bastante para nossa salvação. Sim, diz São João Crisóstomo, para nos salvar fora bastante uma só lágrima de Jesus; porém, não era ela suficiente ao nosso Divino Salvador para nos mostrar o seu amor. Para mais provado nos deixar o seu amor, e nos impor assim uma maior obrigação de o amarmos, é que Ele preferiu às honras e a uma vida de repouso e glória, os desprezos, vida pobre e morte cheia de dores e opróbrios. Aqui está o quanto nosso Deus fez por nós! Eis como nos amou! E por Ele que havemos feito? Sempre somos muito ingratos! Jesus a coroar-nos de misericórdias e amor, Jesus a dar-se todo a nós, a sacrificar-se por nós, a fazer-se homem por nós, isso tudo para ganhar o nosso coração, e nós não o amamos! Pois que! Se nós amamos a um homem que nos dá algumas mostras de afeição; que digo? Se amamos até um cão que nos afaga, e só para o nosso Deus que nos enche de benefícios é que não teremos amor! Para excitar o nosso reconhecimento para com nossos semelhantes, uma só palavra amável, um sinal de bondade, um sorriso já é bastante; e Deus esgota todos os tesouros do seu poder e da sua sabedoria por nosso amor e nós não queremos corresponder à sua ternura! Ó céus! Quanto nos envergonharemos de una tão monstruosa ingratidão? Ainda virá o dia em que deixemos de opor friezas e desprezos ao infinito amor de Pai tão bom? Ó meu doce Jesus! Permiti-me o dizer-vo-lo: não, não quero para o futuro ser ingrato como até aqui; d'ora em diante só quero amar-Vos de todo o meu coração. Possa, ó Salvador meu, possa esse amor que Vos levou a morrer por mim sobre a cruz, faze-me morrer a mim para todos os afetos terrenos, abrasa-me desse fogo que viestes trazer à terra! Mil e mil vezes detesto esses indignos prazeres, que tantos tormentos Vos causaram, e de toda a minha alma me arrependo, ó meu muito amado Redentor, de tanto Vos ter ofendido. De hoje em diante quero morrer antes que causar-Vos a mínima ofensa; para Vos ser agradável, disposto estou a fazer tudo o que em mim deseja. Para nos amar, Vós a nada Vos poupastes, a nada me quero eu também poupara para amar-Vos. Sem reserva me amastes Vós; pois sem reserva Vos quero amar também eu. Eu Vos amo, ó meu único bem, meu único amor, meu tudo: sim, eu Vos amo. Fazei, ó Jesus meu, fazei, eu Vos suplico, que Vos ame tanto quanto a uma pobre criatura é possível amar-Vos: fazei que Vos ame até o último suspiro, e por toda a eternidade, Fiat, fiat! Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS A Salvação é a Única coisa Necessária Cristão, quem quer que sejas que esta obra lês, pensa hoje seriamente no grande negócio da tua salvação. A tua salvação!... Ah! Eis o que todos os instantes te deve ocupar, pois que, segundo o mesmo Jesus Cristo, é a única coisa necessária. Afana-te quanto queiras por te enriquecer, amontoa tesouros e mais tesouras; eu bem não queria contrariar-te; mas, por quem és, tudo isto de que te vale se te condenas? Corre após os terrenos prazeres; prossegue todas as honras e todas as dignidades; aos teus sentidos e caprichos nada recusas; goza de todas as comodidades; eu ir contra não vou, mas, dize-me, afinal tudo isto de que te servirá se te perdes? Alguns dias mais, o mundo, riquezas, honras, prazeres, tudo, tudo para ti se esvairá; e então que apreço darás a todas estas coisas uma vez caído na desgraça eterna? Entra, meu irmão, em ti mesmo, eu te suplico, e examina em que alturas vai o negócio da tua salvação. Talvez que até agora nada ou quase nada hajas feito para o céu; pois ainda é tempo de lançar mãos à obra: vamos. Põe em ordem a tua consciência, e se pela misericórdia de Deus te não acusa de falta grave, trabalha a enriquecer-te de boas obras e de sólidas virtudes. Hoje é o começar. Para isso repassa incessantemente pela memória esta palavra do nosso Mestre: "De que serve ao homem ganhar o mundo todo se perde a sua alma? E porque penhor poderá resgatar essa pobre alma, depois de a haver perdido?" Ao teu espírito seja sempre esta sentença, e pede a Deus a graça de bem a entenderes. Se a compreenderes bem, ela infalivelmente te há de tocar o coração; pôr-te-á diante dos olhos a vaidade, o nada das coisas do mundo; e acabarás brevemente por te fazer um Santo. E se fores um Santo ou ao menos trabalhares por isso, que gosto não darás ao nosso bom Mestre! Que paz não atrairás sobre a tua alma! E lá no fundo do teu coração que doce esperança não sentirás de reinar um dia no céu! À obra pois, meu irmão, mãos à obra; Jesus é contigo. Nunca Ele desampara algum dos seus filhos: alenta nossos esforços e sustenta nossa fraqueza: confiança nEle e serás salvo. Capítulo II - Do amor que Deus nos testemunhou em nos dar o seu único Filho - "Deus por modo tal amou o mundo, que lhe deu o seu unigênito Filho" (Jo 3,16). Oh! Quão profundo é o sentido da partícula sic, de tal modo! Significa esta pequena palavra o que nunca poderemos compreender; significa a grandeza do amor que levou Deus a dar-nos, não um servo, não um anjo, mas o seu próprio Filho, e a condenar à morte esse Filho inocente pelo homem culpável. Ah! Quem assim nos podia fazer um dom de valor infinito, senão um Deus, cujo amor não conhece limites? Oh! Quanto não devemos bendizer tal ternura do nosso Deus! Estávamos pelo pecado mortos à vida da graça, e Jesus por sua morte ressuscitou-nos; estávamos miseráveis, hediondos e abomináveis, e Deus por meio de Jesus Cristo, nos "tornou belos e caros a seus olhos". Mas não foi só libertar-nos do pecado, "também nos encheu em Jesus Cristo de toda a sorte de bens espirituais para o céu. Ó maravilhosa condescendência da ternura do nosso Deus!" exclamas nos transportes de sua admiração a Igreja; "ó caridade incompreensível! Por libertar o escravo, entregar o seu único Filho!" Procuremos compenetrar-nos bem do sentido destas palavras: "Deus, o seu único Filho." E não é aos anjos que Jesus Cristo é dado, não é por eles que se fez homem e nasceu de uma Virgem sem mácula: não é; mas sim a nós, a nós, filhos de Adão, é que foi concedida dádiva tão preciosa. Nobis datus, nobis natus ex intacta Virgine: a nós foi dado, para nós foi nascido de uma Virgem imaculada, canta a Santa Igreja. A nós é que Jesus Cristo foi dado, a nós pertence pois; nele e com ele infinitos bens e tesouros possuímos. Mas ai! Que nós nem sequer conhecemos o dom que nos fez Deus, em nos dar seu Filho! Tão pouco pensamos nos bens que tiramos da Incarnação do Verbo. É tal grandeza de seus benefícios, que devemos em certo modo regozijar-nos da falta de Adão. Em verdade muito mais nos deu Jesus Cristo do que nos tirou Adão: ganhamos pela redenção mais do que perdemos pelo pecado, "e a graça", diz São Paulo, "não foi medida segundo o crime". Assim toda enlevada do rapto do seu zelo e reconhecimento, a Igreja brada: "Ó culpa feliz, que merecestes ter um tal Reparador! Ó feliz e necessário pecado de Adão que fostes apagado pela morte de Jesus Cristo!" "Ah! Se souberas", dizia o nosso Salvador à Samaritana, "se souberas do dom de Deus! Se soubesses quem é que te diz: Dá-me de beber!...". Ó alma minha! A ti é que se dirigem estas palavras. Se tu souberas quem é Jesus, se conheceras quem é o bom Jesus, compreenderias a extensão do amor que impeliu Deus a dar-t'o, saberias quanto por sua incarnação te mereceu, cairias na conta de quanto amor, quanto reconhecimento deves a quem te fez dom tão excelente! "Senhor, dizia Santo Agostinho, quem é ingrato no tocante ao benefício da criação, merece o inferno, porém para o ingrato ao da redenção novo inferno seria preciso." Do Padre Avila se conta que quando alguém, reconhecido de algum benefício especial que Deus recebera, se admirava da bondade divina, dizia: "Não é por isso que a devemos admirar; mas sim por ter Deus amado o mundo até lhe dar o seu único Filho." Ó Pai Eterno! Agradeço-vos o terdes-me dado o vosso Filho como Redentor. Divino Filho, agradeço-vos o haverdes-me resgatado com tanto amor e à custa de tantas dores. O que seria de mim, Jesus meu, o que seria de mim, depois de tantos pecados de que me hei manchado, se não tivesses morrido por mim? "Ai o número dos pecados excede já muito o dos cabelos da minha cabeça." Tanto tempo vai já que só para ultrajar-vos vivo! Ah! "Para que se prolongou tanto o meu exílio sobre a terra?" Porque não exalei eu o meu último suspiro ao sair das águas do batismo? Porque não morri antes de ofender-vos? Gemidos inúteis! O mal está feito. Dai-me, Salvador meu, eu vos suplico, dai-me uma parte dessa aversão que ao pecado tivestes durante vossa vida morta, e perdoai-me. Mas perdão só não me basta; eu também quero o vosso amor, pois mereceis ser infinitamente amado; dignai-vos por tanto conceder-m'o igualmente. Até a morte me amastes vós, Senhor; até morrer também quero eu amar-vos. De toda a minha alma vos amo, ó infinita bondade; amo-vos mais do que a mim mesmo, e todos os afetos do meu coração só em vós quero por. Ah! Ajudai-me, e não permitais que eu torne a ser ingrato como até aqui. Fazei-me conhecer o que de mim quereis, porque resolvido estou, mediante a vossa graça, a fazer tudo absolutamente tudo o que quiserdes. Sim, querido Jesus meu, eu vos amo e quero amar-vos, sempre, meu tesouro, minha vida, meu amor, meu tudo. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Devemos Temer as Faltas Leves Há na vida espiritual uma verdade de importância tal, que por todas as almas piedosas deve ser seriamente meditada. E ei-la aqui, tal como a inspirou o Espírito Santo: Qui spernit modica, paulatim decidet, quem despreza e não tem em conta as coisas pequenas, cairá pouco a pouco. Compreende bem esta palavra: "cairá pouco a pouco". Cairá insensivelmente, sem mesmo dar por isso, mas cairá. Hoje, sob pretexto de ser falta leve, consente numa mentira muito pequena; amanhã já deixa sair uma maior, e acabará por cair nas maiores desordens. Teme, teme muito o desprezo das coisas pequenas; receia as faltas leves; olha que são de alguma sorte mais perigosas do que as grandes. "Ouso, diz São João Crisóstomo, avançar uma proposição, que parecerá surpreendente e inaudita; e é que me parece se dever por algumas vezes menos cuidado em fugir dos pecados grandes, do que em evitar as faltas pequenas. Daqueles só a sua enormidade nos inspira horror; com estas, por pouco consideráveis, facilmente nos familiarizamos; este desprezo em que as temos nos impede de fazermos o devido esforço para as expelir, e assim por negligência nossa vão crescendo até chegarmos ao estado de não podermos desfazer-nos delas. Ainda outra vez o repito: teme as faltas pequenas, teme-as e evita-as pois, por pequenas que sejam, nem por isso deixam de ofender menos o nosso bom Mestre; teme e evita as faltas leves, porque à tibieza nos conduzem: teme as faltas leves porque disse Jesus Cristo, 'quem nas coisas pequenas é fiel, sê-lo-á também nas grandes, e quem nas pequenas é injusto, injusto será nas grandes.'" Vela hoje muito sobre ti mesmo, e esforça-te a viver hoje de modo que à noite possas dizer a Jesus: "Meu bom Mestre, hoje não me acusa a consciência de falta alguma inteiramente voluntária; bendito sejais, pois foi vossa onipotente mão quem me amparou. Suplico-vos me queirais perdoar toda e qualquer falta que por fragilidade me haja podido escapar; amanhã hei de fazer todos os esforços para viver melhor ainda." Capítulo III - Jesus Cristo mereceu-nos o perdão dos nossos pecados pela efusão de todo o seu sangue - "Nem por sangue de bodes, ou de bezerros, mas pelo seu próprio sangue entrou Jesus Cristo uma só vez no Santuário, havendo achado uma redenção eterna" (Hb 9,12). Ai! De que valia para nos obter a graça divina o sangue de todas as vitimas? Da mínima importância eram todos esses sacrifícios; eram na expressão do Apóstolo, cerimônias defeituosas e destituídas de toda a virtude; jamais lograriam elas destruir o muro de separação que entre Deus e o homem o pecado levantara. Quem é pois que teria assaz poder para nos restituir a graça com o céu? O homem? Ai! Esse é um filho da cólera; nasce na inimizade de Deus, e de suas próprias forças obra alguma pode fazer grata a esse Deus Santo, que não se compraz com serviços de quem é seu inimigo! Então será um anjo? Mas um anjo não passa de uma simples criatura; seus méritos são conseguintemente finitos e limitados, e a injuria a Deus feita pelo pecado do homem e um mal infinito. Como não se dignou de por si mesmo nos criar, também não achou indigno ele mesmo vir resgatar-nos. O excessivo amor que nos consagrava não o deixou confiar de outrem a satisfação e glória de salvar-nos. "Eu sou o Senhor", nos diz pela boca de Isaías, "e não darei a minha glória a outrem"; e realmente houvera sacrificado esta glória se a um anjo confiasse o cuidado de remir-nos. Porque se tão somente se contentara com tirar-nos do nada e nos dar a vida que neste mundo vivemos, vida infinitamente melhor, a um anjo seriamos devedores do que é mais excelente e a Deus do que o é menos. Ora, repito, Deus era nimiamente cioso da sua glória e do nosso amor para entregar a uma criatura a obra da nossa redenção. Não só quis dar-nos a primeira vida, criando-nos, mas ainda a segunda resgatando-nos, a fim de que só a ele o nosso amor pertencesse e nem à mínima parte alguém se julgasse credor. É isto o que perfeitamente exprimiu Santo Agostinho nestas palavras: "Assim como Deus era já nosso Criador, assim quis ao mesmo tempo ser nosso Redentor para que nosso amor não ficasse repartido entre criador e redentor." "Reconhece, ó homem, exclama São Bernardo, a dignidade e a nobreza de tua alma. Essa alma que tu arrastas pela lama, essa alma que sacrificas ao teu corpo, sabes em quanto foi estimado por Deus? Sabes que mais vale que o mundo todo? Se o ignoras, sabe que o teu Deus por amor dela sacrificou a sua e não a sacrificaria pelo universo, nem ainda por mil universos." Compreende agora o quão culpável és quando com o pecado a manchas. Como acabamos há pouco de ver, ainda quando um anjo nos poderá resgatar e satisfazer à justiça divina, não o permitiria Deus; queria ele mesmo encarregar-se, como de fato fez, do cuidado de nos merecer o céu e arrancar ao inferno, para melhor nos provar a grandeza do seu amor. Oh! Quem poderá dizer quanto nos ama Deus, a nós pobres e mesquinhas criaturas! Por amor de nós, lá desceu do alto do seu trono esse Deus do céu e da terra, e revestiu-se da nossa humildade, por nosso amor quis nascer num presépio onde para repousar seus delicados membros só palha tinha; por nosso amor quis passar trinta anos na oficina de um pobre carpinteiro, ganhar com o trabalho de suas mãos um pedaço de pão negro, comê-lo com o suor do seu rosto; por nosso amor finalmente quis derramar até à última gota do seu sangue e expirar cravado numa cruz repleto de atrocíssimas dores. Ah! Que bem razão temos nós de como Jó exclamar: "O que é o homem, Senhor, para que o honreis com vossa vista e façais dele o objeto do vosso amor?" Pois que! Esse poderoso Monarca do céu e da terra, esse Deus a quem nada falta, que só de si é suficientíssimo a si mesmo, andar em procura do teu amor, e esforçar-se até dar a vida para t'o merecer! Como poderemos nós jamais reconhecer ternura tão excessiva? Amemo-lo; amemo-lo; amor só com amor é pago, demos-lhe o nosso coração de que ele tão cioso é, com fidelidade lhe consagremos todos os seus movimentos, todos os seus afetos, não façamos a mínima reserva. Não percamos de vista que se pelo benefício da criação já de tudo lhe somos devedores, pelo da redenção muito mais ainda lhe devemos. O nos criar uma só palavra nos custou: "Ele disse e tudo foi feito." Mas para remir-nos o que não sofreu? Ó meu Jesus! Aqui estou aos vossos pés! Dignai-vos aceitar a homenagem que deste pobre coração vos faço. Ah! Para amar-vos um coração só é nada: tivesse eu os de todos os homens para vo-los consagrar, era ainda muito pouco. E que ingratidão seria pois a minha se fosse ainda dividir o meu entre vós e as criaturas? Não, amor meu; não, não há de assim ser. Quereis todo o meu coração e verdadeiramente todo o mereceis possuir; todo, pois, sem reserva vo-lo quero dar. Dar-vo-lo todo, como devo, não sou capaz, Senhor; tomai-o, pois, por vós mesmo; fazei que em verdade eu posso dizer-vos: "Sois o Deus do meu coração". Ah! Meu Redentor, pelos merecimentos da vida abjeta e cheia de tribulações, que neste mundo tivestes, dai-me a verdadeira humildade, que eu não viva senão no desprezo e na vida oculta. Fazei que com amor eu abrace enfermidades, dores, afrontas, perseguições, penas interiores e todas as cruzes que de vossa mão me venham; ame-vos eu e depois disponde de mim como mais vos agradar. Ó coração de Jesus! Por mim de amor abrasado, abrasai o meu coração de ardente amor por vós, e dai-me a graça de ser todo vosso antes de morrer. Amo-vos, ó meu Jesus, que tanto mereceis ser amado e tão vivamente o desejais: amo-vos de todo o meu coração, amo-vos de toda a minha alma. Aumentai mais e mais ainda o meu amor por vós; fazei que, para agradar-vos, eu mortifique incessantemente as minhas viciosas inclinações, os meus gostos, os meus caprichos, que renuncie de uma vez aos meus cômodos, aos meus prazeres, e mais que tudo à minha vontade. Ó meu Jesus! Com as lágrimas nos olhos vos conjuro, dai-me tudo, que tudo me falta. Pobre sou, mas serei rico, só com lançardes sobre mim um olhar de misericórdia. Ah! Meu Jesus! Dulcíssimo meu Jesus! Havei piedade de mim! Maria, minha terna Mãe, protegei-me! Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Pureza de Intenção Como acabas de ver, Jesus por teu amor não podia fazer mais, e tu em reconhecimento à sua ternura não hás de fazer nada? Não é nada custoso nem extraordinário o que te pede; ele não quer senão que todos os dias faças com a mais possível perfeição todas as tuas ações. Compõe-se o dia do cristão de uma série de atos, uns santos, indiferentes outros. O levantar, o deitar, a oração, a Santa Comunhão, a Santa Missa, as visitas, o trabalho, os passeios, a comida, o sono, aqui tens tu no que pouco mais ou menos se passa a vida do homem. Pois muito bem; queres ser santo e agradar infalivelmente ao Coração de Jesus? Não tens mais do que fazer tudo isto com a maior pureza de intenção e só com vistas de agradar a Deus. Põe em prática aquele conselho de São Paulo: "Ou vós comais ou bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus." Se à perfeição tão somente se chegasse, diz Affonso Rodrigues, por ocupações sublimes, grandes elevações do espírito, profundas meditações, alguma escusa podíeis ter, podíeis desculpar-vos de incapacidade, e dizer que voar tão alto não era para vós. Se de vós se exigisse que todos os dias tomásseis disciplinas até verter sangue, que jejuásseis a pão e água, que sempre andásseis descalços, que nunca largásseis os cilicios, podíeis responder que para tanto não vos víeis com forças. Mas nada disto exige de vós Jesus; quer simplesmente que façais bem as cosias que fazeis de ordinário. Talvez hajas até aqui desprezado oferecer a Deus todas as tuas ações, particularmente o despertar, a comida, as recreações; pois começa de hoje a lhe os oferecer; se até agora oravas com pouco fervor, atenção e respeito, toma hoje a resolução de orar melhor de ora avante. Um comerciante a tratar dos seus negócios, uma mãe de família a vela pelo governo da casa, um estudante no meio dos seus estudos, podem assim a pouco custo chegar à perfeição. Bem culpado serias tu, pois, se de um tão fácil meio não lançasses mão para agradar ao teu Deus mais e mais, quando por teu amor, e para fazer-te feliz, ele não poupa nem a sua glória, nem o seu repouso, nem a sua própria vida. Capítulo IV - A misericórdia e amor de Jesus para conosco fulgem com deslumbrante brilho em sua encarnação - "Apareceu a bondade do Salvador nosso Deus, e o seu amor para com os homens" (Tt 3,4). De toda a eternidade nos amou Deus; esta verdade e ele mesmo que por Jeremias profeta no-lo assegura. Mas o seu amor para conosco esteve em certo modo oculto, até ao momento em que a Jesus Cristo aprouve manifesta-lo, fazendo-se homem. "Antes da incarnação do Verbo, diz São Bernardo, manifestára-se-nos o poder e sabedoria de Deus na criação e governo do mundo; quando porém Jesus Cristo consentiu em revestir-se de nossa carne, apareceu o amor que este divino Salvador tem aos homens." Com efeito, depois de haver Jesus Cristo passado uma vida tão laboriosa e molesta, depois de o vermos expirar numa cruz no meio de tantos tormentos, máxima injuria seria o duvidarmos um instante do seu amor. Sim, Jesus Cristo ama-nos com excesso, e por isso mesmo que nos ama, de nós quer ser amado. E será possível ficarmo-nos insensíveis a este amor de Jesus? Pensemos seriamente a que medonho estado de miséria e abatimento estávamos pelo pecado reduzidos, quando veio a libertar-nos Jesus Cristo. Estávamos manchados de crimes e condenados a morte e ao inferno, e se, consultando a sua justiça, nos houvera Deus abandonado a nossa sorte, nada teríamos a dizer-lhe: "Pois quem ousara levantar-se contra os juízos do Senhor? Quem seria assaz audacioso para o acusar, ainda quando destruísse as nações que criou?" Nada, absolutamente nada tínhamos que pudesse merecer-nos um dos seus olhares de benevolência ou compaixão: que digo? Hediondos e execráveis a seus olhos nos tornara o pecado; e não obstante Jesus Cristo desce do céu a terra para manifestar-nos o seu amor, morrendo numa cruz! Estávamos pobres, e ele vem-nos enriquecer de todos os bens espirituais; estávamos abismados em espessas trevas, e ele vem com o facho da sua divina doutrina iluminar-nos; estávamos condenados a uma eternidade de suplícios no inferno e ele vem abrir-nos as portas do céu e merecer-nos uma eternidade bem-aventurada; estávamos seus inimigos, e ele vem reconciliar-se conosco e admitir-nos a intimidade do seu amor. Cristão! Visto como o nosso Deus nos testemunhou tanto amor ainda quando éramos tão maus; "visto como foi o primeiro a amar-nos, amemo-lo também da nossa parte com toda a extensão do nosso coração". Que coisa mais justa e mais racional? "Nosso Senhor Jesus Cristo", diz São Paulo, "morreu por nós afim de que nós vivamos para ele." E podemos nós acaso dar-nos este consolador testemunho de havermos sempre vivido para Jesus? Poderemos nós dizer que nossas ações todas foram inspiradas pelo amor de Jesus? Ai! Que talvez nem um dia, nem uma só hora hajamos vivido para ele! Oh! Que motivos estes de confusão! Um Deus por nosso amor a fazer tudo e nos pelo seu amor a nada fazermos! Hoje e o começar calorosamente a amar a Jesus, e a só para Jesus viver. Viver para Jesus e cumprir toda a sua santa vontade, renunciar-nos continuamente a nós mesmos, fazer-nos violência a todo o instante levar com submissão e amor a nossa cruz. Viver para Jesus, é orar incessantemente, desempenhar todos os deveres do nosso estado, mortificar-nos de continuo, exercer-nos na pratica da humildade, castidade caridade para com o nosso próximo, da paz e recolhimento interior. Viver para Jesus, é chorar as desordens da vida passada, despender-nos de tudo o criado, suspirar pela bem-aventurança. E de tudo isto que fizemos até agora? Nada, ou quase nada talvez. Ao menos saibamos sequer humilhar-nos a vista de tal covardia, e tomemos generosas resoluções para o futuro. Ó meu Salvador! Virá ainda dia em que eu comece a reconhecer o amor que me testemunhastes? Até o presente, em lugar de amar-vos, só com ingratidões e desprezos tenho pago a vossa graça. Com tudo, por que sois a bondade infinita, perder a confiança não perco. Vós prometestes perdoar a todo o que se arrependesse; ah! Havei piedade de mim, e sinta eu os efeitos da vossa promessa. Desonrei-vos, preferindo os meus regalos e prazeres a vós; mas hoje de toda a minha alma me arrependo, e nada me dói tanto como a lembrança de vos ter ofendido a vós, meu soberano bem. Perdoai-me, e por um laço de eterno amor prendei-me fortemente a vos, afim de que não mais torne a abandonar-vos, e de ora avante só viva para amar-vos e fazer-vos a vontade. Sim, Jesus meu, só para vós quero viver, só a vós quero amar. Tempo houve em que pela criatura vos abandonei; mas agora todo me dou a vós. Amo-vos, ó Deus da minha alma ! Amo-vos mais do que a mim mesmo. Ó Maria, Mãe do meu Deus, obtende-me a graça de lhe ser fiel até a morte. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Fugir em nossas Ações de Vanglória Entra hoje seriamente em ti mesmo e vê com que intenção fazes as tuas obras. Se as fazes mecanicamente e sem intenção alguma nem boa nem má, ser-te-ão inúteis para o céu. Se as fazes com intenção de agradar aos homens e por vanglória, por boas que em si sejam, tais obras tornam-se más e dignas de castigo: se pelo contrário em todas as tuas obras só em Deus pões a mira, se tão somente procuras a sua glória e o cumprimento da sua vontade, és feliz: porque então tu adquires méritos e tesouros para a eternidade. Foje da vanglória; "guardai-vos, não façais as vossas obras diante dos homens, com o fim de serdes visto por ele: de outra sorte não teríeis a recompensa da mão de vosso Pai que está nos céus". Ó meu Deus! Pois que é essa glória do mundo senão um fumo vão! Contenta-te: em tuas boas obras, do testemunho da tua consciência; contenta-te com saber que todas as tuas ações tens a Deus por testemunha e nunca vás mendigar dos homens uma glória que te faça perder a verdadeira. Lá no fundo do teu coração diz e repete continuamente: "A Deus só seja honra e glória pelos séculos dos séculos. Senhor, dai glória não a nós mas ao vosso nome" Oculta quanto ser possa tuas ações e tem cuidado de, antes de as começares, certificar a intenção, dizendo com Santo Inácio de Loyola: "Meu Deus, isto vou eu fazer por amor de vós e para vossa maior gloria." Se no meio da tua ação vier o demônio tentar de vanglória, não a interrompas por isso; dize-lhe com São Bernardo: "Nem por ti começou, nem por ti hei de acabar." Tudo seja para Deus, seja tudo para sua glória. De todos os dias esta seja a tua divisa. Capítulo V - Deus Pai enviou à terra seu Filho para nos restituir a vida que pelo pecado perderíamos - "Nisto é que se manifestou a caridade de Deus para conosco, em que Deus enviou a seu Filho unigênito ao mundo, para que nós vivamos por ele" (1Jo 4,9). Mortos estavam pelo pecado todos os homens, e neste estado de morte permaneceriam, se não houvera o Pai Eterno enviado a seu Filho único, que pelo derramamento de seu sangue os chamasse à vida. Ó prodígio! Um Deus morrer pelo homem! Um Deus! E que é o homem? O seráfico São Boaventura, ao meditar neste mistério de amor bradava: "Ó bom Jesus! Que fizeste? Para que me amastes tanto? Para que, Senhor, para que, Jesus meu? Que achastes vós em mim que tanto amor vos inspirou? Porque quisestes morrer por mim? Quem sou eu para comprardes a minha alma por preço tão elevado?" Mas é precisamente nisto que com mais resplendor brilha o infinito amor de Deus para conosco. Nossa baixeza, nossas misérias não esfriam sua caridade; são antes incentivos para mais a incendiar. Quanto mais dele nossos crimes nos alongaram quanto de seu amor mais indignos nos tornaram, tanto foi maior o ardor com que nos procurou e acumulou as finezas da sua ternura; e tão longe o impeliu essa ternura, que pregou numa cruz ao seu inocente Filho, por arrancar-nos ao inferno e gerar-nos em seu amor. Ó prodígio incompreensível do amor de Deus para conosco!... E ser-lhe-emos ainda ingratos? E recusaremos ainda amar a um Deus que com tal veemência nos ama? O amor que Deus nos testemunhou é um verdadeiro mistério, diz São Fulgêncio. Esse Deus de bondade nós o desprezamos e ultrajamos; em sua aversão incorremos apartando-nos dele; e ele nunca deixou de amar-nos; amou-nos a ponto de enviar à terra o seu Filho a fazer-nos nosso amigo, nosso irmão, nosso Salvador; amou-nos quando doentes para nos curar; amou-nos quando maus e perversos para fazer-nos bons; amou-nos quando mortos para nos chamar à vida. Lá do alto do seu trono contemplava a nossa miséria, via quão transviados corríamos pelas veredas do crime, e compadeceu-se e deu-nos o seu Filho para que nos levasse pelo caminho do céu. Este filho adorado baixou à terra, e durante trinta e três anos que entre nós morou, trabalhou de todos os modos imagináveis para arrancar-nos ao demônio e às nossas paixões. Como se sem nós não poderia ser feliz acaba por morrer numa cruz para ganhar o domínio do nosso coração, e merecer o nosso amor. Que admirável bondade da parte de Deus, exclama São Bernardo, o haver assim procurado o homem! Mas também que sublime honra para o homem o assim ser procurado por Deus! Sim, com bem justa razão pode o homem gloriar-se de tal honra, não pelo que de si mesmo é, que não passa de um nada, mas pela grande estima em que o teve o seu Criador. Todas as riquezas, toda a mundana glória, à vista deste apreço com que o nosso Deus nos honrou, não passam de um miserável nada. Depois de Jesus Cristo tanto me haver amado, tanto me haver estimado, apesar do meu nada; depois de haver-me elevado a uma tão alta nobreza e dignidade, chegando a fazer-se meu irmão, ir-me-ia ainda eu aviltar pelo apego às coisas do mundo, e o que mais é, pelo pecado? Não, não, isso nunca! E mediante a graça do céu, sem a qual nada sou, antes a morte mil vezes! O meu Deus amou-me; também eu da minha parte o amarei, o meu Deus prezou-me, também eu saberei reconhecer a minha dignidade fugindo ainda da mesma sombra do pecado; o meu Deus morreu por meu amor, também eu saberei, se preciso for, morrer por ele; potentíssimo será para sustentar a minha fraqueza. Senhor! Vós destes o vosso Filho Jesus, para que pudéssemos recobrar a vida que pelo pecado perdemos; tende piedade de mim e dai-me a graça de só viver, de ora avante para quem por mim deu o seu sangue e vida. Ó meu extremoso Redentor! Ó suavíssimo meu Jesus! Ante essas chagas e essa cruz em que moribundo vos contemplo, consagro-vos a minha vida e toda a minha vontade. Ah! Para o futuro seja eu todo vosso, a vós só procure, por vós só suspire. Amo-vos, ó bondade infinita, amo-vos infinito amor. Concedei-me a graça de todos os dias vos dizer: "Meu Deus, eu vos amor! Amo-vos, meu Deus!" Esta graça de uma boa e santa morte, em nome dos vossos sofrimentos vo-la peço, peço-vo-la em nome de Maria, vossa e minha mãe. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Felizes os que Choram! Alma cristã, que isto lês, medita alguns instantes nestas palavras do nosso bom Mestre: "Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados." Oh! E que motivos não temos nós para chorar! 1 - Deves chorar os teus pecados. Ai! Esses pecados tão numerosos, tão enormes, de que te carregaste, já os chorastes? E não obstante, foram eles a causa da morte de Jesus, e certeza não tens tu de que não te precipitarão no inferno? Sabes se já te foram perdoados? És digno de amor ou de ódio? São Paulo, o apóstolo das nações, ignorava-o e remia. São Bernardo, oráculo do seu século, ignorava-o e tremia, tu também o ignoras e não tremes! Treme, pois, e chora!... 2 - Deves chorar os pecados dos outros. Pais e mães, deveis chorar os pecados de vossos filhos; talvez que por negligência vossa, por vossos maus exemplos, sejais a causa deles; pastores de almas, chorai também os pecados das vossas ovelhas; cristãos, choremos os pecados dos nossos irmãos porque ofendem o nosso Deus. 3 - Deves chorar o teu longo exílio sobre a terra. Ah! Trazes em tão frágeis vasos a graça divina, que a cada instante corres risco de perdê-la. Quantos antes de ti a perderam e não a tornaram achar! Exposto sempre às tentações da carne, do mundo e do demônio, em grande perigo te achas de para sempre perderes o céu e caíres no inferno. Chora, pois, o teu exílio. Durante todo o percurso desta peregrinação, vive num grande recolhimento; excita-te à compunção, para o que nunca deixes de pensar nos pecados passados e misérias presentes; recita em português ou em latim o salmo Miserere, procura compenetrar-te bem dos sentimentos de penitência que encerra. Chora, alma cristão, chora. Jesus deu-te o exemplo chorando pelos teus pecados; chora, que breve saberás quão doces são as lágrimas da penitência. Capítulo VI - Jesus Cristo desceu do céu à terra, não por necessidade ou próprio interesse, mas por nosso amor - "Pelas entranhas de misericórdia do nosso Deus: com que lá do alto nos visitou este sol no Oriente" (Lc 1,78). Se o filho de Deus desceu do céu à terra para remir-nos, nem a necessidade, nem o próprio interesse o impeliu, que sua glória e felicidade são de todo independentes, não do homem somente, mas ainda de todas as criaturas. "Ele é o Senhor", diz o Salmista, "e não precisa dos nossos bens". Quem o forçou a vir foram as entranhas da sua misericórdia, foi a compaixão das nossas misérias, foi o desejo de nos querer provar seu amor, trazendo um remédio eficaz para todos os males. E é isto o que canta a Santa Igreja, ao oferecer o Santo Sacrifício, dizendo: "Jesus Cristo desceu do céu por nós outros e por nossa salvação." Não diz que desceu que se incarnou, que sofreu, que foi sepultado, por seu próprio interesse; não, por nossa salvação. Que bondade e misericórdia, a do nosso Deus! Que! Senhor meu, pois por terdes compaixão do homem perdido, era necessário que viésseis à terra vós mesmo? Então para resgatar-nos já não bastava enviardes um anjo? Não, não, responde o Verbo Eterno; quero ir eu mesmo para que o homem fique sabendo até onde vai o meu amor para com ele. Santo Agostinho nos ensina que uma das principais razões que levaram Jesus Cristo a descer á terra, para vos fazerdes amar, que homens são os que verdadeiramente vos amam? Ai! Pobre e infeliz de mim! Que motivos não tenho eu, eu particularmente, para corar de vergonha e confusão! Porquanto vós, meu deus, bem sabeis quão pouco vos hei amado, bem conheceis o desprezo que fiz do vosso amor! Ah! Que eu não possa morrer de dor! Querido Redentor meu, arrependo-me de tanto vos ter desprezado, e por minha penitência quero tudo reparar. Que pesar é o meu, ó luz tão doce e majestosa, que pesar sinto de tão tarde vos conhecer! As minhas paixões me haviam posto diante dos olhos uma como espessa nuvem que me impedia o ver a luz da vossa justiça e verdade. Estava cego e amava a minha cegueira, porque me dava licença de seguir as minhas paixões. E quem é que me curou da minha cegueira? Quem dissipou esta nuvem? Quem me estendeu a mão para me tirar do atoleiro, em que estava profundado? Eu não chamava por este libertador, e ele veio procurar-me, não o implorava, e ele veio socorrer-me. Quem pois é esse libertador tão bom e misericordioso? Ah! Meu Jesus! Doce Jesus meu! Sois vós! Descestes do céu à terra para arrancar-me das minhas desordens, e acolher-me em o número dos vossos filhos. E por um tal benefício que hei de eu retribuir-vos? Do caminho dos vossos mandamentos me desgarrara, fugira para longe de vós, e vós tivestes a bondade de ir atrás de mim, de me embargar a fugida, e arrancar-me do meu desvario. Ó meu Jesus! Que retribuirei eu, repito, por um amor tão terno? Ah! Amar-vos-ei de todo o meu coração, de todas as minhas forças, mais do que todas as criaturas, mais do que a mim mesmo. Ajudai a minha fraqueza. Se Jesus Cristo nos amou tanto, que veio à terra resgatar-nos e arrancar-nos do lodo das nossas iniquidades, como não nos consagramos inteiramente ao seu serviço? Porque em face de um tão ardente amor nosso coração não se derrete, como uma cera? Será possível não queiramos sofrer mil martírios por quem tanto quis sofrer por nós? Não, não, assim não será; também havemos de saber amar a um Deus que por sua morte nos deu a vida, que das trevas nos fez passar à luz, do exílio à pátria, das lágrimas à alegria, e de misérias sem fim a uma glória eterna. Ó Jesus meu! Vós que por meu amor não vos poupastes a vós mesmo, feri, eu vos suplico, feri do vosso amor a este coração, por modo que ao vosso ele possa amar. Toda a minha consolação seja convosco estar crucificado, seja toda a minha ventura em vós pensar noite e dia. Ó Jesus, a quem de presente de todo o coração quero amar, mas a quem caí na desgraça de tanto ofender; ó Jesus, perdoai-me, e concedei-me a graça de verdadeiramente vos amar. Não permitais que por mais tempo desconheça o tão extremoso amor que me testemunhastes. Na doce confiança de que vos amo estou eu, mas ainda é tão pouco, e vós mereceis um amor infinito: fazei que eu ao menos vos ame de todas as minhas forças. Ó Salvador meu, ó minha alegria, minha vida, meu tudo, se a vós, que sois infinito amor, eu não amo, a que amarei? Submeto a minha vontade à vossa vontade, e em reconhecimento dos tormentos que por mim sofrestes ofereço-me a sofrer por vós tudo quanto vos aprouver. Afastai de mim todas as ocasiões de ofender-vos, não me deixeis cair em tentação, mas livrai-me do mal. Livrai-me do pecado e depois disponde de mim como for vosso agrado. Amo-vos, ó bondade infinita! E antes venham sobre mim todos os males, antes volte ao mesmo nada, do que viver sem vos amar! Oh! Quem me dera poder apagar com a minha vida os dias infelizes que passei a ofender-vos tão indignamente! Ó meu Jesus, dai-me a graça de por uma sincera penitência expiar tantos pecados que contra vós cometi. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS O Recolhimento Faze todos os esforços por este dia o passares todo em recolhimento, nada poupes para adquirir hábito tão santo. Sem recolhimento impossível é progredir na virtude, orar com fervor, velar sobre si mesmo, descobrir as suas faltas. O recolhimento adquire-se e conserva-se pela oração e mortificação de que adiante falaremos. Meios eficazes são também para o alcançar o silêncio e repetidos impulsos do coração para Deus. 1º. - Pelo Silêncio Põe um freio à tua língua e fala pouco e com descrição: "Se algum pois cuida que tem religião, não refreando a sua língua, mas seduzindo o seu coração, a sua religião é vã", diz São Tiago. Fala pouco, porque, segundo a Escritura, o muito falar é distintivo do insensato! Stultos verbo multiplicat. Fala pouco porque a intemperança da língua nem só ao recolhimento é obstáculo; ela é ainda a origem de muitos pecados; sem medo pode asseverar-se muito bem que um grande palrador comete um grande número de faltas que um homem prudente evitará. Fala pouco porque por um pecado que se cometa calando quando deveríamos falar, cem se cometem falando em todas ocasiões. Fala pouco, porque se em uma alma o silêncio conserva o precioso tesouro do espírito de Deus, a abundância de palavras o dissipa, o extingue. "Um homem que não reprime a sua língua", diz o Espírito Santo, "assemelha-se a uma cidade por todos os lados patente; está exposta aos insultos dos seus inimigos e é impotente para se defender". Fala então pouco se queres estar recolhido. II - Pelas elevações do coração a Deus Toma o santo hábito de a todo instante do dia e da noite, quando acordares, recitar o que se chama orações jaculatórias, que para te conservar no recolhimento não há coisa melhor. Eis aqui algumas: Meu Deus, amo-vos de todo o meu coração Meu Deus, por vosso amor recebo esta afronta, esta humilhação, esta doença Senhor, quando vos amarei como mereceis? Capítulo VII - Ardentes desejos dos santos do Antigo Testamento pela vinda do Messias - "Derramai, ó céus, o vosso orvalho; nuvens, chovei o Justo; abrase a terra e germine o Salvador" (Is 45,8). "Eviai-nos, Senhor, o Cordeiro dominador da terra" (Is 36,1). Dai-nos o Salvador que nos prometestes" (Sl 84,8). Depois de haver Deus em sua misericórdia prometido um Salvador ao homem caído no pecado e condenado no inferno, não cessavam de subir ao céu, para apressar a sua vinda, os votos e preces dos santos e profetas do Antigo Testamento. "Lá do alto desses céus, Senhor, exclamavam, reparai e lançai os vossos olhos sobre vossas miseráveis criaturas; onde está a ternura de vossas entranhas e da vossa misericórdia? Lembrai-vos do que nos aconteceu e das desgraças que vieram sobre a nossa cabeça. Vede o nosso opróbrio, e misérrimo estado a que estamos reduzidos. Escravos nos dominaram e carregaram de cadeias; tornamo-nos o ludíbrio das nossas paixões e os nossos inimigos tomam em divertimento o insultar-nos a nossa fraqueza. Esquecestes-vos para sempre de nós, Senhor, e nunca chegaremos a ver esse libertador tão solenemente prometido! Ah! Nós vos deprecamos, enviai aquele que tendes de enviar. Inclinai os vossos ouvidos e escutai; abri os vossos olhos e reparai em nossa desolação. Ouvi-nos, Senhor; não tardeis a enviar o nosso legislador, em nome da vossa mesma glória vo-lo suplicamos." Estes eram os votos dos patriarcas. Oh! E que ardentes que eram os seus suspiros! Oh! Com que abrasamento ansiavam a vinda do Messias! Com quanta impaciência o esperavam! Que se eles tinham a dita de ver este Salvador, o que não fariam por agradar-lhe! Com que carinhos não procurariam expressar-lhe o seu amor! Com que fervor não agradeceriam tantas graças que lhes trazia! E nós, cristãos, que temos a ventura de vermos a Jesus Cristo, de em nossos tabernáculos o possuirmos, nós que de todas as partes estamos enredados em laços do seu amor, nós, a quem ele acumulou de benefícios, inebriou de sangue, que proceder é o nosso? "Pasmai, ó céus!" se já ao menos pensássemos no que por nosso amor Jesus fez? Se a um tão terno amigo prestássemos sequer algum amor! Mas que digo eu? Se nós, em recompensa de tantos benefícios seus, já temos haver-lhe feito condigna satisfação, quando não o façamos a receber de nós desprezos e ultrajes!... Ah! Deixemos finalmente de ser ingratos, amemos a Jesus, quanto possível nos for o ama-lo. Se muito não o podemos amar, desejemos pelo menos amá-lo quanto caiba em nossas forças; que os bons desejos, quando sinceros, agradam ao Senhor, e não deixará de os encher. Sim, desejamos amar muito a Jesus; mas que não vão nossos desejos ser semelhantes aos do preguiçoso. O preguiçoso também nutre em seu coração o desejo de amar Jesus; mas, desgraçadamente, contenta-se só com este desejo estéril, que o mata; obrar porém, não obra. Não o imitemos nós; amemos ao nosso bom Mestre não de boca e palavras, mas de coração e afetos; sejamos fiéis a todos os deveres do estado em que nos colocou a divina Providência; e quando por amor de Jesus exatamente houvermos cumprido todos os nossos deveres, desejemos poder fazer ainda mais, afim de mais lhe agradarmos. São estes os verdadeiros desejos que aos olhos de Deus equivalem muitas vezes ao valor da própria ação. "Abri os céus, Senhor, exclamava o profeta Isaías, descei; ao vosso aspecto abater-se-ão as montanhas, ficarão consumidas como tudo o que é devorado pelo fogo, e as águas ferverão." Sim, Senhor, ao verem-vos os homens baixar do céu à terra por seu amor, aplanar-se-ão as montanhas, isto é, para vos servir derrubarão os homens todos os obstáculos, expedirão todas as dificuldades, que antes miravam como inacessíveis montanhas; as águas ferverão em cachão, isto é, as mais frias almas sentir-se-ão abrasadas do fogo do vosso amor. E nas bem-aventuradas almas de muitos santos bem se realizou esta profecia, em particular na de Santa Maria Madalena, Santo Inácio Mártir, Santo Agostinho, Santa Tereza, São Filipe Neri, São Francisco Xavier, São Luiz Gonzaga, e de um grande número de outras que na terra foram consumidas deste fogo sagrado. Mas ai! Quão raras são estas almas em comparação do número quase infinito das que ficam insensíveis à ternura do nosso Deus! Que raras que são! Meu Jesus, quero eu também ser do número dessas almas tão raras que do amor vosso se consomem. Ai! Há muito que já no inferno devia arder, de vós para todo o sempre separado; e na dura necessidade de aborrecer-vos e amaldiçoar-vos por toda a eternidade! Mas sobre mim velou sempre a vossa misericórdia, no meio das minhas desordens me sofrestes com admirável paciência, para ainda um dia me verdes consumido não desse fogo abrasador de que são abrasados os condenados, mas do doce, das chamas santas do vosso amor. Neste intento é que tantos raios de luz me enviastes, tantas inspirações, tantos desejos de voltar a vós me prodigalizastes, ainda longe de vós vivia; e neste intento que lançastes mão de todas as finezas da vossa ternura, que me traístes por vossas bondades e afabilidades, que pusestes tudo em ação para roubar este mísero coração. Ah! Deus meu; este mísero coração está todo ulcerado, todo coberto ainda da lepra de pecado! Mas se me o pedis, ó meu Deus, ei-lo, todo vo-lo dou; tomai-o vós mesmo e curai-o; será para sempre vosso; para sempre, para sempre. Mas ai; é tanta a minha inconstância e fraqueza, que só vós, ó meu Jesus, só vós o podeis conservar junto a vós e dar-me a força de constantemente vos permanecer fiel; de vossa infinita bondade firmemente espero esta graça. E que! Meu Deus; terei eu ainda a covardia de abandonar-vos e sem o vosso amor viver um instante, um só instante? Amo-vos, ó meu Jesus! Mais que todas as coisas do mundo, mas bem pouco é isto. Amo-vos mais do que a mim mesmo; mas é ainda muito pouco. Amo-vos então de todo o meu coração de toda a minha alma, de todas as minhas forças, de todo o meu ser; mas ai! É sempre muito pouco, muito pouco! Meu Jesus, ouvi-me; mais amor, sim, mais amor, mais amor. Ó Maria, orai a Deus por mim, obtende-me a graça de começar finalmente a amá-lo verdadeiramente; e de o amar sempre mais e mais, até que chegue à felicidade de convosco o amar no céu. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Desejo de Perfeição Hoje excita em teu coração o amor e desejo da perfeição e santidade; de nosso adiantamento espiritual esta é a base, pois o Espírito Santo nos ensina "que o princípio da sabedoria é desejarmo-la verdadeiramente em nosso coração". No decurso deste dia repete frequentemente: "Meu Jesus, fazei que eu tenha fome e sede de justiça." Oh! Que feliz não serás tu quando todos os teus pensamentos tenderem como que naturalmente a buscar os meios de santificares! Sim, afortunado serás porque em teu coração já possuis seguro penhor da presença de Deus. Este é o sentir de São Bernardo, e ele o comprova por estas palavras: "Os que me comem terão mais fome, os que me bebem terão mais sede." Se em ti sentes esta fome e sede do teu espiritual adiantamento, regozija-se; sinal evidente é que Deus habita em tua alma; quem te causa essa sede é Ele. Sejam todos os teus afins excitá-la cada dia mais, "porque Deus sacia a quem dEle está sequioso". Mas, senão sentes o desejo da perfeição, o desejo de uma santidade sempre crescente, trevas é o teu caminho, inesperados precipícios talvez te aguardem. Como quer que seja, hoje faze as tuas ações tão perfeitamente como se esta noite houvesse de morrer; sejam pequenas ou grandes, deleitosas ou enfadonhas, fáceis ou custosas, humildes ou elevadas, o amor de deus e sua maior glória seja de todas o alvo. Por este modo obterás a sede da perfeição, e se já a tens, muitíssimo a aumentarás. Capítulo VIII - Encarnação do Verbo - "E o Verbo se fez carne" (Jo 1,14). Preenchidos eram os tempos, e Deus ia manifestar aos homens toda a plenitude de seu amor, para com eles. O Redentor tanto tempo desejado, tão ardentemente pedido, tão impacientemente esperado; esse Redentor, objeto de tantos votos e suspiros ia aparecer. Tudo era disposto para a encarnação do Verbo. O Anjo Gabriel é enviado à terra pelo Rei dos reis. Com a rapidez do relâmpago corta os ares, dirige-se a uma pequena cidade da Judéia, chamada Nazaré, e com profundo acatamento se apresenta diante de uma donzela pobre e do mundo ignorada; era porém modesta e humilde, era casta e sem mácula; Maria se chamava. Saúda-a, dá-lhe parte da sua embaixada, e pergunta-lhe se consente em ser mãe de Deus. A humilde Virgem perturba-se e hesita; assegurada porém pelo anjo de que com tornar-se mãe de Jesus não perderia o inapreciável tesouro da virgindade, dá o seu consentimento; e no mesmo instante o Verbo divino se fez homem; é em seu seio formado por operação do Espírito Santo: Et Verbum caro factum est. Ó prodígio que céus e terra transportou de admiração! Fazer carne o Verbo! Fazer-se homem um Deus! Que diríamos se víssemos um rei tomar a forma de um verme, para por sua morte dar a vida a este misérrimo bichinho? De assombrados não acharíamos termos. Pois é isto o que por nós fez Jesus, soberano monarca do céu e da terra, nosso Criador e nosso Deus. Mas que digo? Muito mais longe ainda ele foi, porque enfim entre um verme e um rei, bem que haja grande diferença, sempre não é infinita; sendo que entre Deus e o homem, Deus e um rei, Deus e todo o universo, não há distância imaginável. E não obstante, ó maravilha! Deus fez-se homem, Deus é homem, Deus será homem para sempre! Oh! Que se nós soubéramos quem é Deus, se bem compreendermos o que é a sua alta majestade, ao falar da Encarnação do Verbo, ou ao pronunciar o nome de Jesus que a exprime, ao dizermos com a Igreja: "O Verbo se fez carne" - Verbum caro factum est, prostrar-nos-íamos, desejaríamos abater-nos até ao fundo da terra, abismar-nos no centro do nada, para a tão altíssimo mistério tributarmos uma honra devida. O Verbo se fez carne. Ó incompreensibilíssimo amor de Deus para conosco! Ó Jesus, que excessiva é vossa ternura! Como Deus não podíeis morrer, mas fizestes-vos homem sujeito à morte a fim de por nosso amor poderdes dar a vida. Éreis filho de Deus, exclama Santo Agostinho, e fizestes-vos filho do homem, para nos elevardes a nós, pobres nadas, à dignidade de filhos de Deus; quisestes partilhar nossos males para dos vossos bens nos fazerdes participantes. Ó Jesus! Bom Jesus! Sejais para sempre bendito e louvado por essa infinita caridade que para conosco houvestes. Mas, diz o apóstolo São Paulo, o que mais faz brilhar o amor de Deus para conosco o que mais irresistivelmente deve estimular o nosso reconhecimento, é que Jesus Cristo morreu por nós ainda quando éramos pecadores. Éramos seus inimigos, e ele fez para conosco o que jamais ousaremos pedir-lhe, fossemos nós os seus maiores amigos. Que não admirará, exclama São Gregório, esta sublime misericórdia do nosso Deus? Nem da honra de escravos seus éramos dignos, e ele trata-nos como amigos. Vem, acrescenta São Máximo, bispo, vem lá do alto dos céus a esta terra de exílio e lágrimas, a fim de consigo nos elevar à habitação da eterna bem-aventurança. A um amor tal quem poderá resistir? A um Deus que tão ternamente nos ama quem poderá recusar-lhe o coração? Que coisa mais pode abrasar nossas almas do que a vista de um Deus por nosso amor feito homem ainda quando éramos os seus mais cruéis inimigos? Ah! Exclama aqui o piedoso Thomaz de Kempis, que se para com seus inimigos é Jesus Cristo tão bom, o que não há de ele ser para com os que de coração o servem e amam? Ó meu Jesus, meu Deus, meu amor! Se assim com tão extremosa bondade todo vos destes a mim, fazei, eu vo-la suplico, fazei que eu seja enfim todo vosso. Dilatai-me em vosso amor, para que em meu coração experimente as suavíssimas delícias e doçuras que tendes guardadas para quem vos ama e em vosso amor todo se abisma. Arrebata-me o amor, acima de mim mesmo me eleve pela vivacidade de seus transportes. Oh! Que eu cante o cântico do amor! Que a louvar-vos todas as forças da minha alma se extingam, e de alegria e amor desfaleça a mesma alma. Ó meu Jesus, amo-vos de todo coração neste vale de lágrimas, para que um dia vos ame perfeitamente lá nesse belo céu para onde me chamais; que eu vos ame! Este é brado do meu coração, que eu vos ame, ó Jesus meu! Mas o mistério da Encarnação não é só um prodígio de amor, portentos de humilhação encerra também em si. Aquele a quem no céu milhões de anjos adoram incessantemente repetindo: "Santo, Santo, Santo, o Senhor todo poderoso, o Deus dos exércitos, o céu e a terra estão cheios da sua glória." Aquele a quem terra, mares, astros, acatam e adoram. Aquele a quem tudo obedece, e que todas as coisas governa encerrado no ventre de uma Virgem, e não se envergonhar nem se horrorizar de tal! Ó abatimento tanto mais estupendo quanto da natureza divina à humana vai uma distância infinita! Exclamemos pois: "Ó Jesus! Verdadeiramente sois um Deus escondido!" Mui pouco é dizer: "Sois um Deus humilhado, um Deus eclipsado, um Deus aniquilado!" Novos termos são precisos para poder exprimir um prodígio tão estranho de humildade. Homens, quem quer que sejamos, cinza e pó, nada e pecado; exaltemo-nos agora; mostremo-nos, tenhamo-nos em grande conta, disputemos os primeiros postos, ambicionemos os lugares distintos, murmuremos de não ter nascido com mais nobreza, mais poder, mais talentos naturais. Tenhamos ainda repugnância em sofrer que nos olhem como uns miseráveis, ignorantes, imprudentes, viciosos, enquanto por nosso amor Jesus Cristo quer aparecer na terra, pobre, humilde e aniquilado. Durante nove meses habitou Jesus Cristo no seio de Maria; e nesta prisão é que Deus, a mesma grandeza e sabedoria, ficou oculto e incógnito a todo o mundo. Que lição! Assim obrou este divino Salvador para nos ensinar a moderarmos o natural desejo que temos de aparecer, e para de bom grado passarmos nossa vida neste pequeno canto de terra, nesta função baixa e abjeta, em que parecem menosprezados nossos talentos, e em que de nós ninguém faz caso. Assim quis ele humilhar-se e aniquilar-se até este ponto, com ser Deus, a fim de que nosso orgulho não houvesse por indigno imitar os vestígios de um Deus! Ó meu Jesus, meu amor! Não permitais se apodere de mim o espírito de orgulho. Que! Não seria insofrível desaforo, depois de assim vos ver humilhado, eu, um verme como sou, procurar exaltar-me e aparecer! Tal não permitais, Senhor Jesus, eu vo-lo suplico. Escuta, filho meu, a voz do teu Deus aniquilado por teu amor. Se o orgulho se levanta em teu coração e te grita: Faze-te conhecer ao mundo, muito mais bem poderias fazer em tal estado, em tal lugar, em tal função, naquele posto elevado; talentos para isso não te faltam; não escutes, ó filho, as suas palavras; são sibilos da infernal serpente. Aprende a servir-me como eu quero ser servido. Se quero que tu caminhes sobre minhas pegadas, pelo desprezo, pelo esquecimento dos homens, passando uma vida oculta, exercendo baixos e vis ministérios, se quero que me honres com a perda e esterilidade do teus talentos, antes que pelo uso orgulhoso que deles farias, ousarás dizer-me: Porque assim me fizeste? Não tinha o oleiro poder de fazer da mesma massa de orgulho um vaso destinado a usos vis e desprezíveis? Ó filho meu! Ama o viver incógnito, e não ser contado por nada. Por melhor que os outros nunca te hajas, com receio de que te não vá julgar pior Deus que conhece o que há no homem: Em te pores abaixo dos outros nada arriscas; ser-te-ia funestíssimo preferires-te a um só. O homem humilde goza de uma paz inalterável; a cólera e inveja perturbam o coração do soberbo. Deus protege o humilde, e o consola; inclina-se ao humilde e lhe prodigaliza suas graças; e depois da humilhação, à glória o eleva. Não te capacites, filho, que hás feito progressos na virtude, quando abaixo de todos te não julgues. Senhor Jesus, arrancai do meu coração, eu vos peço, este orgulho que como tirano nele reina, pela santa humildade substitui seu lugar, substitui-o por essa virtude tão bela de que na vossa encarnação destes tão tocante exemplo. Que apesar de todas as razões que tem o homem de se humilhar, seja ainda orgulhoso, miséria é bem deplorável; mas que um Deus por nós se humilhe até se fazer homem é uma misericórdia que nunca assaz poderemos admirar. Ó Jesus, possa eu aproveitar-me dessa grande misericórdia! Possa utilizar-me da lição que me dais! Ah! Por vossa santa graça vos peço fazei-me humilde, que sem vós não o posso ser; dai-me a humildade, mas sobre tudo o vosso amor. Ah! Meu doce Redentor, à vista de todas as graças de que me enriquecestes, à vista do amor imenso que me testemunhastes, como é possível não expire de dor e arrependimento de tão ingrato vos ter sido? Vós a descer do céu para me buscar, e eu, pobre ovelha desgarrada, a repelir-vos para longe de mim! A preferir-vos tantas e tantas vezes prazeres tão indignos! Ó Jesus meu! Quereis-me possuir, não é assim? Pois bem, tudo abandono, e só quero ser vosso, todo vosso. Para único objeto de minhas afeições vos elegi: Dilectus meus mihi et ego illi. Vós em vós pensar. Uma vez que vos ame, de boa vontade consinto em ser privado de toda a consolação sensível, e até em ser atribulado com toda a sorte de miséria. Bem vejo, Senhor, quereis que seja todo vosso; sim, todo e sem reserva vos quero pertencer. Mentira, decepção, fumo, lodo, e vaidade são todas as coisas do mundo; vós só sois o único, o verdadeiro bem, vós só podeis saciar-me. Meu Deus, nada mais quero que ser vosso. Dignai-vos, Senhor, escutar a minha voz: Só a vós quero e a nada mais. Vinde, vinde ao meu pobre coração; conosco nada eu temo, convosco sou rico, convosco sou forte, convosco sou o que quereis que seja. Vinde pois, Senhor Jesus, vinde. Amem, assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Humildade O "Verbo se fez carne!", é este exemplo de humildade bem capaz, com o auxílio da divina graça, de curar o nosso orgulho; saibamos aproveitar-nos dele. Virtude sólida, cristã, digna do céu, não há sem a humildade, impossível nos é sem ela caminhar muito tempo no caminho reto. Quereis saber, diz Santo Agostinho, qual é a primeira virtude de um cristão que caminha à perfeição? Pois bem, a primeira virtude é a humildade, e sempre direi que é a humildade. De todas as mais virtudes esta é a base sólida e a guarda. Assim como o orgulho é princípio de toda a sorte de pecados, assim é a humildade fonte de toda a virtude; ela é quem as nutre, quem as protege e sustém. Quem sem esta virtude pretende amontoar méritos, diz São Gregório, nada mais faz do que atirar poeira ao vento. Se esta virtude vacila, todas as outras estão prestes a cair em ruína. Com a humildade nos fazemos uns como anjos, a soberba fez dos anjos demônios. Vê agora, meu caro Teótimo, que ideia deves ter da humildade, sua importância, sua necessidade vê com que ardor te deves deitar a adquiri-la. Os meios de a alcançar são: 1º Pedi-la incessantemente a Deus, pois só ele pode dar-nos dom tão precioso. 2º Pensar muitas vezes em tuas faltas passadas e misérias presentes; que aqui de certo hás de encontrar coisas que te humilhem. 3º Sofrer com paciência, que te desprezem, te humilhem e de ti façam pouco caso. Sem humilhações, diz São Boaventura, não se pode chegar à humildade. Se pois desejas ser humilde, entra na via da humilhação, porque se não queres ser humilhado, nunca terás a humildade. Com resignação senão com alegria aceita todas as humilhações que no comércio da vida se encontram, de todas tira lucro. 4º Não procures aparecer; o homem verdadeiramente humilde preza muito o ser ignorado. De ti mesmo, de teus talentos e luzes tem sentimentos baixos; pelo último dos homens te reputa. Sem dúvida que bem difícil é obter tudo isto; mas não descoroçoes, que contigo está Jesus. Faze hoje todas as ações na tensão de adquirir a humildade. Ora pelos que te humilharam, e talvez procurem ocasião de o tornar a fazer: sim, ora por eles; que grande é o serviço que te fazem. Não vás desafogar-te em queixumes contra eles; ir-se-ia assim o fruto de tuas humilhações; sofre, perdoa, esquece. Seja sincera a tua humildade; humildade fingida e contrafeita é orgulho diabólico. Sê humilde, não para o pareceres, mas somente por saberes que a humildade agrada ao coração do nosso bom Mestre. Sê humilde, mas não procures figurar-te humilde. Muita cautela! Olha, o amor próprio em tudo penetra, e acabará por te arrebatar também a humildade. Sê humilde, mais uma vez te repito, ou faze tudo quanto importa para adquirir a humildade; e depois todo te abandona ao Coração de Jesus. Quem na sua alma quer conservar o precioso tesouro da humildade, deve com todo o cuidado oculta-lo aos olhos dos homens e até aos seus. Capítulo IX - Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo no presépio de Belém - "A si mesmo se aniquilou tomando a forma e a natureza de escravo, fazendo-se semelhante aos homens" (Fl 11,7). Extraordinário acontecimento é o que se está preparando. Todo o mundo vai ser testemunha de um prodígio grande e novo, de um mistério que jamais compreenderá, de um portento de humildade e amor que por toda a eternidade penetrará de pasmo os Anjos e Santos no céu. Vai nascer nesta nossa terra - um Deus feito homem. Santos anjos do paraíso, e vós, habitantes da terra, já, já sem demora, apressai-vos a dispor para este divino infante um palácio e um berço dignos de sua alta majestade. Eia! Que não haja demoras... mas o que?... Ó meu Deus! Ó meu Deus! Que admiráveis são os vossos desígnios! Oh! Que alheios são os vossos juízos do pensar do pensar humano! O nosso Redentor veio para o que era seu e os homens não o quiseram receber. Bem longe de ter palácios à sua disposição nem um lugar sequer puderam arranjar-lhe quando chegou. As hospedarias os ricos as tinham enchido, um curral abandonado e deserto é o que há para Jesus, é neste palácio que ele vai nascer, de berço servir-lhe-á uma manjedoura. É isto realidade! Quê! O Filho único de Deus onipotente, ele mesmo verdadeiro Deus como seu Pai, tornar-se menino, e reclinar-se sobre uma pouco de palha num presépio! Oh! Que bem verdade é o dizer-se que ele se aniquilou a si mesmo! Semetipsum eximanivit! Um Deus num presépio! Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, empregou sete anos a levantar um templo à glória do nome de Deus; prata, ouro, pedrarias nele refulgiam de todas as partes; nunca em lugar algum se viu magnificências tão extraordinárias, nem tão espantosas prodigalidades: e bem, ao acaba-lo, exclamou este grande rei: É crível que Deus queira habitar neste templo, e ficar conosco sobre a terra? Se o céu e os céus dos céus não o podem conter, quanto menos esta casa que edifiquei! Esta foi a linguagem de Salomão. Ó cristãos! Ora dizei-me, quando nós vemos o nosso Deus nascer num presépio, não é de nosso dever exclamar: Que é isto! O grande Rei do céu e da terra quer nascer num curral! Repitamos estas palavras e meditemo-las atentamente: Um Deus num curral! E por amor nosso! Ó meu Jesus, meu terno amigo! Seria possível que me procurasse ainda exaltar, eu cinza e pó, depois de a tal ponto vos ver humilhado! Certamente que não. De todo o meu coração vou sinceramente trabalhar em fazer-me humilde, porque sei que amais a humildade; desde já vou por mãos à obra. Vós, ó meu bom Mestre! Ajudai-me, sustentai a minha fraqueza e derramai superabundantemente em meu coração o balsamo do vosso amor; só ele poderá curar as profundas chagas que aí abriram o orgulho e tantas outras paixões; oh! Por quem sois não m'o recuseis! Ame-vos eu e a minha alma será curada. Suponhamos agora que não sabemos quem é este pobre menino que no presépio de Belém divisamos, e interroguemos a fé; responder-nos-á: Este é o filho de Deus, e ele mesmo verdadeiro Deus também. Sim, este recém-nascido tão fraco e tão pobre, na aparência tão desprezível, aquele mesmo é que lançou os fundamentos da terra; aquele a quem esta terra serve de escabelo e em presença de quem todos os mortais não passam de vis insetos, aquele que estendeu os céus como uma cortina, e os desenrolou como um pavilhão para o homem; aquele cujo poder é infinito e que é terrível sobre tudo o que rodeia, aquele cujas maravilhas os céus publicam, e cuja glória brilha na assembleia dos santos; aquele que domina o orgulho do mar e que de um só olhar seu apazigua as suas indignadas ondas; aquele enfim que no mais alto dos céus elevou seu trono, e que manda a todos os reis da terra. Num presépio acaba de nascer, mas céus e terra lhe pertencem; estreita manjedoura que apenas o pode conter é seu leito; mas de sua imensidade enche os céus e a terra; é pobre menino de um dia, mas de todas as eternidades ele é Deus; em vis e rotos farrapos está envolto, mas é ele quem às flores dá seus enfeites, quem dá à natureza seus encantos. Sabeis, ó homens, quem o reduziu a um estado tão miserável e tão humilhante? O imenso amor que nos tem. Ó amor! Ó amor de um Deus pelos homens; que mal conhecido que tu és! Ó Deus tão amoroso, que poucos cristãos correspondem à vossa ternura! Que o exemplo de um Deus nascido num presépio, de tudo desprovido, te ensine, alma minha, a amar a pobreza, que aquele frio tão pacientemente sofrido te ensine a amar a mortificação que aquelas lágrimas por teus pecados derramadas te ensinem a chorar sobre ti mesma. Ah! Para te extrair do nada uma só palavra lhe basta; mas olha, para te remir, o quanto chora, o quanto geme; e em breve o verás derramar até à última gota do seu sangue. Pudesses tu pela grandeza do remédio compreender quão profundas e difíceis de curar foram as chagas que o pecado te abriu! Pudesses tu conceber quão ardente foi o amor do teu Salvador! Pudesses, pudesses tu amá-lo de todas as tuas forças, e quanto possível te fosse! É pois verdade, ó meu rico Jesus! É verdade haverdes vós nascido num presépio, no seio da mais completa pobreza? É verdade haverdes vós passado toda a vossa vida em sofrimentos para me fazerdes compreender que amor me tendes? É ainda certo também que eu, criatura ingrata, toda a vida levar a encher-vos de amarguras com os meus pecados? Ah! Eu vos peço me façais compreender o grande mal que cometi e o grande amor que me conquistastes. E se até ao presente com tanta bondade me suportastes, fazei-me, Senhor, a misericórdia de para vós voltar sem a mínima demora, e não permitais que eu caia outra vez para o futuro na desgraça de tornar a ofender-vos. Todo, todo me abrasai dos incêndios do vosso santo amor, e concedei-me a graça de sempre haver presente quanto por mim sofrestes, assim que doravante de todas as criaturas me esqueça e só em amar-vos e agradar-vos me preocupe. Do céu à terra vós baixastes para sobre o nosso coração fundardes um reinado de amor; eia, pois, quem vos estorva! Arrancai-m'o, purificai-o de tudo quanto impedir-vos pode a sua total posse. A vossa vontade fazei que seja a minha, que de todas as minhas ações e desejos seja a regra. Oh! Sim, Deus meu, concedei-me a graça de em tudo e por tudo sempre cumprir vossa santíssima vontade, e de generosamente vos sacrificar a minha, custe o que custar. Não permitais mereça eu a exprobração que aos Judeus outrora dirigíeis pela boca do vosso profeta: Que necessidade tenho eu de vossos jejuns e sacrifícios? Já deles estou saciado; já não posso suportar o vosso incenso; está manchado a meus olhos. Todas as vossas pretendidas boas obras as reprovo, porque são fruto da vosso própria vontade. Do fundo d'alma vos exoro, Deus meu ensinai-me a fazer a vossa santa vontade e dai-me a graça de até ao meu último suspiro sempre a guardar! Amem; amem; assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Estima e Amor da Pobreza Felizes os que possuem riquezas! Ditosos os que se podem escapar às humilhações e provações da pobreza! Assim fala o mundo. Meu Deus! A linguagem de Jesus Cristo é tão diferente desta! Ai de vós, ricos, exclama ele. Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus! Agora a verdade de que lado há de estar? A felicidade de que lado se encontrará? Ah! Que dúvida a por, se Jesus falou! Meu caro Teótimo, tu dos bens deste mundo ou és rico ou és pobre. Se possuis riquezas, é desprender delas o coração; aliás, bem vês, é a ti que Jesus Cristo diz: ai de vós, ricos! Da tua fortuna usa como se a não fruísses, possui-a como quem a não possuíra. No seio da pobreza derrama abundantes esmolas: ao órfão e viúva dá conforto. Este dia não o passes sem fazeres obra alguma de caridade; há tantos pobres e infelizes! Ó Deus! Que se os ricos bem soubessem usar dos seus tesouros que bens não poderiam fazer! Se és pobre, longe de ti o murmurar contra a Providência; jamais esqueças que sobre a pobreza lançou Jesus Cristo um brilho divino. Ele, tu bem o sabes, também era pobre, pobre nasceu, pobre viveu, e pobre morreu. Aos ricos não invejes suas imensas possessões; ai! Bem longe estão elas de os fazer felizes. Do pouco que possuis te dá por satisfeito, e eleva teus olhos mais acima, ao céu; lá, lá é que, querendo tu, serão os teus domínios, lá os teus palácios, lá os teus tesouros. Para isso é sofrer com paciência as privações do teu estado; hoje, e não somente hoje, mas sempre, dize: Meu Deus, quereis que eu seja pobre e sofra, seja bendito o vosso Nome! Seja feita a vossa vontade! Dai-me o vosso amor, e já terei todas as riquezas. Capítulo X - Jesus Cristo quis nascer menino para assim mais facilmente se insinuar em nosso amor e confiança - "Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado" (Is 9,6). A razão de haver querido o Filho de Deus nascer menino foi para se fazer acessível aos corações de todas as idades, e para mais facilmente roubar o nosso amor. E por que razão, pergunta São Francisco de Sales, tomou Jesus esta tão doce e amável condição de menino, se não foi para nos obrigar a amá-lo e nele depositar toda a confiança? Já antes dissera São Pedro Crisólogo: Deus quis nascer menino, porque quis ser amado. Nosso Senhor Jesus Cristo, escreveu o piedoso padre Guéric, ardentemente deseja que o amemos com esse abandono com que um menino bem formado ama o melhor dos pais; que nós o temamos como escravos temem um senhor severo e cruel, isso é que ele não pode sofrer. E assim é que manifestando-se aos homens não ostenta já um aparato de poder e majestade capaz de fazer tremer; na forma de um menino prefere antes aparecer, pois a salvar e a fazer-se amar é ao que ele vinha, não a julgar e fazer-se temido. Afoitamente corramos pois agora a lançar-nos ante o trono da sua misericórdia, nós que outrora no trono de sua majestade nem pensar ao menos podíamos sem nos sentirmos possuídos de um certo pavor religioso. No presépio de Belém nada há que inspire temor; misericórdia e amor é o que ali tudo respira. Lá está Jesus cheio de doçura; nem o que é irritar-se, ele sabe quando é ofendido, ou se alguma coisa se irrita, é fácil em apaziguar-se. Vamos, pois, ao presépio, tomemos a Jesus nos braços, abracemo-lo ao coração, e peçamos-lhe que nos abrase das chamas do seu amor. Senhor Jesus, doce Salvador da minha alma, qual é a minha confiança nesta vida? Ou qual a minha mais doce consolação de tudo que aos meus olhos se apresenta debaixo do céu? Não sois vós, Senhor meu Deus, cujas misericórdias não têm número? Onde me foi bem sem vós? E convosco onde me foi mal? Mais quero ser pobre por vós, que rico sem vós. Por melhor hei o peregrinar convosco na terra, que sem vós possuir o céu; onde estais vós, aí está o céu, onde faltais está a morte e o inferno. Todos os meus desejos sois vós, e por isso, longe de vós devo plenamente confiar, e nas minhas necessidades só de vós, ó meu Deus, posso esperar socorro. Vós sois a minha esperança, a minha confiança, o meu sempre fiel consolador... Meus olhos a vós se elevam; em vós ponho toda a minha confiança, o meu Deus. Santificai a minha alma e abençoai-a com a nossa bênção celeste, para que seja vossa santa morada, trono da vossa eterna glória, e para que neste templo que vos dignais habitar nada haja, nada haja que ofenda os vossos olhos. Olhai para mim, Senhor, em vossa imensa bondade; e segundo a multidão de vossas misericórdias ouvi a oração deste pobre servo vosso, longe de vós desterrado na região as trevas e da morte. Conservai, protegei a alma do vosso pobre filho no meio dos perigos desta vida corruptível: a vossa graça o acompanhe e conduza pelo caminho da paz à pátria da eterna luz. Ó Jesus! Jesus Menino, de vossa misericórdia espero esta graça. São Francisco de Assis, ao falar do mistério do nascimento do Filho de Deus, transportes de admiração e amor o enleavam. Sentimentos iguais partilhava São Bernardo; ouçamo-lo: Eis soou nesta nossa terra de exílio, em nossas tendas de pecadores, um brado de alegria, de regozijo e salvação. Uma palavra cheia de doçura e consolação acaba de ferir nossos ouvidos. Jubilai, ó montes, e fazei retumbar os louvores do Senhor. Regozijam-se os céus e exulte a terra, inundem-se de alegria os campos e tudo o que neles habita, saltem de contentamento as árvores das florestas, ante a face do nosso Deus, que acaba de chegar ao meio de nós. Escutai, ó céus, presta ouvidos, ó terra; tu sobretudo, tu ó homem, fica tomado de pasmo; Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá! Que coração há tão de pedra, tão insensível, que não se derreta a uma tão doce palavra? Que mais agradável nova se nos podia dar? Quando se ouviu tal? Quando ouviu jamais o mundo tão consoladoras palavras: Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá! De que doce suavidade não são repassadas! Pudesse eu fazer sentir sua doçura e energia; mas expressões me faltam, e temo tirar-lhes a força, fazendo a mínima mudança. Jesus Cristo, Filho de Deus, acaba de nascer em Belém de Judá. Ó nascimento adorável!... Ó vós todos, todos que estais no pó, levantai-vos e adorai a Jesus menino; vem salvar-nos, curar-nos e cobrir-nos de glória. Ó vós, pecadores, pobres ovelhas desgarradas, já podeis respirar; para vos procurar e salvar o que estava perdido é que Jesus vem à terra. Ó vós, que estais doentes, havei ânimo; Jesus vem curar os corações com a unção da sua misericórdia. Ó vós todos que nutris em vossa alma desejos de chegar às grandes dignidades, regozijais-vos, o Filho de Deus desce à terra para vos fazer participantes do seu reino. Ide ao presépio, ide sem temor visita-lo; quando está sobre o trono de sua majestade impõe respeito e temor; mas aqui, na forma de um menino, só instila amor e confiança. Poderiam os olhos de Jesus inundados em lágrimas não vos tocar o coração? Chora este divino Salvador, mas não como os outros meninos nem pela mesma razão; os demais meninos por temor e fraqueza é que choram, Jesus chora de compaixão e amor por nós. Nasceu-nos um menino; foi-nos dado um filho. Vamos ao presépio e com respeito escutemos as instruções que nos queira dirigir. Sua língua não pode ainda articular palavra, mas todos os membros do seu corpinho são outras tantas bocas que clamando-nos estão: Amai a Deus de todas as vossas forças; bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados; tomai o último lugar; o que se humilha será exaltado, o que se exalta será humilhado; não queirais entesourar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consome, e onde os ladrões os desenterram e roubam; mas entesourai para vós tesouros no céu onde não os consome a ferrugem nem a traça e os ladrões não os desenterram nem roubam; só uma coisa é necessária, e esta coisa necessária é a vossa salvação; de que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma? Meu melífluo Jesus, quão belas acho eu vossas lições! Quão admiráveis! Oh! Quanto eu desejaria pô-las todas em prática por amor vosso! Mas aí! Sou tão fraco, tão fraco, que para o bem é não poder nada de todo. Ó meu Jesus, ó Jesus menino, Jesus tão bom, tão terno, tão compassivo! Tende piedade de mim. Amar-vos quero eu, bem o sabeis, pois vedes o fundo dos corações: eia pois, concedei-me o vosso santo amor. Oh! Que se eu pudesse amar-vos como a santa Virgem e todos os santos! Quão doce me fora! Oh! Quem me dera poder fazer-vos amar de todos os homens! Mas sequer ao menos, ó Jesus meu! Graças a vós, esse vivo e ardente desejo já o tenho; dignai-vos, eu vo-lo suplico, aceitar estes votos do meu coração. Nasceu-nos um menino, foi-nos dado um filho. O Eterno tornou-se menino, o Onipotente fez-se fraco, o Infinito e Independente submeteu-se às suas próprias criaturas; humilhou-se até ao ponto de se fazer homem e nascer num curral, e o amor que nos tem é que o levou a operar todos estes prodígios. Ó caridade, exclama Santo Tomás de Vilanova, ó mais potente triunfo do amor! O invencível tu o fizeste vencer o Onipotente deixou-se cativar. Ó verdadeiro excesso de caridade! Um Deus menino! E por amor de nós! E para nos inspirar confiança! E para melhor cativar o nosso coração! Amemos, pois, esse Deus tão bom e tão amável, e para de mais em mais nos excitarmos a amá-lo, não nos cansemos de repetir, e cada vez com uma nova efusão de alegria e amor estas tão tocantes palavras: Nasceu-nos um menino, foi-nos dado um filho. Ó meu rico menino Jesus, doce Salvador meu! A vós amo e em vós confio; sim, toda a minha esperança, e amor sois vós. Ah! Que seria de mim agora pobre miserável, se não descêsseis do céu para salvar-me? Muito tempo há já que as ofensas de que me tornei culpado me haveriam arremessado às chamas do inferno. Para sempre seja bendita a vossa misericórdia por ainda estardes pronto a receber-me se me arrepender dos meus pecados. Ó Jesus meu, vós estais lendo no fundo do meu coração e vedes quão arrependido estou. Recebei-me em vossa graça, e fazei que eu morra para mim mesmo, a fim de só para vós, ó meu único bem, viver. Consumi, em mim, ó fogo abrasador, tudo o que desagrada aos vossos olhos, e tomai posse de todos os meus afetos. Amo-vos, ó doce e amável menino Jesus! Amo-vos, ó Deus de minha alma! Amo-vos, ó meu tesouro, minha vida, meu tudo! Amo-vos, e meu último suspiro quero exalar a dizer: Amo-vos, meu Deus, a fim de então começar amar-vos com um amor mais perfeito, e que jamais terá fim. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Amor do Próximo Se alguém disser: Amo a Deus, e aborrecer o seu irmão, é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê? Apesar destas palavras de São João, muitos há que andam grosseiramente iludidos. Para com os pobres são duros, dos outros gostam de dizer mal, injúria por mui leve isso dificilmente a perdoam; desprezam os mais; mas lá porque repetem a miúde: "Meu Deus, amo-vos! Amo-vos, meu Deus?" julgam-se estar mui sobre o seguro. Não imites tal proceder, meu caro Teótimo; a todos os homens ama como a teus irmãos, como a criaturas em que está gravada a imagem de Deus. De todos deseja ardentemente a salvação. Doce e meigo rosto mostra sempre a todos os teus inimigos e aos que te perseguem muito principalmente. De tua boca somente saiam palavras de paz e a suave unção da caridade tempere sempre o agro do teu coração. Para socorrer e consolar os teus irmãos está sempre pronto, sê todo compaixão para com os aflitos e pecadores. Das virtudes dos outros te alegra como se tuas foram, doi-te das suas misérias, como das tuas; transforma-te, por assim dizer, em cada um de teus irmãos. A ninguém desprezes. Repele cuidadosamente os juízos temerários e suspeitas desfavoráveis ao próximo. De todos te habitua a julgar bem. As palavras e ações de outrem sempre com singelo coração as toma à boa parte, dizia Luiz de Blois. Oh! Quão bela é a virtude da caridade para com o próximo! Mas ai! Meu caro Teótimo, é tão rara! Entra no fundo do teu coração, e vê até que ponto a possuis. Estás verdadeiramente disposto a perdoar a todos os teus inimigos e até mesmo a fazer-lhes bem? Não gostas de quando em quando de criticar a vida do próximo? Sonda bem o teu coração, repito; ama os teus irmãos como a ti mesmo, é o que de ti exige Jesus Cristo, e hás de ser tu que não queiras obedecer a um tão justo pedido? Nem um dia deixes passar sem tomar as medidas necessárias, para a noite em verdade puderes dizer: Meu Deus, amo-vos de todo o meu coração, e amo também ao meu próximo como a mim mesmo por amor de vós. Capítulo XI - Da vida privada de Jesus Cristo e de sua humilde submissão a Maria e José - "E Jesus estava à obediência deles" (Lc 2,51). Transportemo-nos, cristãos, à pequena casa de Nazaré, à humilde habitação de Maria e José. Ali serão feridos nossos olhos de um espetáculo digno de toda a nossa admiração; ali veremos o nosso Jesus submeter-se, por amor nosso, à sua criatura, e nada mais fazer, até à idade de trinta anos, do que obedecer. Erat subditus illis. A estas palavras, exclama Bossuet, fico transportado de admiração; pois este era o único emprego de Jesus Cristo, do Filho de Deus? Todo o seu emprego, todo o seu exercício, era obedecer a duas de suas criaturas. E obedecer-lhes em quê? Nos mais baixos ofícios, na prática de uma arte mecânica. Onde estão os que se lastimam que murmuram de seus cargos não corresponderem ao seu gênio, melhor digamos a seu orgulho? Que venham a casa de José e Maria e que vejam a Jesus Cristo... Ó Deus, já não estou em mim! Vem, orgulho, vem arrebentar à vista deste espetáculo! Jesus filho de um carpinteiro, ele mesmo carpinteiro, conhecido só por este ofício, e não se falar de outro emprego ou ação sua! Diz Bossuet nas "Elevações sobre os mistérios". Eis, ó Jesus meu! Como por amor desta pobre alma e por destruir o meu orgulho colhestes prazer em ocultar-vos tanto tempo, e encobrir aos olhos dos homens todos os tesouros da vossa divindade! Ah! Dai-me a graça de vos amar de todo o meu coração, em reconhecimento de tão bela e tão útil lição! Quero, com meu exemplo, ensinar-te, filho meu, que toda a verdadeira e solida grandeza está em ser virtuoso sem rumor, sem ostentação, e passar uma vida dependente e oculta. Enquanto que em Nazaré assim eu vivia incógnito, em Roma e em toda a extensão do império Romano floresciam famosos oradores, egrégios capitães, ilustres poetas, hábeis políticos; a fama do seu nome retumbava em todo o mundo; de boca em boca voavam os seus louvores, e quase ninguém haveria que não invejasse tal sorte. Pensas tu, meu filho, que lá do alto dos céus de uma vã fama: Vede que reputação adquiriram, de quanta glória se cobrem? Não, meu filho, não, para a pequena casa de Nazaré é que ele lhes apontava dizia: Vede o meu filho, vede como obedece, até onde se humilha, quanto ama os homens, quanto me ama a mim mesmo. Não é, pois, o fausto e glória, não são as riquezas e grandezas da terra que atraem as vistas e admiração de Deus meu Pai! Grande pode ser um homem aos olhos do mundo, pequeno aos d'Aquele que julga das coisas por seu justo valor. A Deus, tão agradável se pode ser nos mais baixos e abjetos serviços, como nas mais honradas elevadas funções. Por aqui aprende tu a te contentares com o estado humilde em que te coloquei, e não desejes um outro em que serias menos incógnito, menos esquecido, menos desprezado. Lembra-te frequentemente que mil vezes mais vale estar oculto e desconhecido como eu, que mostrar-se. Jesus estava à obediência deles. Ó céu, é possível que quem com tanta deferência obedece a Maria e José, seja esse grande Deus que como Senhor impera em toda a natureza! Sim, e a fé me ordena que acredite. "É a ele, diz São Bernardo, que todos os anjos estão sujeitos, que os principados e potestades obedecem: e contudo submete-se a Maria e humildemente executa todas as suas ordens. E não é só a Maria, mas por amor de Maria também a José se submete. Duas coisas admiremos nisto, e em ambas escolhamos qual mais nos deva assombrar: se o profundo abatimento do Filho, se a alta dignidade da Mãe, mas tanto uma como outro igualmente são dignas de admiração. Que um Deus obedeça a uma mulher, humildade é esta sem exemplo: mandar uma mulher a um Deus, é autoridade e prerrogativa sublime e sem exemplo. Aprende, pois, a obedecer tu, ó homem mortal; cinca e pó, aprende a submeter-te, aprende a fazer o que te mandam... Cora de vergonha, cinza orgulhosa! O teu Deus a abater-se, e tu a elevares-te! O teu Deus a submeter-se aos homens, e tu em teu coração nutrires insensatos desejos de dominar! Tu quereres estar à testa dos mais! Tu preferistes ao teu Criador! Sim, repara bem, sempre que desejas dominar aos teus irmãos, acima de Deus te elevas e procuras usurpar os seus direitos... Ó cristão! Se, homem mortal como és, hás por indigno de ti o imitar a um teu semelhante, que te não seja indecoroso seguir as pisadas do teu Criador. Se o não podes seguir até onde se elevou, vai ao menos até onde desceu." "E Jesus estava à obediência deles". Que sublime lição esta para nós que de tão má vontade nos submetemos aos nossos superiores! Feliz quem dela se quiser aproveitar! Feliz quem com fidelidade caminhar na via da obediência a outrem! O caminho da obediência, diz Thomaz de Kempis, é o que conduz ao céu; assim muito mais seguro é obedecer que mandar. O homem que se submete e obedece sempre está em profunda paz; e ninguém vive em mais serenidade, ninguém com mais doce calma e segurança morre que o que sempre obedeceu. Só a obediência é a que em nossas almas faz brotar todas as virtudes; quem as cultiva, quem as pode conservar, ela é. A obediência, diz Salomão, é mui bem melhor que os sacrifícios: porque ela sacrifica a Deus a nossa própria vontade incomparavelmente mais preciosa a seus olhos que a carne dos animais que lhe é imolada. É a obediência uma vitória que o homem sobre si mesmo alcança, e mais glorioso triunfo não há para ele do que submeter a sua vontade à do outro homem seu semelhante. Deixemo-nos, pois, conduzir, se sinceramente desejamos chegar ao porto; jamais nos escapem murmúrios ou palavras picantes contra as pessoas em cuja dependência nos achamos colocados, e acabemos de persuadir-nos que com bem justa razão merecemos o último lugar, porque todos os outros tem mais virtudes do que nós. "E Jesus estava à obediência deles". Obedece a Maria e José até à idade de trinta anos em que seu Pai o envia a evangelizar os povos da Judeia. Que motivo de vergonha para tantos filhos ingratos e desnaturados que com uma culpável ânsia sacodem o salutar jugo da obediência que devem aos autores dos seus dias! "E Jesus estava à obediência deles". Sim, em tudo lhes obedecia. Os mais baixo ofícios de uma pobre casa não o enfastiavam, tanto a peito tomara testemunhar-nos por todos os meios possíveis a grandeza do seu amor. A quantos abatimentos, doce Jesus meu, vos não condenastes para minha instrução! Trinta anos vos aprouve ocultar sob o mais ordinário exterior a vossa divindade, para me ensinar a amar uma vida retirada, para me ensinar a encobrir sob os véus da humildade e do silêncio as graças que queirais fazer-me. Trinta anos vivestes incógnito a todo o mundo, para me ensinar a amar a humildade. Trinta anos obedecestes a vossas criaturas, para derrubar este meu orgulho que se não quer submeter, e aprender a obedecer com simplicidade a todos os que revestistes de vossa autoridade. Perdão! Meu deus, perdão! Até aqui bem pouco me aproveitei dos vossos exemplos, mas para o futuro hei de ver se me aproveito; ajudai-me, ajudai-me. Ó Jesus meu! Dai-me a graça de renunciar à própria vontade, para não seguir senão a vossa. Dai-me a graça de caminhar sobre os vossos vestígios e procurar a santa humildade, com mais afã ainda do que põem os ambiciosos do mundo em anelar as honras. Sois o grande Deus, o soberano Senhor do céu e da terra, o Deus dos deuses, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, e abatei-vos! E eu, verme da terra, miserável nada, exalto-me! Ó meu Deus! Perdoai-me a minha loucura. Faço-vos confissão de minhas misérias: confesso que sou um filho de cólera, que fui concebido na iniquidade, e que minha mãe me gerou no pecado. Neste mundo entrei com a nodoa do criem, e a morte, em seu justo castigo, dele me tirará brevemente, Ó bom e misericordioso Jesus! Tende piedade de mim. Continuamente agitada está minha alma, como um mar, pelo vento das paixões e desejos desregrados. Os meus pecados, ó Deus meu, excedem o número dos cabelos da minha cabeça, e não mereço levantar os olhos ao céu, por causa da multidão dos meus pecados. Ah! Livrai-me por vossa bondade. Senhor, meu Deus, apressai-vos a me socorrer. Lembrai-vos da vossa bondade, recordai-vos das vossas misericórdias, que são eternas, e curai a minha alma pois que só vós a podeis curar. Sou pobre, de tudo necessitado, e miséria tal é esta minha que a não me socorrerdes, nem sequer querer o bem posso, menos executar os meus bons desejos. E com toda esta fraqueza, e com toda esta miséria, ouso ainda ser orgulhoso! Ó Deus meu! Piedade; toquem-vos o coração os meus suspiros, obrigue-vos a escutar-me essa caridade que por mim vos fez morrer na cruz. O vosso amor, o perdão dos meus pecados, a humildade, o espírito de obediência, é tudo o que vos peço. Vinde, ó Jesus meu, a este coração, nele fixai a vossa morada, nele imperai como soberano, sempre, sempre. Vinde, e sereis a minha consolação, a minha força, o meu sustentáculo, o meu amigo, o meu irmão, o meu tesouro, a minha vida, o meu tudo. Vinde, e ensinar-me-eis a vos amar sempre e mais de cada vez, e a me desprender das criaturas. Vinde, e operareis um milagre digno do meu Jesus; de um pecador orgulhoso e sensual fareis um penitente humilde e mortificado. Ah! Vinde, ó meu Jesus, ó Deus da minha alma! Vinde, vinde. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Vida Oculta e da Obediência Hoje, meu caro Teótimo, hás de trabalhar em imitar a Jesus Cristo na vida oculta e obediência. 1º A Vida Oculta. Evita quanto o decoro do teu estado permitir o aparecer nas assembleias mundanas; nunca um servo de Deus está bem seguro senão quando se acha no retiro. Oculta quanto ser possa tudo o que puderes ter de bom. Por sábio ou rico não busques passar; pois, ai! O que são todas as riquezas e ciências do mundo? Preza o viver incógnito e não ser tido em conta alguma. Oh! E quão ditoso serás, quando sem mágoa vires todos os mais honrados, elevados a cargos, a dignidades; e a ti, todos a desprezarem-te, a nem em ti pensarem, e até mesmo a darem mostra de te aborrecerem! Dá-te toda a pressa a arrancar do teu coração a ambição; que ela afasta de Jesus a alma que a nutre; atormenta-a de cruciantes dores e nunca a deixa em paz. Ah! Que se os homens bem soubessem não serem as honras mais que pesadas cargas, após elas não iriam com tanto afã. Nunca em tuas boas obras procures os aplausos dos homens; contenta-te com ter por testemunha a Deus e tua consciência. Um dia no leito da morte, estarás absorvido de celestes consolações por sempre haveres vivido humilde, pequeno a teus próprios olhos, de todos esquecido e ignorado; dia virá em que conhecerás todo o fruto da vida oculta de Deus. 2º A Obediência. Com singeleza e sem murmúrio obedece a todo o que sobre ti tenha alguma autoridade; em suas ordens acostuma-te a ver as do mesmo Jesus Cristo. Consiste a verdadeira obediência em fazer, não o que nos agrada, mas sim o mais oposto ao nosso caráter. Sobre este ponto escuta São Bernardo; um homem verdadeiramente obediente não sabe o que é diferir e deixar para amanhã; é inimigo de demoras; ainda bem o não tem mandado e já a obediência está cumprida; previne os mandados que se lhe querem fazer; sempre está pronto a ver, dizer, fazer tudo o que os outros querem e a ir onde o enviam. Reconheces-te neste quadro? Hoje, pois, toma a boa e generosa resolução de praticar a santa obediência em sua perfeição, segundo o estado em que te colocou a Providência, se vives em comunidade, dir-te-ei: obedece a teus superiores em tudo o que não for pecado, mas obedece singelamente e sem resmungar, sem te pores a examinar porque te mandam, sem investigar outra razão de obedecer mais que a de agradar a Nosso Senhor. Se vives no meio do mundo dir-te-ei: obedece ao diretor da tua consciência como ao próprio Deus. Servos, obedecei aos vossos senhores temporais, com temor e tremor e na sinceridade do vosso coração, como obedeceríeis a Jesus Cristo; obedecei não só aos senhores bons e moderados, mas também aos de dura condição. Bem sei eu, meu caro Teótimo, sim bem sei que custa tanto quebrar a própria vontade, que é tão difícil domá-la, encadeá-la e submete-la à de outrem, que às vezes, à vista das dificuldades, tentado te verás abandonar a carreira começada e ir viver na independência. Mas, ó caro irmão, nada de desanimar! Levanta os olhos ao céu, a esse tão belo céu, palácio da eterna glória: lá é que Deus te está esperando para dignamente te recompensar dos teus esforços, de lá é que te está animando no meio dos teus combates e te diz: 1 Meu filho, não te esqueças que por teu amor e para te deixar um belo exemplo a seguir, Jesus Cristo, meu Filho e teu Salvador, obedeceu trinta anos a duas criaturas suas; não olvides que levou a perfeição da obediência até morrer sobre a cruz; não percas de vista que o discípulo não deve ser mais do que o mestre; se o teu Salvador toda sua vida submeteu a sua vontade, bem justo é que também submetas a tua! Coragem pois! A tua recompensa será o céu. Capítulo XII - Quanto nos devem excitar ao amor de Jesus Cristo a bondade e misericórdia que em sua vida ativa patenteou, - "Passou fazendo bem" (At 10,38). De modo algum pretendo eu apresentar à edificação das almas piedosas todos os lances de bondade que em sua vida ativa Jesus Cristo multiplicou; necessário para isso me fora copiar todo o Evangelho. Entreter-me em alguns, e fazer deles o assunto do presente capítulo, é só o meu intento. I - O Leproso Acabava Nosso Senhor de descer do monte em que ao povo dera admiráveis lições, e seguia-o uma grande multidão. Se não quando diante dele se apresenta um leproso, lança-se a seus pés e lhe diz: "Se tu queres, Senhor, bem me podes a limpar." Doeu-se Jesus deste pobre enfermo, e estendendo a mão tocou-o dizendo: "Pois eu quero. Fica limpo." Um outro leproso há como o do Evangelho, Senhor Jesus, que neste momento implorar vem vosso socorro; e esse leproso, eu sou. A minha lepra é toda espiritual, mas por isso mesmo tanto mais hedionda é, e até tenho vergonha de vo-la mostrar. São imperfeições, são as contínuas faltas veniais, são as tibiezas em vosso serviço, a lepra da minha alma. Dignai-vos, Jesus meu! Curar-me, para que minha pobre alma se torne pura e bella a vossos olhos, afim que vos sirva com um fervor sempre novo. Quando ao meu coração vierdes pela santa comunhão fazei-me ouvir estas palavras de tanta consolação: "Meu filho, eu quero, fica limpo." II - O Centurião Um centurião tinha doente um servo a quem muito queria. Como tivesse ouvido falar de Jesus e da bondade com que curava os doentes, chegou-se a ele no momento em que entrava em Cafarnaum e lhe dirige esta suplica: "Senhor, o meu criado jaz em casa doente de uma paralisia e padece muito com ela." Nada mais lhe disse, mas muito era já isto para mover a compaixão do nosso bom Mestre, que logo, logo lhe responde: "Consola-te, eu irei, e o curarei." "Não, Senhor", responde o humilde centurião, "não te fatigues; porque eu não sou digno de que entres em minha casa; mas dize tu só uma palavra e o meu criado será salvo." Jesus louvou em presença de todos estas palavras cheias de fé, que a Igreja recolheu como a mais profunda expressão de humildade e disse ao centurião: "Vai, e faça-se segundo tu creste." E naquela mesma hora ficou são o criado. Ó bom Jesus! como bem sabeis, a minha alma está tão doente, tão doente: uma ardente febre a consome e vai minando pouco a pouco; é queimada por um fogo secreto que nada o pode extinguir, é comprimida de uma imperiosa necessidade de amar e no amor das criaturas só acha misérias e dores. Bom Jesus, havei piedade dela! Vossas amabilidades infinitas a absorveram, e por vós suspira noite e dia; é muito indigna, sim, é muito indigna, mas ainda tem a doce esperança de que digais: "Irei a tua casa, e curar-te-ei." Oh! vinde, Senhor Jesus; ainda para eu gozar da vossa doce presença; vinde para eu vos amar quanto possível me for; vinde para eu vos abraçar de modo que não mais me torne a separar de vós; vinde, meu Deus, vinde porque sem vós não posso viver. III - A Cananéia "Passou um dia Jesus para as partes de Tiro e Sidonia; e eis que uma mulher Cananéia, que tinha saído daqueles confins, gritou, dizendo-lhe: 'Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim, que está minha filha miseravelmente atormentada do demônio.'" Tocante suplica esta, e que nós mesmos frequentemente devemos repetir: "Tende piedade de mim, Senhor, que a minha alma está cruelmente atormentada do demônio." Mas Jesus não lhe respondeu palavra, e chegando-se seus discípulos, lhe pediam, dizendo: "Concede-lhe o que ela pede, porque vem gritando atrás de nós." A tão tocante suplica Jesus parece ficar insensível, nem resposta dá, nem mesmo os olhos volta para aquela que a tão grandes brados o invoca; a seu fervor opõe uma indiferença aparente bem mais capaz de fazer descoroçoar, do que uma recusa que fosse. Contudo esta aflita mãe não perde o animo; continua bradando e repetindo sem cessar: "Senhor, Filho de David, tem piedade de mim." Fatigados os apóstolos dos gritos desta mulher, ou tocados talvez de sua constância e desdita, fazem-se seus intercessores, e aproximando-se de Jesus lhe pedem se renda ás suas instâncias e ouça seus votos, ou ceda ao menos ás suas importunidades, "porque, diziam, ela não cessa de gritar atrás de nós". Mas ele respondendo lhes disse: "Eu não fui enviado senão ás ovelhas que pereceram da casa de Israel." Quando a Cananéia viu os apóstolos fazerem-se os seus intercessores para com Jesus, que tão doce esperança não concebeu! Com que atenção escutava a resposta do Salvador! Mas qual não foi a sua surpresa e dor ao ouvir pronunciar estas fulminantes palavras: "Eu não fui enviado senão ás ovelhas perdidas da casa de Israel." Mãe infeliz! Ouviste bem o que disse Jesus Cristo? Já não é pelo silencio que se explica, suas palavras são claras e precisas; que esperança te pode ainda ficar? Retira-te, vai chorar a tua sorte e a de tua filha; agora a tua única consolação são as lágrimas e o desespero... Ah! Para nós nem tanto fora preciso para que tomássemos tal determinação!... Mas não assim o julga a Cananéia; ante os obstáculos, a vivacidade dos seus desejos e da sua fé reanima-se; aparta o que a impede de chegar a Jesus e lança-se a seus pés; sem alcançar o que pede não o há de deixar. Com mais instância que nunca renova a sua suplica e diz: "Senhor, bem conheceis a minha angustia, vedes a minha confiança, valei-me." Ah! Que se nós soubéramos orar com uma fé destas, como um tal fervor e perseverança, não poderíamos obter tudo? E Jesus respondendo-lhe disse: "Não é bom tomar o pão dos filhos e lança-lo aos cães." Que resposta na boca do melhor dos mestres, do mais terno dos pais! Todavia Jesus, ao proferir estas palavras, consentia ainda a Cananéia a seus pés; para ela isto era o favor mais inestimável, e ela o tinha já pelo mais seguro penhor do milagre que solicitava. Os termos de Jesus Cristo em nada a ofenderam; não os achou desabridos, que a verdadeira humildade de nada se enfada. Reconheceu que lhe quadravam e neles descobriu mesmo um motivo que podia pro-pôr-lhe para ser ouvida. Nos caminhos de Deus nada há mais cego que o orgulho, nada mais penetrante do que a humildade. Talvez ela até compreendesse desde logo, que sob expressões em aparência tão duras lhe franqueava entrada e lhe fornecia meio seguro de o desarmar. Com efeito a graça deste Deus Salvador derramando a unção no coração que parecia querer ferir, lhe fornece uma favorável ocasião, lança mão dela a humilde Cananéia: "Assim é, Senhor, lhe diz, não é justo dar aos cães o pão dos filhos, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos; as migalhas que escapam aos filhos ninguém lhas proíbe. Ora este é o meu estado, esta' a minha situação, este todo o objeto das minhas suplicas. Sobre os filhos de Abraão derramai profusamente as vossas enchentes de graças, eu para mim não aspiro mais que a algum desperdício ou sobra desses favores." Como uma tal resposta não deveu agradar ao Coração de Jesus! Ah! Que se nós bem conhecêramos este divino Coração, como o não amaríamos! Como nele não depositaríamos toda a nossa confiança! Só a humildade é quem no-lo pode fazer conhecer. Ir-me-ei pois lançar aos pés do meu Salvador em sua casa, e lá lhe pedirei a salvação da minha alma. E que ele não me escute, elevarei a minha voz; que me repila, perseverarei; que me exprobre os meus crimes e perfídias, direi com ele; que me diga que o paraíso não é para os pecadores como eu, responder-lhe-ei: Assim é, Senhor, mas vós viestes chamar os pecadores, curar os doentes, livrar os possessos, santificar e salvar os que em vós creem, quem em vós só confiam, que vosso socorro imploram e esperam. Este é o meu estado, esta a minha situação, este o objeto das minhas suplicas. Lá os vossos favores prodigalizai-os ás almas fiéis que os merecem, eu por mim não aspiro a benefícios tão grandes. Contudo depois de saciar os filhos da casa, não vos ficarão algumas migalhas que queirais repartir comigo?... Então Jesus Cristo Senhor Nosso lhe disse deste modo: "Ó mulher, grande é a tua fé." O divino Salvador, que consolação não foi para esse Coração poder assim louvar a fé desta mulher, que vós mesmo puséreis a tão rudes provas! E tu, ó mulher! Que dita a tua em te veres assim louvar por Aquele que conhece o fundo dos corações! Bem julgavas tu dele, quando de nada te deixaste amedrontar, nem temeste ser importuna ou indiscreta... Ah! Não se dá outro tanto comigo, a mim tudo me mete medo, cedo à mínima dificuldade; à mínima secura que experimente logo perco o animo. "Faça-se contigo como queres." E desde aquela hora ficou sã a sua filha... Desejava o livramento de sua filha, e sua filha é no mesmo instante livre... A nossa vontade é ordinariamente a medida das graças que o Senhor nos faz... A primeira condição de uma oração santa, a que as mais das vezes nos falta, é o querermos sinceramente o que pedimos. Meu doce Salvador, meu amigo, meu terno irmão, vinde, eu vo-lo suplico, em socorro da minha profunda miséria. Estou devorado do desejo de vos amar e sinto não poder amar-vos sem a ajuda da vossa graça. Ah ! Jesus, dai-me o vosso amor; desprendei o meu coração das riquezas, dos prazeres, das honras, de tudo o que não sois vós. Ai ! tudo neste mundo passa; só vós não passais, ó meu Deus ! amo-vos pois sempre, sempre! IV - A mulher adultera "Os escribas e os fariseus trouxeram a Jesus, que ensinava no templo, uma mulher que fora apanhada em adultério, e a puseram no meio, e lhe disseram: 'Mestre, esta mulher foi agora mesmo apanhada em adultério. E Moisés na lei mandou-nos apedrejar a estas tais. Que dizes tu logo?'" Diziam pois isto os Judeus tentando-o para o puderem acusar. Com isto, diz Santo Agostinho, como que armavam um duplo laço à sabedoria do Salvador; se a condenava à morte, perdia a reputação de bondade e doçura que gozava; se a deixava ir livre, dava lugar à calunia e passava por inimigo da lei. Nestes apuros que havia de fazer o nosso bom Mestre? Não diz: "Deem-lhe a morte"; tão pouco diz: "Deixem-na ir"; mas como conhecia os desígnios dos seus inimigos e não queria corresponder-lhes, fez primeiro o que é costume fazer-se quando se quer iludir uma questão importuna ou especiosa, parece fazermo-nos desentendidos, e ter o espírito ocupado com outras coisas. Neste intuito é que Jesus, "abaixando-se pôs-se a escrever com o dedo na terra". Não o compreenderam seus inimigos ou então quiseram forçar a resposta, que, julgavam eles, daria pasto ás suas calunias, cuja confusão procurava sua bondade fugir. Persistindo eles em interroga-lo, levantou-se e lhes disse: "O que de vós outros está sem pecado seja o primeiro que a apedreje. E tornando a abaixar-se, escrevia na terra." Para os escribas e fariseus estas palavras foram como um raio; pareceu-lhes que elas acabavam de pôr à mostra todos os crimes de suas consciências impuras; "logo deram pressa em se retirar um a um, sendo os mais velhos os primeiros; e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio em pé". Ficou só esta pobre mulher com Jesus, ou como Santo Agostinho explica, restou só o doente com o medico, a profunda miséria com a soberana misericórdia. Oh! Que vergonha e temor seria o desta mulher! pois se ela ainda não sabia quão compassivo e misericordioso era aquele em cuja presença se achava! Mas vai já sabê-lo; porque "erguendo-se Jesus, e olhando para ela com bondade, disse-lhe: Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor. Então disse Jesus; Nem eu tão pouco te condenarei; vai, e não queiras pecar mais." Ah! Bom Jesus! Tão compassivo para com as nossas misérias; Jesus que com tanta misericórdia perdoais; qual é o coração que recusará amar-vos? Eu por mim, ó meu Salvador, só a vós quero prender-me, a vós só quero servir e amar de todas as minhas forças. Recebei-me em o numero dessas almas queridas a quem de preferência prodigalizais as vossas graças, e fazei que vos seja fiel até ao meu ultimo suspiro. V - Os meninos abençoados por Jesus Um dia estava Jesus ocupado a dar a seus discípulos lições da mais alta importância, quando lhe foram apresentados vários meninos, para lhes impor as mãos, e fazer oração por eles. Estes meninos, divisando no rosto do divino Mestre um não sei que de doce e afetuoso que roubava os corações, chegavam-se a ele sem temor e com esse abandono que caracteriza aquela idade. "E os discípulos os repeliam com palavras ásperas", como temendo não viessem importunar a Jesus. Bem mal conheciam ainda este bom Mestre! "Porém Jesus, chamando a si os meninos, disse: Deixai vir a mim os meninos e não lho embaraceis; porque dos tais é o reino de Deus", e dos que a eles se assemelham, pela simplicidade, pela inocência e pela obediência. "Em verdade vos digo, todo o que não receber o reino de Deus, como um menino, não entrará nele." Depois de ter dado de passagem esta lição a seus apóstolos e a todos os cristãos na pessoa deles, fez aproximar os meninos que ali estavam, "e abraçando-os, e pondo sobre eles as mãos, os abençoava". Bem-aventurados meninos! Esta bênção de Jesus devia ser para vós a fonte de muitas graças. VI - O cego de Jericó "Sucedeu porém, que quando Jesus ia chegando a Jericó, estava sentado à borda da estrada um cego pedindo esmola. E ouvindo o tropel da gente que passava, perguntou que era aquilo. E responderam-lhe que era Jesus Nazareno que passava." Jesus era conhecido de todo o país: os pobres e aflitos sabiam já qual era a sua compaixão para com eles; do seu poder ninguém duvidava, e este mesmo cego por sem duvida havia de saber que Jesus curara em particular muitos cegos. Quando pois ouviu dizer que era Jesus Nazareno que passava, que alegria não sentiu logo ! Compreendeu que esta era para ele uma ocasião única que cumpria não deixar passar, e assim, cheio de confiança, "se pôs a bradar, dizendo: Jesus, Filho de David, tem de mim piedade". Como não soubesse o momento em que precisamente pasmava Jesus Cristo, não havia cessar de exclamar, e repetir a sua humilde prece, e implorar a misericórdia daquele que sabia era tão bom e compassivo. "E os que iam adiante repreendiam-no para que se calasse. Porém ela cada vez gritava mais: Filho de David, tem de mim piedade." Se eles não tinham a necessidade nem a confiança do desditoso que solicita um milagre! mas o pobre cego fez-se surdo a todas as advertências, e então é que ainda mais gritava. "Então Jesus parando, mandou que lho trouxessem. E quando ele chegou, fez-lhe esta pergunta: Que queres que te faça?" Muito bem sabia Jesus o que desejava o pobre cego; mas tinha suas razões para lhe fazer tal pergunta. Uma mãe, diz o Padre de Ligury, na Vida de Jesus Cristo, perfeitamente conhece as necessidades de seu filho, quer não obstante que lhas declare. E isto não é somente para que ele reconheça a sua autoridade; é também por gostar de o ver a balbuciar o seus desejos, e a testemunhar-lhe sua confiança; é para também excitar e nutrir o seu reconhecimento pela facilidade com que mostra condescender ás suas vontades. Ama e quer ser amada; estes são os seus motivos, que bem assim são os de Deus, quando exige lhe exponhamos nossas necessidades que melhor que nós ele conhece. E ele respondeu: "Senhor, fazei que eu veja." E Jesus então lhe diz, com essa poderosa autoridade que maravilhosamente obedecia á bondade do seu coração: "Vê, a tua fé te salvou." E logo imediatamente viu, e o foi seguindo engrandecendo a Deus. VII - Jesus chora sobre Jerusalém "Avizinhava-se Nosso Senhor um dia de Jerusalém, e ao ver a cidade chorou sobre ela." Jesus a chorar! Oh! Que imponente e solene é ver um Deus a derramar lágrimas! A causa destas lágrimas era bem digna de um coração como o seu. Jerusalém devia ser exterminada,. e exterminada por causa dos seus crimes, aos quais ia dar remate pelo maior de todos. Uma vez manchada no sangue do seu Messias, a rainha das cidades não devia ser mais que um montão de cinzas ensopada no sangue de seus cidadãos. Dentro em breves dias ia ser perpetrado este atentado, e o castigo só alguns anos seria deferido; e ambas estas coisas não estavam menos presentes ao Salvador do que se atualmente as estivesse vendo. E para um Deus salvador que espetáculo este! e com que profunda amargura lhe fez dirigir a esta infeliz cidade estas tristes e patéticas palavras: "Ah! se ao menos neste dia, que agora te foi dado, conhecesses ainda tu o que te pode trazer a paz, mas por ora tudo isto está encoberto aos teus olhos. Porque virá um tempo funesto para ti, no qual os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te porão em aperto de todas as partes; e te derrubarão por terra a ti e a teus filhos que estão dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra; porquanto não conheceste o tempo da tua visitação." Ainda um outro motivo bem forte tinha Jesus para derramar lágrimas; ele pensava em todos nós pessoalmente, e nas calamidades de Jerusalém via a desdita das afinas que perecem. Virá, exclama, um tempo funesto para ti, em que teus inimigos te cercarão de trincheiras; de todas as partes te cercarão e apertarão. A Jerusalém assim aconteceu ponto por ponto; de todos é sabido os espantosos trabalhos que os romanos fizeram, e essa muralha que em volta da cidade elevaram e cada vez mais os comprimia; o que causou essa horrorosa fome em que as mães chegavam a comer os seus filhos. E assim há de também acontecer à alma pecadora, apertada de todos os lados por seus maus hábitos, nem graça nem pão da vida nela poderão já penetrar; morrerá à fome, sucumbirá ao peso dos pecados e não ficará mais pedra sobre pedra. Triste estado desta alma: universal destruição de todo o edifício interior! Nem razão, nem parte superior, nada, nada de espírito, é tudo embrutecido, é tudo corpo, é tudo sentidos; tudo completamente é lançado por terra. Que é dessa bela arquitetura que patenteava a mão do Onipotente? Já nada existe; já nada está pedra sobre pedra; não há ordem nem conexão nesta alma, nenhuma peça está unida à outra, é tudo uma desordem universal. Porque? foi tirado o principio; Deus, sem temor, a consciência, essas primeiras impressões que fazem sentir à criatura racional que há um soberano; e destruído este fundamento que podia ficar em pé?... A este tão triste espetáculo Jesus não pode conter as lágrimas: "Se tu soubesses, ó alma, se tu soubesses!...". Não pode acabar, sufocam-lhe a fala os soluços, sua língua não pode exprimir a cegueira desta alma. Se tu soubesses! ao menos neste dia que ainda te é dado e em que Deus te visita por sua graça. Deus sabe o dia depois do qual já não haverá recursos para a alma, "porquanto, diz Jesus, não conheceste o tempo da tua visitação". Quando uma luz interior te mostra os teus crimes, quando és incitado a dar gloria a Deus, quando tudo em ti brada que toda te deves dar a ele, como nesse dia da visitação de Jerusalém os mesmos meninos aclamavam o Filho de David; se tu não escutas, o momento vai-se, e esta graça tão viva e tão forte não voltará... "Tudo está encoberto a teus olhos." O teu coração fica entorpecido; fechados e obscurecidos os olhos; cegam-te as paixões; negro véu pesa sobre as tuas pálpebras, mortal letargio as agrava. Ó alma; Jesus chora e tu não choras! Chora, chora, espiritual Jerusalém; chora a tua perda, ao menos hoje, Tioje que o Senhor te visita de um modo tão admirável. Se até aqui foste insensível à tua própria ruína, chora hoje e viverás. Não percas este momento de graça, porque não sabes se será o ultimo que Deus te concede (Bossuet). VIII - Jesus ressuscita Lázaro "Estava pois enfermo um homem chamado Lázaro que era da aldeia de Betânia, onde assistiam Maria e Martha suas irmãs. Mandaram pois suas irmãs dizer a Jesus: Senhor, eis ai está enfermo aquele que tu amas." Excelente maneira de orar! diz Bossuet com os santos Padres; sem nada pedir expõem-se ao amante a necessidade do amigo. Oremos nós também assim; acabemos de persuadir-nos de que Jesus nos ama; apresentemo-nos a ele como doentes, sem nada pedir, sem nada dizer. Oremos assim por nós mesmos, oremos assim pelos outros. É esta uma maneira de orar das mais excelentes... Muitas vezes disseram a Jesus no seu Evangelho: "Vem, Senhor, e cura, impõe as tuas mãos e toca o enfermo." Aqui diz-se simplesmente: "Aquele que tu amas está enfermo." Jesus compreende a voz da necessidade, e tanto mais, quanto neste modo de orar há um não sei que de mais submisso, mais respeitoso e mais terno até. Como esta oração é tão amável! Pratiquemo-la principalmente para as doenças da nossa alma. "E ouvindo isto Jesus, disse-lhes: Esta enfermidade não se encaminha a morrer, mas a dar gloria a Deus, para o Filho de Deus ser glorificado por ela." Lázaro sempre morreu desta doença, mas o que o Salvados queria dizer era que a morte seria vencida e o Filho de Deus glorificado por esta virtude. "Ora Jesus amava Martha, sua irmã Maria e Lázaro." Um coração tão terno e sensível como o de Jesus necessariamente devia ter amigos, tinha poucos, mas esses que tinha eram bons, virtuosos e caritativos. Tomemos a Jesus por modelo das nossas amizades - Jesus partiu com os seus apóstolos; "chegou enfim e achou que Lázaro estava na sepultura havia já quatro dias". Estava pois Betânia em distancia de Jerusalém, perto de quinze estádios. E muitos dos Judeus tinham vindo a Marta e a Maria, para as consolarem na morte de seu irmão. Martha pois tanto que ouviu que vinha Jesus, saiu a recebe-lo: e Maria ficou em casa. Disse então Martha a Jesus: "Senhor, se tu houveras estado aqui, não morrera meu irmão." É a suplica de uma amiga ao seu amigo cujo poder e bondade conhece. Não, Senhor, "se tu houveras estado aqui, não morrera meu irmão"; com uma só palavra vossa tê-lo-íeis curado. É tal vossa bondade que não tivéreis coração de o deixar morrer à vossa vista, tal é o vosso poder que have-lo-ieis preservado da morte. Mas vós quisestes estar ausente. Bem que ausente podíeis cura-lo; se não quisestes, vós sois o Senhor; submetemo-nos ás vossas ordens, e por mais rigorosas que sejam, não diminuirão jamais nem o nosso amor para convosco nem a confiança que em vós temos. "Mas também sei agora que tudo o que pedires a Deus, Deus t'o concederá." Tendes todo o poder, não só para prevenir a morte, mas ainda para lhe arrebatar a presa que já tem entre mãos. "Respondeu-lhe Jesus: Teu irmão há de ressurgir. Disse-lhe Martha: Eu sei que ele há de ressurgir na ressurreição que haverá no ultimo dia." Duvidar que Jesus o possa ainda agora ressuscitar não duvida, há se por indigna de tal graça. Disse-lhe Jesus: "Eu sou a ressurreição e a vida; o que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá: e todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente." Ó palavra cheia de consolação! eu que atualmente gozo da vida, porque temo a morte? Pois que creio em Jesus Cristo (e nele creio de todo o meu coração) não morrerei. Este corpo fraco e enfermo deixá-lo-ei sim, mas é para um dia o tornar impassível e glorioso; e apenas sair do corpo, enquanto esse dia não chega, continuarei a viver, não farei mais que mudar de habitação, e em lugar de viver na terra nó meio de crimes que a inundam, irei mas é viver com Jesus no céu no seio da sua gloria. Importa bem meditar esta verdade para nos confortamos contra o temor da morte que tão violento é nalguns homens que quase perdem o espírito ao anunciar-lhe a vizinhança da morte; é a experiência que o confirma. Grande necessidade temos pois de nos munirmos contra este temor, o que se alcança meditando principalmente nas promessas do Evangelho contra a morte e dando com viva fé o nosso coração à vida que esperamos. E depois de ter ouvido de Jesus estas palavras, "retirou-se Mar-tha e foi chamar em segredo a sua irmã Maria, a quem disse: "É chegado o Mestre e ele te chama." Que nova para Maria! "Ela como ouviu isto, levantou-se logo e foi busca-lo." Em nossas aflições, em nossas penas Jesus nos falia no intimo do coração, chama-nos, convida-nos a ir a ele e a procurar só nele a nossa consolação. Imitemos a presteza e diligencia de Maria; deixemos os homens para ir derramar o nosso coração e as nossas lágrimas aos pés de Jesus. - Maria porém depois de chegar aonde Jesus estava, tanto que o viu, lançou-se a seus pés e disse-lhe como sua irmã, com tanta confiança e resignação e com mais ternura ainda: "Senhor, se tu houveras estado aqui não morrera meu irmão." Apenas pronunciara estas palavras, derreteu-se logo em lágrimas, de sorte que seus soluços e gemidos não a deixaram dizer mais. Chora, terna Maria, chora aos pés do teu Salvador e ante seus olhos. Ah! Não são consoladores essas lágrimas! Ah! Não são tão diferentes das que derramastes a sós contigo ou em presença dos que te vieram visitar! Pois se tu agora choras aos pés do teu Mestres!... Deles é que outrora escutavas a sua voz, é de lá que ele ouve os teus gemidos. Ah! Quem me dera a mim também chorar aos pés do meu Salvador, chorar os meus pecados, deplorar a minha miséria! Oh! E porque não hei de eu levar aos pés do meu divino Salvador todas as minhas dores e aflições? Se em mim mesmo as rotenho e me ponho a pensar nelas não faço mais que agrava-las; se as levo aos homens, não me podem consolar; o mais que podem fazer com os seus discursos aduladores é sobrecarregarem a minha mágoa em vez de m'a aliviar. Vós só, ó meu Jesus! Vós só sois o consolador que minha pobre alma deseja. Vós me chamais e mandais ir; vou pois a vós. Não me impedis que chore, e minhas lágrimas assim derramadas em vossa presença ao pé da vossa cruz correm com mais doçura, e bem depressa o vosso amor, à vista dos vossos sofrimentos curam a chaga da minha alma, acalmam a minha dor, adoçam meus tormentos e fazem-me que os ame. Em todos os apertos da minha vida sereis pois o meu recurso, a minha esperança, a minha consolação. - "Jesus porém tanto que viu chorar os Judeus que tinham vindo com ela, bramiu em seu espírito e turbou-se a si mesmo, e perguntou: Onde o pusestes vós? Responderam-lhe eles: Senhor, vem e vê. Então chorou Jesus." Onde estão esses falsos sábios que querem sejamos insensíveis? Tal não é a sabedoria de Jesus que assim derrama lágrimas pela morte do seu amigo. Chorais, ó divino Jesus ! ó coração terno e compassivo! chorais um amigo morto para me ensinar que se numa semelhante ocasião nos é imposta a submissão, as lágrimas também nos não são proibidas. Chorais para adoçar as nossas lágrimas, para as santificar, para fazer secar a sua fonte. Chorais por todos nós, que em tão grande numero nos precipitamos na morte eterna. Ah! Bom Jesus, vós a chorardes os meus pecados, e eu ficar insensível! Tal dureza não permitais, meu Senhor; aplicai-me o mérito das vossas lágrimas, e excitem elas as minhas. - "O que foi causa de dizerem os Judeus: Vejam como ele o amava." Sejais louvado, ó Senhor Jesus, por tão patentemente vos haverdes dignado mostrar a ternura que tendes para com vossos amigos. Seja-nos permitido imita-la e amar a vosso exemplo; os corações duros e insensíveis não são os que vos agradam. Regulai porém as nossas amizades, santificai-as, sede o seu modelo. Fazei que nunca adulemos os nossos amigos, fazei que, como vós, corrijamos com doçura e prudência os seus fervores inconsiderados, e todas as mais faltas; fazei que em nossos amigos, amemos como vós o bom e o sólido. "Jesus pois tornando a bramir em si mesmo, veio ao sepulcro, e era este uma gruta; e em cima dela se havia posto uma tampa. Disse Jesus: irai a tampa. Respondeu-lhe Martha, irmã, do defunto: Senhor, ele já cheira mal, porque é já de quatro dias." A morte apareceu então no que tem de mais horrendo. Lázaro, morto, amortalhado, enterrado, pútrido e cheirando mal, teme-se levantar a tampa com receio de que infecte o lugar e a pessoa de Jesus. E' um espetáculo horrível; Jesus estremece, Jesus chora. Na morte de Lázaro, seu amigo, deplora o comum suplício dos homens, vê a natureza humana criada da imortalidade e condenada à morte por seu pecado. É amigo de todo o gênero humano e vem restabelece-lo; começa por deplorar a sua queda, por estremecer e abalar-se veementemente à vista do seu suplício. O que mais horrível acha na morte é o ela ter sido causada pelo pecado; e é mais o pecado que a mesma morte o que lhe causa este tremor, esta perturbação, estas lágrimas. À medida que do túmulo se aproxima, novo tremor se apodera dele. Ao ver esta medonha caverna, onde jaz a morte, dir-se-ia não haver já remédio a um tão grande mal; seriamos tentados a acreditar que Jesus não tem que dar a um mal tão grande, mais que lágrimas e um horror que o faz tremer; mas sua bondade e poder vão brilhar e breve dentre os braços da morte sairá Lázaro. - "Tiraram pois a tampa; e Jesus levantando os olhos ao céu disse: Pai, eu te dou graças, porque me tens ouvido; eu pois bem sabia que tu sempre me ouves, mas falei assim por atender a este povo que está à roda de mim, para que eles creiam que tu me enviaste. Tendo dito estas palavras, bradou, em alta voz: Lázaro, sai para fora. E no mesmo instante saiu o que estivera morto". Em a narração da ressurreição de Lázaro, estendi-me um pouco porque nesta circunstância o Evangelho nos apresenta o nosso bom Mestre a conversar com amigos que ele honrava de sua intimidade, a partilhar suas penas, a empregar todo o seu poder para os aliviar. Bem doce e consolador é ver assim o nosso Deus sensível ás nossas misérias e sempre pronto a curar nossos males. Impossível me parece que se possa meditar este passo da vida de Nosso Senhor, bem como a historia de santa Maria Madalena de que no seguinte capítulo tratarei, sem se sentir todo abrasado de amor por um Deus que tão terno, tão misericordioso, tão compassivo é. Ah! Se conhecêramos a Jesus! Se meditássemos as mais pequenas circunstanciais da sua vida mortal, esforçar-nos-íamos a ama-lo de todo o nosso coração, e bradaríamos com São Paulo: "Se algum não ama a Nosso Senhor Jesus Cristo seja anátema" (Uma grande parte dos pensamentos e sentimentos desta oitava narração tomei-os de Bossuet e do Evangelho meditado). Senhor meu Deus, por vosso nome e por vossa gloria incendiai-me, eu vos conjuro, abrasai-me o coração nas chamas do vosso amor. Oh ! não viva eu senão para amar-vos! Não viva senão para chorar o mal que fiz em ofender-vos e tão tarde vos amar. Nada são as riquezas, nada os prazeres, nada as honras, nada os louvores; vosso amor, ó meu Jesus, vosso amor! Eis o que o meu coração busca, eis porque ele almeja, o que ele pede! Vosso amor e cruzes, vosso amor e trabalhos, vosso amor e cumprimento da vossa santa vontade, este é o meu único contentamento, a minha única satisfação nesta vida. Tende de mim piedade, Senhor, e dai-me o que me falta. Conheceis as minhas necessidades, a vós me abandono sempre. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Não se pode Servir a Dois Senhores Até quando claudicareis vós para duas partes? Ninguém pode servir a dois senhores. Todos sabem que para salvar-se é preciso servir e amar a Deus, mas do seu serviço e amor queriam tirar o que neles há de oneroso e só deixar o que há de agradável. Queriam servi-lo com a condição (de somente lhe dar palavras e cerimônias, e ainda estas a muito custa e enfado. Queriam ama-lo, mas sob condição de juntamente com ele ou ainda mais amarem todas essas vaidades mundanas que ele não ama, antes condena. Queriam ama-lo, mas com a condição de que em nada diminuíram esse seu amor próprio que vai até à idolatria, que em lugar de nos referir a Deus, como a nosso Criador, faz refiramos Deus a nós e só o procuremos como um refugio que nos console quando as criaturas nos deixem. Queriam servi-lo e ama-lo, mas com a condição de ser permitido ter vergonha do seu amor, encobri-lo com uma fraqueza, envergonhar-se dele como de um senhor cujo serviço nos desonra, não lhe dar enfim senão um certo exterior de religião para evitar o escândalo e viver à mercê do mundo para nada dar a Deus sem permissão do mesmo mundo! Ó céu! Então é este o amor que Jesus nos teve! Meu caro Teótimo, aprende a amar a Deus verdadeiramente e como ele quer ser amado. Amar a Deus, é ter horror ao pecado, é observar fielmente a sua santa lei é não ter outra vontade que não seja a sua. Amar a Deus é amar o que Jesus Cristo amou, a castidade, as humilhações, os sofrimentos; é aborrecer o que Jesus Cristo aborreceu, o mundo, a vaidade, as nossas paixões. Poder-se-á crer que amamos a um Deus com quem não nos queremos parecer? Amar a Deus é entreter-se gostosamente com ele, é desejar ir a ele, é suspirar e consumir-se após ele. Oh! Falso amor que se lhe não dá de ver quem ama! Hoje e sempre pede a Deus a graça deste santo amor, dizendo: "Senhor, que eu vos ame, e por obras vos prove o meu amor!" Capítulo XIII - A amante de Jesus ou história de Maria Madalena - "Perdoados lhe são seus muitos pecados porque amou muito" (Lc 7,47). Poucas historias há no Evangelho que mais consolador exemplo nos deem da misericórdia de Jesus, nosso bom Mestre, como a de Santa Maria Madalena. Tenho para mim que ninguém pode ser esta historia sem ser penetrado de ardente desejo de amar um Deus tão compassivo e sempre tão disposto a perdoar a um pobre pecador que lhe vem testemunhar o seu arrependimento. Contemo-la pois em toda a sua simplicidade. "Um Fariseu rogava a Jesus que fosse a comer com ele. E havendo entrado em casa do Fariseu se assentou à mesa. E no mesmo tempo uma mulher pecadora que havia na cidade, quando soube que estava à mesa em casa do Fariseu, levou uma redoma de alabastro cheia de balsamo e pondo-se a seus pés (A postura que então à mesa se guardava tornava-lhe isso fácil; estava-se a ela deixado em leitos feitos de propósito com a cabeça para a mesa e pés para fora) por de traz dele começou a regar-lhe com lágrimas os pés, e os enxugava com os cabelos da cabeça, e lhe beijava os pés e os ungia com balsamo." Pobre pecadora! Ela sentia-se acabrunhada sob o peso de tantos pecados; seus remorsos a remordiam cruelmente; mil paixões que há tanto tempo nutrira em seu coração, nele levantavam medonha tempestade; não sabia o que fazer de si, senão quando ouve que Jesus está em casa de um Fariseu. Jesus! Ele que me dizem que é tão bom, ele que cura os doentes, ele que consola os aflitos, ele que a todos faz bem! Jesus! Ah! Pois vou lançar-me a seus pés, diz a infeliz pecadora. E lá foi, e chorou... Ó meu Deus! Como é doce e consolador para um pecador chorar assim aos pés de Jesus! Nada diz, nada pede, contenta-se com chorar e fazer conhecer por suas lágrimas seu arrependimento e seu amor. Jesus, meu bom Mestre, dai-me a graça de assim chorar enquanto viver. "E quando isto viu o Fariseu que o tinha convidado, disse lá consigo fazendo este discurso: Se este homem fora profeta, bem saberia quem, e qual é a mulher, que o toca, porque é pecadora." Nada conhecia este Fariseu da bondade e compaixão de nosso divino Salvador que lhe diz: "Um credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentos dinheiros, e outro cinquenta. Porém não tendo os tais com que pagarem, restituíram-lhe ambos a divida. Qual pois o ama mais? Respondendo Simão disse: Creio que aquele a quem o credor perdoou maior quantia. E Jesus lhe disse: Julgastes bem. E voltando para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, não me deste agua para os pés; mas esta com as suas lágrimas regou os meus pés, e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo: mas esta desde que entrou, não cessou de me beijar os pés. Não ungiste a minha cabeça com balsamo: e esta com balsamo ungiu os meus pés. Pelo que te digo: Que perdoados lhe são seus muitos pecados, porque amou muito. Mas ao que menos se perdoa menos ama." Ó meu Jesus, quanto não devo pois amar-vos eu, pobre pecador, a quem tantas faltas remistes, a quem perdoastes tantas ingratidões! Quanto não devo amar-vos!... Mas ai! Amo-vos tão pouco que até coro de vergonha. Bom Jesus, eu vo-lo suplico, tende de mim piedade e dai-me o vosso amor. Porque de há tanto tempo sois insensível às minhas penas? Quero amar-vos, sinto que vos amo, mas ai! não é bastante. Ó Deus da minha alma! ou sede menos amável, ou dai-me mais amor. "E disse-lhe Jesus a ela: Perdoados te são teus pecados." Feliz Maria Madalena! Tinha compreendido o coração de Jesus, adivinhara toda a sua misericórdia para com os pecadores, e sem duvida ela já esperava esta resposta da sua boca: "Perdoados te são teus pecados." Oh! Que doce não é ouvir sair estas palavras da boca de Jesus! Meu bom Mestre, terno amigo da minha alma, eis-me também como a Madalena a vossos pés; dignai-vos lançar sobre mim olhos de bondade e dizer-me como a ela: "Meu filho, perdoados te são teus pecados." "E Jesus disse ainda a esta mulher: A tua fé te salvou, vai-te em paz." A santa penitente, cheia de reconhecimento para com tanta clemencia e misericórdia, uniu-se a Jesus, resolveu-se a segui-lo por toda a parte com outras santas mulheres, partilhar quanto pudesse as suas penas, as suas fadigas e acudir à sua subsistência. Nunca mais o deixou: e quando soube que fora preso pelos judeus, seguiu-o no sangrento curso da sua paixão. Que coragem aquela! Quase todos os Apóstolos covardemente haviam abandonado o seu Mestre; Pedro três vezes o negara; mas esta mulher afronta as injurias e ameaças dos soldados, as chufas da multidão, para se não separar do seu Salvador; ela sobe ao monte Calvário, ela põe-se ao pé da Cruz e ali derrama em abundância lágrimas de compaixão e amor... Ó meu Deus! quem me dera a graça de como ela chorar! Quem me dera a graça de constantemente permanecer aos pés da Cruz de Jesus, afim de lhe provar o meu amor!... Meu doce Salvador, ouvi a minha oração e dai-me o vosso amor. Nem riquezas, nem honras, nem prazeres vos peço; o que eu quero é o vosso amor, é a graça de sempre convosco ficar sobre a cruz, é a graça de morrer à força de amar-vos. "No primeiro dia da semana veio Maria Madalena ao sepulcro de manhã, fazendo ainda escuro, e viu que a tampa estava tirada do sepulcro." Depois de haver Jesus exalado o último suspiro, depuseram o seu corpo num sepulcro aberto numa rocha; para aqui é que, guiada do seu amor, se dirige Maria Madalena no dia seguinte ao sábado mui cedo ainda afim de o embalsamar. Adianta-se, senão quando conhece que já ali se não achava o seu Mestre... Que golpe este para o seu coração ! Em sua angustia "correu pois, e foi ter com Simão Pedro e com outro discípulo a quem Jesus amava, e disse-lhes: Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o puseram". Nisto foram os dois Apóstolos com ela ao sepulcro, não acharam Jesus e voltaram-se para casa. Maria Madalena não se pôde resolver a segui-los: "Conserva-se em pé da parte de fora chorando junto do sepulcro." Ai! Se ela viera na esperança de encontrar o seu Mestre e não o acha! Agora a quem recorrer? Se tudo a abandonou! E nada mais lhe resta que dores e lágrimas. Ah! E quantas não derramou ela! Quantas e quantas vezes não repetiu ela o seu adorável nome! Ó meu Deus! E que bela lição para nós! Se como a Madalena procurássemos a Jesus; se depois de havermos pelo pecado perdido a sua graça ou pela tibieza as consolações do seu amor; se como ela nós sentíramos a grandeza da nossa perda; se como ela persistíssemos em buscar Jesus; se com brados e lágrimas o chamássemos, como ela o acharíamos e com uma abundância de alegria que sobrepujaria todas as nossas esperanças. "E ao tempo que ela chorava, abaixou-se e olhou para ver o sepulcro. E viu dois anjos vestidos de branco assentados no lugar onde fora posto o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés. Os quais lhe disseram: Mulher, porque choras? Respondeu-lhes ela: Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Ditas estas palavras olhou para traz e viu Jesus, em pé, sem saber contudo que era Jesus. Disse-lhe Jesus: Mulher, porque choras? Ela, julgando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o pusestes e eu o levarei." Veja-se que amor o desta mulher para com seu divino Mestre: Não o perdeu e eis que o pede ao céu e à terra: "Não vistes aquele que meu coração ama?" Se ela não vê o seu Jesus, se ela não pode provar-lhe o seu amor por seus cuidados e atenções cheias de respeito, como há de ter repouso? Não pode passar sem o achar. Ó meu querido Redentor! Terno amigo, dai-me, eu vos suplico, um coração capaz de vos amar tanto como mereceis. E a quem amarei eu na terra e nos céus se a vós não amo? Sim, eu o sinto, o vosso amor vai-me consumindo lentamente, e eu morro de pesar por não poder amar-vos mais. Meu Deus, meu Deus, amo-vos e quero amar-vos sempre. "Disse-lhe Jesus: Maria. Ela, voltando-se, disse: Rabboni, que quer dizer - Mestre." Quem poderá dizer a alegria que transportou Maria Madalena quando reconheceu a Jesus? Dá um grito e lança-se a seus pés; é o que se pode fazer; seu silencio e suas lágrimas faliam mais ao coração de Jesus que todas as palavras do mundo. - Ó bom Jesus! Permiti que vos abra o coração e vos diga quanto me comove e consola o modo como tratastes a Maria Madalena. Vejo em vosso Evangelho que a ela é a quem primeiro aparecestes depois da vossa ressurreição; então esquecestes-vos já de que ela foi outrora pecadora e com seu procedimento escandalizou toda uma cidade? - Bem verdade é, filho meu, que Maria Madalena me ofendeu, mas soube reparar os seus desvarios pela constância e ardor do seu amor. Ó meu filho! Quantos primeiro foram grandes pecadores e depois pelo seu arrependimento, pelo acrisolado do seu amor mereceram os meus mais assinalados favores! De uma alma que me ama, eu facilmente esqueço a maior multidão de seus pecados. Ó meu doce Jesus! Quantas vezes, desde que nesta terra estou, vos ofendi eu? Quem contar poderia a multidão dos meus pecados? Mas, ó terno amigo, ó meu bom mestre! tende piedade de mim, esquecei minhas ofensas, que arrependido eu estou, e vos amo. Sim, amo-vos, ó Deus do meu coração, e vos peço a graça de vos amar até ao ultimo suspiro e por toda a eternidade. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Excitar-nos à Confissão pelo uso frequente do Sacramento da Penitência Sempre que do sacramento da penitencia te aproximas, excita em tua alma um grande pesar de todas as tuas faltas, sobretudo das faltas mortais da vida passada; que a teus olhos, meu caro Teótimo, sempre estejam presentes estas faltas: 1 - Para por elas continuamente te humilhares e extirpares os orgulhosos pensamentos que em teu coração se possam suscitar; 2 - Para deles pedires perdão a Deus; ao coração de Nosso Senhor nada lhe agrada tanto como o arrependimento saído de uma alma de há muito purificada; 3 - Mas mais que tudo, para nos excitar ao amor do nosso bom Mestre; é impossível não o amarmos, quando pensamos que tantos pecados nos perdoou. Quando receberes a absolvição procura diligentemente que tua alma ponha uma confiança extrema na misericórdia do Senhor, e não digas como tantas outras almas tímidas: "Quem sabe se os meus pecados estão perdoados?" Mais vale um ato de confiança na bondade e misericórdia de Jesus, quando para bem nos confessarmos nada omitimos, do que todos esses temores que o mais que podem fazer é impedir-nos de avançar no amor de Deus. Toma, pois, o habito de fazer, depois de cada confissão, um ato de confiança e repelir todos os temores que te possa sugerir o demônio. Capítulo XIV - A parábola do Filho Pródigo - "Meu filho era morto, e reviveu; tinha-se perdido e achou-se" (Lc 15,24). Nesta parábola nos pôs Jesus diante dos olhos, de um lado o quadro dos nossos desvarios, do outro a viva imagem da ternura com que recebe o pecador arrependido, que vem lançar-se em seus braços. Meditemo-la, pois, atentamente; dela tiraremos nós numerosos motivos para mais e mais amarmos o nosso divino Mestre. "Um homem teve dois filhos; e disse o mais moço deles a seu pai: Pai, dá-me a parte da fazenda que me toca. E ele repartiu entre ambos a fazenda." Estranho modo de proceder este! E no entanto assim é que eu fiz, há já tantos anos. Apenas a razão me começava a distinguir o bem do mal, já eu dizia ao meu Deus: Senhor, dai-me sem demora a saúde, a ciência, as riquezas e a beleza, que eu tudo isto quero, não para vossa gloria, mas para ofender-vos, não para minha salvação, mas para minha ruína. Ó meu Deus, envergonhado o confesso, esta é a linguagem que usei, pelas minhas palavras talvez não, mas por minhas ações. Dignai-vos perdoar a minha loucura. "E passados são muitos dias, entrouxando tudo o que era seu, partiu o filho mais moço para uma terra muito distante num país estranho, e lá dissipou toda a sua fazenda, vivendo dissolutamente." Aonde não vai uma desgraçada alma, que uma vez abandonou o seu Deus? Ai! Por minha desgraça já eu o experimentei. Julguei que, longe dele, achava felicidade e deixei-o. Corri pelos caminhos da iniquidade e fui caindo de abismo em abismo. Para onde ia eu? Ah! Uma voz interior me bradava que em vão procurava eu separar-me do meu Deus, que, a meu pesar, para ele corria sempre, mas que depois de haver deixado um Deus cheio de bondade e misericórdia, acharia um Deus justo e irritado. Eu ouvia esta voz, e ela aterrava-me... mas sempre seguia fugindo, fugindo para longe de vós, Deus meu! Oh! Que graças não dissipei eu, quando longe de vós andava? Graças do meu batismo, graças das vossas inspirações, graças dos bons exemplos que recebia, graças de toda a espécie, tudo, tudo perdi, dissipei tudo, tudo calquei aos pés! Ó meu Deus, meu Deus, chegará dia em que chore assas tão grande desgraça? "E depois de ter consumido tudo, sucedeu haver naquele país uma grande fome e ele começou a necessitar." Oh! Quem poderá dizer em que indigência se acha um pecador que já não ama o seu Deus, e que dele se retirou? Uma cruel fome o devora, e nada acha que o console. Ele lá vai por toda a parte a mendigar prazeres, honras humanas, consolações, mas tudo isto o mais que faz é exacerbar o seu mal. Sempre está devorado do inquieto desejo de se satisfazer, e nada, nada absolutamente, pode dar-lhe o que procura. Ei-lo que caiu na mais desastrosa indigência! Que irá agora o infeliz fazer? Escutemos. "Retirou-se pois dali, e acomodou-se com um dos cidadãos da tal terra: este porém o mandou para um casal seu guardar porcos." Pobre pecador! Que ganhaste tu em abandonar o teu Deus e o teu pai? A felicidade? Mas eu vejo-te sempre nas lágrimas e dissabores. A paz e serenidade? Mas tu sempre vives em perturbação e sustos; o pensamento da morte e da eternidade te lança na consternação, e os teus remorsos de dia para dia são mais pungentes e insuportáveis. Que ganhaste pois? A vergonha; sim, a vergonha. Eras filho de Deus, e renunciaste a um tão glorioso titulo para te pôr ao serviço do demônio; eras herdeiro dum belo reino e te reduziste à mais completa desnudes. E deste novo senhor que preferiste ao teu Deus, que é que recebeste? Ah! "Deu-te porcos a guardar." Cobriu-te de ignomínia engolfando-te nos mais sujos prazeres; arrastou a tua alma pelo lamaçal das voluptuosidades; e, o que é ainda mais de horrorizar, capacitou-te de que este era o teu fim, fez-te esquecer da tua origem celeste e te prendeu ao lodo. Ó pecador! Pecador! Que fizeste da tua inocência? Que fizeste dessa alma, dessa alma tão bela quando pura, tão ditosa quando amava o seu Deus? "Aqui desejava ele encher a sua barriga de landes das que comiam os porcos, mas ninguém lhas dava." Pode ir a degradação mais longe?! Imagem horrorosa, mas verdadeira do pecador que se obstina de viver no meio dos seus pecados. Concede às suas paixões tudo quanto exigem, rola de precipício em precipício, esgota todos os prazeres e reduz-se à deplorável necessidade de, como vil escravo, obedecer às mais vergonhosas sugestões do demônio. "Desejava encher a sua barriga de landes, das que os porcos comiam." Meu Deus! Meu Deus! Fazei-me bem compreender toda a vergonha a que se condena um infeliz pecador que vive longe de vós. Fazei-o compreender também àqueles desgraçados que vos não amam. "Até que entrando disse: Quantos jornaleiros há em casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu aqui pereço à fome!" No meio de suas desordens, o pecador lá lhe vem à memória de vez em quando aquela felicidade que outrora gozava quando a sua alma era inocente, e das graças abundantes que então recebia, e esta recordação começa a lhe fazer vir saudades, e é o principio de uma conversão, de um volver ao seu Deus. Ai! Diz ele consigo mesmo, eu sempre sou um desgraçado muito grande! De qualquer lado que me volte, só vejo motivos de pesar, dor e temor. Eu bem faço por tapar os ouvidos: é em vão, é sempre a mesma coisa. O pensamento daquela minha felicidade de outrora não me deixa e atormenta o meu pensamento; a multidão da iniquidade que de há muitos anos acumulo sobre minha cabeça me horroriza e espanta; noite e dia me roem os remorsos; minhas insaciáveis paixões me pedem pasto a grandes brados; mandam com império, é preciso que obedeça, e nem um momento tenho de repouso. Oh! Que infeliz que sou! E no entanto, em torno de mim vejo tantas pessoas que vivem na paz e doçura de uma boa consciência! São meus parentes, meus amigos e conhecidos. Ah! Estão contentes; eles, nada lhes falta, amam ao seu Deus; que mais posso eu dizer? Estas mesmas paixões que agora me tiranizam, eles as tem já encadeadas; essas graças de que há tanto tempo estou privado, eles as recebem em abundância; esse belo céu que eu perdi e de que me tornei indigno, eles o esperam com doce confiança, e essa confiança os enche da mais santa alegria. "Levantar-me-ei, e irei buscar a meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti já não sou digno de ser chamado teu filho; faz de mim, como de um dos teus jornaleiros." Eis a linguagem do pecador que, tocado da graça celeste, pensa em volver-se para Deus. Não, não, exclama o infeliz! Não posso por mais tempo permanecer num estado tão desesperador. Levantar-me-ei, irei buscar meu Pai celeste, e pedir-lhe-ei perdão. Ó meu Salvador Jesus que boca assas eloquente será para exprimir os diversos sentimentos que agitam o pecador que de seus desvarios se começa a arrepender e a querer entrar em graça convosco! Suas paixões, ainda todas chefes de vida, lhe dizem de mansinho: "Então tu deixas-nos? Entre ti e nós nada mais haverá de comum? Desde este momento ser-te-á interdita tal e tal coisa para nunca mais? Julgas poder passar sem tal e tal prazer? Ah ! olha bem o que vais fazer." E o pobre pecador, acostumado como está a obedecer a todas as suas sugestões, quase não sabe o que faça, hesita, balanceia. Mas a vossa graça, ó Jesus, não o desampara, firme se conserva ao seu lado, excita-o, estimula-o, e com inefável doçura lhe diz: "Volve, volve ao teu Deus e não te deixes amedrontar dos embaraços, que eu serei contigo. Não poderás fazer tu o que outros mais fracos hão feito? Não escutes a voz da carne de pecado. Doçuras te promete ela, mas serão comparáveis às que acharás na lei do teu Senhor e teu Deus!" Oh! que terrível é este combate interior de uma alma que está para se converter? Mas também quão consolada é essa alma infeliz quando alfim rompeu magnanimamente suas cadeias e toda se deu a seu divino Mestre! "Levantou-se, pois, e foi buscar a seu pai. E quando ele ainda vinha longe, viu-o seu pai, que ficou movido de compaixão, e correndo lhe lançou os braços ao pescoço para o abraçar, e o beijou"... Aqui é que brilham em todo o seu fulgor a bondade e misericórdia do nosso Deus. Mal ele vê um pobre pecador a fazer por sair dos enleios dos seus maus hábitos, vem em seu socorro, anima-o. Não o repele quando a ele se apresenta, mas com toda a bondade o recebe e lhe dá o ósculo de paz e reconciliação. Essa veste cândida da sua inocência ele lha restitui, e convida o céu a tomar parte no gozo que recebe ao achar seu filho: "Ele era morto e reviveu." Senhor Jesus, nunca mais esquecerei o feliz momento em que vossa graça, desvendando-me os olhos, me fez ver a profunda miséria em que eu vivia sem vos amar. Onde estava eu, ó meu Deus, onde estava quando me viestes procurar? Ai! Tão longe estava que nunca poderia chegar-me a vós! Mas a vossa misericórdia veio tomar-me pela mão, e me conduziu a vossos pés. Ó céus! Tomai-vos de espanto! Em vez de exprobações tão justamente devidas, recebi de vós, ó Deus meu, um acolhimento do qual só o lembrar-me me faz derramar lágrimas com ternura. Prosternado estava a vossos pés, nem mesmo ousava a vós levantar meus olhos de envergonhado que estava de tantas misérias, senão quando me levantastes, me apertastes entre os vossos braços e contra o vosso coração e me dissestes: "Meu filho, meu caro filho, já lá vai tudo, tudo fica esquecido, está tudo perdoado"... Ó meu Deus! Como pode ser que eu caísse na desgraça de vos deixar e vos contristar com tantos pecados? Perdão, perdão, ó meu Pai! perdão, mil e mil vezes perdão! Detesto as minhas ingratidões, maldigo as minhas numerosas ofensas, e proponho repara-las quanto possível me for. Ó meu Deus! Eu vos amo, e por amor vosso decidido estou a suportar todos os trabalhos que de vossa mão me vierem; por vosso amor consinto em ser humilhado, desprezado, olhado como um ser vicioso, ignorante, inútil; por vosso amor submeto-me a ser acabrunhado de cruzes exteriores e interiores! Por vosso amor quero fazer tudo que for da vossa vontade. Dai-me somente, ó meu Deus, a vossa força; porque bem sabeis, de mim mesmo nada posso; dai-me a vossa força e tudo o mais irá bem. Dai-me a graça de chorar os meus pecados e viver como penitente até ao fim da minha vida, para que um dia vá lá no céu cantar as vossas misericórdias infinitas. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Espírito de Penitência Um só pecado, como Tertuliano diz, merece eternamente ser chorado. Quanto, pois, meu caro Teótimo, não deves chorar todos esses pecados que desde quando estás no mundo cometeste! Ao menos este dia passa-o em santos exercícios de penitencia, recusa a teus sentidos as pequenas satisfações que sem pecado lhe poderás conceder; redobra de fervor em teus exercícios de piedade, esforça-te por viver num grande recolhimento interior. Traze muitas vezes à memória, de um lado a multidão de tuas faltas, para as detestar e delas pedir perdão a Deus, do outro os quase infinitos benefícios que de Deus tens recebido para lh'os agradecer e te excitares ao reconhecimento e amor. Se és rico, dá alguma esmola aos pobres, sobre tudo aos enfermos: se és pobre faze um bom ato de resignação com a vontade de Deus. Por espírito de mortificação e penitencia falia pouco, e um tanto mais baixo que de ordinário; mostra-te mais doce, mais afável, mais obsequioso ainda do que o costume; vive mais retirado, e evita qualquer visita que pela caridade não seja ordenada. Suporta em paz e sem te queixar as fadigas de tua profissão, as doenças, as injurias, as durezas, os maus tratos de que possas ser alvo, e para te animar dize frequentemente a ti mesmo: "Que são estes sofrimentos em comparação das penas eternas do inferno tantas vezes por mim merecidas ? Ah! que feliz eu sou em poder ainda ganhar o céu a tão pouco custo!" Se alguém te ultraja e despreza, e presentes o orgulho querer sublevar-se, sem demora lembra-te da presença de Deus e dize-lhe: "Esta afronta, aceito, ó meu Deus, em espírito de penitencia e por amor vosso." Põe-te em seguida na maior quietação; nisto farás a Deus um sacrifício por ele nunca desprezado, o sacrifício de um coração contrito e humilhado. Capítulo XV - Toda a vida do nosso Divino Salvador foi um martírio contínuo - "Jesus foi um homem de dores" (Is 53,3). Sim, verdadeiramente Jesus foi um homem de dores; sua vida foi toda de sofrimentos interiores e exteriores; foi um martírio continuo, um martírio mil vezes mais cruel do que podemos imaginar. Que não teve ele de sofrer durante os nove meses que passou no casto seio de sua mãe? É certo que gozava de toda a sua razão e tinha o mais fino sentimento de todos os seus sofrimentos. Que horrorosa posição esta! Oh! sempre muito amor era preciso haver no coração deste bom Mestre, pois para no-lo testemunhar quis encerrar-se numa tão incomoda prisão! E em seu nascimento o que não sofreu? Ele a nascer num curral, ele exposto às injurias do tempo, ele a tremer de frio, ele a chorar. Por toda a parte o acompanham os sofrimentos, nem um instante o deixam. Se sai do presépio de Belém, é para derramar as primícias do seu sangue; mais tarde um pouco essa sua mesma pátria forçado se viu a deixar e fugir para terra estrangeira, afim de escapar ao furor de um rei ímpio e sanguinário. Por toda a sua vida terá que sofrer os incômodos da pobreza, e terminá-lo-á sim, terminará essa vida de angustias por uma cruel morte! Eis aqui pois, ó meu Jesus! o que por mim tendes sofrido; Ah! Bem justo é que por vosso amor também eu sofra alguma coisa. Fazei-me a graça, eu vos suplico, de sequer ao menos suportar com paciência e resignação as penas desta vida corruptível. "Toda a vida de Jesus foi um martírio": sim, e o que mais cruciante tornou este martírio, foi o perfeito conhecimento que tinha dos tormentos que em sua paixão havia de sofrer. Os açoites, os espinhos, a cruz; os ultrajes da sua paixão, ele os teve presentes desde o primeiro instante da sua vida. Se no campo via um cordeiro, ou no templo vitimas, lembrava-se que ele era o cordeiro de Deus, e que sobre a cruz devia ser imolado em sacrifício. Ao lançar os olhos sobre a cidade de Jerusalém, pensava nos ultrajes de que esta cidade ingrata o havia de saturar. A vista d'uma montanha lhe trazia à memória o monte Calvário, no qual devia derramar o seu sangue. Quando levantava os olhos a sua terna mãe, quais não eram os sentimentos de dor que de seu coração se apoderavam! Ai, ele a via já ao pé da cruz, triste, abatida, agonizante de dor; via já chegado o momento de se ver forçado a recomenda-la ao discípulo amado, e sem duvida desviava-se para ocultar a sua com-moção e as suas lágrimas. Assim tudo lhe recordava a sua paixão e os tormentos que nela devia sofrer, e esta cruel lembrança lhe envenenou todos os momentos da sua existência. Um dia Jesus crucificado apareceu à irmã Madalena Orsini, que de há muito estava em tribulação e exortou-a a que sofresse resignada, "Isso bem eu queria, Senhor, respondeu esta santa jovem, mas sempre permiti que vo-lo diga, vós sobre a cruz só estivestes três horas, e eu já há muitos anos que sofro esta pena. - Pobre ignorante, lhe diz Jesus repreendendo-a, que é que dizes tu? Sabe que desde o primeiro instante de minha existência no ventre de minha mãe, sofri em meu coração o que mais tarde sofri na cruz". Mas o que mais afligiu o nosso divino Salvador foi a vista de nossos pecados e das ingratidões com que devíamos pagar os tormentos que por nós com tanto amor ia sofrer. E esta vista lhe causou penas interiores tão acerbas e tão vivas, como neste mundo homem algum pode jamais sofrer. Por consequência eu, também eu, por meus pecados contribui a afligir tão bom Senhor! Porque certo é que se eu menos pecara, menos ele sofrera. Bem justo é pois que chore minhas passadas faltas, e empregue a mesma linguagem que Santa Margarida de Cortona. Exortava-a o seu confessor a que se tranquilizasse sobre o negocio da sua salvação, e a que acabasse com suas lágrimas, pois os seus pecados lh'os havia já Deus perdoado. "Ah! Meu padre, replicou desfeita em pranto mais abundante, como quereis que acabe de chorar, quando sei que os meus pecados foram a causa do meu Jesus gemer e estar em aflição toda a vida!" Ó céu, que longe não está dos sentimentos desta grande santa o nosso procedimento! Toda a nossa vida a levamos no meio da alegria, diz Santo Efrem; todos os dias procuramos novos prazeres, alimentos novos à nossa vaidade, e contudo ouvimos narrar os sofrimentos e ignomínias que por nosso amor Deus sofreu. Enchemo-nos de orgulho, gostamos de todas as nossas comodidades, covardemente rejeitamos o salutar jugo da penitencia, bem que nos sintamos vergadas ao peso de iniquidades, bem que saibamos que por nosso amor, o Salvador se submeteu às injurias, aos escarros, aos açoites, aos opróbrios e à morte mais cruel! O pecador em delicias, e o justo pregado numa cruz! que transtorno! Oh! e que terrível conta teremos de dar de um tal procedimento! Apressemo-nos, apressemo-nos pois a prevenir por uma penitencia sincera as suas temíveis consequências! Vamo-nos lançar nos braços de Jesus, homens de dores, e peçamos, e peçamos-lhe a graça de reparar o passado e corresponder para o futuro a toda a ternura que para conosco há tido; vamos a seus pés fazer-lhe um solene protesto, e digamos-lhe com todo o fervor que doravante só queremos ser todos d'ele para sempre, sim, para sempre, para sempre. À vista das nossos iniquidades exclamemos sem cessar com o profeta Jeremias: "Quem dará agua a minha cabeça e uma fonte de lágrimas a meus olhos? E eu chorarei de dia e de noite." Exclamemos com o santo rei David, ou antes com a Igreja: "Senhor, não nos trates como mereciam os nossos pecados, nem nos castigues segundo a grandeza das nossas antigas iniquidades. Não te lembres das nossas iniquidades, mas previnam-nos sem demora as tuas misericórdias, por que estamos reduzidos à ultima miséria. Ajuda-nos, ó Deus, que és o nosso Salvador, e livra-nos, Senhor, pela gloria do teu nome; e perdoa-nos os nossos pecados, em atenção ao nome que te é próprio". Ó meu Jesus! Não poder eu expiar de dor à triste recordação das amarguras de que saciei vosso coração por minha tibieza, e sobretudo pelos pecadas da minha vida passada! Ai! Quantas e quantas vezes me dei ao sono sem pensar que trazia em meu coração o pecado mortal que como horrível serpente com suas medonhas roscas me cerrava! Quantas vezes tive eu a ingratidão de, tendo-me vós perdoado e reintegrado no vosso amor, abandonar-vos com indigna vilania! De todo o coração me arrependo de tão mau proceder, sim, me arrependo de assim vos haver ultrajado. Dignai-vos perdoar-me!... Ó meu Deus! ainda depois de tanta covardia, depois de tantas misérias, depois de tantas fraquezas, sinto-me animado a dizer-vos: amo-vos de todas as minhas forças, amo-vos de toda a minha alma. Oh! eu vos suplico, não permitais que eu caia ainda na desgraça de ver-me separado pelo pecado! Iesu delicissime, ne permitas im separari a te - "Jesus dulcíssimo, ouvi-me; não permitais que de vós me separe nunca", - ne permittas me separari a te. Morrer antes do que trair-vos de novo! Ó Maria, mãe da perseverança, obtende-me a santa perseverança. Vós já a obtivestes para tantos outros, agora só para mim não a querereis obter? Oh! Não, minha boa mãe, não há de ser assim; vós me ofereceis a graça de amar Jesus e de vos amar também a vós por toda a eternidade. Esta preciosa graça eu a espero da vossa bondade, espero-a dessa ternura que para comigo sempre tendes tido. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Mortificação do Corpo Seria justo, meu caro Teótimo, viveres tu no meio dos prazeres e alegrias do mundo, e Jesus Cristo a passar toda a sua vida no meio dos sofrimentos? De certo que não, e não hás de ser tu que tão pouco te queiras assimilar àquele que por modelo tomaste. Hoje pois por amor do nosso Salvador aplicaste a fazer progressos na virtude da mortificação. Que esta palavra mortificação te não espante; para uma alma generosa que ama a Deus, é doce, dulcíssimo o mortificar-se. Sim, meu caro Teótimo, uma privação, um sacrifício que a gente se imponha por agradar a Jesus, causa à alma felicidade mais verdadeira que todos os gozos do mundo. Experimenta e acharás a verdade do que acabo de dizer. Duas sortes há de mortificação: 1º mortificação interior, a mais difícil e mais necessária; 2º mortificação exterior, a qual muito ajuda a adquirir a interior. Por hoje limita-te à prática especial da mortificação exterior, para o que eis os principais exercícios: I - Mortificação do Corpo em Geral Recusa a teu corpo estas posturas muito cômodas e efeminadas que despertam moleza; se o permite a saúde, ora de joelhos e sem te apoiar; não fiques no leito além da hora marcada para te levantar, etc. II - Mortificação da Vista Desvia teus olhos não somente dos objetos proibidos, mas ainda dos que sem tal ou qual perigo não podes ver. Sabe até mesmo privar-te da vista de coisas licitas e indiferentes, quando a vê-las só a curiosidade te impele. Oh! Que agradável coisa a Deus, e para ti tão fácil, o sacrificar-lhe quanto em ti esteja as ocasiões de ver belas casas, aprazíveis jardins, magnificas pinturas! Como te enriquecerias para o céu, e a tão pouca custo! As ocasiões de semelhantes sacrifícios são tão frequentes! Mortificação da Língua Nunca digas palavra que direta ou indiretamente possa ferir o respeito a Deus devido ou à reputação do próximo. Ai! tantas vezes se olvida, mesmo entre pessoas de piedade, que o mais precioso tesouro do próximo é a sua reputação! Quando se ofereça ocasião de fazer brilhar o teu espirito, d'ostentar os teus conhecimentos, de deixar ver os teus talentos, aprende a calar por amor de Jesus, a não ser que a caridade ou decoro te obriguem a falar. Retém sobre os lábios uma palavra inútil, quase, quase a sair, ou antes uma palavra que te poderia atrair louvor. IV - Mortificação do Ouvido Não escutes as murmurações, as maledicências, as injurias, as palavras muito leves ou de dois sentidos e geralmente todo o discurso em que posse comprometer-se a consciência. Priva-te algumas vezes do prazer de ouvir novas, belas vozes, uma doce harmonia, e com paciência e resignação sofrer tudo o que pode ferir os teus ouvidos de modo desagradável. V - Mortificação do Olfato De bom grado renuncia ao prazer que poderás tomar, ainda que inocentemente, nos bons cheiros e perfumes; se passeias por um jardim sacrifica uma vez ou outra a Nosso Senhor o prazer de cheirar uma rosa, um cravo, etc. VI - Mortificação do Gosto Ou tu comas ou bebas, nunca o faças pelo prazer que dai te possa provir. Manjares esquisitos, apetitosos bocados, viandas delicadas, não os busques, que tais acepipes são alimento do luxo, estimulo de voluptuosidade. Se te servem alguma vianda mal arranjada, aproveita-te de tão boa ocasião de te mortificar, e não te queixes, exceto se a isso o dever te obriga. Priva-te alguma vez das comidas de que mais gostas, para tomar outras de que não gostas. VII - Mortificação do Tato Sofre com alegria, ou ao menos com paciência, o frio, o calor, outros incômodos do ar e das estações; por mais molestos que sejam não murmures. Não te inquietes pelas doenças que te podem vir nem por tudo o que teu corpo pode sofrer; bem sabes tu que tudo isto são meios de tornar-te mais puro, de amortecer as paixões, de fazer penitencia, e de dar a Deus sólidos testemunhos do teu amor (Muitas destas práticas são extraídas dos exames de Tronson; o mesmo será de quase todas do seguinte capítulo). Aqui tens, meu caro Teótimo, algumas práticas muito simples de mortificação exterior; se verdadeiramente amas a Deus, muitas outras acharás sem contudo passar nunca os limites da prudência e obediência que deves a teu diretor. Capítulo XVI - Do ardente desejo que teve Jesus de sofrer por nós - "Eu tenho de ser batizado num batismo de sangue, e quão grande não é a minha angustia até que ele se conclua?" (Lc 22,50). - "Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes da minha paixão" (Lc 22,15). Que enérgicas expressões! Oh! Como eles pintam ao vivo o incompreensível desejo que Jesus tinha de sofrer e imolar-se por nós! Bem se deixa ver que saem da abundância do coração daquele que disse: "Eu vim trazer fogo à terra e que quero eu, senão que ele se acenda?" Ó filhos de Adão, compreendestes esta palavra do vosso Deus: "Eu vim trazer à terra o fogo do meu amor e o meu mais ardente desejo é ve-lo atear-se no coração de todos os homens?"... Ó meu Jesus, que tão grandes bens pois cuidáveis vós poder ganhar do amor das criaturas que para o obter assim quisestes morrer e tanto ansiastes esse desejo da vossa morte? "Eu devo ser batizado num batismo de sangue, dizíeis, oh! e quão grande não é a minha angustia até que ele se conclua?" Ainda uma vez mais, que grandes bens esperáveis do nosso amor? Quê! Quando todos os homens vos amassem, seríeis vós por isso maior, mais potente, mais feliz?... - Não, filho meu, me responde Jesus; não seria nem maior nem mais potente, nem mais feliz; minha felicidade, minha potência e minha grandeza não dependem do amor de minhas criaturas; por mim também não é que me aniquilei encarnando-me; por mim não é que nasci num curral; por mim não é que passei trinta anos numa pobre oficina; por mim não é enfim que com tão vivo ardor desejei sofrer e morrer sobre a cruz. Por ti, meu filho, sim, é por ti; quero fazer-te feliz dando-te o meu amor. E terás tu por ignominioso amar a um Deus que só pode fazer a tua felicidade, a um Deus que te cumula de benefícios, a um Deus que com tal ternura te ama?... - Não, doce Jesus meu, não; pelo contrario, quero dar-vos amor por amor, quero amar-vos de toda extensão do meu coração; dignai-vos ajudar a minha fraqueza. Oh! Quando por vós farei tudo o que hei feito pelo mundo? quando trabalharei para o céu, o que trabalhei para a terra? quando concederei à virtude o que ao vicio tenho dado? Ouvi, meu Deus, o ardente desejo do meu coração e dai-me o vosso amor. "Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta páscoa." Estava já o nosso bom Mestre na véspera da sua dolorosa paixão; era aquela ultima ceia que fazia com os seus discípulos, quando lhe dirigiu estas palavras. É como se lhes dissera: Meus queridos filhos e vós todos os homens que sobre esta terra viverdes até o fim dos séculos, eis que a hora do meu sacrifício se aproxima; neste mesmo momento os meus inimigos estão tramando conselho contra mim; uma cruz é o que me aparelham. Mas em antes de morrer, vou esta noite mesma deixar-vos novas lembranças do meu amor, e deixar-vo-las-ei submetendo-me aos mais atrozes sofrimentos, às ignomínias mais revoltantes, ao suplício mais infamante. Ah! E se soubéreis com que angustias eu aguardava esta noite! Se soubéreis que vezes a chamei eu de todos os meus votos! Vós compreenderíeis a violência do meu amor para convosco e o imenso desejo que tenho de possuir o vosso coração para o fazer feliz. Bem vejo, ó doce Jesus meu, ó meu adorável Salvador! Quereis possuir o meu coração a todo o preço que seja. Oh! E que razão tenho eu para vo-lo recusar? Pois não é já para mim uma grande honra o terdes vós a bondade de pedir-m'o? Sim, meu Deus, dou-vos o meu coração, tomai-o todo, afim de que a vós, e só a vós ame. Ó meu bom Mestre, meu irmão, meu amigo, minha esperança, meu tudo, quando em boa verdade poderei dizer que vos amo de toda a minha alma, de todas as minhas forças? Quando todo me sentirei abrasado das chamas do vosso amor? Consumido estou do desejo de amar-vos, e não há quem possa socorrer-me. Tende, Senhor, piedade de mim, tende piedade desta vossa pobre criatura, e dai-me o vosso amor; nem riquezas, nem honras, nem prazer, nem coisa alguma criada vos peço, que sem vós tudo isto não é mais que pura vaidade, não pode saciar meu coração. Porque tanto tardais em conceder-me este favor? Que é isto, Jesus meu? Vedes-me há tanto tempo a penar noite e dia e não me socorreis? Até quando, Senhor, vos esquecereis de mim? Até quando desviareis de mim os vossos olhos?" Deus meu, Deus meu, tomo a repetir e de repetir não cessarei até ao meu ultimo suspiro: "Dai-me o vosso amor, dai-me o vosso amor". O' Maria, mãe do santo amor! obtende-me a graça de amar a Jesus, se for possível, tanto como vós mesma o amais. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Mortificação Interior Pelo muito que Jesus Cristo desejou sofrer para testemunhar o seu amor, procura hoje ocasião de também sofrer por ele alguma coisa. Ontem falei-te, meu caro Teótimo, da mortificação exterior. Não percas de vista que sem ela impossível é fazer progresso algum real na perfeição; poder-se-á quando muito adquirir uma santidade fictícia e exterior, se assim se pode dizer; santidade verdadeira, não. Em nos vencermos a nós mesmos consiste esta interior mortificação, mas para chegarmos a tão suspirado resultado, que combates não é preciso travar! Para isso, eis as práticas mais importantes, observa-as fielmente e não tardarás a fazer grandes progressos na santidade e no amor do nosso bom Mestre. I - Mortificação do Gênio e Inclinações Naturais Nunca faças ação alguma só porque ela te apraz e é do teu gênio; jamais faltes a um dever, a uma boa obra porque nisso sentes repugnância. Dobra-te sempre ao humor e gostos de outrem, sempre que o que te pedem não é pecado. Algumas vezes priva-te de fazer uma coisa ainda que permitida e isto tão somente porque a vontade te incita. Pede muitas e muitas vezes a nosso Senhor te ajude a mortificar os teus gostos porque este gênero de mortificação é muito difícil. II - Mortificação da Própria Vontade Procura fazer não a tua, mas a vontade dos teus superiores; não escolhas empregos, ocupações; deixa a escolha às pessoas que te conduzem. Quando te sentires levado por uma certa tendência interior a fazer uma coisa, e a que tua vontade ali está toda, toda, mortifica-te, ou não a fazendo ou diferindo-a por algum tempo. Para longe de ti todo o pensamento de independência; persuade-te bem, que melhor, mil vezes melhor é obedecer que mandar. III - Mortificação do Amor Próprio Quem não mortifica o seu amor próprio não se ocupa senão de si, não obra senão para si. Está todo repleto de uma alta opinião de si mesmo, lá para si tudo nele são qualidades ótimas, tudo dele falia, tudo nele pensa. Estima-se tanto e mais que os outros, só o que ele faz é que está bem feito. Em tudo se mete, em tudo quer ter parte, de tudo quer ser autor. Sente as maiores dificuldades em submeter-se a outrem, de obediência só gosta dela nos mais, ninguém o pode contradizer, tudo o que quer, há de se fazer, imagina ter grandes talentos para mandar, porque tem disso vontade. Se lhe dão louvores todo se ufana, nada esquece para os granjear, tendo todavia um grande cuidado em ocultar este desejo. Não pode ver louvar os mais; não obstante, uma vez por outra também os louva, mas é por lisonja ou interesse particular que ele o faz. Como o mais que teme é o ser desprezado, oculta quanto pode as suas imperfeições. Em tudo procura as suas maiores comodidades, do incomodo dos outros não se lhe dá. Em suas penas tem de si mesmo grande ternura e compaixão, é duro e cruel para com as dos seus irmãos. Examina, meu caro Teótimo, por estes sinais, se hás feito algum progresso na mortificação do teu amor próprio, e toma a resolução de lhe fazer guerra de morte. IV - Mortificação das paixões A primeira a atacar é a tua paixão dominante; esta submetida, todas as outras ir-se-ão amainando como de si mesmas. Tem cuidado que não concedas a alguma de tuas paixões coisa alguma de que te peçam, por mínimas, por mais submissas que te pareçam; está sempre de sobre aviso a seu respeito, nunca te capacites que as tens já extinto, porque durante toda esta vida estão sempre a renascer e reaparecem de pé para a mão quando por mortas as tínhamos há muito tempo. Quanta coisa que é preciso fazer! Me dizes tu agora, que combates! Que angustias! Que cruz! É verdade, é, meu caro Teótimo, mas olha, esta vida é tão curta, o dia da recompensa já se avizinha, e é preciso muito cuidado e constantes esforços para se adquirir a virtude. - Mas é muito mais fadiga resistir aos vícios e paixões do que suportar as fadigas do corpo. - Isso também é verdade. Lembra-te todavia que se perseverares no fervor em combate tão difícil à natureza, hás de experimentar uma grande paz, e pela graça de Deus e amor à virtude já todo o trabalho te há de ser leve. E afinal, Deus e o céu sempre merecem que por ele soframos alguma coisa. Capítulo XVII - Amor que nos testemunhou Jesus Cristo instituindo a Santa Eucaristia para nutrir e consolar nossa alma - "Sabendo Jesus que era cliogada a sua hora de passar d'este mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13,1). - "Tomai e comei, este é o meu Corpo" (Mt 26,26). É no momento da morte quando urge separar-se das pessoas amadas, que cresce e redobra o afeto dos verdadeiros amigos; é então que mais que nunca procuram dar-lhe as ultimas lembranças do seu amor. Em todo o curso da sua vida mortal nunca Jesus cessara de nos dar testemunhos da sua ternura; por mil e mil maneiras nos mostrara quanto sabe amar-nos; mas chegada que foi a hora de voltar para o seu eterno Pai, não contente com o que por amor nosso já operara, não contente com derramar até à ultima gota de sangue, quis fazer mais ainda, quis deixar-nos mais extremosa prova do seu ardente amor para conosco. Prova mais extremosa!... Pois que! É possível dar mais que a vida para provar que se ama?... Ah! O que a nós é impossível, não o é à ternura de um Deus. Escutemos. Era numa quinta-feira à tarde. Jesus depois de haver comido a ultima páscoa com os seus apóstolos, acaba de lhes lavar os pés; eles estavam ainda todos fora de si a um tão inaudito exemplo de humildade do seu bom Mestre. Sem duvida guardavam um religioso silencio; sem duvida anteviam que algum grande mistério ia realizar-se; sem duvida, se eles estavam atentos, divisavam no rosto do Salvador o que quer que é de maior, mais majestoso, mais divino ainda que de ordinário... "Jesus tomou o pão, elevou ao céu os olhos banhados em lágrimas e dando graças a Deus, seu Pai, benzeu este pão, partiu-o e deu-o a seus discípulos, dizendo: 'Tomai e comei, este é o meu corpo.'" Ó prodígio! Pronunciadas que foram estas palavras, para logo o pão foi realmente mudado; já não foi mais pão, mas Jesus Cristo mesmo; Jesus Cristo, delicia dos bem-aventurados, terror dos demônios, Salvador do mundo; Jesus Cristo "constituído juiz dos vivos e dos mortos"; Jesus Cristo "a cujo nome se dobra todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e nos infernos". Meu doce Salvador, consenti à vossa pobre criatura que vos pergunte qual é o fim que vos propuseste ocultando assim a vossa divindade e humanidade sob as vis aparências de um bocado de pão. Assas vos não rebaixastes vós já na encarnação, descendo do alto dos céus para vos revestirdes da nossa natureza humana, e, à exceção do pecado, de todas as misérias que são seu triste apanágio? - É tão grande o amor que tenho a todos os homens, tão grande o que a ti mesmo, meu filho, consagro, que não pude resolver-me a vos deixar órfãos sobre a terra. Como era de interesse vosso que eu voltasse para o céu afim de ai vos aparelhar um lugar, em antes de deixar-vos chamei em socorro da minha ternura todo o meu poder, e descobri este meio de sempre estar aqui convosco, conservando-me ao mesmo tempo sentado à mão direita de Deus Pai. Sim, até à consumação dos séculos continuamente estarei convosco para ser este o vosso arrimo, a vossa consolação, o sustento de vossas almas. Em quanto sobre a terra correr uma só gota de sangue de Adão, sempre nele me terá preso o amor, sempre direi a quem me quiser ouvir: "Vinde, vinde, e comei o pão que vos preparei; bebei o vinho que para vós derramei." Vinde a mim, ó vós que tendes fome e sede de justiça; ó vós que buscais a paz e felicidade; ó vós que tendes necessidade de amar, vinde e eu vos saciarei: "tomai, comei, este é o meu corpo", o corpo do vosso Deus, o corpo do vosso melhor amigo. Ó bom Jesus! Não era assas para nos provar o vosso amor, haverdes-nos vós tirado do nada haverdes-nos criado à vossa imagem, haverdes-nos resgatado a preço do vosso sangue? Era preciso ainda que, pródigo de vós mesmo, vos désseis a nós em nutrição? Que! Exclama São Boaventura, o meu Deus tornou-se o meu sustento! O Verbo eterno, a sabedoria do Pai quis fazer-se refeição da minha alma! Aquele a quem os anjos só tremendo olham, aquele cujo fulgor e majestade não podem suster, ei-lo que desce ao meu coração para a mim se unir pelos mais íntimos laços! Coisa admirável! a pobre e misera criatura nutre-se do corpo do seu Criador! Ó dulcíssimo Jesus! sempre permiti que vo-lo diga, o vosso amor para convosco levou-nos fora de todas as medidas; pois "quem é o homem para que assim vos queirais ocupar dele com tanta solicitude?" Todo o homem vivente é outra coisa mais que vaidade, cinza e pó? E apesar de tudo isto, vós, ó meu Deus! ainda vos dignais lançar sobre ele olhos de bondade, ainda chegais mesmo a convida-lo para a vossa mesa e nutri-lo de vosso adorabilíssimo corpo! Ah! Deixai-me que vos repita com muitos de vossos fieis servos: vós levastes o amor para conosco até à loucura? Em verdade, em verdade, Senhor, um excesso destes não era para a vossa Majestade... Assim é, filho meu; mas o amor quando quer fazer bem e comunicar-se ao amado não olha ao que convém. Vai não aonde o chama a razão, mas aonde o ardor o arrasta. Por isso é que olvidando o cuidado da minha própria gloria me encerrei na humilde aparência de um bocado de pão afim de ser a nutrição da tua alma. Ai! que seria dessa tua pobre alma, tão fraca, tão frágil, tão propensa ao mal; que havia de ser dela se a eu tivera amado menos e se a ela me não dera todo no sacramento do meu amor? Ó meu Jesus! A vossa ternura para comigo cobre-me de vergonha e confusão à vista da minha ingratidão. Ah! Fazei-me a graça de vos não ser mais ingrato; abrasai o meu coração das vossas santas chamas, mas com tanta violência que eu esqueça o mundo, esqueça a mim mesmo e só pense em amar-vos e agradar-vos. A vós consagro corpo, alma, vontade, liberdade, a mim todo. Se no passado procurei a minha satisfação e isto com mil desgostos vossos, hoje me arrependo soberanamente, ó meu amor! Para o futuro nenhuma outra coisa quero procurar senão a vós. Ó meu Deus! Vós sois o meu tudo, Deus meus et omnia; só a vós quero e a nada mais. Oh! não poder eu consumir-me de amor por vós como vós vos consumistes todo por mim! Amo-vos, ó meu único bem, meu único amor; amo-vos e todo me abandono à vossa santa vontade; fazei que sempre vos ame e de cada vez mais até o meu ultimo suspiro. "O que come, diz o nosso divino Salvador, o que come a minha carne e bebe o meu sangue está em mim e eu nele." Que felicidade possuir em nosso coração um tal hospede! Que dita para uma alma que na santa comunhão o recebeu expor-lhe as suas necessidades, as suas misérias, repartir com ele das suas esperanças e temores, e dizer-lhe o seu amor! que ventura poder mostrar-lhe as suas chagas e pedir-lhe o remédio para elas! Esta felicidade a hei eu tido muitas vezes; e como me tenho aproveitado? Com que fé, com que humildade me aproximo do meu Deus no sacramento do seu amor? que disposições levo à santa comunhão? Uma só comunhão bem feita basta para do maior pecador fazer o maior santo!... E eu sou melhor, eu? Estou mais perfeito depois de tantas comunhões? Que faltas corrigi? Que virtudes adquiri ou aumentei? A comungar todos os meses, todos os oito dias, todos os dias talvez, e passar uma vida sempre tão imperfeita, sempre tão imortificada, sempre tão dissipada, que horror! A receber tantas e tantas vezes um Deus humilhado, aniquilado por meu amor e estar sempre cheio de orgulho, cheio de vaidade, cheio de amor próprio, que vergonha! Ó Senhor Jesus! Instantemente vos peço não me trateis como mereço. Ai! se fordes a examinar uma por uma as minhas iniquidades, as minhas ingratidões, as minhas irreverências para com o sacramento da vossa ternura, poderei eu com um tal exame? Não, meu Deus, não; confesso que "me seria impossível responder uma só palavra por mil". Tão pouco tentarei justificar a tibieza com que na santa comunhão vos hei recebido, pois eu sei que se "pretendesse mostrar que sou inocente, vós me convenceríeis no mesmo instante da minha mentira e loucura". Antes quero confessar-vos, ó doce Salvador da minha alma, antes quero confessar-vos a minha falta e chora-la diante de vós! Sim, sou inescusável. Oh! tantas vezes me hei nutrido do meu Deus, e ainda sou tépido no seu serviço, tão pouco sensível ao seu amor! tantas vezes recebi o Deus de toda a pureza e santidade, e sempre me acho ascorosamente coberto das ulceras de mil pecados, mil imperfeições! Ó céu! Devia, segundo São João Crisóstomo, devia ser ao sair da santa mesa semelhante a um leão, respirando fogo do divino amor; devia ser um objeto de terror e assombro às potências infernais, e por uma espécie de milagre diabólico fico depois da comunhão tão frio, tão imortificado como de antes... Ó meu Deus! Que conta vos hei de eu dar no grande dia do vosso juízo? Que escusa poderei alegar quando diante dos olhos me puserdes de um lado as graças que de uma só comunhão podia tirar, de outro as inúmeras faltas de que, apesar disso, me tornei culpável? Vós estareis lá, vós, meu Jesus; ante vós é que me verei apresentado. Mas ai! Não sereis já o esposo da minha alma, mas o seu juiz; não mais um cordeiro cheio de doçura, mas um leão justamente irritado... Oh! Que exprobrações tão severas me dirigireis vós então?... Agora que fazer? Desesperar? Abandonar a santa comunhão? Não seguramente. Mas preparar-me-ei para ela com mais cuidado; levarei mais recolhimento, mais humildade, mais amor; farei ao meu Deus todos os sacrifícios que me pede; abandonar-me-ei em tudo mais à sua misericórdia. Sim, doce Jesus meu! É nos braços da vossa misericórdia que quero lançar-me; é no vosso coração que quero refugiar-me. Muito vos hei ofendido desde que estou sobre a terra; muitas amarguras vos causei; como novo filho pródigo, muitas e muitas lágrimas vos hei feito derramar pela minha fuga e desvarios; ingrato e desnaturado, como ao meu mais cruel inimigo vos hei tratado, e eis que vós consentis ainda em receber-me em o numero dos vossos filhos, ainda me ordenais que me sente à vossa mesa. Ai! Talvez eu tenha abusado de tão assinalado favor, talvez de vossos próprios benefícios me haja servido para ofender-vos! Ó bom Jesus! Se cai na desgraça de a tal ponto vos ultrajar, perdoai a este coração contrito, perdoai-lhe tudo; e pois que por um excesso de amor para comigo, me permitis que frequentemente vos receba na miserável casa do meu coração, fazei-me a graça de vos receber doravante com um ardente amor, e um pesar sincero de tão mal vos ter servido. Possa eu, ó meu bom Mestre, meu terno irmão, meu melhor amigo, minha esperança! Possa eu para o futuro reparar por meu fervor todas as angustias que por minhas tíbias comunhões vos causei! O' meu doce Jesus, ouvi o meu desejo e tende de mim piedade. Amo-vos e quero amar-vos sempre, sempre, sempre! Amo-vos porque sois bom, amo-vos porque mereceis todo o meu amor. Amo-vos por causa de vossas infinitas perfeições, amo-vos por vós mesmo. "E eis aqui que eu estarei convosco todos os dias até à consumação dos séculos." Esta foi a promessa de nosso Senhor aos seus apóstolos quando voltava ao céu, e não foi feita em vão. Dezoito séculos há já que este bom pastor não deixa as suas ovelhas, por elas se impor a obrigação de descer do céu à voz dos seus padres, por elas se submeteu aos desprezos, às irreverências, aos ultrajes dos ímpios, ao esquecimento e abandono dos maus cristãos. Durante sua vida mortal, Jesus Cristo só na Judeia habitava, a poucos era dado vê-lo e ouvi-lo: já assim não é hoje; nada mais tenho que entrar numa Igreja católica que lá acharei o meu Deus. Está encerrado em nossos tabernáculos, ai! Às vezes bem podres, bem pouco dignos de quem contém. Está para ali só, abandonado, ninguém pensa em o ir visitar; ninguém se dá ao cuidado de lhe ir agradecer o seu amor. Ali está, ali me espera para sobre mim derramar as mais abundantes graças, para me dar o seu amor!... Oh! Feliz da alma que tem a fidelidade de amiúde o visitar no sacramento do altar! feliz da alma que lhe vai expor as suas misérias! Oh! Que tão doces lágrimas as de um pecador ao pés de Jesus ao recordar-se das suas faltas passadas! Repito-o e incessantemente o repetirei; Feliz, mil vezes feliz, a alma que não deixa passar dia, tendo para isso comodidade, em que não visite este Deus de amor! Por um quarto de hora de oração diante do Santíssimo Sacramento obterá muitas vezes mais do que alcançou em todo o dia com todos os exercícios espirituais. Ó Jesus, ao considerar na ternura que vós me mostrais ficando no sacramento da Eucaristia para nos consolar nesta terra de dor e exílio, eu fico fora de mim mesmo; faltam-me expressões para dizer o que sinto e córo de vergonha por tão pouco vos ter amado, por me não haver ainda consumido do vosso amor. A qualquer hora do dia ou da noite que me apresente numa Igreja, lá vos encontro disposto sempre a escutar e atender as minhas orações. No meio de nós habitais como um nosso igual; de tão boa vontade morais na mais pequena aldeia coma na mais populosa cidade. Está alguma de vossas ovelha na aflição, lá ides vós a toda a pressa oferecer-lhe consolações. Está estendida no leito de dor, ides vós mesmo procura-la e partilhar os seus sofrimentos. Está a dar o ultimo suspiro, correis instantaneamente para o pé dela, a anima-la a fazer o sacrifício da sua vida e com a vossa presença lhe suavizais os horrores da morte. Ó Jesus, quão inefável é o vosso amor para com os homens! quando, pois, de nossa parte vos pagaremos? Quando vos amaremos como é justo que vos amemos? Concedei-nos a todos esta graça, ó doce Salvador! mas particularmente a mira que de todos sou mais necessitado. Fiat, fiat! Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Hoje, meu caro Teótimo, deves tomar três resoluções da mais alta importância e ser-lhe para o diante muitíssimo fiel. 1 - Todas as vezes que tiveres a dita de comungar prepara-te para esta tão grande ação como farias se imediatamente depois houveras de morrer. Lê de tempos a tempos a curta instrução que precede os atos para antes e depois da comunhão, e que acharás no fim deste livro. 2 - Contrai o santo habito de fazer o que se chama comunhão espiritual; consiste ei-la em desejar receber a Jesus Cristo em nosso coração e entreter-nos familiarmente com ele como se realmente o recebemos. Abundantíssimas são as graças que uma tão simples como fácil pratica consigo traz. Pode-se repetir no dia quantas vezes se deseje. 3 - Sempre que possas vai visitar todos os dias nosso Senhor no Sacramento do seu amor. No fim deste livro acharás a pratica de visita ao Santíssimo Sacramento. Faze dela bom e frequente uso que incalculáveis são as vantagens que podes auferir. Se és rico, sugerir-te-ei eu ainda uma prática que mui agradável será ao coração de Nosso Senhor. Raro não é, e sobretudo no campo, encontrar Igrejas pobres que quase não possuem uma única peça de linho que esteja boa para o serviço dos altares; daqui vem que muitas vezes o corpo do nosso bom Senhor repousa em corporais de grossa tela, às vezes rotos e já usados. Meu caro Teótimo, pelo amor deste terno amigo das nossas almas impõe-te algum sacrifício e faze com que ao menos repouse sobre corporais decentes e menos indignos dele. Porque não hás de fazer, tu que és rico, o que fazem tantas mulheres pobres que se dão a toda a sorte de fadigas por muitos anos afim de poderem comprar uma toalha do altar, castiçais limpos, purificatórios, corporais, etc.? Que admiráveis exemplos destes poderia eu citar-te agora! Perdão, meu caro Teótimo, se desço a estas miudezas; quando se trata do serviço e honra de nosso Deus nada é pequeno. Capítulo XVIII - Tristezas de Nosso Senhor no Jardim das Oliveiras, seu suor de sangue, sua resignação à vontade de Deus - "A minha alma está numa tristeza mortal" (Mt 26,38). Começa aqui o cruento curso da paixão do nosso divino Salvador; agora é que nós vamos ver este bom Mestre vitima de anil e mil tormentos por nosso amor. Depois de haver instituído o sacramento da Eucaristia, depois de haver dado aos seus apóstolos as ultimas instruções, Jesus, a quem agora neste mundo só restava sofrer e morrer, "foi, como costumava, para a outra banda do Ribeiro de Cedron, ao monte das Oliveiras, a um lugar chamado Getsemani, onde havia um horto no qual entrou ele e seus discípulos". Como chegava o momento do combate, quis para nossa instrução preparar-se para ele com a oração. "Disse, pois, a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto eu vou acolá e oro; orai também vós para que não entreis em tentação. E levou consigo Pedro, Thiago e João." Mas mal chegou ao lugar mais retirado do horto, "começou a ter pavor, e a angustiar-se em extremo", e esta angustia foi tanto além, que ele, que nunca se queixou de nada, ele que tanto ansiava sofrer, julgou dever dizer a seus discípulos: "A minha alma acha-se numa tristeza mortal"... Depois de lhes haver feito esta confidencia, deixou-os, adiantou-se um pouco, e se põe pela segunda vez a orar. Mas ai! Sua tristeza, seus temores, suas agonias iam sempre em aumento, e tão violentos foram esses combates que teve de sustentar, que "um suor de sangue correu de todo o seu corpo". Dir-se-ia que a divindade o abandonara: assim é que a violência de sua tristeza e de seus temores o fez cair em uma agonia mortal. Mas não fostes vós, Senhor, que aos vossos mártires destes essa tão grande alegria nos sofrimentos que os fazia encarar com desprezo os tormentos e a mesma morte? Santa Agueda caminhava para o cárcere e para a morte como se fosse para um festim de casamento. São Tiburcio caminhava sobre os carvões como sobre flores. Santo André bem não avistara ainda a cruz que devia ser o instrumento do seu suplício, num excesso de consolação e alegria prorrompe nestas palavras: "Ó Cruz! Cruz honrada e consagrada pelo corpo adorável do meu salvador! ó boa e preciosa cruz! Tu há tanto tempo por mim desejada, tu a quem tão ardentemente amei, tão continuadamente procurei, finalmente sempre te achei! satisfeitos estão meus votos! A ti eu venho inundado de alegria e viva confiança; oh! Tira-me deste desgraçado mundo e restitui-me a meu querido mestre Jesus Cristo e de braços abertos me receba, pois por ti foi que me remiu." Como ao cabo de dois dias em que ainda estava vivo o quisessem tirar da cruz, exclamou: "Não permitais, Senhor, que daqui me despreguem, nem que eu receba a humilhação de morrer fora da cruz." Em martírio era São Vicente atormentado no cavalete, dilacerado com unhas de ferro, queimado com laminas de fogo; e no meio de tantos tormentos tal era a firmeza com que ao tirano falava, que, como refere Santo Agostinho, um parecia ser Vicente que sofria, outro o que falava. Enquanto São Lourenço ardia estendido em grelhas, mais potente era para consolar sua alma, diz São Leão, o fogo divino, que o exterior para consumir seu corpo. E assim dizia ao tirano: "Se quiseres, podes comer a minha carne, já está assada, pega e come." Eis, ó Jesus meu, como com a doçura do vosso amor vós sabeis fortificar os mártires no meio dos seus combates, e para vós, para vós só fraqueza e temores! aos vossos servos dais uma alegria assim no meio dos seus tormentos, e vós nos vossos só tendes por quinhão uma tal tristeza? - Ah! Filho meu, se eu chorei, se tremi, se me vi comprimido, de tão violenta tristeza no jardim das Oliveiras, foi por amor de ti e para tua consolação. Se tão vivo terror me causou a vista da morte ignominiosa que me esperava, é porque quis mostrar-te que havia tomado sobre mim todas as fraquezas dos homens, e que para mim como por eles tinha a morte seus horrores. Mas ai! Muitos outros motivos de tristeza tive eu para estar triste até à morte. Em primeiro lugar vi-me sobrecarregado com os pecados de todos os homens. Oh! Quem poderá dizer o numero destes pecados! E eu via-os todos, todos distintamente; nem um só me escapava. Conhecia claramente toda a sua malignidade, sabia que injuria fazem a Deus e que horror lhe inspiram. E com este enorme peso de todos os pecados que se cometeram e hão de cmmetter é que eu apareci diante de meu Pai! A confusão que experimentei foi tão grande e a dor que de tantos pecados concebi tão excessiva, que para eu não morrer foi necessário um milagre, da minha onipotência. Se tu, meu filho, compreenderas a santidade de Deus e a fealdade do pecado, já não te espantarias das minhas tristezas e conhecerias como foi possível que do meu corpo emanasse uma abundante fonte de sangue. - Então, Senhor, também eu contribui por minhas iniquidades a aumentar vossa tristeza? Carregastes também com o peso dos meus pecados? - Sim, meu filho, esse prazer que tu tanto desejavas, tanto procuravas, e por infelicidade achaste nos pecados da vida passada, é o que penetrou minha alma duma dor mortal, é o que me causou este suor de sangue, é o que me reduziu a esta cruel agonia. E que, meu filho, quem agora te suplica sou eu, eu, o teu Deus e teu irmão; poderás amar ainda o prazer? E procurarás renovar mais ainda as minhas dores? - Ai! Senhor, eu me lanço aos vossos pés, confuso, humilhado e aniquilado; confesso-vos a minha ingratidão e perfídia; concedei-me o perdão. Ah! foram os meus malditos pecados os que, cada um em particular, oprimiram o vosso coração de angustia e tristeza. Esta é a recompensa que dei ao amor que me testemunhastes morrendo por mim? Ó meu Deus, fazei-me participar dessa dor que no jardim das Oliveiras sentistes por meus pecados, afim de que toda a minha vida esta dor me conserve na compunção. Meu doce Redentor! possa eu por meu pesar e minha dor consolar-vos para o futuro tanto quanto até ao presente vos afligi! De todo o meu coração me arrependo de vos haver preferido miseráveis satisfações; arrependo-me e vos amo mais que toda qualquer outra coisa. Sim, amo-vos de todo o meu coração, de toda a minha alma: mas ainda não é assas. Dai-me, pois, o amor que de mim desejais; todos os dias de mais em mais me atrai ao vosso amor pelo odor dos vossos perfumes, que são as doces inspirações da vossa graça e fazei que persevere no vosso serviço até ao meu ultimo suspiro. "A minha alma está de uma tristeza mortal." O que sobre tudo causava a Jesus esta tristeza era o ver a inutilidade dos seus trabalhos, dos seus sofrimentos e da sua morte para a maior parte dos homens. Já no inferno ardia uma infinita multidão deles, bem que de antemão lhe fossem aplicados os frutos da sua morte; previa que outros muitos, no cristianismo mesmo, com tantas graças não deixariam de lá cair. Via que o numero dos eleitos havia de ser extremamente pequeno, que o serviriam como escravos, que depois de tantos e tantos sinais de amor, ainda o ofenderiam; que para o servir não fariam senão o que precisamente é de preceito e isto pelo simples temor de se condenarem; todo isto ele via e, como a seu pesar, caia no abatimento. No meio de tantas penas interiores, onde foi Jesus Cristo procurar alivio? Em seu Pai e só em seu Pai, em nenhuma outra coisa mais. Oh! e que belo exemplo nos não deixou ele! "O nosso divino Salvador, diz o padre Judde, deixa à entrada do Jardim a multidão dos seus discípulos." Para que tantas testemunhas e tantos confidentes de nossas penas? É fatiga-los, incomoda-los; eles também têm como nós as suas cruzes, se não é hoje, é outro dia; neles não é pois o procurar a consolação. Depois de alguns momentos de suspensão e efusão com eles, tornamo-nos a nós mesmos aflitos como de antes e carregados dos remorsos de muitas faltas novas. "Jesus Cristo leva consigo três discípulos." Nas nossas interiores aflições podemos ir ter com algum amigo melhor e dizer-lhe: Dá-me um conselho e ora por mim, eu te peço isto; assim é procurar a Deus no homem, recorrer a amigos imperfeitos é procurar o mundo. "Ao cabo de um momento Jesus Cristo deixa estes mesmos três amigos." A consolação a principio tomada só com a vista em Deus poder-se-ia tomar natural se por muito tempo a prolongássemos. Tomemos pois depressa a Deus. "Mas qual era a sua oração?" Prostrado por terra ou para melhor notar seu respeito, ou por não ter força para suster-se. "Pai meu", dizia, "se é possível, passe de mim este cálice; todavia não se faça nisto a minha vontade, mas sim a tua". Que belo sentimento! Quão digno do Filho de Deus e dos imitadores do Filho de Deus! Não, não há nada mais divino do que o sofrer com tal resignação tantas repugnâncias. Se Jesus Cristo menos custo tivera em submeter-se, diríamos: Não o posso imitar. Agora quando nos achamos na dor, gememos, derramamos nosso coração diante de Deus; é-nos isto permitido, mas sempre estejamos resignados. "A oração de Jesus foi curta: "Pai meu, passe de mim este cálice, se é possível; faça-se, todavia, a vossa vontade e não a minha." Por mais aflitos que estejamos, estivéssemos nós mesmos a morrer, podemos dizer outro tanto. "Jesus repetiu três vezes esta mesma súplica enquanto sua aflição durou, e até que chegou o anjo para o confortar." Imitemo-lo. Nada se obtém senão pela perseverança. "Sua oração foi terna: "Meu Pai"!" Ah! Ele é o nosso Pai, embora nos aflija. Que faça, pois, como lhe aprouver, eu só temo os golpes de um juiz irritado. "Sua oração foi condicional: "Livrai-me, se é possível, se julgais conveniente." Se falasse a um outro que não a seu Pai, diria absolutamente: "Livrai-me da morte." Mas fala de outro modo: Meu Pai conhece melhor que eu o que me convém, ele pode tudo, ama-me, que me trate pois com rigor, se esta é a sua vontade: Savit quantum vult: Pater est. Todos nós, quem quer que sejamos, quantas vezes no decurso da nossa vida, ai! Não teremos a necessidade de praticar estas importantes lições? "Vamo-nos a Deus: nele tudo se acha; mas ainda uma vez, não vamos senão a Deus, ou aos amigos de Deus." Esta mesma resolução tomo eu aos vossos pés, ó meu Salvador. Quando vos aprouver enviar-me alguma cruz, alguma aflição, é a vós que eu quero recorrer, é junto de vós que me quero ir consolar. Sois o meu mestre e o meu melhor amigo: possa, pois, em tudo abandonar-me a vós. Feri, ó Jesus meu, feri esta vida culpável que por tantas vezes mereceu o inferno, e "fazei de mim tudo o que parecer bom aos vossos olhos"; pronto está o meu coração, disposto está a receber da vossa mão a adversidade como a prosperidade. Eis-me diante de vós, à vossa misericórdia me abandono, entre vossas mãos me lanço, porque sei que tudo quanto de mim fizerdes só pode ser bom. Se quereis que eu esteja em trevas, sejais bendito; se vos apraz que esteja em luz, sejais bendito; se vos dignais consolar-me, sejais bendito; se consentis que experimente tribulações, bendito sejais também. Por vós sofrerei de bom grado tudo quanto quiserdes que sobre mim venha. De vossa mão quero indiferentemente receber a bem e o mal, as doçuras e amarguras, a alegria e a tristeza, e de tudo isto que me acontecer dar-vos graças. - Preservai-me para sempre do pecado, e eu já não temerei a morte nem o inferno. Com tanto que me não rejeiteis nem me risqueis do livro da vida, nenhuma tribulação me pode fazer mal. Uma vez que vos ame, tudo o mais me é indiferente. Ó doce Jesus! dai-me o vosso amor e a graça de morrer dizendo: Amo-vos, meu Jesus, amo-vos e submeto-me à vossa santa vontade. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Submissão à Vontade de Deus Fazer a vontade de Deus, esta é a santidade, esta a perfeição; tudo o mais não é senão ilusão. Aprende, pois, a submeter-te a esta vontade santa. 1 - Na saúde ou na doença; estás enfermo, deitado em teu leito, dize: "Ó meu Deus, assim o quero também eu." 2 - Nas consolações interiores ou nas desolações: "Melhor sabe Deus o que à minha alma convém." 3 - Na pobreza ou riqueza; és rico, deves saber que as riquezas andam muitas vezes acompanhadas de angustias, que muitas vezes são um peso insuportável, e que te expõem a numerosos perigos; submete-te, pois, à vontade de Deus que julgou bem fazer-te, não senhor e possuidor, mas simplesmente depositário dos tesouros que recebeste para os pobres e para ti mesmo. Se és pobre submete-te de toda a boa vontade às privações do teu estado; Deus é que assim o quer. Frio, calor, sede, trabalho, fadiga, suores, desprezos e desdéns da parte dos ricos é o quinhão dos pobres; aos olhos do mundo, partilha mui infeliz, não assim aos da fé. Ó meu Deus! Que méritos não se podem ganhar, quando, no seio da pobreza e de suas inumeráveis privações, se diz do fundo do coração: "Senhor, seja feita a vossa vontade!" 4 - Submete-te ainda à vontade de Deus no tocante às estações: nunca murmures porque chove muitas vezes, porque a seca faz perecer tuas searas, etc. Todos estes murmúrios nada mudam a ordem das coisas; o muito que podem fazer é ofender a Deus. Resigna-te enfim com a vontade de Deus no que te diz respeito; contenta-te da saúde, talentos, vantagens do corpo e espírito, virtudes, santidade que mais aprouve a Deus conceder-te, e nisto como em tudo o mais, dize sempre: "Senhor, não quero mais nada senão o que vós quiserdes". Oração à Jesus Agonizante no Jardim das Oliveiras Para lhe pedir a Graça de uma Boa Morte Ó Jesus, meu Salvador! Peço-vos pela amarga dor que no jardim das Oliveiras penetrou vossa alma, que venhais em meu socorro, quando a minha alma, no momento de deixar este corpo, estiver cheia de terror à vista dos formidáveis juízos. Dignai-vos então fortificar-me pela esperança em vossa misericórdia, enviai-me vosso santo anjo para que me defenda contra os ataques e tentações do demônio. Que a virtude dos vossos sofrimentos me dê força para suportar a diuturnidade da doença e a violência das dores, sem murmuração, sem impaciência. Fazei que minha alma sempre esteja perfeitamente submissa à vossa vontade, e que por vosso amor aceite igualmente a saúde e a doença, a adversidade e a prosperidade, a morte e a vida, e incessantemente repita em todas as coisas: "Meu Deus, seja feita a vossa vontade e não a minha". Não vos peço, Senhor, que me envieis uma morte plácida, dores suportáveis, doenças leves; tudo isto deixo à vossa sabedoria, de tudo disponha ela, não segundo os meus desejos mas segundo as minhas necessidade e segundo me for mais útil. O que vos suplico, o que vos conjuro é que me concedais a graça de, em minha ultima enfermidade, receber todos os socorros da religião, e expirar dizendo do intimo do meu coração: Jesus e Maria, em vossas mãos me lanço; Jesus e Maria, amo-vos de todo o meu coração. Assim seja. Capítulo XIX - Jesus traído pelo pérfido Judas e preso como um ladrão - "Prenderam a Jesus e o manietaram" (Jo 18,12). O pérfido Judas decidira-se a trair Jesus. Acompanhado de uma multidão de soldados romanos e de criados armados de lanternas e varapaus dirigiu-se para o jardim das Oliveiras, onde sabia que seu divino Mestre ia orar à noite. De caminho disse à sua tropa: "Como não conheceis de vista a Jesus de Nazareth, notai aquele em quem eu der um beijo: esse é que deveis prender; mas conduzi-o com precaução e olhai não vos escape." O sinal e os conselhos eram dignos de Judas. Depois de medidas tão bem tomadas, entra no jardim; deixa a sua tropa a alguma distancia e reconhecendo Jesus, seu Salvador, corre a ele dizendo: "Eu te saúdo, Mestre", e lançando-se ao pescoço o beija. O Cordeiro de Deus não recusou este beijo, por ventura o mais cruel de todos os tormentos da sua paixão; mas como conhecia o desígnio deste desgraçado, a ver se ainda o ganhava e fazia cair em si mesmo, diz-lhe com uma doçura capaz de abrandar um tigre e converter um celarado ordinário: "Judas, pois é com um beijo que entregas o teu Mestre?" Depois destas palavras deu alguns passos para a tropa inimiga que o esperava e lhe diz: "A quem procurais? A Jesus de Nazaré, responderam. Eu sou, replicou Jesus. Podeis lançar mão de mim, pois eu sou a quem procurais; eu vo-lo permito, mas deixai estes, acrescentou, mostrando seus discípulos, e não os inquieteis." Ó amabilíssimo Jesus! Assim é que em toda a ocasião vós tomais a peito o mostrar-nos quanto nos amais. Vêm os vossos inimigos prender-vos e arrastar-vos à morte, e vós sem pensar nem em fugir nem em defender-vos, só dos vossos caros discípulos vos ocupais; contra vós permitis tudo aos inimigos, porém contra os que vos amam não lhes consentis a mínima coisa. Ó Jesus! Servir assim um Senhor como vós, que felicidade não é! Poder-se assim repousar sobre o vosso amor, de todos os cuidados que nos toquem, quão suave é! Não, doravante, meu Jesus, hei de ter em vós uma confiança sem limites; quero, quero abandonar-me a vós sem reserva. Vós sois o meu protetor e velais sem cessar sobre mim: quem poderá, pois, fazer-me tremer, ou de que poderei eu ter medo? Pois que! Um príncipe está cercado dos seu guardas c nada teme; um mortal guardado por outros mortais como ele, crê-se em seguro! E eu, eu que estou sob o cuidado do meu Deus, hei de tremer? Não, não. Ó Jesus, hei de ter sempre confiança em vós. Desencadeie-se contra mim todo o inferno, que eu sempre confiarei em vós. Convosco nada tenho a temer dos seus furores; pode ele tirar-me o que vós me destes? Em paz repousarei sempre no vosso seio e nele tomarei um repouso que nada me poderá perturbar. Entretanto os soldados arremessam-se sobre Jesus, amarram-no estreitamente com cordas e o arrastam com furor. Ó céus! Um Deus encadeado! Santos anjos do paraíso, que sentimentos foram os vossos ao ver o vosso Rei, de mãos ligadas atrás das costas, marchar no meio de soldados e atravessar assim neste estado as ruas de Jerusalém! E vós, ó Jesus! Como é que consentistes em ser preso pelos homens, a quem vós mesmo criaste, a quem acumulastes de tantos e tantos bens? "Quid tibi et vinculis?" exclama dolorosamente São Bernardo. Que querem dizer esses laços dos malvados em vós que sois uma bondade e majestade infinita? A nós, a nós, ingratos pecadores e condenados ao inferno, a nós é que são justamente devidos esses laços, e não a vós, Santo dos santos, e a inocência mesma... Mas, ó bom Jesus! Bem vos compreendo, sim; vós quisestes deixar-vos ligar como um escravo, para nos dar uma nova prova do vosso amor; quisestes sofrer esses tratos indignos para nos dar um admirável exemplo de doçura e para preencher esta profecia de Isaías: Foi sacrificado porque quis! Ó alma minha! Olha o teu Deus carregado de cadeias e arrastado por uma vil populaça a casa de Annaz e Caifaz. Lançam mão da sua sagrada pessoa, e ele não opõe a mínima resistência; algemam-lhe as mãos, e ele não diz palavra; os soldados em sua bruta impaciência empurram-no com dureza, arrastam-no cruelmente para o fazer andar mais depressa, e ele não deixa ouvir um queixume, não profere uma ameaça. Sempre a mesma calma, sempre a mesma doçura; é um cordeiro inocente levado para o matadouro; cala, sofre com humildade. Que belo modelo para mim! Ser-me há agora difícil ainda encadear a minha vontade própria para a submeter à dos meus superiores? Ser-me-á muito penoso ainda obedecer-lhes pontualmente; fazer, não o que me agrada, mas o que eles julgam conveniente que eu faça; ir, não onde eu quiser, mas aonde suas ordens me enviarem? suceder-me-á ainda mostrar-me difícil, talvez mesmo pouco submisso, amigo de dar as minhas razões, rebelde? Não, meu Deus, não; doravante obedecerei com mais perfeição, afim de vos ser mais agradável. Dignai-vos vir em socorro da minha fraqueza. Beijo, ó meu bom Jesus! Beijo essas cordas que vos atam; são elas que me libertaram das cadeias eternas por mim merecidas. Miserável de mim! quantas vezes renunciei à vossa amizade desonrando-vos com os meus pecados! Ah! Arrependo-me de todo o meu coração de vos ter feito esta injuria. Ó meu Deus! se assim vos ultrajei é porque preferi a minha à vossa vontade; maldita vontade própria! Ó Jesus, tomai essa vontade rebelde, toda vo-la dou. A vossos pés a prendei pelos doces laços do vosso amor, afim de que nenhuma outra coisa queira, senão o que vós quiserdes. Fazei que eu empregue tanto ardor em vos ser agradável quanto vós pondes em procurar a minha felicidade! Amo-vos, ó meu soberano bem! amo-vos, ó único objeto das minhas afeições! reconheço que só vós me heis amado verdadeiramente, e também a vós só é que eu quero amar. A tudo renuncio, só vós me bastais. Ah! Porque vos conheci eu tão tarde? Fazei-me a graça de reparar pelo fervor do meu amor todo o tempo que perdi amando as criaturas; fazei-me a graça de vos amar tanto como Santa Maria Madalena, como São Luiz Gonzaga; tanto, se possível fora como a Santíssima Virgem; fazei-me a graça de em vosso amor perseverar até ao meu ultimo suspiro. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Doçura A todos encanta esta virtude da doçura; tê-la é de mui poucos. Muitos dos que pretendem ter esta bela virtude, estão grosseiramente enganados; são cheios de doçura e mansidão, enquanto ninguém os ofende; mas se por desgraça alguém lhes vai tocar, pouco que seja, logo esta pretendida se esvai para dar lugar à cólera e ao ressentimento. Meu caro Teótimo, trabalha com coragem para não seres deste numero; tua doçura sempre seja a mesma em todas as circunstanciais. Que te desprezem, te insultem, te injuriem, nunca te deixes ir à cólera, mas segue sempre o conselho do Apóstolo: "dá bem por mal". Evita cuidadosamente toda a sorte de contestações e disputas; para o que condescende voluntariamente com os sentimentos dos outros e não os contradigas. Se às vezes o teu dever ou a tua caridade te obrigarem a contradizer a outrem, sempre seja com o maior comedimento. Sê sempre pronto em perdoar aos que te causam aflições e mostra-lhes sempre rosto alegre, aberto e risonho. Nunca repreendas rudemente a alguém, seja quem for, e não confundas uma sabia firmeza com o desabrimento e dureza. Não sejas desses espíritos singulares que à mínima bagatela, à mais ligeira graça que lhes é dirigida por um nada, logo se enfadam e irritam; mas acostuma-te a tomar por amor de Jesus Cristo, tudo à boa parte, a sorrir com bondade, até mesmo quando sentires elevar-se em teu coração a cólera. Numa palavra, é sempre bom, afável, complacente, cortês pronto a te incomodares para não incomodar os outros e lhes ser serviçal. Oh! Que feliz serias se possuirás esta bela virtude da doçura! Foi a virtude mais predileta do nosso Salvador. Provou quanto lhe era cara a doçura fazendo bem aos ingratos, respondendo com benevolência aos que o contradiziam, suportando, sem se queixar, as injurias e os maus tratos. Imita o seu exemplo, meu caro Teótimo, e não esqueças que mais mal nos causa o irritar-nos com estas injuras, do que elas mesmas nos fariam. Usa da doçura para com os outros; digo mais, usa-a para contigo mesmo. Muitos há que diz São Francisco de Sales, depois de haverem caído em alguma falta, indignam-se contra si mesmos, atormentam-se, e com isto tornam-se culpáveis de mil outras faltas. O demônio, diz São Luiz Gonzaga, em aguas turvas acha sempre que pescar. À vista de tuas quedas, de tuas misérias, de tuas imperfeições, olha não te perturbes, que esta perturbação o mais que pode vir é do orgulho e alta opinião que da tua virtude havias formado; humilha-te, pois; detesta sem paixão a tua falta e logo, logo recorre a Deus, só de sua bondade esperando socorro para não tornares a cair. Capítulo XX - Jesus recebe uma bofetada de um dos oficiais do Sumo Sacerdote - "Um dos quadrilheiros, que ali estava, deu uma bofetada em Jesus" (Jo 18,22). Acabava o nosso divino Salvador de ser apresentado a Caifás, que, como pontífice naquele ano, "lhe fez perguntas sobre seus discipulos e qual era a sua doutrina. Eu falei publicamente ao mundo, eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, aonde concorreram todos os judeus, e em oculto nada disse. Para que me perguntas? Pergunta àqueles que ouviram o que lhes falei: ei-los ai estão, sabem o que eu lhes ensinei". Digna era esta resposta da sabedoria mesma que a proferira. Mas não obstante, um dos quadrilheiros que ali se achava, vira-se para Jesus e com insolência lhe diz: "Assim respondes ao pontífice?". Dizendo isto lhe descarrega uma bofetada. Uma bofetada! Espíritos celestes, onde estais? Que fazeis, anjos Bem-aventurados! como podeis sofrer uma afronta destas ao vosso rei? Uma bofetada! Severamente devia ser punido o oficial que tal trato dera a Jesus; mas o pontífice aprovou, ao menos por seu silencio, ação tão bruta. A um tal desacato parece que a terra devia entreabrir-se para abismar este malvado; parece que Jesus devia fazer sentir a este, insolente que ele era o seu Deus; mas não. Jesus, abrasá-lo sempre do desejo de nos provar o seu amor e nos deixar salutares exemplos, sofre com toda a paciência esta afronta e se responde é só para evitar o escândalo, mostrando que não faltara ao respeito ao pontífice. Continuando Caifás no seu interrogatório perguntou a Jesus se verdadeiramente ele era o Filho de Deus. "Eu sou, respondeu Jesus. Então o príncipe dos sacerdotes rasgou as seus vestidos, dizendo: Blasfemou; e todos os assistentes exclamaram: Sim, blasfemou, é réu de morte." "Quando os juízes pronunciaram esta iníqua sentença de morte, foi o nosso divino Salvador deixado à guarda da criadagem e quadrilheiros", diz De Linig na Vida de Jesus Cristo. Estas almas venais teriam crido não servir bem aos seus senhores se se contentassem com o guardar, e julgaram que era para si um dever ultraja-lo. Começaram, pois, a cuspir-lhe no rosto, a fazer escárnio dele, ferindo-o. Vendaram-lhe os olhos e lhe davam na face e lhe perguntavam, dizendo: "Profetiza-nos, Cristo, quem é que te feriu?" "Nesta cena se passou o resto da noite, durante a qual Aquele a quem adoram os anjos, serviu de ludibrio a esta vil canalha. Na historia da paixão do Salvador não lemos que ele opusesse a tantos ultrajes uma só palavra, porque efetivamente ele não pronunciou nenhuma. Se nem sempre os Evangelistas no-lo dizem formalmente, asseguram-no-lo os profetas, e este milagre de paciência por ninguém é contradito. Mas o que mais ainda o faz sobressair, e que já aqui notaremos por tudo o que no curso de sua paixão o Salvador padeceu, é que não houve sofrimento que por ele não fosse sentido quanto podia sê-lo. Não falamos somente das suas dores corporais a que tão sensível o fazia a perfeita compleição do seu corpo; tudo o que o desprezo tem de humilhante, o que as decisões têm de insultante, o que as injurias têm de ultrajante, o que as afrontas que recebeu têm de revoltante, tudo ele sentiu até ao âmago da alma; esgotou-lhe toda a amargura, de tudo isto foi sobre todo o modo saturado, segundo o que dele estava escrito, que seria saciado de opróbrios. Por aqui se pode julgar o quanto teve que sofrer nesta noite, da qual a só recordação produz nas almas piedosas uma compaixão tão viva e lágrimas tão abundantes. Também São Jerônimo pensa que todas as penas e todos os insultos que Jesus sofreu nesta noite só no dia do juízo poderão ser conhecidos. Ó meu Jesus! Quando por amor de mim vos vejo sofrer os mais indignos tratos, não tenho bem motivo de corar de vergonha, sentindo-me tão fraco ainda, tão covarde, tão pusilânime, quando se trata de sofrer por vós as mais pequenas afrontas, os mais leves insultos? Diante de vós tudo são resoluções, tudo propósitos de emenda; mas à primeira palavra, por pouco injuriosa, perturbo-me e reconheço que sou muito mais fraco do que pensava. Ah! bom Jesus! a vós recorro; dignai-vos ensinar-me a receber com calma e até mesmo com alegria todas as injurias, contradições e mau trato de que eu possa ser alvo. Ensinai-me a nunca me defender com palavras duras e que respirem azedume, mas a vencer polo silencio os maus procederes dos outros para comigo; ou se a caridade me ordenar que fale, fazei-me a graça de eu responder aos meus adversários com uma doçura c mansidão capazes de os apaziguar e de lhes ganhar o coração. Ó meu Salvador! dai-me a paciência, a humildade, mas acima de tudo o vosso santo amor. Com vosso amor, ó Jesus! eu tudo o mais possuirei; não m'o recuseis pois, para que eu possa chegar a dizer-vos em toda a verdade: Meu Deus, eu vos amo. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Doçura Falemos ainda hoje da doçura. Constitui-a essencialmente a paciência em suportar os desprezos e humilhações. A maior parte, diz São Francisco de Assis, faz consistir a sua santidade em recitar numerosas orações, em mortificar os sentidos, mas coisa de sofrer palavras ultrajantes, nem uma; não compreendem que de suportar uma afronta sem cólera vem mais mérito, do que se poderia tirar de dez dias de jejum a pão e água. Três são as coisas, diz São Bernardo, que deve fazer por adquirir quem tende à santidade: 1 - Não procurar dominar; 2 - A sujeitar-se a todos da melhor vontade; 3 - Suportar pacientemente as injurias. Que te recusem por exemplo, meu caro Teótimo, o que aos outros concedem; que se escutem seus discursos, ao passo que os teus sejam acolhidos com escárnio; que tudo para os mais sejam elogios, honoríficos empregos, funções importantes, e para ti não haja mais que indiferença, olvido, injustiça e mofa; então sim, então é que verdadeiramente serás humilde de coração, se com serenidade e resignação receberes todas estas coisas, e deres por isso muitas graças a Nosso Senhor. O que tu deves fazer neste momento de luta interior é não te agastares nada e aceitares todos estes desprezos como a justa punição dos teus crimes. Muito mais merecia quem ofendeu a Deus; merecia até mesmo ser calcado aos pés dos demônios. Sobretudo, meu caro Teótimo, nunca te irrites quando te repreenderem de alguma falta ou defeito. Os soberbos, diz o B. Rodrigues, quando alguém os repreende, fazem como os ouriços cacheiros, que apenas alguém os toca, logo eriçam seus agudos dardos, isto é, enfurecem-se, todos se desfazem em queixumes, em exprobrações, em imprecações. Ao contrario, os humildes humilham-se mais, confessam suas fraquezas, bendizem quem os repreende e não se irritam. Ah! quem não pode sem se perturbar receber uma injuria mostra bem que está sob o império do orgulho. Meu caro Teótimo, afim de obteres estas duas virtudes da doçura e humildade, dize muitas vezes a Nosso Senhor: "Ó Jesus, doce e humilde de coração, fazei o meu coração semelhante ao vosso!" Capítulo XXI - São Pedro nega três vezes a seu Divino Mestre - Seu arrependimento - "Pedro começou a fazer imprecações e a jurar: Não conheço este homem..." (Mc 14,71). - "E tendo saído, chorou amargamente" (Mt 26,75). Oh! Como esta renuncia de São Pedro deveu trespassar o coração de Jesus! Pedro, o príncipe dos apóstolos; Pedro, honrado da confiança particular do seu Mestre, nega covardemente Aquele que há pouco prometera acompanhar até à morte! Oh! Jesus destinado ao suplício e declarado infame, reus est mortis. Jesus coberto de escarros por uma populaça vil. Jesus tratado com indigna derivação por uma turba ímpia e furiosa de criados. Jesus saciado de ignomínias, de penas, de insultos. Jesus abandonado já por vossos próprios discípulos, para que permitistes que a negação de São Pedro viesse ainda aumentar as vossas dores?... Ah! É que vosso amor queria-nos dar uma grande lição: queria-nos ensinar, pela queda do vosso apóstolo, a evitar a presunção, desconfiar das nossas próprias forças, e não confiar senão em vós; queríeis ensinar-nos a temer a nossa fraqueza, a não olhar longos anos passados em serviço vosso como um motivo de segurança. "Quando o espírito se eleva", diz o Sábio, "a queda não se faz esperar muito". E em São Pedro acabamos de ver a prova desta verdade, porque, quando nosso Senhor disse a seus apóstolos, na véspera de sua paixão, que ia ser ocasião de escândalo a todos eles, respondeu-lhe: "Quando todos em ti se escandalizem, eu nunca me escandalizarei." Sem duvida que estas palavras eram inspiradas pelo amor que tinha a seu Mestre; mais ai! havia nelas um pouco de presunção; punha demasiada confiança em suas forças. Que sucederá? Deus, que não pode suportar o orgulho, seja ainda nos seus amigos, e sob qualquer forma, abandonou-o à sua fraqueza, e o desgraçado apóstolo caiu. Ah! Meu Deus! Que terrível me parece esta queda! Um apóstolo! O príncipe dos apóstolos negar o seu Mestre! Ó bom Jesus! Tende piedade de mim. Se as estrelas caíram do céu, eu porque devo esperar? Homens cujas obras pareciam louváveis caíram o mais baixo que se pode cair, e vi os que se nutriam do pão dos anjos fazer as suas delicias do pasto dos porcos! Nenhuma é pois a santidade, Senhor, se retirais a vossa mão: nenhuma castidade está segura se a não tendes debaixo da vossa defesa; nenhuma vigilância nos guardará, se não velais por nós. Deixados a nós mesmos somos submergidos das ondas e parecemos; visitados por vós, nos elevamos e vivemos. Porque nós somos instáveis, mas vós nos confirmais; somos tépidos e vós nos inflamais. Oh! Que humildes e baixos devem ser os pensamentos de mim mesmo! quão pouco devo estimar esse bem que em mim parece haver! Oh! como me devo abaixar profundamente, Senhor, perante os vossos impenetráveis juízos, onde me perco como num abismo, e vejo que nada mais sou que um nada e um puro nada! Ó peso imenso! ó mar sem praias! onde não acho nada de mim, onde desapareço como no meio do todos! Aonde se esconderá o orgulho? onde a confiança na própria virtude? Ó meu Deus, toda a vaidade se extingue na profundeza dos vossos juízos. E quando vejo no fundo do meu coração toda a força que tenho para o mal, eu tremo, sou tomado de temor e horror, reconheço que só em vossa misericórdia está toda a minha esperança. Ó Jesus! Bom Jesus! Eu vos suplico, tende piedade de mim, e não me abandoneis à minha corrupção, Ai! Trair-vos-ei ainda?! - Tens razão, filho meu, de temer a tua fraqueza e não presumir de tuas próprias forças, mas não quero que este temor leve à tua alma o desalento e a perturbação. Espera em mim e não serás confundido. Não sabes que abençoo o justo e o cubro do meu amor como de um escudo? Repousa pois em paz no meu coração. Ah! se conheceras este coração! se souberas como ele te ama! se compreenderas como ele vela por ti! Com que confiança não te abandonarias à minha direção! com que calma, com que doce tranquilidade não dirias incessantemente: "Meu Deus, em vossas mãos me lanço, afim que de mim façais o que vos aprouver!" Ó meu Jesus, meu terno amigo, meu bom Mestre! As vossas palavras descem ao meu coração como um balsamo salutar, e nele derramam uma consolação inefável. Ó meu Deus! Estou persuadido que velais sobre todos os que em vós esperam, e que nada nos pode faltar quando de vós esperamos todas as coisas; tomo a resolução de para o futuro viver sem algum cuidado, e de em vós descansar de todas as minhas inquietações. Podem os homens me despojar dos bens e riquezas, podem as doenças tirar-me as forças, e os meios de vos servir; posso até pelo pecado perder a vossa graça, ai! Desgraça de que eu vos suplico me livreis, mas perder a esperança em vós, isso nunca. Conserva-la-ei até ao ultimo suspiro da minha vida, e serão vãos todos os esforços do inferno para m'a arrancar. Podem os mais esperar a sua felicidade das riquezas ou talentos; apoiarem-se outros na inocência de sua vida, ou no rigor da sua penitencia; eu porém, Senhor, toda a minha confiança é só em vós; e esta confiança a ninguém ilude. Estou pois de algum modo seguro que serei eternamente feliz, porque espero firmemente sê-lo e é em vós, ó meu Deus, que o espero. Conheço, ai! Conheço quão fragílimo e inconstante sou; sei o que podem as tentações contra as virtudes mais arraigadas; mas nem tudo isto é capaz de me aterrar; uma vez que eu espere, sempre estarei a salvo de todos os males. Ora à face do céu e da terra o digo, espero em vós, ó meu Deus! Sei que a minha esperança em vós nunca será demasiada; sei que tudo o que de vós espero, um dia o possuirei: espero, pois de vós, ó meu doce Jesus! que me perdoareis os meus pecados, que me amareis sempre, e que eu mesmo vos amarei sem afrouxar durante o tempo e por toda a eternidade. Diz o Padre de la Colombière no Sermão sobre a confiança em Deus. Entretanto um olhar que Jesus amorosamente lançara sobre Pedro, tinha feito entrar em si o discípulo infiel. Penetrado de uma viva dor deixa repentinamente a companhia diante da qual havia negado o seu Mestre, e saindo para fora, soltou largamente as suas lágrimas que vinham de um coração compungido. Não pôs limites à sua dor, e conta São Clemente de Alexandria que as suas faces se cavaram pelas torrentes de lágrima que não cessou de derramar até ao ultimo momento da sua vida. Igualmente narra que a recordação do céu crime o fazia levantar todas as noites ao primeiro canto do galo para se pôr em oração, que não dormia o resto da noite, e que foi sempre fiel a esta pratica até à sua morte. Imitemos pois esse grande apóstolo na penitencia, nós que na queda infelizmente o imitamos. Oh! Quem me dera a graça de chorar dignamente os meus pecados como São Pedro! Quem me dera a graça de os chorar até que enfim obtenha o perdão! Mas que distancia não vai da minha dor e da minha penitencia à sua! Pedro cai e levanta-se imediatamente; eu caio e cada instante, e levanto-me lenta e frouxamente. Chora amargamente o seu pecado; instruído por sua triste experiência, foge da ocasião do seu crime, retira-se a uma parte, e lava em suas lágrimas a falta que acaba de cometer; eu choro raramente as minhas inumeráveis iniquidades; velo mal sobre mim mesmo e não evito assas as ocasiões perigosas. Ó bem-aventurado penitente, lembrai-vos de mim, e obtende-me a graça de me livrar das cadeias do pecado; alcançai-me a graça de conhecer e temer a minha fraqueza, a graça de uma verdadeira compunção de coração, impetrai-me a graça de me compadecer das fraquezas dos outros e de os levantar com doçura quando caídos; obtende-me enfim o dom das lágrimas. E vós, ó meu Jesus! vós a quem eu neguei não uma, mas cem, talvez mil vezes, tende piedade de mim. Quero reparar por muitas lágrimas e penitencia os ultrajes que vos fizeram tantos pecados que cometi, e de que agora me arrependo de todo o meu coração. Ó meu Deus! Curai as chagas da minha alma, banhando-a no óleo do vosso santo amor. Dai-me o vosso amor, é o que eu só quero; dai-me o vosso amor, ó doce Salvador! Afim de que vos ame até ao ultimo suspiro e por toda a eternidade. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Desconfiança de Si Mesmo Desconfia de ti mesmo, meu caro Teótimo, como do teu mais cruel inimigo, e, "se estás em pé, guarda-te que não caias". Por terem confiado muito das suas forças, e não velarem sobre si, têm muitos acabado por cair nas maiores faltas. Acautela-te, não vás cair numa tal desgraça, e para a evitar desconfia de ti mesmo. Evita as ocasiões e não te apoies muito sobre tuas virtudes adquiridas. Não esqueças que quem ao perigo se expõe sem necessidade, nele vem a achar a sua ruína. Não te exaltes pelas tuas boas obras; expor-te-ás ao perigo de tudo perderes. Ai! para que havemos de ter orgulho de um bem que não é nosso! De Deus só vem todas as nossas virtudes, diz São Bernardo; a nós pertencem como propriedade nossa os vícios e pecados. Dele nos vem a nossa caridade e castidade; nasce de nós o orgulho e a concupiscência. Sem a graça de Deus, somos pesados e inábeis para toda a sorte de bens; com a graça sentimo-nos cheios de força e ardor para praticar a virtude. De nós mesmos caímos onde nos arremessa o pecado; e sem a graça de Deus poder-nos-íamos levantar? Se somos poderosos, ricos, sábios, de tudo somos devedores à graça de Deus e unicamente à sua graça. Só a Deus pertencem a santidade, a justiça, a bondade; e tudo o que os homens podem ter, só da sua liberalidade o recebem. De tuas forças não presumes nunca, meu caro Teótimo; nada atribuas a teus méritos, nenhuma confiança ponhas em tua habilidade, coragem, ou seja no que for. No meio das tentações, azares, perigos sem numero de que és assaltado, põe a tua esperança no coração de Jesus, como num asilo seguro; porque quem de si mesmo desconfia, e só em Deus põe a sua confiança, não tem a temer a sua queda, pois é protegido e coberto por sua misericórdia, sustentado pela sua mão. No decurso do dia dirige amiúde ao Senhor estas palavras: "Meu Jesus, entre vossos braços me lanço, e vos confio o meu corpo, a minha alma, e a minha salvação; dignai-vos sustentar a minha fraqueza e comunicar-me um pouco da vossa força, afim de que jamais caia na desgraça de abandonar o vosso serviço". Capítulo XXII - Jesus é conduzido diante de Herodes, que o despreza e trata como um insensato - "Herodes e sua corte desprezou-o, e, tratando-o com irrisão, o revestiu de uma veste branca e o reenviou a Pilatos" (Lc 23,2). Tinha o nosso bom Mestre passado a noite no meio dos criados do sumo sacerdote: todos os insultos, todas as afrontas que é possível imaginar, sofrera em silêncio, sem se queixar, tudo oferecendo ao Pai para nos obter o perdão dos nossos pecados. "Tendo chegado o dia, diz Santo Afonso de Ligório no Amor de Jesus, os judeus levam Jesus a Pilatos para que este o condene à morte; mas Pilatos declara-o inocente, e para se livrar das impertinências dos judeus, que continuam a pedir a morte do Salvador, envia-o a Herodes. Sumo prazer sentiu Herodes ao ver em sua presença Jesus Cristo; esperava que ele para se livrar da morte faria diante de si alguns daqueles prodígios de que tanto ouvia falar e assim começa a fazer-lhe muitas perguntas. Mas, porque Nosso Senhor não se queria livrar da morte, nem Herodes era digno de suas respostas, Jesus guardou silencio e nada respondeu. Então este rei soberbo, "com toda a sua corte o encheu de desprezos, e vestindo-lhe uma veste branca" para assim ser olhado como um ignorante e um insensato, o tomou a mandar a Pilatos. São Boaventura comenta assim estas palavras: "Desprezou-o como impotente, porque não fizera milagres; como ignorante, porque não respondera uma só palavra; como covarde, por não se haver defendido." - Ó meu Salvador! Como permitistes que este ímpio vos tratasse com tanto desprezo? Porque não confundistes o seu orgulho? Para que não ordenastes a uma legião de anjos que o castigassem a ele e a toda a sua corte como mereciam? Filho meu, quem suspendeu os golpes da minha justiça foi o meu amor para contigo. Quando me vi coberto de uma veste branca e exposto às chufas da multidão, pensei em ti e disse comigo mesmo: Este caro filho terá de sofrer um dia desprezos, insultos, maus tratos; então estará a sua alma absorvida de penas e angustias. Pois bem, para lhe deixar um belo exemplo de resignação e para lhe merecer a graça de sofrer tudo pacientemente, vou suportar estas ignomínias de que me sobrecarregam, e isto sem dizer uma só palavra, sem proferir um só ai. - Ó bom Jesus! Quanto mais vos conheço, mais aprendo a amar-vos! Visto como o vosso amor para conosco vos fez sofrer tão duros tratos, fazei-me a graça de ter mais resignação e conformidade com vossa santa vontade quando me virdes alvo dos desprezos dos outros. Vinde em socorro de minha impotência: porque, ai! sou tão fraco quando se trata de sofrer! - Coragem, meu filho, não te deixes prostrar pelas dificuldades. Sei quanto custa à natureza o vermo-nos tratados como culpáveis, hoje de orgulho e vaidade, de preguiça ou gula amanhã, uma outra vez de ambição, enquanto que de nada de tudo isto nos acusa a consciência; sei o que custa ao orgulho do homem passar por vicioso e ignorante; sim, bem o sei. Todavia acostuma-te a desprezar os juízos dos homens, que não passam de vento e fumo; procura o agradar a mim e só a mim, e em seguida calca aos pés generosamente a opinião dos mais, pois não te pode tornar melhor nem pior a meus olhos. Quando em casa de Herodes fui revestido de uma veste branca, e tratado por insensato, era eu por isso menos o Rei imortal da Gloria e o Criador do céu e da terra? era menos o objeto das complacências do meu Pai celeste? Não, certamente. Assim também, filho meu, embora te desprezem e te tratem os homens como um nada, tu não serás por isso menos digno de todo o meu amor, uma vez que tenhas tido o cuidado de conservar a tua alma pura e limpa de toda a nódoa do pecado. Feliz daquele que me ama, e que, por sua resignação no meio dos desprezos, marcha após o seu Deus desprezado e escarnecido como insensato! Ó Sabedoria eterna! Ó Verbo divino! Só esta vos faltava de serdes tratado por doido, e privado do senso comum! Tão forte apertava convosco o desejo da nossa salvação, que por nosso amor quisestes não só estar exposto aos opróbrios, mas ainda saciado de opróbrios, como o anunciara Jeremias: "Apresentará suas faces aos que as ferirem, será saturado de opróbrios". Como pudestes ter um tal amor aos homens, de quem só recebestes ingratidões e desprezos? Ai! Sou eu um desses homens que vos fiz mais ultrajes que Herodes! Mas ah! Jesus meu, não me castigueis como a Herodes, privando-me da vossa voz. Herodes não vos amava por quem éreis, eu reconheço-vos por meu Deus; Herodes não vos amava, eu vos amo mais do que a mim mesmo. Ah! não me recuseis a voz das vossas inspirações, como por minhas ofensas mereço. Dizei o que quereis de mim; com a vossa graça pronto estou a fazer tudo. Tende piedade de minha miséria, ó meu Deus! Lançai sobre mim um olhar da vossa misericórdia. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Do Amor das Humilhações e Desprezo Hoje, meu caro Teótimo, toma resolução de imitar a nosso Senhor humilhado e ultrajado na corte de Herodes. Não leves a mal que te cubram da desprezos. Ora serás desprezado por tua pobreza, ora por qualquer defeito exterior; já por tua pouca ciência, já por teu demérito; mas não te perturbes. Dize então a nosso Senhor de todo o teu coração: "Meu Jesus, aceitai a homenagem do desprezo de que neste momento sou objeto." Não caias na falta dos que dizem quando se veem desprezados: Se soubessem quem eu sou, não me tratavam assim: faz melhor, guarda silencio. Custa, verdade é, ao nosso orgulho vermo-nos ultrajados, injuriados sem nada opor, nada responder; mas é precisamente em fazer-se violência a si mesmo que está o mérito. Não te aflijas por te descobrirem imperfeições ou menos santidade do que parecia, antes aproveita habilmente tão oportuna ocasião de dar um grande passo na virtude da humilde. Tem frequentes vezes na boca ainda mais no coração, esta suplica de São João da Cruz: "Senhor, dai-me a graça de sofrer e ser desprezado por vosso amor." Domine, pati et contemni pro te! Humilhações, injurias, desprezos: eis o que todo o mundo teme e de que todos fogem o mais que podem. O ser humilhado, ultrajado, desprezado para um mundano é o cumulo de todo o mal. E, meu caro Teótimo, acredita-me, nada é mais doce do que uma humilhação e um desprezo. Pergunta-o a todas as almas que verdadeiramente amam a Jesus e elas te responderão que não me engano. Não pretendo com isto dizer que uma alma que ama a Jesus Cristo seja insensível aos maus tratos; não, sem duvida: mas o natural ressentimento que tem de se ver desprezada se muda numa alegria tão doce que só se conhece, experimentando-a. Repete, pois, muitas vezes e sem medo: "Senhor, quero sofrer e ser desprezado por vós". Capítulo XXIII Sobre a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo - "Então Pilatos mandou prender Jesus e flagela-lo" (Jo 19,1). Pilatos para se eximir de condenar o inocente como pediam os judeus, havia-o enviado a Herodes, e em seguida apresentara-o ao povo com Barrabás; mas vendo que estes meios não tinham sortido efeito, determinou-se a infligir-lhe qualquer castigo e pô-lo em liberdade. Nesta intenção, chama os Judeus e lhe diz: "Apresentastes-me este homem como um sedicioso que arrasta o povo à revolta; em vossa presença o interroguei, e não o descobri culpado de algum dos crimes de que o acusais; Herodes tão pouco o achou criminoso. Todavia para vos contentar, vou-o fazer castigar, e em seguida deixá-lo-ei ir." Grande Deus! Que injustiça! Declara-o totalmente inocente, e contudo oferece-se para o castigar! Ó meu doce Jesus! Estais inocente, e eis que por meu amor vos submeteis ao suplício dos escravos! Como, pois, pudestes amar até este ponto um ser tão vil e tão desprezível como eu? Assim Pilatos entregou Jesus aos seus soldados e lhes deu ordem para o flagelar. Contempla, ó minha alma! Como estes carnífices, a fim de executarem esta injusta ordem, arremetem furiosos sobre este cordeiro com gritos de alegria, o conduzem ao pretório e o amarram à coluna. Mas que faz Jesus? Sempre humilde e submisso, aceita por nossos pecados um tormento tão doloroso e tão humilhante. Vede os verdugos, de azorrague em punho: a um sinal dado, levantam os braços e todos juntamente começam a descarregar sobre esta carne sagrada açoites inúmeros. Parai, bárbaros, ides errados; sobre quem caem os vossos golpes? Esse que estais ferindo não é culpável, eu, eu é que o sou. Num instante aparece todo lívido este corpo virginal; logo começa o sangue a correr. Os algozes já o tem todo dilacerado, mas continuam sempre a ferir sem piedade sobre estas chagas, e a ajuntar dores sobre dores. Ó alma minha! Serás também desses bárbaros que com ar de indiferença veem um Deus açoitado? Considera a dor do teu Redentor e mais ainda o amor com que ele por ti suporta este infame tormento. Ah! Jesus em sua flagelação estava a pensar em ti! Se por teu amor sofresse um só golpe, já deverias ser abrasada de amor por ele, dizendo: "Um Deus consentir em ser ferido por mim!" Mas não é um só que ele sofreu; quis por teus pecados que todas as suas carnes fossem despedaçadas, como o predissera o profeta Isaías. Ai! diz o profeta, o mais belo dos homens perdeu a sua beleza; os açoites de tal sorte o desfiguraram que nós não o reconhecemos; está reduzido a a um tão miserável estado que se oferece a nossos olhos como um leproso coberto de chagas da cabeça até aos pés... É assim que Jesus é maltratado; é assim que é humilhado; e por que tudo isto? Porque quis sofrer as penas que nós merecêramos. Bendita seja para sempre a vossa bondade, ó meu doce Jesus! Que assim quisestes ser atormentado para me libertar dos tormentos eternos! Ó Deus de amor! Desgraçado o coração insensível que vos não ama! Que faz o nosso amável Salvador enquanto seus algozes tão cruelmente o tratam? Nada diz, não deixa ouvir uma só palavra, nem um só grito, nem um suspiro solta; mas cheio de paciência, oferece tudo a Deus, para derramar sua justiça e no-la tornar favoràvel. "Semelhante a um cordeiro que está sem voz diante do tosqueador, não abre a sua boca." Os que tosqueiam um cordeiro limitam-se a lhe tirar uma lã supérflua; mas a vós, ó Jesus meu! os bárbaros vos tiram até a carne, e o vosso corpo não é mais que uma chaga. E este é o batismo do sangue que tanto desejáveis, quando dizeis: "Devo ser batizado, num batismo de sangue, e como me sinto comprimido até que se cumpra!" Vai, alma minha, e lava-te no sangue precioso de que toda está banhada esta terra bendita. Poderia eu ainda, meu doce Salvador, duvidar do vosso amor, quando vos vejo todo coberto de chagas, banhado todo em sangue? Não, sem duvida, porque cada uma dessas chagas é uma mui certa garantia do amor que nós tendes. De cada uma dessas feridas sai uma voz que me pede amor por amor. Uma só gota do vosso sangue bastava para me salvar; mas vós quisestes dá-lo todo sem reserva, afim de que sem reserva me dê todo a vós. Acabe-se, pois, isto de uma vez, dou-me todo a vós; aceitai-me e ajudai-me a vos ser fiel. Ó Jesus, coberto de chagas! Eis a que estado vos reduziram as nossas iniquidades! Ó bom Jesus! Exclama São Bernardo, nós é que pecamos, e vós sois o punido! Seja para sempre bendita a vossa imensa caridade, e sejais bendito vós também como e mereceis; de todos os pecadores, e em particular de mim que, mais que os outros, vos desprezei. Jesus açoitado apareceu um dia à soror Victoria Angelini, e mostrando-lhe o seu corpo todo rasgado: "Todas estas chagas, Victoria, lhe diz, pedem o teu amor." Amemos o esposo, diz amorosamente Santo Agostinho; que quanto mais desfigurado parece, mais digno é da afeição e ternura da esposa. Sim, meu doce Salvador, eu vos vejo todo coberto de chagas. Vejo vosso belo rosto; mas ai! parece-me horrível, lívido e todo manchado de sangue e escarros. Mas quanto desfigurado mais vos vejo, ó meu Senhor! Mais belo e amável me pareceis. E que são na verdade todas essas coisas que vos desfiguram, senão sinais de ternura e amor que nos tendes? Amo-vos, Jesus, coberto de chagas e dilacerado por amor meu; queria também ver-me despedaçado por vós, como tantos mártires que tiveram esta dita. Mas, se agora não vos posso oferecer chagas e sangue, ofereço-vos ao menos todas a contradições que me aconteçam; ofereço-vos o meu coração, e quero amar-vos o mais ternamente que possa. E a quem doravante deve a minha alma amar com mais ternura, senão um Deus flagelado e esgotado de sangue por mim? Amo-vos, ó Deus de amor! Amo-vos bondade infinita! Amo-vos, e não quero cessar de dizer nesta e na outra vida: Amo-vos, amo-vos! Amem. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Paciência nos Sofrimentos e especialmente nas Doenças A mais cara, a única ocupação dos santos na terra é desejar de todo o coração sofrer todas as fadigas, todos os desprezos e todas as dores para agradar a Deus e a nosso Senhor. Imita-os, meu caro Teótimo. Hoje, e todos os dias da tua vida, procura ocasião de fazer alguma coisa agradável a este bom Mestre, custe ela um pouco de fadiga, penas, ou nos cause alguma ligeira humilhação. Sofre com paciências as mil dores a que está sujeito o corpo, por mais robusto que seja; oferece tudo a Jesus açoitado e não te queixes. Se for do agrado do nosso Senhor que te venha alguma doença grave, recebe-a de sua mão com resignação, e em tudo está submisso à sua vontade. Mais te digo, dá até graças ao nosso bom Mestre pela doença que te envia como uma graça mui excelente. Sim, meu caro Teótimo, dir-te-ei com um piedoso autor, deves agradecer a Deus, porque a doença oferece grandes motivos de consolação, pelas vantagens que consigo traz. 1 - É útil para os que te assistem; ganham méritos imensos por sua caridade. Oh! Como estou consolado, dizia São Francisco de Sales em suas doenças, de ver as penas que por mim tomam estes pobres! Por seus serviços e sua caridade ganham o céu. 2 - É útil para a expiação dos teus pecados. Bem mais doce e curto é o expiar os teus pecados sobre um leito, do que no fogo. Quantos anos de purgatório não se podem expiar por algumas horas de doença! Ah! Meu caro Teótimo, quão satisfeito não estarás um dia de te ver livre desses fogos horríveis, uma hora dos quais é mais insuportável que a mais aguda doença. 3 - É útil para a tua predestinação. Poucos meios mais eficazes há para purificar e salvar uma alma como uma longa doença. Em habituais enfermidades passaram sua vida uma grande parte dos maiores santos. Não podiam dar-se à oração nem a muitos outros atos de religião; estavam submissos à vontade de Deus; sofriam por seu amor: eis tudo o que exigia Deus para os santificar. Santo Alipio, solitário, permaneceu deitado sobre um lado todo descarnado durante quatorze anos. Nesta cruel situação, era sua súplica: "Adoro a vossa santa vontade, ó meu Deus! Vós sois justo e vós me punis com justiça." Santa Ludovina pediu ao Senhor para lhe tirar a sua beleza; foi ouvida. Trinta anos a afligiu Deus com uma extraordinária doença; a sua paciência elevou-a a uma alta santidade. Ó Teótimo! quantos não estão agora no inferno, que estariam no céu, se por muito tempo estivessem doentes e aflitos! Beija, pois, com amor a mão de Jesus quando te ferir; seus golpes são penhores da sua ternura. Nas doenças, tem cuidado, por amor de nosso Senhor, não vás cair na impaciência, no enfado, ou tristeza; esforça-te, ao contado, - por conservar em tua alma uma grande paz e uma calma profunda, e dize muitas vezes: Meu Deus, seja feita a vossa vontade! Meu Deus, eu vos amo e quero sofrer por vosso amor! Senhor Jesus, dai-me um pouco de paciência. Toma corajosamente todos os remédios que te forem ordenados, e doma essa repugnância que causar te pode a sua amargura, pondo os olhos no fel e vinagre que a Jesus foi dado, e com o desejo de tomar parte em seu cálice. Depois espera tranquilamente da bênção de Deus o sucesso dos remédios, e não te inquietes se não operam a tua saúde tão prontamente como desejavas. Quem te enviou a doença quer-te muito e muito; não temas que te não dê a saúde, se é boa para a sua gloria e tua salvação. Deixa-o, pois, obrar a ele. Faze um ato de amor de Deus muito meritório, abandona-te em suas mãos todo o tempo da doença; este é, aliás, o único meio de conservar a paz. Capítulo XXIV - Da Coroação de Espinhos - "Depois tecendo uma coroa de espinhos lh'a puseram na cabeça" (Mt 27,29). Foi seguido o suplício da flagelação de um outro, ou sugerido pela raiva dos judeus, ou inventado pela brutalidade dos soldados. Os soldados do governador levam Jesus ao pretório, e ai, estando reunida toda a corte em volta dele, despem-lhe Os vestidos, lançam-lhe sobre os ombros um manto de escarlate, a imitar a púrpura real, por cetro põem-lhe na mão uma cana, por coroa cobrem-lhe a cabeça de entrelaçados espinhos; e como se estes espinhos não entrassem bem por uma carne já toda aberta pelos açoites, agarram da cana que tinha "e ferindo-o no rosto, enterram com todas as suas forças esta cruel coroa". Ó espinhos, ó criaturas! Que fazeis? Porque atormentais assim o vosso Criador? Mas não é aos espinhos que devo dirigir estas exprobrações. Iniquidades dos homens, sois vós quem penetrastes a cabeça do Redentor; sim, meu doce Jesus, sou eu que por pensamentos e desejos culpáveis formei vossa coroa de espinhos; agora detesto-os, aborreço-os mais que todo outro mal, mais que a mesma morte. Ó espinhos consagrados pelo sangue do filho de Deus! A vós me volvo contrito e humilhado; penetrai a minha alma, e fazei que ela seja sempre penetrada de dor de haver ofendido um Deus tão bom. Meu amável Redentor, pois que tanto sofreis por mim, desprendei-me das criaturas e de mim mesmo, afim de com verdade poderdizer que não pertença mais a mim, mas que só a vós, só inteiramente a vós pertenço. Ó Rei do mundo! A que estado vos vejo reduzido! Consentistes aparecer como um rei de teatro, ser o ludibrio de toda a cidade de Jerusalém! Ai! O sangue cai em abundância de vossa fronte sobre o rosto e peito e nem assim se contentando de vos terem feito uma chaga da cabeça aos pés, oprimem-vos ainda com novos tormentos e novos ultrajes. Ó céu, até onde pode chegar a crueldade humana! Mas o que em tudo isto mais digno é de nossa admiração, é o vosso amor; é a doçura, é a paciência com que aceitastes e sofrestes tantas indignidades para a salvação dos homens. Ó Jesus! Dai-me um coração capaz de vos amar como o mereceis. Não obstante tudo o isto os soldados, tendo assim atormentado o nosso Salvador, revestiram-no como um rei de teatro, "puseram-se de joelhos diante dele, e escarneciam-no dizendo: Salve, rei dos Judeus". Levantando-se, como acrescenta São João, "insultavam-no e lhe davam bofetadas". Ó Deus! Essa sagrada cabeça, transpassada de espinhos, ao mínimo movimento ressentia dores mortais, de sorte que a cada bofetada, a cada pancada, renovavam-se todas as dores. Ó minha alma! Contempla o teu Deus neste estado! Reconhece-o ao menos pelo soberano Senhor de todas as coisas, como com efeito é; rende-lhe graças como a um rei de dor e amor, e ama-o, pois ele não sofre senão para ganhar o teu amor. E tu, ó cristão, que lês esta obra, dize-me, eu t'o peço, é possível recusar o amor a um Deus que nos ama a ponto de sofrer tão indignos tratos? É possível consentir ainda em ofende-lo? Ai! Os mais cruéis espinhos que penetram a sua sagrada cabeça são os nossos pecados; todas as vezes que um cristão consente num pecado mortal renova dalguma sorte todos os sofrimentos e todas as ignomínias da flagelação e coroação de espinhos; esta é uma pura verdade. Fujamos, pois, não só do pecado mortal, mas ainda do pecado venial, pois que ofende a nosso bom Mestre. Digo ainda mais, fujamos da mesma sombra do pecado, e esforcemo-nos a ser todos de Jesus Cristo. Ah! Diz São Bernardo, quem recusa viver para Jesus é indigno de viver, e até já está morto; quem não tem todos os sentimentos conformes aos seus, é um insensato; quem não está no mundo unicamente para ele, não merece ai estar. É por ele só que Deus criou tudo o que existe; a quem só quer estar no mundo para si e não para Deus, começa a não ser nada, a já não ter lugar entre os seres. Amemos, pois, a Jesus; amemo-lo tanto quanto é possível a pobres criaturas ama-lo; amemo-lo até ao derradeiro suspiro da vida, e por toda a eternidade. Ó chagas do meu Salvador Jesus Cristo, exclama Santo Agostinho, vós sois chagas de misericórdia e de bondade, de doçura e caridade. Os judeus vos abriram com incrível furor; mas vós vos tornastes o meu refugio; por vós é-me permitido sentir quão doce é o Senhor; por vós posso saborear as suavidades da misericórdia de que Deus usa para com os que o invocam, que o procuram na sinceridade do seu coração, sobre tudo com os que o amam. Ai! Que seria de mim se em vós não achara uma abundante redenção, uma fonte de doçura nas tribulações deste exílio, uma doce confiança na graça do meu Jesus, e um contínuo alento para progredir na via da perfeição e do amor de Deus? Que seria de mim? Sejais bendito, ó Jesus! Por essa ternura que vos levou a vos deixar cobrir de chagas e a deixar-me refugiar nelas, para escapar ás furiosas perseguições dos inimigos da minha salvação: sejais bendito para todo o sempre. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Evitar os Pecados Veniais Acabas de o ver, meu caro Teótimo; o mais cruel de todos os espinhos que penetrar possam a cabeça do nosso Salvador, é o pecado. Se com efeito amas a este terno amigo de nossas almas, evita com cuidado não digo somente o pecado mortal; ai! É um monstro tão horrendo, que só o seu pensamento te deve inspirar horror: um pecado mortal! Ó meu caro Teótimo, Deus no persevere de jamais cometermos um só! mas evita também os pecados veniais, por mais leves que te pareçam. Vela atentamente sobre ti mesmo, afim de não cometeres algum de propósito deliberado, o que é possível com a graça de Deus. 1 - Vela sobre a tua língua: assim, nada de mentiras leves, de ligeiras murmurações tão comuns no trato da vida; nada de discurso inconsiderados, de palavras de vaidade, de zombarias do próximo, e até de palavras inúteis, pois delas terás um dia de dar conta. 2 - Vela sobre os olhos: assim nada de inúteis olhares sobre os objetos que te cercam, e muito mais te podem ser perigosos. 3 - Vela sobre o espírito: assim a ninguém julgues, exceto se a isso o dever te obrigar; não suspeites facilmente mal, não nutras uma secreta estima de ti mesmo e de tudo o que fazes, etc. 4 - Vela sobre o teu coração: assim não te deixes prender de laços muito vivos ou naturais ás criaturas, quaisquer que sejam; não cultives ciumezinhos, etc. Em uma palavra, vela sem cessar, vela sobre tudo; não te permitas leves distrações, pequenas impaciências, perda de tempo, rir imoderado, visitas inúteis, gosto de aparecer, pequenos excessos no comer, beber, dormir, jogar, etc. Sobre tudo não digas em teu coração: "São faltas pequenas, de que não se me dá corrigir-me"; isso era causar ao nosso bom Mestre um grande desgosto, era reconhecer muito mal o seu amor por nós. Vamos, meu caro Teótimo, resolve-te desde já a nunca mais cometeres pecado venial voluntário. Pede a nosso Senhor que te ajude, e ele o fará. Capítulo XXV - É por amor nosso e por causa do pecado que Jesus foi coberto de chagas - "Foi coberto de chagas por causa de nossas iniquidades; foi dilacerado para expiar os nossos crimes" (Is 53,5). O mínimo tormento sofrido por nosso Salvador era seguramente mais que suficiente para satisfazer à justiça de Deus, e apagar os pecados do mundo: mas o amor que nos tinha não se pôde contentar com isso. Afim de expiar os nossos crimes e até para nos provar a grandeza da sua ternura para conosco, o nosso Redentor quis ser, na frase de Isaías, vulneratus e attribus, isto é, coberto de chagas desde os pés até à cabeça, de tal sorte que o seu adorável corpo não oferecia parte alguma sã. Assim Isaías o compara a um leproso: Et dos putavimus eum quasi leprosum, et percussum a Deo et humilhatum (Is 53,4). Quando com os olhos da fé se considera Jesus todo coberto de chagas, quando se contempla o seu corpo horrivelmente rasgado e a cair em pedaços ensanguentados, é fácil compreender quão grande é o amor deste divino Salvador por nós. Ó homem, exclama Santo Agostinho, reconhece quanto vales, aprende que reconhecimento não deves ao teu Deus; aprende qual é a tua dignidade pelo que lhe custou a resgatar-te: vê agora quão infame seria ultraja-lo ainda com teus pecados; sabe pôr um freio às tuas paixões e um termo ás tuas desordens. Jesus foi despedaçado para expiar os meus crimes. Jesus, o inocente Jesus, do pecado não tinha mais do que a aparência; e ainda assim a justiça do seu divino Pai pesou sobre ele, e ei-lo despedaçado pelos golpes, coroado de espinhos, pregado num infame patíbulo. "Ó céu! Se assim se trata o pau verde, que será do seco?" Que será de mim, pobre pecador; de mim cujas inumeráveis iniquidades se amontoaram todas sobre a minha cabeça; de mim, que até ao presente só vivi para vos ofender, meu Deus?... Ó Jesus, misericordioso Jesus, tende piedade de mim! "Jesus foi despedaçado para expiar os meus crimes." Deu-me este bom Mestre uma excelente lição: ensinou-me por tão horrendos tormentos que o pecado não podia ficar impune; é necessário que seja punido ou pelo pecador, ou pelo próprio Deus! Se choro os pecados que cometi, se deles faço penitencia, se exerço contra mim mesmo uma santa cólera, dou-lhes a punição que merecem; se, porém, eu mesmo não quero punir por este modo, Deus, que será o meu juiz, os punirá. Mas, desgraçado de mim! porque "é terrível cair nas mãos de Deus vivo". Para evitar a desgraça de ser apresentado com uma alma manchada de crimes a esse juiz formidando, desde hoje devo trabalhar e os apagar por uma séria penitencia e marchar sobre os vestígios do meu Salvador. Mas, ó vergonha! A vida de Jesus Cristo foi um sofrimento contínuo, a minha passa-se nos cômodos e doçuras do repouso! Acaso ignorava eu até agora a necessidade em que estou de fazer penitencia neste mundo, ou faze-la no outro, no meio das chamas do inferno? Não sabia, porventura, que um pecador não pode ir ao céu senão pelas tribulações e sofrimento? Que é isto! Jesus chorou as minhas iniquidades, e eu não as chorarei! Ah! Tal não será, gemerei sobre tantos pecados que desde minha tenra infância cometi; castigarei o meu corpo; mortificar-me-ei sem cessar, e nas minhas penitencias irei cobrar alento na penitencia de Jesus e de todos os santos. Imitarei David que, já assegurado do perdão das suas faltas gemia continuamente; como ele, a lembrança de haver perdido a graça do meu Deus, dia e noite me fará derramar torrentes de lágrimas; como ele, sempre terei presente a meu espírito os pecados da minha vida; como ele, enfim, direi a todo instante: "Senhor, esquecei os pecados da minha mocidade." Meu Deus! que diferença acho entre o meu modo de obrar e o proceder dos santos? Pedro não peca mais que uma vez, e chora sempre; eu peco frequentemente, e não choro nunca. Um santo solitário dizia: "Em qualquer lugar que esteja, não vejo senão os meus pecados; olho-me como uma vitima do inferno onde vejo uma infinidade de almas menos culpáveis do que eu; atiro-me então por terra, suspiro, choro diante do meu Juiz." E eu penso apenas neste inferno, que tenho merecido, e nada faço para lá não cair. Todos os santos procuram pelos rigores da penitencia expiar os seus pecados: "uns submetiam-se ás chufas, aos açoites, ás prisões; eram outros serrados, lapidados; passaram por ferro e fogo e foram entregues à morte; aqueles outros internaram-se em medonhos desertos": e eu de tudo isto não faço nada, nada sofro. Pobre e desafortunado de mim! Qual é a meta que me proponho tocar? É para o céu, para esse belo céu, que eles tão caro compraram, que eu dirijo a minha carreira? Sim... Pois bem! Devo tomar como eles o verdadeiro caminho; é estreito, o meu Mestre já m'o advertiu: Arcta est via quae ducit ad vitam. Devo, como eles, chorar as minhas iniquidades passadas; devo implorar o perdão delas, não algumas semanas somente, não alguns meses, mas toda a minha viva. Ai! Quem sabe se o meu Deus me perdoou? Quem sabe se o meu Pai do céu me restituiu o vestido da minha inocência? Espero-o da sua misericórdia, porém certeza não tenho. Devo, pois, sempre fazer penitencia, chorar sempre: e ainda mesmo que um anjo do céu viesse anunciar-me da parte de Deus que os meus pecados me estão perdoados, deveria ainda assim chorar à vista das chagas de que cobriam o meu divino Salvador. Mas estas chagas do meu Jesus não me conduzirão somente à penitencia e ao arrependimento dos meus pecados, excitar-me-ão ainda à confiança e ao amor. Nestas chagas ir-me-ei refugiar, para ai achar um doce repouso. Ai estarei tanto mais ao abrigo de todo o perigo quanto Jesus é mais potente para me salvar. Brama o mundo em volta de mim, faz-me o corpo uma guerra de morte, cerca-me o demônio de seus laços? não cairei, porque estou apoiado sobre Jesus. Cai na desgraça de cometer algum grande pecado, e acha-se perturbada a minha consciência? não me abandonarei ao desespero, porque me recordarei das chagas do meu Senhor. Que mal será tão incurável que não possa ser curado pela morte de um Deus? No meio de minhas misérias espirituais lançarei um olhar sobre as chagas de Jesus, e a vista de um tão poderoso remédio me restituirá a paz e a confiança. Ó alma minha! Tu que és tão fraca, tão pobre, tão lânguida, vai lançar-te nos braços do teu bom Mestre; porque ele é tudo para ti; nele possuis todas as coisas. Queres curar as profundas chagas que te abriu o pecado, ele é o teu medico; estás vergada ao peso de tuas iniquidades, ele é a justiça e a santidade; tens necessidade de socorros entre os teus inimigos, ele é a força e o poder; queres ir para o céu, ele é o caminho; foges das trevas, é a luz; procuras alimento, ele mesmo é o sustento que te pode conservar a vida. Sim, minha alma, em Jesus Cristo acharás tudo; será a tua ancora e a tua força, e se quando te vires atacada do lobo infernal, fores fiel em te ocultares nas suas chagas, infalivelmente te protegerá contra ele, e sairás vitoriosa da luta. Ó meu bom amado Jesus! Porque estais vós tão coberto de chagas lívidas e ensanguentadas? Quem vos pôs num tão miserável estado? Ah! Compreendo-vos: são meus pecados que dilacerara o vosso adorável corpo; são eles que cravaram essa coroa de espinhos sobre vossa cabeça. Ó bom Jesus! A que excessos vos levou o amor por nós? Era a mim que a pena era devida por minhas iniquidades, e vós sois que a levais! Fazei-me a graça de sofrer alguma coisa neste mundo por vós para reconhecer uma ternura tão excessiva: dai-me a graça de me mortificar, de me desprezar, de me humilhar em todos os recontros, e de nada omitir para vos provar que não sou um ingrato. À vista do que tanto sofrestes por mim, não posso viver sem sofrimentos. Feri, Senhor, feri neste mundo, mas perdoai-me na eternidade. Vulnerai o meu pobre coração, vulnerai-a com as setas do vosso amor! Sofra, sim, mas amei-vos. Sim, amei-vos, Deus meu, faça-vos amar sempre, sempre, sempre! Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Amor da Solidão Hoje, meu caro Teótimo, toma e conserva toda a tua vida o santo habito de te retirar frequentemente em espírito ás chagas de nosso Senhor, e principalmente ao seu sagrado Coração. Nele faze uma solidão para onde possas fugir no tempo da tentação. Para o que, começa por te arrancar ao tumulto do mundo, tanto quanto t'o permitirem os teus deveres: ama o viver no retiro e no silencio. Ó meu Deus! Quantas almas não fazem progresso algum no amor de Jesus porque não sabem o que é a calma do retiro! Dizem estas almas que queriam viver no recolhimento, na união com nosso Senhor, fazem, e fazem precisamente o que as deve apartar deste fim; procuram companhias numerosas, divertimentos mundanos, efusões de coração que tem muito de humano, e fogem da solidão. Dir-se-ia que teem medo de se acharem a sós com Deus. Meu caro Teótimo, não os imites; se queres achar Deus, procura-o na solidão. Nunca estou menos só, dizia São Bernardo, do que quando estou só. Oh! E como isto é verdade! Na solidão achamos a Deus; na solidão pensamos em nossos deveres, em nossos pecados, choramo-los, detestamo-los; na solidão compreendemos a brevidade de tempo, a duração da eternidade, a vaidade das coisas do mundo, das honras, dos prazeres, das riquezas; na solidão falíamos com Deus e Deus conosco: entretemo-nos com ele coração a coração, exaltamos as suas grandezas, bem-dizemos as suas misericórdias, saboreamos as doçuras do seu amor; na solidão pensamos no céu, e desprendemo-nos de todas as criaturas. Ó doce solidão! Feliz quem te conhece e ama! mas mais feliz ainda aquele que descobriu o segredo de estar a sós com Deus no meio das mais numerosas companhias! Pede ao Senhor, meu caro Teótimo, que te dê esta solidão de coração, a qual faz que até mesmo no meio do tumulto dos homens e das ocupações, estejamos recolhidos, unidos a Deus, e atentos à sua presença: pede-a ao Senhor, mas não te esqueças que para a obter deves o mais que puderes viver retirado também na solidão exterior, sem nunca faltar por isto ao que os deveres de teu estado pedem. É possível gostar muito de sair fora sem necessidade ou utilidade do próximo, e ao mesmo tempo estar recolhido e unido a Deus. Capítulo XXVI - Jesus, condenado à morte, leva a sua cruz ao Calvário - "E tomando a sua cruz, caminhou para o lugar chamado Calvário" (Jo 19,17). Depois da flagelação de nosso Senhor, vendo-o Pilatos reduzido a um estado tão digno de compaixão, julgou apaziguaria os seus inimigos com lh'o mostrar somente. Conduziu-o pois a uma espécie de balcão, e mostrando-os aos judeus, lhes disse: "Eis o homem!" O povo emudeceu, e começava talvez a ganhar a compaixão, mas os príncipes dos sacerdotes e seus ministros bradaram, ao vê-lo: "Crucifica-o, crucifica-o!" Pilatos caído da sua esperança diz-lhe agrément: "Pois bem! Tomai-o vós mesmos e crucificai-o; eu não acho nele causa para o condenar." Os judeus lhe responderam: "Nós temos uma lei e segundo esta lei deve morrer porque se fez Filho de Deus... Demais, se o não condenas à morte, não és amigo de Cesar." Estas ultimas palavras foram as que atemorizaram Pilatos; teve a indigna fraqueza de ceder "e lhes abandonou Jesus, para que o crucificassem". Que injustiça! Como assim, ó meu divino Salvador! Puderam julgar-vos dignos de uma morte tão vergonhosa e cruel? Qual poderia ser a causa de uma tal condenação? Ah! Foram os meus pecados, ó doce Jesus! Que assim vos fizeram sofrer; foram as minhas próprias faltas que vos deram a morte. Sou eu o único instrumento das vossas penas, dos vossos mais cruéis suplícios. Que prodígio inaudito! O justo sofre a morte que o pecador mereceu, um Deus morre para dar a vida à sua criatura, a um vil escravo? Que posso pois dar-vos, ó Jesus, por um tão grande amor! Haverá alguma coisa no coração do homem que vos possa ser oferecida por uma tão excessiva ternura! Ai! No meu não acho nada senão o desejo ardente de vos amar; aceitai este desejo, ó meu Deus! e dignai-vos satisfaze-lo. Fazei que só em vós ache delicias e doçuras; que sem vós nada me possa deleitar, nada parecer bem; que ao contrario tudo me pareça vil e desprezível; que o objeto da vossa aversão seja também o da minha, e que só me agrade o que vos apraz; que longe de achar alegria em tudo o que não sois vós, só ache enojo; que faça todo o meu prazer em sofrer por vós, que a única gloria do vosso nome me sustenha e anime; que a vossa recordação seja a minha consolação; que me nutra de um pão ensopado de minhas lágrimas; que toda a minha alegria seja meditar incessantemente a vossa tão santa e tão justa lei. Fazei enfim que vos ame sempre cada vez mais, ó Jesus! Sou mui indigno do vosso amor, bem o sei, mas vós sois digno do meu. Eu vos suplico, tornai-me doravante tão digno de vós como até aqui tenho sido indigno. Ó Jesus! Fazei que vos ame. Apenas os judeus por seus gritos e ameaças arrancaram a sentença de morte da boca do seu fraco governador, em nada mais pensaram que em a fazer executar prontamente, para não dar a Pilatos tempo de refletir nela e a revogar. Tinham de antemão preparado a cruz; fazem-na logo trazer ao pretório, afim do nosso Senhor passar ainda pela pena e confusão de a levar aos ombros até o lugar do suplício. Mas para que ninguém o tome por outro e de todos seja reconhecido, tiram-lhe esse velho trapo de púrpura com que o haviam coberto, e lhe tornam a vestir a sua túnica. Como era sem costura e não era aberto por diante, foi preciso vestir-lhe-á pela cabeça; só a muito custo pôde passar, porque se embaraçou nos espinhos; a coroa ficou rudemente abalada; renova-se as dores das picadas, e de novo começa a escorrer o sangue. Então Jesus toma o instrumento do seu suplício e pondo-o sobre os ombros já moídos dos golpes, dirige-se para o Calvário, precedido de dois ladrões que deviam ser crucificados ao mesmo tempo que ele. Contudo o nosso bom Salvador, já acabrunhado pelos sofrimentos da noite precedente, necessitava de puxar pelas poucas forças que ainda lhe restavam, afim de levar o pesado madeiro de que estava carregado. Suava, perdia a respiração, renovavam-se todas as chagas aos esforços que era obrigado a fazer para suster a sua cruz e caminhar. Enfim ao sair da cidade não podendo mais, sucumbe ao peso e cai de rosto em terra!... Os soldados que o conduziam o oprimiram então com golpes e vomitaram contra ele mil injurias para o obrigar a levantar-se; mas vendo os judeus que não tinha força, e temendo que viesse a morrer antes de ser crucificado, constrangeram um homem de Cirene, chamado Simão, que voltava do campo, a levar a cruz e segui-lo. De crer é que só à força e com grandes repugnâncias é que Simão se sujeitou. Mas quando à luz da fé com que em seguida foi esclarecido descobriu que lhe tinha cabido a honra de ajudar o seu Salvador, de cooperar para a Salvação do mundo e ser a figura dos que devem levar a cruz após Jesus Cristo e segui-lo, isto é, dos predestinados de todos os séculos, concebe-se que a sua sorte lhe pareceu digna de inveja como o pareceu sempre ás almas piedosas, que bem desejavam ter podido associar-se a um tão piedoso ministério. Ó ditoso do homem que leva a cruz que o Céu lhe envia! Tal homem é verdadeiramente o discípulo de Jesus Cristo. Mas que digo eu? Só com esta condição o pode ser. Sim, é preciso que cada um de nós leve a sua cruz por pesada que seja; é preciso que eu também leve a minha, e que caminhe em seguimento do meu Mestre. Ó meu Jesus! Dignai-vos ensinar-me a leva-la por amor de vós, com alegria, ou ao menos com calma e resignação. - Meu filho, é preciso que tu saibas primeiro que um cristão que quer merecer um tão belo nome deve neste mundo fazer conta com uma vida de privações e sacrifícios. É necessário que todos os dias leve a sua cruz, e que por sua experiência conheça que não há outro caminho que conduza à vida e à verdadeira paz do coração, como o caminho da cruz e de uma contínua mortificação. Assim, meu filho, a tua cruz está sempre preparada: por toda a parte te espera; não lhe podes fugir, para onde quer que vás. - Senhor, parece-me que estou prestes a levar todas as cruzes que vos aprouver enviar-me; nenhuma recuso, antes vos agradeço desde já todas as que me vierem da vossa mão. - São excelentes estas disposições da tua alma, são generosos esses sentimentos; mas teme sempre, ó meu filho, a tua própria fraqueza! Hoje não tens de levar senão uma cruz, leve e ordinária, e tudo te parece possível; mas ai! Quantos como tu, me louvavam enquanto recebiam as minhas consolações, quantos que me bendiziam e me faziam mil protestos de fidelidade em meu serviço, me abandonaram ou ao menos não me seguiram senão de longe, murmuraram contra a minha providencia para com eles, porque julguei conveniente enviar-lhes algumas adversidades, algumas humilhações, desprezo ou doenças! O que eles fizeram também tu o podes fazer: teme-te muito da tua fraqueza, e nunca confies senão no meu socorro. - Sejais bendito, ó meu Deus! Pela condescendência com que tendes a bondade de me fazer lembrar a minha fraqueza que tão inclinado sou a esquecer! Mas ensinai-me, eu vo-lo suplico, o que devo fazer para levar bem a minha cruz. - Do céu vem todas as cruzes, todas as aflições; são um dom de minha mão, são um penhor de predestinação. Sim, meu filho, quantas mais aflições envio a uma alma, mais provas lhe dou da minha ternura. Os meus maiores santos são precisamente os que mais sofrem no mundo. Procura convencer-te bem desta verdade, e então terás o segredo de bem sofrer. "Sofro. Deus assim o quer; seja bendito o seu santo nome!" Eis a perfeição. Ó meu filho! Se compreenderas o preço das aflições, dir-me-ías sem cessar: "Senhor, ou sofrer ou morrer!" Noite e dia me repetiras com São João da Cruz: "Meu Deus, sofrer e ser desprezado por amor vosso." Exclamarias com Santo Agostinho: "Ah! Que cruz o não ter nenhuma cruz! Nulla crux! Quanta crux!" A todo o instante me bradarias: "Meu Jesus, comunicai-me uma pouca de força e dai-me depois cruzes." - Ensinai-me ainda, ó meu bom Mestre! O que devo fazer no tempo das tentações. Inúmeras vezes os malignos espíritos dão à minha alma violentos abalos, travam com ela terríveis assaltos; então me creio a todo o momento no ponto de naufragar. Algumas vezes sou assaltado de pensamentos tão medonhos, que me parece não poderem entrar senão no coração de um réprobo. Eu bem faço mil esforços para os expelir; não vale nada, ficam colados à minha alma. Como me devo pois portar neste momento de guerra interior? - Deves fazer por ficar calmo e inabalável, e levar esta cruz sem perturbação ou murmúrio. Nunca te deixes abater por alguma tentação, por mais horrenda, por mais violenta que seja, e abandona-te sempre a mim com toda a confiança. Pensa que nos desígnios da minha misericórdia todas as estas penas são provas para fazer aparecer em todo o seu brilho o teu amor para comigo; lições para te ensinar a ter compaixão dos que, como tu, são alvo dos dardos do tentador; meios de expiar os teus pecados e prevenir faltas novas; disposições para graças mais abundantes; enfim preservativos contra o orgulho, que te fazem sentir que sem a minha graça nada podes. É, pois, por um efeito do meu amor para contigo que eu permito que sejas tentado: é por bondade que eu pareço de alguma sorte apartar-me de ti por algum tempo, se bem que nunca me acho tão perto como então. Não temas, estou contigo; combate corajosamente contra todas as sugestões do demônio: e nada de te desconcertares. Ele faz muito ruído, mas não pode prejudicar a quem põe em mim a sua confiança. Quem mais te atormenta, mais contra ti braveja, mais ocasiões te dá de aumentar os teus méritos e a tua gloria no céu. Assim, firmeza! E recomenda-te a mim sem cessar. Já o derribei por minha potência, e tu também o vencerás com a minha graça, que nunca te recusarei. - Meu Deus, há ainda uma outra cruz que me custa muito a levar, e me parece mui bem mais pesada. - Qual é essa cruz, meu filho? - Quando me lembra das doçuras e consolações espirituais que outrora gozava, e as comparo com as securas de hoje, sinto uma grande dor, porque me parece que em lugar de avançar no vosso amor, recuo. Outrora tudo me parecia doce no vosso amor, parece-me hoje tudo árduo. Ó meu Jesus! Não tenho motivos para crer que, fatigado das minhas ingratidões, e minha tibieza, me abandonastes e me deixastes? - Meu caro filho, abstém-te de assim julgar, pois isso seria fazer uma injuria ao meu amor. Então ainda não conheces o meu procedimento ordinário para com uma alma que amo? Ao principio, quando esta alma nada mais faz que dar-se a mim por uma sincera conversão, visito-a, fortifico-a, esclareço-a, ganho-lhe o coração, deixando-a só achar alegria no meu serviço; prendo-a pela doçura dos meus encantos; continuamente me mostro a ela, para a reter pelas graças da minha presença; em uma palavra, tudo para ela são delicias, por via de suster a sua fraqueza. Mas ao diante tiro-lhe o leite, e dou-lhe a sólida comida das aflições. Eu falo, e eis o céu, a terra e o inferno conjurados contra ela; fora inimigos, tentações dentro. Fora tribulações e trevas; no intimo de alma securas e desolações. Ora a deixo nas sombras e horrores da morte, ora a chamo à luz e à vida. Porém obro assim para a provar, para a purificar, para a instruir, para a tornar dócil à minha vontade, para lhe exprobrar as suas leves faltas, suas pequenas mortificações. Já tu vês, meu filho, quão longe estou de te abandonar, tratando-te de tal sorte. - E das minhas distrações contínuas! não me dizeis nada? Ó meu Deus! Que penosa cruz, querer eu ter mão na minha alma para que não se difunda, c nunca a poder conseguir! Esta filha vagabunda anda sempre de viagem, e sinto todas as penas do mundo para a fazer entrar em si mesma, e fixá-la alguns instantes a vossos pés. - Meu filho, não quero que as distrações te causem uma inquietação escrupulosa, que poderia lançar-te na perturbação e desalento. Se o coração te escapa a teu pesar, não te assustes, procura traze-lo por um doce esforço, e faz, sem turbação e embaraço, o que de ti depender; o resto abandona-o à minha vontade. Ama-me de todo o teu coração, que as faltas de que ainda te não pudeste desfazer converter-se-ão para ti num objeto de humilhação, num motivo de virtude, numa ocasião de mérito, numa fonte de consolações. Uma terra bem disposta acha até no estrume um acréscimo de fertilidade; o homem cheio de boa vontade, até no seio de sua miséria retira a seu tempo o fruto de suas imperfeições e de suas misérias. Estás tu na oração com respeito, e um verdadeiro desejo de te conservares atento? não é preciso mais. Estou contente de ti, apesar das distrações que te impedem de estares tão atento quanto desejavas. Jamais te lançarei a crime as digressões de uma natureza fraca e volúvel, contanto que não te detenhas nelas quando chegam; que antes lhe não tenhas dado ocasião, à falta de velar sobre os teus sentidos. Finalmente, sepulta confiadamente todas as tuas misérias nos abismos da minha misericórdia; lá desvanecer-se-ão, como se vê desaparecer uma centelha que cai no meio do mar. - Senhor Jesus, agradeço-vos as lições que vossa ternura me quis dar; possa eu pô-las em pratica! O que agora vos peço é que eu leve sem me lastimar e com resignação todas as cruzes que me enviardes; o que vos peço é o cumprimento da vossa santa vontade, sempre, em todo o lugar e em todas as coisas; o que vos peço é o vosso amor; que mais posso pedir? Se vos amar, serei humilde, paciente, doce, caritativo, resignado; se vos amar, serei o que vós quereis que eu seja, um santo. Ah! Por quem sois, meu Deus, dai-me o vosso amor, fazei-me uma chaga de amor, uma chaga que me cause dor a fim de que sofra por vós e convosco. Ó meu amor! Não me abandoneis porque sem vós não posso viver nem um momento. Ah! Não poder eu morrer de amor por vós, ó meu Deus! Sabeis que queria sofrer todos os trabalhos e todas as penas do mundo, e até mesmo os tormentos do inferno por amor de vós, diz o B. Affonso Rodrigues, da Companhia de Jesus. Como não morri de amor em reconhecimento dos vossos benefícios? Aonde acharei um amor infinito como o mereceis? Ó meu Deus! Vinde em meu socorro, quero viver e morrer repetindo sem cessar: "Amo-vos, amo-vos, amo-vos!" Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS É preciso todos os dias tomar a sua Cruz "Se alguém, diz Jesus Cristo, quer vir após de mim, deve renunciar a si mesmo, tomar todos os dias a sua cruz, e seguir-me." Meu caro Teótimo, atende nestas palavras do nosso divino Mestre: "É preciso tomar a sua cruz." Parecem duras e a natureza revolta-se; contudo, Teótimo, custe o que custar, é preciso que leves a tua cruz com paciência como Jesus Cristo levou a sua, pois à cruz estão ligadas a nossa salvação, a nossa força contra as tentações, e o verdadeiro amor de Deus! Sim, é preciso que a leves, não por força como a levam os pecadores, sem que tirem mérito algum: mas é preciso que a leves com submissão e por amor do Nosso Senhor. Alguns, quando recebera consolações espirituais, oferecem-se a sofrer tudo o que os mártires sofreram, os cavaletes, as unhas de ferro e as laminas ardentes; mas depois de haverem feito a Deus estas belas e generosas promessas, não podem sofrer sem queixa, e ás vezes sem murmuração um pesadelo de cabeça, uma ligeira indisposição, a frialdade de um amigo, uma palavra um pouco dura. Meu caro Teótimo: Deus não quer que sofras as dores de um martírio coberto de sangue; tão somente pede que sofreras com paciência este mal, esta frialdade, esta palavra um pouco áspera. Leva a tua cruz todos os dias, e não te assemelhes aqueles que de bom grado consentem em a levar por algum tempo, mas que bem cedo a deixam, se continua a pesar sobre eles. Insensatos! Não sabem que rejeitando a cruz que Jesus lhes impõe, tomam uma outra mais pesada e mais difícil de levar! Tu, quando o peso desta cruz te parecer opressivo de mais, e te sentires desfalecer, recorre logo a Jesus pela oração, e pede-lhe força para a levar com resignação e com mérito. Lembra-te então do que diz São Paulo, "que todas as tribulações da terra", por mais penosas que sejam, "não têm proporção com a gloria que Deus nos prepara no céu" e sentir-te-ás cheio de coragem. Muitas almas, diz Santo Afonso de Ligório, amam a Jesus Cristo enquanto o vento das doçuras espirituais continua a bafejar; mas, se cessa, se sobrevém alguma adversidade ou desolação, na qual o Senhor se esconde a seus olhos para as provar, se em-fim Jesus priva estas almas de suas consolações ordinárias, abandonam a oração, as comunhões, as mortificações e se dão à tristeza e à tibieza procurando os prazeres da terra. Mas estas almas amam-se mais a si mesmas do que a Jesus Cristo; ao contrario, as que amam a Deus, não por um amor interesseiro e por consolações que ele dá, mas com amor puro e somente porque é digno de ser amado, nunca deixam os seus ordinários exercícios de piedade por aridez, por mais enojo que neles experimentem; basta-lhes saber que Deus acha a sua gloria em as experimentar desta sorte; assim oferecem-se a sofrer esta desilusão, este desgosto, este enfado, até à morte, se assim for a vontade do soberano Mestre. Sabem que Jesus é tão amável quando lhe apraz deixa-las na desilusão, como quando se digna conceder-lhes algumas consolações, e encontram a sua dita e prazer nos sofrimentos quando pensam que é por amor de Jesus que os suportam; então exclamam: "Como é doce, meu caro Senhor, a quem vos ama, sofrer por vós! Jesus, que por mim morrestes, não poderei eu morrer por vós!" Que é aliás sofrer algumas dores do corpo ou do espírito, algumas angustias interiores? Não estamos obrigados a sofrer por Jesus alguma coisa, por Jesus que por nosso amor escolheu a vida mais laboriosa e a morte mais afrontosa, por Jesus que não se permitiu o menor alivio, para nos mostrar que, se tendemos ao seu amor, devemos ama-lo como ele nos amou? Ó Teótimo! Que coragem não é a de Jesus, a alma que sofre e a que ama! Ó dom divino! Dom sobre todos os dons, amar sofrendo, e sofrer amando! Pede ao nosso bom Mestre t'o conceda. Capítulo XXVII - Jesus é pregado na cruz - "Crucificaram-no, e a outros dois com ele, um a um lado, outro do outro, e Jesus no meio" (Jo 19,18). Quando o Salvador chegou ao Calvário onde devia consumar o seu sacrifício e dar-nos o mais solene testemunho do seu amor, nem tempo de suspirar lhe deixaram. Arrancaram-lhe rudemente a sua veste, que estava colada ás chagas, e mais uma vez renovaram todas as suas dores. Mandam-no em seguida deitar-se sobre a cruz, afim de nela o poderem pregar. Sem demora nem resistência obedece o bom Jesus, estende-se sobre este leito de dor, não tendo por travesseiro senão os espinhos de que estava coroado. Então com uma sorte de furor arremessam-se sobre ele os algozes, pedem-lhe primeiro a mão esquerda, segundo é crença comum, e trespassam-na com um grosso cravo pelo meio dos nervos. Tendo-se estes comprimido pela violência da dor e não podendo a mão direita estender-se até ao buraco que no outro braço da cruz tinham aberto, foi necessário estender esta mão com cordas; outro tanto foi necessário fazer aos pés, de sorte que todo o corpo de Nosso Senhor ficou deslocado. Que amargas dores! Calava-se porém o inocente Cordeiro e não deixava escapar de sua boca uma lastima; consertava fixos no céu os olhos; e oferecia a Deus por nossa salvação, os seus sofrimentos e a sua vida... Cravado que foi na cruz, arrastaram-na até o fosso onde devia ser plantada. Ai elevaram-na com cordas, e deixam-na cair bruscamente nesse fosso. Ó Deus! Quem poderia compreender, quem poderia dizer quantas dores vos causou esta queda da cruz! Oh! De que dilacerações não foi seguida! E é por mim que Jesus quer assim sofrer! por mim, que o amo tão pouco, tão mal o sirvo! por mim que em minha vida passada tanto o ofendi! por mim que ainda hoje o contristo todos os dias, por minha tibieza! Ó meu Deus, meu Deus, meu Jesus, aos pés da vossa cruz me lanço, exclamando: "Misericórdia, misericórdia para um pobre pecador, para um ingrato! misericórdia!" Minha alma, olha o teu Senhor, olha a tua vida suspensa deste madeiro; vê como neste infame patíbulo não acha posição nem repouso. Ora se finca nas mãos, ora nos pés; mas onde quer que se apoia torna-se insuportável a dor. Volta a cabeça já para um, já para outro lado; se a deixa cair sobre o peito, as mãos fatigadas do peso rasgam-se mais; se a inclina sobre os ombros, são penetrados pelos espinhos; se a encosta á cruz, os espinhos entram mais na cabeça. Ah! Jesus meu, quanto é cruel a morte que sofreis! Dignai-vos dizer-me o que vos pôde levar a submeterdes-vos a tão horrorosos tormentos. - Meu amor por ti, filho meu; esse é quem me cravou na cruz. Sofro, ah! Sofro incompreensíveis dores; mas se preciso fora para a tua salvação suporta-las até ao fim do mundo, de toda a minha vontade o faria, tanto amo a tua alma! tão preciosa a meus olhos é! - Ó meu Deus! as vossas palavras cobrem-me de vergonha e contusão. O vosso coração é todo amor por mim; e o meu!... Ensinai-me, Jesus meu; que devo fazer para reconhecer uma tal ternura da vossa parte? - Ama-me, e ficarei contente; ama-me e ter-me-ei por pago de todos os meus sofrimentos. Desprende o teu coração de todo o afeto criado, e excita em tua alma o desejo de gozar da minha presença no céu. - Senhor, vós bem vedes o interior do meu coração: vede quanto desejo amar-vos. Sim, este desejo me abrasa e me consome; continuamente me persegue, não me deixa repouso noite e dia. Tenho necessidade do vosso amor, o meu coração tem dele uma ardente sede, e parece-me que ninguém vem em meu socorro. Desfaleço, e parece que ninguém vem suster-me. Quero amar-vos, parece-me como que impossível; tão pouca é a minha coragem! Meu Deus! Meu Deus! Não sei se bem vos exprimo os sentimentos de minha alma; mas, visto como os conheceis, ah! Por favor, tende piedade de mim! Dai-me o vosso amor; sem ele não posso viver; sem ele terno morrer; segunda vez insto, dai-me, dai-me o vosso amor. Bom Jesus, terno Pastor, meu doce Mestre, quando parecerei sem macula e verdadeiramente humilde aos vossos olhos? Quando vos amarei perfeitamente? Quando me enlevarei todo em vós por ternos e ardentes desejos? Quando serão absorvidas na imensidade do vosso amor a minha tibieza e imperfeição? Ó meu Deus! Ó doçura da minha alma! ó minha consolação, minha vida, meu amor, meu desejo! ó meu tesouro! Ó todo o meu bem! a minha alma suspira por vossos doces abraços; consome-se, desfalece, no ardor de a vós se unir, de a vós estar inteiramente unida pelos doces laços de um indissolúvel amor. Oh! Quando de todo cessará para mim o estrépito do mundo? Quando me verei inteiramente livre dos cuidados e vicissitudes do século? Quando acabará a minha peregrinação e o triste cativeiro deste exílio? Quando verei declinar a sombra da mortalidade e luzir a aurora da eterna luz? Quando gozarei da vossa vista, e vos louvarei eternamente e sem obstáculo com os vossos santos? Ó meu Deus! Ó meu amor! Ó todo o meu desejo! (diz Blosius, capítulo 4, número 2) satisfazei, eu vo-lo suplico, todos os meus desejos e dai-me o vosso amor; dai-me o vosso céu, afim que vos possa amar mais. Maria, obtende-me a graça de amar enfim o meu Deus, como mereço e como desejo. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Amor de Deus Só Meu caro Teótimo, Jesus hoje pede-te que em reconhecimento do amor que te testemunhou deixando-se pregar na cruz, o ames com toda a extensão do teu amor, e não sofras algum outro amor. Sonda o teu coração, e vê se verdadeiramente é todo de Deus; ai! Ainda ama as criaturas, está-lhes como que pregado, e talvez não consente em delas se desprender. E no entanto é certo que nada põe mais obstáculo à nossa união com Deus como estes apegos ás coisas da terra. Ah! Meu caro Teótimo, ama a Deus e só a Deus, ou se amas alguma criatura, não a ames senão em Deus; não te prendas muito a ela, e está pronto a deixa-la, sempre que for do agrado de nosso Senhor. O amor da criatura que no de Deus não é de alguma sorte fundado, é perigoso. Pede, pede ao Senhor te dê um coração puro, um coração vazio de tudo o que não é ele ou por ele. Trabalha seriamente por arrancar do teu coração toda a afeição desordenada, por mais pequena que seja. - Então não posso amar os meus amigos? Dizes-me tu agora. - Eu te respondo: tens amigos, ama-os tanto como te aprouver, mas sempre seja em Deus e por Deus: ama-os, mas seja para os levar a servir a Jesus Cristo, e ganhar o céu, e não pelo prazer que possas achar em os amar; ama-os, mas pede incessantemente ao nosso bom Mestre a graça de os amar cristãmente. Não te acostumes a os olhar como seres necessários à vida neste mundo, porque, meu caro Teótimo, só Deus, Deus só, te deve bastar; fora dele só há miséria, fraqueza, e vaidade. Dize, pois, muitas vezes do fundo do coração: Meu doce Jesus, dai-me a graça de sempre vos amar acima de todas as criaturas, e amar os meus amigos como vós quereis que os ame. Desprendei o meu coração de tudo o que não sois vos. Capítulo XXVIII - Do silêncio de Jesus no meio dos desprezos, das afrontas e dos sofrimentos - "Semelhantemente a um cordeiro que se conserva mudo diante do tosqueador, não abrirá a sua boca" (Is 53,7). Já falíamos do silencio de Jesus no meio dos seus sofrimentos; mas é tão tocante ver este inocente Cordeiro opondo ao furor dos seus inimigos uma doçura e uma paciência tão incomparáveis, que mais uma vez imos deter-nos alguns instantes em considerar este espetáculo. Comecemos pelo ver em casa de Caifás: na presença deste pontífice é acusado de inúmeros crimes; mas ele guarda silencio: Jesus autem tacebat. Em casa de Herodes enchem-no de desprezos; ele sofre tudo sem dizer uma só palavra. Fazem-no sofrer uma cruel flagelação: não reclama contra a injustiça deste castigo. Os algozes em seu furor excedem muito o numero dos golpes prescritos pela lei: ele não se queixa. Os soldados, provavelmente sem ordem de Pilatos, e tão somente para satisfazer a sua brutalidade insolente, entrançam uma coroa de espinhos longos e agudos, sobrecarregam-no de golpes, cobrem-no de escarros: sempre o mesmo silencio. Ordenam-lhe que tome sobre os seus ombros uma cruz pesada, desigual, e cujo cumprimento era, segundo referem São Boaventura e São Anselmo, de quinze pés: obedece imediatamente e sem abrir a boca. Não se queixa nem da sua fraqueza, nem do peso do madeiro, nem da longitude do caminho; não, a si mesmo impõe a cruz, e se dirige para o Calvário. Muitas vezes durante o trajeto sucumbe ao peso: não importa; levanta-se o melhor que pode, carrega a sua cruz, e contínua a caminhar... Que admiráveis lições para mim! Ai! Se acontece ter de sofrer alguma doença, um simples mal estar, queixo-me a todo o mundo. Uma desgraça que sinta, um insulto que receba, devo ir desabafar, lastimando-me e murmurando talvez contra o céu!... Ai! Que longe está o meu proceder do de meu Mestre!... Ó Cordeiro de Deus! Dai-me a graça de imitar os vossos exemplos, força para guardar silencio, por amor de vós, no meio dos desprezos, das calunias, das injurias e maus tratos; fazei-me a graça de tudo suportar com uma paciência igual à vossa. - Meu filho, o melhor que tens a fazer quando te sobrevém alguma das mil contradições de que está cheia esta vida mortal, "é possuir tua alma na paciência". Quando se impacienta, a alma sai fora de si mesma; ao passo que quando sem murmúrio se submete a tudo o que permito, possui-se em paz e possui a mim mesmo. Impacientar-se é querer o que não se tem ou não querer o que se tem. Uma alma impaciente é uma alma entregue à sua paixão, que nem a razão nem a fé contém. Que fraqueza! Que cegueira! Tanto que se quer o mal que se sofre, deixa ele de ser mal; para que converte-lo em verdadeiro mal, cessando de o querer? Diz Fénelon. Nunca esqueças estas palavras que outrora dirigi aos meus apóstolos, e que a ti agora dirijo: "Em verdade, em verdade vos digo: vós chorareis e gemereis... mas a vossa tristeza se verterá em alegria." Sim, meu filho, as aflições são na terra quinhão dos meus eleitos, mas é bela a sua recompensa. - Senhor, eu já vos disse, e parece-me estar disposto a tudo sofrer por vosso amor; mas como é que experimento ainda assim uma repugnância tamanha? - Meu filho, se com resignação e sem te lastimar aceitas todas as aflições qual te envio, não te tornam culpável nem menos resignado essas repugnâncias; são um efeito da fraqueza da tua natureza, e deves humilhar-te, mas de modo algum perturbar-te ou penalizar-te. Sofre com paciência e com calma os desprezos, as humilhações, as doenças e a própria morte; deste modo me provarás o teu reconhecimento e o teu amor. - Ó Jesus! Misericordioso Jesus! Bem pouco vos amei até ao presente; sim, meu Deus, bem pouco e mal vos amei! mas agora quero amar-vos de todo o meu coração, quero amar-vos sempre. Ai! Outrora estava cego por minhas paixões; hoje a vossa misericórdia abriu-me os olhos e me esclareceu. Fizestes-me conhecer a grandeza do mal que fiz abandonando-vos covardemente; fizestes-me compreender que sois digno de um amor infinito, por causa da vossa bondade e do amor que nos testemunhastes. Arrependo-me, pois, agora de todo o meu coração de vos haver ofendido, e vos amo mais que a todo o mundo. Ó chagas! Ó sangue do meu Redentor! Vós, que tendes abrasado de amor tantas almas santas, abrasai também desse fogo sagrado a minha pobre alma. Ah! Meu Jesus! Concedei-me a graça de pensar sempre na vossa paixão, nas penas e ignomínias que por mim sofrestes, afim que desprenda as minhas afeições dos bens da terra, e que todas ponha em vós, que sois o meu único e infinito bem. Amo-vos, ó Cordeiro de Deus sobre a cruz imolado por nosso amor. Não recusastes sofrer por mim; da minha parte também não recuso sofrer por vós tudo o que me enviardes. Não quero queixar-me das cruzes que me enviardes; ai! Como posso eu lastimar-me de sofrer, eu que há tantos anos devera estar no inferno? Concedei-me a graça de vos amar, e fazei em seguida de mim o que vos aprouver. Ah! Quem poderá separar-me da caridade de Jesus Cristo? Ó meu Jesus, só o pecado de vosso amor me separará; não permitais, eu vos rogo instantemente, que me aconteça uma tal desgraça. Antes morrer, antes mil vezes morrer que ver-me de vós separado pelo pecado mortal! Esta graça vos peço em nome de vossa paixão; e vós, ó Maria! Em nome de vossas dores vos suplico, livrai-me da morte do pecado. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Hoje, meu caro Teótimo, aprende no exemplo de Jesus Cristo a guardar uma profunda paz, uma inalterável serenidade no meio dos desprezos, das contradições e maus tratos, porque onde se acha a paz, ai vem Deus estabelecer sua morada. Se queres que fique contigo, não deixes entrar em tua alma a tribulação. Quando te sentires assaltado dalguma violenta tentação, quando dentro de ti sentires a guerra das paixões, quando vires as tuas faltas, as tuas imperfeições, recaídas, infidelidades, misérias, não te deixes cair no descoroçoamento ou inquietação, mas lança com toda a simplicidade um olhar cheio de amor sobre Jesus crucificado e pede-lhe que estabeleça em ti essa paz que só ele pode dar. Não te abandones ao mau humor quando te fazem esperar por muito tempo, te contradizem, te obrigam a repetir muitas vezes uma mesma coisa, ou executam mal as tuas ordens; mas guarda sempre a mesma doçura e a mesma paz da alma. Nas doenças, humilhações, perda de bens, desgraça imprevista, nunca te abandone esta calma profunda; para isto pensa que Deus, que sem cessar vela por ti, não permitiu todas estas coisas senão para teu maior proveito. Sobre tudo, Teótimo, conserva cuidadosamente essa doce paz que é o apanágio dos filhos de Deus, no meio das desolações e penas interiores, dos desgostos, das securas, das tentações da tristeza, da melancolia, da desconfiança, da misericórdia de Deus; conserva-a no meio das cruzes mais penáveis, das aflições mais angustiáveis. Oh! Que belo espetáculo não é o de um servo de Deus que em todas as ocorrências da vida parece sempre o mesmo, doce, sereno, pacifico, perfeitamente submisso à vontade daquele que dirige tudo! Se o louvam, seu coração não se incha; se lhe ralham, promete fazer melhor; se o desprezam, humilha-se; e se o insultam sofre em silencio e perdoa. Sempre a paz no coração; brilha em sua fronte e em toda a sua pessoa, e muitas vezes a sua só presença, uma simples palavra da sua boca bastam para consolar uma alma aflita e restituir-lhe a paz que há muito tempo perdera. Trabalha, pois, meu caro Teótimo, por adquirir esta paz tão desejável. Pede-a a Nosso Senhor e toma o santo habito de te submeteres a tudo o que suceder, dizendo: Deus u quer ou permite, ele tem em seus desígnios; seja bendito o seu santo nome. Capítulo XXIX - Lamentações que do alto da cruz dirige Jesus a todos os homens - "Ó vós todos que passais pelo caminho, atendei, e vede se há dor como a minha" (Lm 1,12). São estas as palavras que nos dirige Jesus a nós, pobres exilados nesta terra de pecado. Ó vós todos, exclama ele do alto da cruz, ó vós todos, que passais pelo caminho da vida, dignai-vos parar por alguns instantes; lançai sobre esta cruz, onde estou cravado, a vossa vista, e vede se há uma dor que à minha se possa comparar; a minha cabeça está coroada de espinhos que me não deixam repouso algum, os meus pés e as minhas mãos estão varados de enormes cravos, o meu corpo não é mais que uma chaga, e o meu sangue corre de todas as minhas chagas. "De todas as partes me cercam as agonias da morte", e a minha alma está abismada na mais excessiva desolação. Infelizes filhos de Adão, que arrastastes a punição do pecado de vosso primeiro pai, que gemeis sob o peso dos sofrimentos que vossos crimes mereceram, vede as minhas dores, e comparai-as com as vossas. Vós lastimai-vos de sofrer! Mas esquecestes já que sois culpados, e que merecestes o inferno? Esquecestes-vos de que eu, vosso Deus, primeiro sofri por vosso amor, e para vos ensinar a resignação? Vós murmurais de serdes obrigados a suportar os incômodos da fome, sede, pobreza, fadiga, frio e calor; mas em antes de vós e mais que vós os senti eu. Não nasci eu num curral, no coração do inverno? Não vivi sempre na indigência? Não ganhei eu o meu pão com o suor do meu rosto? Vós sois tentados a abandonar o meu serviço, porque neles encontrais alguns espinhos, por nele experimentardes alguns desgostos, por serdes atormentados de algumas penas interiores, por ser preciso fazer alguns sacrifícios custosos à natureza. Mas acaso vivi eu no seio dos prazeres? A vossa salvação, não a minha, acaso não me custou nada a assegurar? Experimentais desgostos! Mas são compráveis aos que por vosso amor recebi no jardim das Oliveiras? Estivestes já, como eu, tristes até à morte? E vossas penas interiores já vos fizeram suar uma grande abundância de sangue? Quando estivestes numa agonia mortal? Vós ficais atônito de serdes traídos por vossos amigos, contristais-vos quando vos pagam com a ingratidão os benefícios! Mas não fui eu abandonado dos meus pobres discipulos no momento mesmo em que acabava de lhes dar a maior prova de amor, nutrindo-os do meu próprio corpo? não fui eu indignamente tratado por esses judeus a quem eu havia curado os enfermos, ressuscitado os mortos, e acumulado os benefícios? Vós irritais-vos por terem para convosco pouca atenção, por vos humilharem, vos desprezarem, desconhecerem o vosso pretendido mérito, e vos preferirem aos que tem menos talentos, menos virtudes do que vós! Mas não fui desprezado eu, Deus como sou? Não fui apupado nas ruas de Jerusalém pela mais vil populaça? Não me tratou Herodes como um insensato? Não fui posto em paralelo com um homicida? Não me puseram abaixo de Barrabás? Vós abandonais-vos à cólera apenas alguém vos mancha a reputação, vos insulta e maltrata! Mas de mim não disseram que eu era um possesso do demônio, um feiticeiro, um blasfemo, um sedicioso? não me escarraram no rosto? não me carregaram de golpes e bofetadas? Não me abandonaram toda uma noite aos insultos e brutalidades dos soldados desenfreados? Vós murmurais à mais pequena doença que vos sobrevém; se se agrava, se se prolonga, já perdeis a paciência! E eu não fui cruelmente flagelado? E não me vedes agora pregado nesta cruz? Em vossos sofrimentos, nas doenças recebeis algum conforto da presença dos amigos, dos remédios que vos dão e dos cuidados que para convosco se tem. E para comigo, que sou vosso Deus, acontece o mesmo? onde estão os que me consolam? onde os amigos que me aliviem e participem dos meus sofrimentos? Onde os remédios para adoçar meus males? Estou só e desamparado; por palavras de consolação ouço blasfêmias; oprimem-me de insultos e ultrajes, botam-me à derrisão, apresentam-me fel e vinagre... Tendes razão de vos queixar e murmurar por terdes de beber algumas gotas do cálice de amargura que eu esgotei todo? não era mais justo antes levardes por meu amor uma leve porção da cruz que por vosso amor não recusei levar eu só? Respondei... Ó cristãos, se soubéreis quantas dores, quantos sofrimentos, quantas penas interiores me custou o arrancar-vos ao inferno, compreenderíeis o ardente desejo que me devora de possuir o vosso coração; compreenderíeis quão horrendo não é cair no inferno, por toda a eternidade; compreenderíeis. enfim, que só a causa que sobre a terra vos cumpria fazer, é servir-me e amar-me! Ah! Meus filhos, pela vossa própria felicidade, dai-me o vosso coração e amai-me. Amo-vos, ó meu Jesus! Sim, amo-vos e quero amar-vos sempre cada vez mais. Ó meu divino Mestre! Dai-me para convosco toda a ternura que anelo, e se meus desejos não tem ainda toda a força e extensão que deviam ter, dai a esta pobre criatura, que acumulastes de vossos favores, que com tanto excesso amastes, que por tantos tormentos salvastes, dai-lhe todo o amor com que vós quereis que vos ame. Ó amor, que sempre estás em chamas e ardes sempre! Fogo divino que nunca te extingues! Ó meu doce Jesus! Ó caridade! Ó meu Deus! Abrasai todas as potencias da minha alma no fogo sagrado do vosso amor. Fazei que ela sinta todas as suas chamas, toda a sua doçura, todos os seus êxtases, e todas as suas ternuras; fazei que vos ame, que vos ame de toda a força e com todo o ardor da vontade; que vos abrace com todas as luzes da sua inteligência, que vos ame de um amor acompanhado de uma viva dor das suas infidelidades passadas, que vos ame, e a nada mais ame senão a vós, nada senão em vós, nada senão por vó; Ó meu Deus! Possa eu amar-vos até o meu ultimo suspiro, e por toda a eternidade! é o que espero da vossa misericórdia. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Da Precipitação Falei-te no capítulo passado da paz do coração; vou hoje falar-te de uma falta muito comum, até entre as pessoas que fazem profissão de piedade; sim muito comum, e só por si capaz de pôr um obstáculo insuperável ao reino dessa paz interior: é a precipitação. Se portanto queres alcançar e conservar a paz interior evita a precipitação. 1 - Em tuas ocupações. Não procures fazer empreender tudo ao mesmo tempo; dá a cada coisa o tempo que ela pede, e não desejes ver terminada, quando ainda mal está começada; porque nada lança tanta perturbação e distração numa alma como esses desejos veementes e impetuosos. Não te sobrecarregues de ocupações muito multiplicadas e ás quais não possas bastar. 2 - Em tuas boas obras. Faz o bem, mas com peso e medida; assim mais sólido será. Quando resolveres empreender uma coisa que julgas útil à gloria de Deus e à salvação do próximo, não ponhas logo em movimento céu e terra, deixa-me assim dizer, para chegar subitamente ao fim a que te propões, mas obra com tranquilidade. Nisto toma o exemplo do mesmo Jesus Cristo, que trinta anos esperou antes de anunciar ao mundo o seu Evangelho, e trabalhar diretamente na salvação das almas. Quando a alguém dás sábios conselhos e vês que não aproveita, não percas por isso a paz: mas continua com caridade rendendo-lhe o mesmo serviço; o resto Deus o fará. O zelo por nosso adiantamento na piedade, pela conversão do próximo, é uma virtude, enquanto sereno, e resignado à vontade de Deus, mas se é um zelo desatinado, sem comedimentos, sem paciência, um zelo que pretende num dia fazer de um pecador um santo consumado, um zelo que não quer esperar os momentos marcados pela sabedoria do Altíssimo, ai! É um zelo falso, deves-te desfazer dele, porque semeia a perturbação em tua alma. Não ponhas também demasiada solicitude nos exercícios de piedade cedendo ao desejo de os multiplicar muito: nisto, como em tudo o mais, segue os conselhos do teu diretor, e grava bem na memória estas palavras de São Francisco de Sales: "Não é de modo algum pela multiplicidade das coisas que fazemos, que nos adiantamos na perfeição, mas pelo fervor e pureza da intenção com que as fazemos." Capítulo XXX - Jesus ora por seus inimigos - "Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 23,34). Jesus acabava de ser pregado na cruz, via circular em volta de si os autores do seu suplício e os seus algozes. Lança sobre eles um olhar, eleva em seguida os olhos ao céu, e exclama: "Meu Pai!" Tinha guardado silencio enquanto o crucificavam; eis que o rompe e invoca a seu Pai; escutemos o que lhe vai pedir. Dir-lhe-á ele: "Meu Pai: vós sois testemunha dos meus sofrimentos, sois testemunha dos ultrajes indignos de que me cobrem e sabeis a minha inocência; fazei, pois cair sobre este povo ímpio todo o peso da vossa vingança?" Não, não, tal não será a súplica do nosso bom Jesus. Alma cristã, que isto meditas, atenção, e aprende a conhecer a misericórdia infinita do nosso Salvador. "Meu Pai, brada, meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!" Oh! Quão grande era a chama de amor que abrasava o coração deste doce Redentor, pois que no mais forte das suas dores, e no tempo em que a veemência dos seus tormentos lhe tirava o poder de orar por si mesmo, a força do seu amor para com os homens faz que ore por seus inimigos e exclame com uma voz forte: Pater dimitte illis: "Meu Pai, perdoai-lhes!". Assim, para nos mostrar que o amor que nos tinha era tão ardente que não podia ser diminuído por sorte alguma de penas ou tormentos, e para nos ensinar também quão dispostos havemos de estar a perdoar ao nosso próximo (São Francisco de Sales, sermão de Sexta-feira Santa). Ó meu Jesus! Como sois rico de misericordiosas! E qual é o pecador que depois de um tão belo exemplo de clemência, desespere do perdão dos seus pecados? Ó minha alma! Confiança, e não te deixes abater pela multidão de tuas iniquidades. És agitada por mil e mil diferentes paixões, és atormentada por mil e mil tentações; não importa: confiança! Ainda tens um refugio segui o nas chagas de Jesus; corre a refugiar-te nelas porque são penhores do seu amor para contigo. Que direitos não tens a esperar do teu Salvador, tu que agora choras os teus pecados, quando sabes que ele perdoa aos que o crucificaram e que orou por eles com tanta bondade? Mas se por ele mais prontamente queres ser ouvida, se mais seguramente queres obter o favor de Jesus; se queres gozar o seu amor, perdoa como ele, e tão sinceramente como ele, ao teu irmão, quando te ofender. Perdoa-lhe faltas pequenas, para que Deus te perdoe as grandes. Pede pela sua salvação, como pedes pela tua, e tornar-te-ás digno de Jesus que te ordenou que amasses os teus inimigos, e orasses por eles. Ah! qual não será a tua confiança ao sair desta vida, se poderes ter a consoladora consciência de que sempre suportaste pacientemente as injurias, as afrontas e os desprezos, e que sempre os perdoaste? Senhor Jesus, vós que dissestes: "Perdoai e ser-vos-á perdoado", dignai-vos perdoar-me todas as ofensas de que me tornei culpável para convosco, porque perdoo de todo o meu coração a quem me causou penas. Sim, perdoo-lhe, como vos peço que me perdoeis, e estou pronto a fazer-lhes todo o bem possível, se achar ocasião. Em compensação, ó meu Salvador! Dai-me o vosso amor. Oh! Com vosso amor, nada mais me faltará que a vista da vossa gloria no céu, com vosso amor não temerei as injurias nem as afrontas, nem os desprezos, nem as contradições deste mundo: com vosso amor os trabalhos, as cruzes, as humilhações, tudo se me tornará doce e agradável; com vosso amor, ó meu Jesus! A pobreza se converterá em riquezas, as lágrimas em alegria, as tribulações em paz, as privações em gozos; com vosso amor, a vida mais crucificada para mim só terá delicias, a mesma morte perderá todos os seus horrores. Ó divino Jesus! Feliz, mil vezes feliz o homem que vos ama! Possa eu mesmo amar-vos sempre, sempre, sempre! Ó Maria! Obtende-me esta graça. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS O Perdão das Injúrias "Não se ponha o sol sobre a vossa cólera", diz o Apóstolo, mas perdoa sem demora a quem te ofendeu, se queres que Deus te perdoe. Não conserves aversão contra o teu próximo, meu caro Teótimo, qualquer que seja o mal que te haja feito; pelo contrario, a exemplo de Jesus Cristo, perdoa-lhe de todo o teu coração e ora por ele. Abafa ao nascer todo o desejo de vingança, se não estás exposto à cometer muitas faltas. - Mas vais tu talvez dizer-me, não perdoo com tanta pressa ao meu inimigo; traiu-me; insultou-me; desonrou-me; fez-me todo o mal possível; devo vingar-me. - Queres vingar-te? pois bem! anda comigo aos pés da cruz, levanta os olhos a Jesus crucificado, escuta as palavras que pronuncia: "Meu Pai, perdoai-lhes", e ousas depois disto dizer: "Eu não perdoarei, quero regalar-me em me vingar! - Se fosse um outro, de boa vontade lhe perdoaria; mas é um miserável que não merece a minha amizade." - E tudo, meu caro Teótimo, permite-me que t'o pergunte, mereces a de Jesus Cristo, depois de tantos pecados que cometeste? - Então estou obrigado a amar uma pessoa que me não ama e me persegue? - Sim, estás obrigado: "Amai os vossos inimigos, diz o nosso bom Mestre, fazei bem aos que vos aborrecem, e orai pelos que vos perseguem e caluniam: porque, se amais só aos que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem outro tanto os publicanos?" - Pois sim, desta vez perdoo ao meu inimigo, mas que não volte segunda. - Meu caro Teótimo, não é uma vez que deves perdoar, mas "setenta vezes sete vezes, diz Jesus Cristo, isto é, sempre". Continuamente estás a carecer da misericórdia de Deus; deves portanto exercê-la tu também, e exerce-la para com todos. - Perdoar perdoo eu, mas tenho boa memória; nunca poderei esquecer o mal que me fez. - Queres com isso dizer que também tu não queres que Deus se esqueça dos teus pecados, porque ele tratar-te-á como houveres tratado o teu próximo. - Perdoo-lhe, mas não o quero ver. - Ah! que dizes, Teótimo? não queres ver o teu inimigo, afastas os olhos quando o encontras! Depois disto, ousas ainda pedir ao Senhor que lance sobre ti olhos de misericórdia! Responde. - Não lhe quero mal. - Isto não basta: é preciso querer-lhe bem, ama-lo como a ti mesmo, afligires-te quando o vires em pena; impedi-lo de cair, etc. (cf os pensamentos do Padre Humbert). Arranca desapiedadamente do teu coração o menor azedume contra o próximo, e ora com mais fervor pelos que poderiam ser-te objeto de penas; perdoa-lhes, a exemplo de Jesus Cristo, e escusa-os, porque as mais das vezes obram sem a intenção de te molestar. Se perdoares sempre, poderás dizer então a Deus com segurança, e sem temer uma repulsa: "Meu Pai, perdoai-me as minhas ofensas, como perdoei aos que me ofenderam." Capítulo XXXI - O bom ladrão - "Senhor, lembrai-vos de mim quando entrardes no vosso reino" (Lc 23,42). Esta foi a oração do bom ladrão, que por sua fé e confiança mereceu de Jesus esta resposta: "Hoje estarás comigo no paraíso." Pedira apenas uma simples recordação, e Jesus promete-lhe o seu reino: tão liberal é o nosso bom Mestre! Tão disposto está sempre a dar muito mais do que se lhe pede! Mas quem não se assombrará sobre a profundeza dos conselhos de Deus? No momento em que o bom ladrão dizia a Jesus: "Senhor, lembrai-vos de mim quando estiverdes no vosso reino", estava este divino Salvador num estado de aflição e humilhação sem exemplo. Seus discipulos haviam-no abandonado, um deles o trairá e vendera, renegara-o outro três vezes, os judeus vomitavam contra ele blasfêmias, expunham-no à irrisão os gentios, quase ninguém acreditava nele. E é neste momento em que Jesus perdia todo o credito para com a maior parte dos que o conheceram, que este bom ladrão, interiormente iluminado da divina graça, o reconhece por seu Rei e seu Deus... Os discípulos de Jesus tinham tanto tempo conversado com ele; ouvido a sua admirável doutrina, tinham um perfeito conhecimento de sua vida, dos seus milagres; e sua fé foi, todavia, terrivelmente abalada, quando o viram pregado na cruz. Ao contrario, o bom ladrão não ouvia a voz de Jesus, senão quando orou por seus algozes; não conhecia a sua doutrina nem os seus milagres, e eis que sobrepuja em constância aos apóstolos e faz uma publica profissão de fé... Que objeto para sérias meditações! Oh! como este exemplo nos deve ensinar que o menor dos homens é potente com a graça, e sem ela é mais fraco o maior dentre eles! O' meu Jesus! Permiti-me que vos diga como o bom ladrão: "Lembrai-vos de mim quando estiverdes no vosso reino." Recordai-vos que sou uma dessas pobres ovelhas desgarradas pelas quais jejuastes, orastes, suastes, passastes toda a vossa vida nos trabalhos, pelas quais neste momento morreis. Lembrai-vos que "sou obra das vossas mãos e que gravastes sobre a minha fronte a luz do vosso rosto". Lembrai-vos de mim, ó bom Jesus! não desprezeis a minha oração, e concedei-me a vosso amor com o perdão dos meus pecados. - Meu filho, ouvirei a tua oração, como ouvi a do bom ladrão, se, como ele, te puseres sobre a cruz. Só pela cruz se pode ir ao céu; a esta grande recompensa dos eleitos só chega quem antes tiver suportado grandes trabalhos. Sim, repito-o, não se pode ir ao céu, senão pela cruz. Toma, pois, essa cruz, e leva-a com coragem, humildade e amor. "Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso." Oh! Doce palavra que acaba de sair da boca de Jesus! Feliz ladrão! O teu coração deveu experimentar uma consolação inefável; devestes ver chegar a morte com grande tranquilidade! Morre-se em paz quando Jesus faz uma tal promessa. Meu Deus, que confiança em vossa misericórdia me inspira o pensamento da bem-aventurada morte do bom ladrão! Não que eu por isso pretenda pecar com mais segurança, ou retardar o momento da minha inteira conversão; certamente, que não: longe de mim tal presunção. Mas este pensamento faz com que me diga a mim mesmo: Pois que Deus perdoou com tanta bondade a este ladrão sobre a cruz, e lhe prometeu o paraíso, para que temer eu, pobre pecador? Ó meu Jesus! A vista dos meus pecados me aflige, e confesso-vos que sua multidão me lançaria no desespero, se não conhecera a grandeza das vossas misericórdias, e não tivera diante dos olhos tantos exemplos de pecadores arrependidos que vós recebestes com bondade. Maria Madalena vai lançar-se a vossos pés, que ela com suas lágrimas banha, e imediatamente lhe perdoais todos os pecados. Três vezes vos nega Pedro; mas Pedro chora a sua falta, e num instante lhe restituis a vossa graça. Apresentam-vos uma mulher adultera, e vós não quereis condena lá; mas a despedis com doçura recomendando-lhe que não peque mais. O! meu dulcíssimo Jesus! minha misericórdia, meu refugio, meu protetor, meu amor, minha vida, meu tudo, tende piedade de mim, porque sou um grande pecador. Lembrai-vos de mim agora que estais no vosso reino, e não me abandoneis na hora da morte. Quando me começarem a desfalecer as força, a voz a extinguir-se, quando os olhos se obscurecerem e os ouvidos já não poderem ouvir, nesse momento terrível, de onde depende a minha eternidade, ó misericordioso Jesus! Vinde em meu socorro. Ó Jesus! Ó doce Jesus! Abandono-vos o cuidado dos meus últimos momentos. Assim seja. RESOLUÇÕES PRÁTICAS Confiança sem limites na Misericórdia de Deus Feliz, mil vezes feliz a alma que sem cessar medita no amor de Deus por nós, e sobre a grandeza das suas misericórdias! Ó! Meu caro Teótimo, que alta ideia te quisera eu dar da ternura, da bondade,, da clemencia do nosso Deus! que confiança na misericórdia de Jesus, nosso doce Salvador, desejava inspirar-te! ai! não padece duvida que o que impede muitas almas de fazer grandes progressos no amor de Jesus, é um temor servil que nutrem dentro de si mesmas, e que lhes faz ver no melhor amigo um senhor rigoroso prestes sempre a se irar. Não, não, Jesus não é um senhor rígido: é um pai terno e compassivo; é "cheio de clemencia e compaixão; é tardio em castigar, é pródigo de misericórdias; é bom para todos, e a sua comiseração repousa sobre todas as suas obras". Dá-te, meu caro Teótimo, a fazer nascer e nutrir em tua alma uma confiança sem limites na misericórdia de nosso Senhor, e persuade-te bem que darás uma alegria sensível a este bom e terno amigo, abandonando-te sem reserva ao seu amor. - Temo, dirás tu, por causa dos meus pecados passados. Deves chora-los incessantemente, verdade é; mas, uma vez que os confessaste e detestaste, para que fazer a Jesus a injuria de crer que ele não te os perdoou? Faze melhor; lança-te em seus braços, como um filho se lança nos braços de sua mãe, e dize-lhe: "Meu bom Mestre, amo-vos, e tenho confiança em vossa misericórdia." Meu Deus! Quantas almas fieis que se atormentam com vãos escrúpulos por suas confissões, comunhões, exercícios de piedade, que vulneram o coração de nosso Senhor, por contínuas desconfianças, não avançariam muito mais e mais seguramente por um só ato de confiança em Deus? Ó meu Jesus! Quero ter sempre confiança em vós, até no meio das maiores desolações interiores, porque sei quanto me amais, e que desejais a minha salvação mais do que eu mesmo, Sim, ó bom Jesus! Em vós quero ter confiança, aconteça o que acontecer; em vosso coração me lanço, nele quero exalar o meu ultimo suspiro; nele nada temerei. Esta deve ser a tua oração em todas as circunstâncias, particularmente no tempo dos desgostos, das securas e tentações. ORAÇÃO A MARIA - Para lhe pedir nos obtenha a Graça de uma Boa Morte Ó dulcíssima Maria! qual será a minha morte, miserável pecador! Quando penso neste terrível momento em que deverei apresentar-me no tribunal de Deus, e me lembro de tantas vezes por minhas iniquidades ter escrito a sentença da minha condenação, tremo, abismo-me, desespero da minha eterna salvação. Ó Maria! É no sangue de Jesus Cristo e na vossa intercessão que ponho a minha esperança. Sois a Rainha do céu, a Soberana do universo, e, para dizer tudo, a Mãe de Deus! sois mui grande, mas em vez de vos apartar de nossas misérias, essa grandeza vos faz aproximar e compadecer-vos delas. Os amigos mundanos, quando se veem elevados a alguma dignidade, fogem e desprezam os seus antigos amigos deixados no infortúnio; não é assim o vosso nobre e terno coração; quanto maiores são as misérias, mais se aplica a alivia-las. Apenas vos invocam, correis; prevenis as nossas orações por vossos favores; consolais-nos nas aflições, dissipais as tempestades, desbaratais os nossos inimigos; em uma palavra, não desprezais ocasião alguma de procurar a nossa felicidade. Bendita seja para sempre a mão de Deus que em vós reuniu tanta majestade e ternura, tanta grandeza e amor! Eternamente renderei graças ao Senhor; em mim me regozijo, porque na vossa felicidade acho a minha, e associo minha sorte à vossa. Ó consoladora dos aflitos! Consolai o aflito que vos implora. Sinto-me comprimido dos remorsos da minha consciência carregada de tantos pecados; não sei se os choro como devo; todas as minhas obras me parecem imundas e imperfeitas; o inferno espera a minha morte para se constituir meu acusador; a divina justiça ofendida quer ser satisfeita. Ó minha Mãe! Que seria de mim? Dizei-me, dignar-vos-eis socorrer-me? Ó Virgem compassiva! Consolai-me; obtende-me a força de me corrigir e ser fiei a Deus durante o resto da minha vida. E quando me achar nas agonias da morte, ó Maria, minha esperança! Não me abandoneis; assisti-me, fortificai-me para não cair no desespero á vista das minhas faltas que o demônio não deixa de me opor. Ó minha soberana! perdoai a minha ousadia: vinde vós mesma consolar-me com a vossa presença. Esta graça que a tantos outros fizestes, a peço também para mim. Se é grande a minha temeridade, maior é a vossa bondade que vai procurar os mais miseráveis para os consolar; é o motivo da minha confiança. Constituirá a vossa gloria eterna em haver salvado um desgraçado condenado, e tê-lo conduzido para o vosso reino, onde espero achar-me um dia a vossos pés, para vos agradecer, bendizer e amar eternamente. Ó Maria, espero por vós; não me deixeis sem consolação. Fiat, fiat. Assim seja (Santo Afonso de Ligório, Glorias de Maria. Tomo 1)..

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Vitória:

Adalaide McNeil, Adirondack: Alfred University. Guarujá: State University of New York Downstate Medical Center; 2015.

Willow Howell, Otsego County. Mato Grosso: Keuka College, Keuka Park; 2018.

Hannah Babcock, Central Park N zip 10025. Birigui: Niagara University, Lewiston; 2013.

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