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St. John's University - QUARTO LIVRO - Nos três livros anteriores, santo amigo Ambrósio, expus com pormenores o que me ocorreu ao espírito para responder ao tratado de Celso. Chego a quarto livro contra as objeções que seguem, depois de ter orado a Deus por intercessão de Cristo. Oxalá me sejam dadas palavras tais como lemos em Jeremias, quando o Senhor falava ao profeta: "Eis que ponho as minhas palavras em tua boca. Vê! Eu te constituo, neste dia, sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar" (Jr 1,9-10) Doravante preciso de palavras capazes de arrancar pelas raízes as ideias contrárias à verdade de toda alma enganada pelo tratado de Celso ou por pensamentos semelhantes aos seus. Tenho também necessidade de ideias que ponham abaixo os edifícios de toda opinião falsa e as pretensões do edifício de Celso em seu tratado, semelhantes à construção dos que dizem: "Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus!" (Gn 11,4) Preciso também de sabedoria capaz de abater todos os poderes altivos que se levantam "contra o conhecimento de Deus" (2Cor 10,5), e o poder arrogante da jactância de Celso que se ergue contra nós. E como não devo me limitar a erradicar e a destruir todos esses erros, mas, em lugar daquilo que é erradicado, plantar a plantação do campo de Deus (cf 1Cor 3,9), em lugar do que é destruído, construir o edifício de Deus e o templo da glória de Deus - eis as razões por que devo orar ao Senhor, dispensador dos dons mencionados em Jeremias - que dê também a mim palavras eficazes para construir o edifício de Cristo e plantar a lei espiritual e as palavras dos profetas que a ela se referem. Devo sobretudo estabelecer, contra as objeções atuais de Celso em sequência às anteriores, que a vinda de Cristo foi realmente predita. De fato, ele se dirige ao mesmo tempo contra os judeus e contra os cristãos: contra os judeus que negam que a vinda de Cristo já se tenha realizado mas esperam que ocorra, e contra os cristãos que professam que Jesus é o Cristo predito, e afirma: A descida divina e suas razões - Eis a pretensão de certos cristãos e judeus: um Deus ou Filho de Deus, segundo uns desceu, segundo outros descerá à terra para julgar seus habitantes: palavras tão vergonhosas que não carecem de longo discurso para serem refutadas. Parece de fato falar com exatidão quando diz, não alguns judeus, mas todos os judeus acreditam que alguém descerá à terra, ao passo que alguns cristãos apenas dizem que ele desceu. Quer indicar aqueles que estabelecem pelas Escrituras judaicas que a vinda de Cristo já se realizou, e parece conhecer a existência de seitas que negam que o Cristo Jesus seja a pessoa profetizada. Mas eu já deixei claro acima da melhor forma possível que Cristo fora profetizado; por isso não voltarei às numerosas provas que poderiam ser apresentadas a este respeito, a fim de evitar as repetições. Repara, pois, que se ele tivesse querido, com uma lógica pelo menos aparente, derrubar a fé nos profetas ou na vinda futura ou passada de Cristo, devia citar as próprias profecias às quais, nós, cristãos ou judeus, recorremos em nossas disputas. Desta forma, pelo menos aparentemente, teria desviado os que são atraídos, segundo creem, por seu caráter ilusório, da adesão às profecias e da fé, fundada nelas, em Jesus como Cristo. Mas de fato, por incapacidade de responder às profecias feitas sobre Cristo, ou por ignorância total das predições feitas sobre ele, não cita uma única passagem profética, quando existem inúmeras sobre o Cristo. Pensa que pode acusar os textos proféticos, sem apresentar o que ele chama de seu argumento ilusório. Ignora, em todo caso, que os judeus não dizem absolutamente que Cristo, Deus ou Filho de Deus, descerá, como acima eu disse. - Mal afirma ele que Cristo, segundo nós desceu, segundo os judeus descerá como juiz, e logo se julga autorizado a chamar tal discurso de vergonhoso, a ponto de não precisar de longa refutação. E continua: Que finalidade teria para Deus tal descida? Ele não vê que, segundo nós, a finalidade desta descida é principalmente converter "as ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 10,6; 15,24), em segundo lugar, retirar aos antigos judeus "o Reino de Deus, por causa de sua incredulidade", e confiá-lo a outros vinhateiros, os cristãos, que "entregarão" a Deus "os frutos, no tempo devido", quando cada ação será fruto do Reino de Deus. Apresentei estas razões entre muitas outras para responder à pergunta de Celso: "Que finalidade teria para Deus tal descida?" Mas Celso inventa assuntos que não têm nada que ver com os judeus nem conosco: Será para aprender o que ocorre entre os homens? Pois ninguém de nós diz que Cristo veio a esta vida para aprender o que acontece no meio dos homens. Depois, como alguns diziam que é para aprender o que acontece entre os homens, ele responde à questão proposta: Então ele não sabe tudo? E como se nós respondêssemos sim, ele levanta uma nova dúvida: Será então que, sabendo, ele não reforma e não pode reformar seu poder divino? São tantas tolices quantas as palavras! Com efeito, por seu Logos que desce a cada geração nas almas pias e as constitui amigas de Deus e profetas, Deus reforma os que ouvem suas palavras; e no tempo da vida de Cristo, ele reforma pelo ensinamento do cristianismo, não os recalcitrantes, mas os que elegeram a melhor vida que agrada a Deus. Mas não sei que reforma Celso deseja realizada quando propõe nova questão: Ser-lhe-á então impossível reformar por seu divino poder, sem enviar alguém destinado por natureza a este objetivo? Teria ele então desejado que a reforma fosse realizada entre homens dotados de visões por Deus que, tendo-lhe subitamente tirado a malícia, implantaria neles a virtude? Poderíamos perguntar se isto estaria de acordo com a natureza ou até se seria possível. Eu diria: admitamos que seja possível; que seria de nossa liberdade? Em que a adesão à verdade seria louvável, digna de aprovação a recusa de mentira? E ainda que se admita que a coisa é possível e conveniente, por que não propor de uma vez a questão, apoiada na afirmação de Celso: era então impossível para Deus criar por seu divino poder uma humanidade que não tivesse necessidade de reforma, imediatamente virtuosa e perfeita, sem a existência da menor malícia? Concepção que pode seduzir os simples e sem inteligência, mas não aquele que examina a natureza das coisas. Porque destruir a liberdade da virtude é destruir-lhe a própria essência. A matéria demandaria estudo total. Os próprios gregos trataram deste assunto longamente em seus livros sobre a Providência, e não aprovariam a proposição de Celso: "Ele sabe, mas não reforma, e lhe é impossível reformar por seu divino poder." Também eu, por diversas vezes, tratei deste assunto do melhor modo, e as divinas Escrituras provaram-no para os que podem compreendê-las. - Devolveremos contra Celso o que ele nos objeta a nós e aos judeus: então, meu caro, o Deus supremo sabe por acaso o que se passa entre os homens, ou não sabe? Mas se afirmas que existe um Deus e uma Providência, como teu tratado dá a entender, necessariamente ele sabe. E se ele sabe, por que não reforma? Será que devemos explicar por que, embora sabendo, não reforma? Ainda que tu, em tua obra, não te apresentes precisamente como epicureu, mas pareças reconhecer a Providência, não terás de dizer igualmente por que Deus, sabendo tudo o que se passa entre os homens, não reforma e não liberta a todos os homens do mal por seu divino poder. Mas nós não temos vergonha de dizer que Deus envia continuamente pessoas para reformar os homens: é por um dom de Deus que se encontram na humanidade as doutrinas que os convidam às mais altas virtudes. Mas entre os ministros de Deus, existem muitas diferenças: alguns poucos há que pregam em toda a sua pureza a doutrina da verdade e realizam uma reforma perfeita. Assim foram Moisés e os profetas. Superior, no entanto, à obra realizada por eles em benefício de todos é a reforma operada por Jesus, que quis curar não só os habitantes de um canto da terra, mas, enquanto dependesse dele, os do mundo inteiro; pois ele veio como "Salvador de todos os homens" (1Tm 4,10) - Depois disto, o nobilíssimo Celso, não sei por que razão, nos põe uma dificuldade pelo que diríamos: Deus em pessoa descerá aos homens. Segundo ele, o resultado é que Ele abandona seu trono. A verdade é que ele ignora o poder de Deus, e que "o espírito do Senhor enche o universo, dá consistência a todas as coisas, sabe tudo o que se diz" (Sb 1,7). Não pode compreender a palavra: "Não sou eu que encho o céu e a terra? Oráculo do Senhor" (Jr 23,24) Ele não vê que, segundo a doutrina dos cristãos, todos juntos "nele vivemos, nos movemos e existimos" (At 17,28), como Paulo ensinou em seu discurso aos atenienses. Então, quando o Deus do universo por seu próprio poder desce com Jesus à existência humana, e quando o Logos, "no princípio em Deus" e sendo ele mesmo Deus, vem até nós, ele não deixa seu lugar e não abandona seu trono, como se houvesse primeiro um lugar vazio, sem ele, e em seguida outro cheio dele, que antes não o continha. Pelo contrário, o poder e a divindade de Deus vem por aquele que ele quer e em quem ele encontra um lugar, sem mudar de lugar nem deixar seu lugar vazio para encher outro. Desta forma, quando dizemos que ele sai de alguém e enche alguém, não explicamos em sentido local. Diremos que a alma da pessoa má mergulhada no vício é abandonada por Deus, explicaremos que a alma de quem quer viver na virtude, que nela faz progressos, que já leva esta vida, está cheia ou se torna participante do espírito divino. Para que Cristo desça aos homens, para que Deus se volte para eles, não é portanto necessário que ele abandone um trono elevado, nem que mude as coisas da terra, como pensa Celso, que diz: Mudar a menor coisa deste mundo seria transtornar e destruir o universo. Mas se devemos dizer que as coisas mudam pela presença do poder de Deus e pela vinda do Logos aos homens, diremos sem hesitar que é mudar da perversidade à virtude, da licença à temperança, da superstição à piedade abrir a alma à virtude do Logos de Deus. - Se desejas minha resposta às afirmações mais ridículas de Celso, ouve o que ele diz: Mas, desconhecido entre os homens e julgando-se assim diminuído, será que Deus talvez quisesse ser reconhecido e pôr à prova os cristãos e os não cristãos, como novos-ricos ávidos de ostentação? É atribuir a Deus uma ambição excessiva e por demais humana! Minha resposta é que Deus, desconhecido pela maldade dos homens, desejaria ser reconhecido, não porque se julgue diminuído, mas porque seu conhecimento liberta da desgraça aquele que o reconhece. Além disso, não é no intuito de pôr à prova os cristãos ou os não cristãos que ele mesmo habita em alguns pelo seu misterioso e divino poder ou lhes envia seu Cristo; é para afastar de todo mal os cristãos que acolhem sua divindade e para tirar aos não cristãos a ocasião de escusar sua falta de fé alegando não entender seu ensinamento. Por isso, que argumento pode mostrar que, na lógica de nossa doutrina, Deus faria o papel, conforme o que afirmamos, dos novos-ricos ávidos de ostentação? Longe de ser ávido de ostentação conosco quando ele deseja nos fazer conhecer e compreender sua excelência, Deus quer implantar em nós a felicidade que nasce em nossas almas por ser conhecido de nós; e se empenha seriamente, por Cristo e pela incessante vinda do Logos, em nos fazer receber a intimidade com ele. A doutrina cristã não atribui a Deus nenhuma ambição humana. - Mas, não sei por quê, depois de vãs ninharias sobre o que acabo de dizer, ele explica: Não é por causa de si que Deus deseja ser conhecido, é por nossa salvação que ele quer levar-nos ao conhecimento de si mesmo; para que aqueles que recebem este conhecimento, tornando-se virtuosos, sejam salvos, e os que recusam, manifestando sua malícia, sejam castigados. Posto isto, ele objeta: Será então agora, depois de tantos séculos, que Deus se lembrou de julgar a vida dos homens, quando antes ele não se importava com ela? A isto respondo: não existe tempo em que Deus não tenha querido julgar a vida dos homens. Além disso, ele sempre cuidou de oferecer ocasiões de virtude e também de reformar o ser racional. A cada geração, a sabedoria de Deus, penetrando nas almas dos homens que ela julga piedosos, faz deles amigos de Deus e dos profetas. E, sem dúvida, poderíamos encontrar nos livros sagrados aqueles que em cada geração foram piedosos e capazes de receber o espírito divino, e empenharam os melhores esforços para converter seus contemporâneos. - Não admira que, em certas gerações, alguns profetas, por causa de sua vida mais generosa e mais ativa, ultrapassem em sua capacidade de receber a Deus a outros profetas, alguns de sua época, outros antes ou depois deles. Tampouco admira que num tempo determinado tenha vindo ao gênero humano um ser extraordinário, superior aos que o precederam ou aos que viriam mais tarde. Mas a razão destas disposições tem profundidade muito grande e mistério tão imenso para ser plenamente acessível ao entendimento comum. Para elucidar a questão e responder à objeção sobre a vinda de Cristo: "Será então agora, depois de tantos séculos, que Deus se lembrou de julgar a raça humana, quando antes ele não se importava com ela?", devemos abordar o assunto das divisões de povos e dizer claramente por que "quando o Altíssimo repartia as nações, quando espalhava os filhos de Adão, ele fixou fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus; mas a parte do Senhor foi seu povo Jacó, e o lote de sua herança, Israel" (Dt 32,8-9) E deveremos dizer a causa do nascimento dos homens em cada região, sob a dominação daquele que recebeu a região em herança; e como era lógico que "a parte do Senhor fosse seu povo Jacó, e Israel o lote de sua herança"; e por que, sendo antes "seu povo Jacó a parte do Senhor, e Israel o lote de sua herança", pelos séculos dos séculos o Pai diz a seu Filho: "Pede, e eu te darei as nações como herança, os confins da terra como propriedade" (Sl 2,8) De fato, para as economias diferentes há, com respeito às almas humanas, razões lógicas e concatenadas que são indizíveis e inexplicáveis. - Mas, apesar da negação de Celso, depois de numerosos profetas que tinham reformado este povo de Israel, Cristo veio como reformador do mundo inteiro, sem ter necessidade, como por ocasião da primeira economia, de aplicar contra os homens chicotes, cadeias, instrumentos de tortura. Pois, "quando o semeador saiu para semear" (Mt 13,3), seu ensinamento foi bastante para que a doutrina fosse semeada por toda parte. Supondo-se que venha um tempo que imponha ao mundo um limite que é necessário, porque ele teve um começo, e venha igualmente um fim para o mundo, e depois do fim, um justo juízo universal, então o filósofo deverá estabelecer as verdades desta doutrina mediante provas de toda espécie, tiradas das divinas Escrituras, ou deduzidas por raciocínios; e o povo simples, incapaz em sua simplicidade de seguir pelo pensamento os aspectos muito variados da sabedoria de Deus, deverá confiar-se a Deus e ao Salvador de nossa raça, mais satisfeita com a afirmação "ele disse" do que com qualquer outra razão. - Em seguida, Celso nos acusa novamente, como de costume, sem nada estabelecer nem provar, de falatório sem piedade nem pureza sobre Deus, e diz: É muito claro que estamos aí diante de um falatório sem piedade nem pureza. Ele chega a pensar que fazemos isto para assustar os simples, evitando dizer a verdade sobre os castigos inevitáveis para aqueles que pecaram. Por isto nos compara aos mistagogos das iniciações báquicas que evocam espectros e fantasmas. Que digam os gregos se as iniciações nos mistérios de Baco apresentam ou não uma doutrina plausível; que Celso e seus adeptos entrem para a escola deles! Nós, porém, defendemos a nossa doutrina desta forma: nosso objetivo é reformar o gênero humano quer por ameaças de castigos que acreditamos necessários a todos, certamente benéficos para aqueles que devem sofrê-los, quer pelas promessas àqueles cuja vida foi virtuosa, inclusive as da bem-aventurança no Reino de Deus para aqueles que merecem viver sob sua realeza. Dilúvios e incêndios - A seguir, ele pretende fazer passar que nós nada dizemos que mereça atenção nem de novo sobre os dilúvios e os incêndios, e ainda mais, que entendendo erradamente o que deles dizem os gregos ou os bárbaros, acreditamos no relato que deles nos fazem as Escrituras, e declara: Entendendo erradamente estas doutrinas, ocorreu-lhes a ideia que, depois dos ciclos de longas durações e retornos e conjunções de estrelas, ocorreram incêndios e dilúvios, e que depois do último dilúvio no tempo de Deucalião, o retorno periódico conforme a alternância do universo exige um incêndio. Daí vem a opinião errônea segundo a qual Deus descerá como carrasco armado de fogo. Responderei: não sei como Celso, homem de tanta leitura, mostrando que conhece muitas histórias, não atentou para a antiguidade de Moisés, cujo nascimento alguns escritores gregos referem no tempo de Ínaco, filho de Foroneu, cuja grande antiguidade os egípcios e os especialistas da história fenícia reconhecem. Além disso, qualquer pessoa pode ler os dois livros de Flávio Josefo sobre as Antiguidades judaicas para saber o quanto Moisés era mais antigo do que aqueles que disseram que há no mundo, depois de longos períodos, dilúvios e incêndios: estes autores, cristãos e judeus, segundo Celso, teriam compreendido erroneamente tais fenômenos, e entendendo mal o sentido do incêndio, teriam dito: "Deus descerá como carrasco armado de fogo". - Mas, não cabe aqui tratarmos se houve ou não ciclos, e em cada ciclo dilúvios e incêndios, nem tampouco do que diz a Escritura, especialmente na passagem de Salomão entre muitas outras: "O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer" (Ecl 1,9) etc. Basta observar simplesmente que Moisés e alguns dos profetas, autores muito antigos, não tiraram de outros sua doutrina dos incêndios; pelo contrário, levando em consideração as épocas, os outros os entenderam mal, por não saberem exatamente o que tinham dito, imaginaram em cada ciclo repetições bem parecidas em suas características essenciais e acidentais. Para nós, em vez de atribuirmos os dilúvios e os incêndios aos ciclos e aos retornos periódicos das estrelas, nós lhes damos como causa a devassidão dos vícios, destruídos pelos dilúvios ou pelos incêndios. E as expressões proféticas sobre Deus que desce e diz: "Não sou eu que encho o céu e a terra? Oráculo do Senhor" (Jr 23,24), nós as entendemos em sentido figurado. Pois Deus desce de sua própria grandeza e majestade para lidar com assuntos humanos e principalmente com os maus. E como a linguagem usual diz que os mestres descem ao nível das crianças, e os sábios e os que progridem ao dos jovens que acabam de se voltar para a filosofia, sem com isso dizer que se trata de uma descida corporal, assim também, se em alguma parte das santas Escrituras se diz que Deus desce, compreende-se esta expressão segundo o emprego usual do termo; e o mesmo acontece com subir. - Mas, considerando que Celso, ao nos criticar, nos atribui a crença de que Deus desce do céu como um carrasco armado de fogo e nos força absurdamente a investigar as razões profundas do que afirmamos, digamos algumas palavras suficientes para delinear aos leitores uma defesa que anule a zombaria de Celso contra nós; depois, passaremos ao que nos interessa. A divina Escritura, é verdade, afirma que nosso Deus é "um fogo devorador" (cf Dt 4,24, 9,3; Hb 12,29), que "rios de fogo correm diante dele" (cf Dn 7,10), que ele se adianta "como o fogo do fundidor e como a lixívia dos lavadeiros" (Ml 3,2) para provar seu povo no crisol. Portanto, quando diz que é um "fogo devorador", procuramos o que merece ser devorado por Deus, e respondemos que Deus devora como um fogo a malícia e todas as ações que ela inspira, ditas em sentido figurado "madeira, feno, palha". Por exemplo, diz-se que o homem mau, sobre um fundamento já colocado, "constrói com madeira, feno e palha". Portanto, se fosse possível mostrar que o escritor põe aí outro significado e provar que o homem mau constrói materialmente com madeira, feno e palha (cf 1Cor 3,12), é claro também que o fogo deveria ser compreendido como material e sensível. Mas, se pelo contrário, é em sentido figurado que as obras do mau são de madeira, feno ou palha, acaso não ocorre imediatamente ao espírito a natureza do fogo capaz de destruir estas obras "de madeira"? Diz ele: "O fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamento subsistir, o operário receberá recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada perderá a recompensa" (1Cor 3,13-15) Esta obra queimada, que poderá significar senão tudo o que é feito por malícia? Portanto, nosso Deus é "fogo devorador" no sentido dado por nós; é dessa forma que se adianta "como o fogo do fundidor" para provar no crisol a natureza racional, enchida, pela malícia, de chumbo e de outras impurezas que alteraram a substância natural da alma, por assim dizer, de ouro ou de prata. Assim, rios de fogo, como se diz, correm à frente de Deus que vai destruir a malícia intimamente misturada à alma inteira. Baste isto para respondermos à objeção: "Daí vem a opinião errônea segundo a qual Deus descerá como carrasco armado de fogo". Modalidade de intervenção divina - Vejamos igualmente a grande pretensão que ostentam as segu intes palavras de Celso: Retomemos ainda o raciocínio acrescentando provas. Não digo nada de novo, mas coisas admitidas há muito tempo. Deus é bom, belo, feliz, no mais alto grau e excelência. Por isso, se ele desce aos homens, deve passar por mudança: mudança do bem ao mal, da beleza à feiúra, da felicidade à desgraça, do estado melhor ao pior. Mas, quem escolheria semelhante mudança? É verdade que para o mortal é próprio de sua natureza mudar e se transformar, mas para o imortal, é ser idêntico e imutável. Deus não poderia, pois, admitir tal mudança. Creio ter dado a resposta necessária expondo o que a Escritura chama de descida de Deus à humanidade. Para tanto, ele não precisa passar por mudança, como pretende Celso, nem transformação do bem ao mal, da beleza à feiúra, da felicidade à desgraça, do estado melhor ao pior. Permanecendo imutável por essência, ele condescende com os assuntos humanos por sua Providência e pela Economia. Provamos, pois, que as Escrituras divinas afirmam a imutabilidade de Deus nestas palavras: "Mas tu existes, e teus anos jamais findarão" (Sl 101,28); e: "Sim, eu, o Senhor, não mudei". Ao contrário, os deuses de Epicuro, compostos de átomos, e enquanto são compostos, sujeitos à dissolução, empenham-se em sacudir para fora os átomos corruptores. Além disso, o Deus dos estoicos, enquanto corporal, ora como princípio hegemônico é a realidade total, quando ocorrem os incêndios, ora se torna uma parte desta, quando se dá a nova ordem do mundo. Pois estes filósofos não souberam elucidar a noção natural de Deus absolutamente incorruptível, simples, sem composição, indivisível. - Mas o ser que desceu aos homens existia anteriormente "em forma de Deus" e foi por amor aos homens que "ele se aniquilou" (Fl 2,6-7), para poder ser recebido pelos homens. Isto certamente não significa que ele tenha sofrido mudança do bem ao mal, pois "ele não cometeu pecado" (1Pd 2,22), nem da beleza à feiúra, pois "não conheceu pecado" (2Cor 5,21), nem por isso era menos feliz, mesmo quando em benefício de nossa raça ele se humilhou. Além disso, não sofreu mudança do estado de melhor a pior, pois em que sentido a bondade e o amor pelo homem seriam o que há de pior? Equivaleria então a dizer que vendo horrores e tocando em coisas repugnantes para curar os doentes, o médico passa do bem ao mal, da beleza à feiúra, da felicidade à desgraça. Acrescente-se que o médico que vê horrores e toca em coisas repugnantes não evita de modo algum a possibilidade de contrair o mesmo mal. Mas aquele que cura as feridas de nossas almas pelo Logos de Deus presente nele estava fora do alcance de todo mal. Ainda que, assumindo um corpo mortal e uma alma humana, o Logos, Deus imortal, pareça a Celso mudar e se transformar, saiba Celso que o Logos, que permanece Logos por sua essência, nada sofre com os sofrimentos do corpo e da alma. Mas às vezes condescende com a fraqueza daquele que não pode ver o brilho e o esplendor de sua divindade e por assim dizer, se faz "carne", se expressa corporalmente, permitindo àquele que o recebeu sob esta forma, rapidamente elevado pelo Logos, contemplar igualmente, por assim dizer, sua forma principal. - Efetivamente há formas, por assim dizer, diferentes do Logos, sob as quais ele aparece a cada um segundo o grau de seu progresso no conhecimento, seja ele iniciante, pouco ou muito adiantado, já próximo da virtude, ou estabelecido nela. Portanto, não é no sentido em que pretendem entendê-lo Celso e seus semelhantes que nosso Deus "se transfigurou" e tendo subido "a alta montanha" (Mt 17,2 1), mostrou sua própria forma, diferente e muito mais bela do que a que viam os que tinham ficado embaixo e não puderam acompanhá-lo até o cume. Porque os que estavam embaixo não tinham olhos capazes de ver a transfiguração do Logos em sua condição gloriosa e divina. Eram tão incapazes de compreendê-lo assim como ele existia entre eles, que os que não podiam ver sua forma superior disseram a respeito dele: "Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade, como pessoa de quem todos escondem o rosto" (Is 53,2-3). Eis a resposta ao juízo infundado de Celso, que não compreendeu as mudanças ou as transfigurações de Jesus que a história refere, nem sua condição mortal e ao mesmo tempo imortal. - Então estes relatos, compreendidos como devem ser, porventura não parecem muito mais dignos de respeito do que o de Dionisio, enganado pelos Titãs, precipitado do trono de Zeus e despedaçado por eles, em seguida reconstituído e parecendo voltar à vida e subir ao céu? Será permitido aos gregos fazer a aplicação dessas histórias à doutrina da alma e interpretá-las de modo figurado, ao passo que nos fecham a porta, proibindo-nos uma interpretação lógica, concorde e harmonizada em todos os pontos com as Escrituras inspiradas pelo Espírito divino que habita as almas puras? Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de nossas Escrituras; por isso ele investe contra a própria interpretação, e não contra a das Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo mortal, explicada não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais elevada. Teria visto, ao contrário, uma descida extraordinária devido a um excesso de amor aos homens, visando reconduzir, conforme a expressão misteriosa da divina Escritura, "as ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15,24), que desceram das montanhas, e para as quais o pastor de certas parábolas "desceu", deixando nas montanhas as que não se haviam perdido (cf Mt 18,12-13; Lc 15,4, seguinte) - Insistindo em questões que ele não compreende, Celso provoca as minhas repetições desnecessárias, pois não quero, nem aparentemente, deixar uma única de suas críticas sem exame. Ele diz em seguida: Ou Deus de fato muda, como eles pretendem, para se tornar um corpo mortal, e acabamos de dizer que é impossível. Ou então ele não muda, mas faz que aqueles que o veem assim o julguem, então ele os engana e mente. Mas engano e mentira sempre são um mal, exceto o caso único em que o usamos a modo de remédio, quer com amigos doentes e atacados de loucura para curá-los, quer com inimigos na intenção de evitar perigo. Mas ninguém, doente ou atacado de loucura, é amigo de Deus, e Deus não tem medo de ninguém a ponto de chegar a enganá-lo para fugir ao perigo. Em resposta poderíamos argumentar com a natureza do Logos divino que é Deus, como também com a alma de Jesus. Com a natureza do Logos: assim como a natureza dos alimentos, para combinar com o temperamento do bebê, se transforma em leite na ama de leite, ou é preparado pelo médico como exige a saúde do doente, ou é adaptado às forças daquele que é mais robusto: assim também Deus muda pelos homens segundo as necessidades de cada um o poder de seu Logos naturalmente destinado a alimentar a alma humana. Ele se torna para um, como diz a Escritura, "um leite espiritual puro" (1Pd 2,2), para outro ainda mais fraco, como um legume (cf Rm 14,2), enquanto ao perfeito se dá "um alimento sólido" (Hb 5,12 14). Sem nenhuma dúvida, o Logos não mente sobre sua própria natureza, quando ele alimenta cada um na medida que ele pode acolhê-lo, e fazendo assim, "ele não engana nem mente". Na alma de Jesus, supondo-se mudança em sua vinda num corpo, perguntamos o que quer dizer isso. Será mudança da essência? Não, em se tratando desta alma ou de outra alma racional. Queremos dizer que ela está afetada pelo corpo ao qual está mesclada e pelo lugar em que ela veio? Em que isto repugna ao Logos, que em seu imenso amor aos homens faz descer um Salvador ao gênero humano? Nenhum daqueles que antes tinham prometido curá-lo tinha podido fazer tudo aquilo de que esta alma deu prova, mesmo descendo livremente à condição mortal dos homens para a salvação de nossa raça. Tal é o pensamento do divino Logos expresso em diversas passagens das Escrituras; basta no momento citar uma só passagem de Paulo: "Tende em vós mesmos o sentimento de Cristo Jesus: ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é acima de tudo nome" (Fl 2,5-9) - Outros concordam com Celso que Deus não muda, mas faz que aqueles que o veem julguem que ele mudou. Para nós, convencidos de que não existe aparência, mas evidência e verdade na vinda de Jesus aos homens, a acusação de Celso não nos atinge. Contudo, responderei. Não reconheces, Celso, que a pretexto de remédio, às vezes é permitido enganar e mentir? Que inconveniência haverá no emprego deste recurso se ele traz a saúde? Com efeito, existem palavras mentirosas, como as dos médicos a seus pacientes, que têm mais efeito do que as que dizem a verdade, para corrigir certos costumes. Isto seja dito para nossa defesa contra outras acusações. Portanto, não é inconveniente que aquele que cura seus amigos doentes cure o gênero humano que lhe é caro por meios que ninguém usaria por princípio, mas que seriam usados em razão das circunstâncias. E o gênero humano, atacado de loucura, devia ser curado pelos meios que o Logos via ser úteis para reconduzir os loucos ao bom senso. Celso concorda ainda que se recorra a tais remédios para inimigos na intenção de fugir de perigo. Mas Deus não tem medo de ninguém a ponto de enganar seus adversários para escapar ao perigo. Seria totalmente supérfluo e irracional responder a uma objeção que ninguém fez contra nosso Salvador. Em resposta a outras dificuldades, tomou-se providência quanto a esta: "Ninguém que esteja doente ou atacado de loucura é inimigo de Deus." A resposta era que esta disposição não tinha em vista pessoas que, doentes ou loucas, já fossem amigas, mas os que, por causa da doença de sua alma e do desacerto da razão natural, ainda eram inimigas, para que se tornassem amigos de Deus. E, com efeito, está claramente dito que Jesus tudo suportou pelos pecadores, para libertá-los de seus pecados e torná-los justos. A pregação pelos judeus e pelos cristãos - Em seguida, ele representa, por um lado, os judeus explicando por que segundo eles a vinda de Cristo ainda está para acontecer, e por outro, os cristãos falando da vinda já realizada do Filho de Deus na vida humana. Pois bem! Examinemos este ponto tão brevemente quanto possível. Portanto, segundo ele, os judeus dizem que, sendo a vida cheia de toda espécie de vícios, é preciso que Deus faça alguém descer para punir os pecadores e purificar o universo, como aconteceu no primeiro dilúvio. Como ele diz que os cristãos a isto acrescentam outras razões, é claro que eles também dão aquela razão. E que há de absurdo, em vista da onda de vícios, em se acreditar na vinda daquele que purificará o mundo e tratará a cada um segundo seu mérito? Não é digno de Deus estancar a difusão do vício por uma restauração das coisas. Os próprios gregos sabem que a terra é periodicamente purificada pelo dilúvio e pelo fogo, ainda nas palavras de Platão: "Quando os deuses, para purificar a terra, a submergem nas águas, alguns nas montanhas..." etc. Será preciso dizer então que merecem respeito e consideração as doutrinas que os gregos afirmam, mas, quando nós mesmos defendemos certas doutrinas que os gregos aprovam, elas perdem todo valor? No entanto, os que dão valor à exposição clara e precisa de todas as Escrituras procurarão provar não só a antiguidade de seus autores, mas também a seriedade de suas afirmações e a coerência entre elas. - Não sei por que ele julga a destruição da Torre de Babel comparável ao dilúvio que, segundo a doutrina dos judeus e dos cristãos, purificou a terra. Pois, na suposição de que a história da Torre, no Gênesis, não contém nenhum significado oculto, mas é clara por si mesma, como acredita Celso, não parece tão claro que esta destruição realizou a purificação da terra. A menos talvez que ele não veja uma purificação da terra no que chamamos a confusão das línguas. A esse respeito, cabe às pessoas competentes dar explicações oportunas quando for necessário estabelecer o significado literal da história e sua interpretação anagógica. E como acredita que Moisés, que contou a história da torre e da confusão das línguas, plagiou para esta história a lenda dos alóadas, devemos responder: a meu ver, ninguém antes de Homero jamais falou a respeito dos alóadas, mas tenho certeza que Moisés escreveu a história da torre muito antes de Homero e mesmo da invenção do alfabeto grego. Assim sendo, quem é que plagia a história dos outros? Os que contam a lenda dos alóadas plagiam a história da torre, ou aquele que escreveu a história da torre e da confusão das línguas plagia a lenda dos alóadas? Fica bem claro ao leitor imparcial que Moisés é mais antigo do que Homero. Celso compara a história de Sodoma e Gomorra, destruídas pelo fogo por causa do pecado delas, narrada por Moisés no livro do Gênesis (cf Gn 19,1-29), com o mito de Faetonte. E tudo provém de uma única falta: ele não levou em conta a antiguidade de Moisés. O mito de Faetonte só foi atribuído a Homero, ao que parece, em época posterior. Homero é bem mais recente que Moisés. Portanto, não negamos o fogo purificador e da destruição do mundo, para suprimir o vício e renovar todas as coisas: é a lição que afirmamos ter recebido dos profetas pelos livros sagrados. Na verdade, tendo os profetas mostrado, como acima disse, em suas múltiplas predições do futuro, que tinham dito a verdade sobre muitos acontecimentos ocorridos e provado que um Espírito divino neles morava, é claro que também se deve acreditar neles a respeito do futuro, ou melhor, acreditar no Espírito divino que neles residia. - Além disso, os cristãos, conforme Celso, acrescentam certas razões às dos judeus e declaram: por causa dos pecados dos judeus, o Filho de Deus já foi enviado, e os judeus, por terem punido a Jesus e lhe terem dado fel a beber, atraíram contra si a cólera de Deus (cf Mt 27,34). Refute quem quiser esta afirmação como mentirosa se, de fato, a nação de todos os judeus não foi expulsa de seu país antes mesmo que uma geração tivesse passado desde que Jesus sofreu assim da parte deles. Quarenta e dois anos, creio eu, depois da crucifixão de Jesus, caiu sobre Jerusalém a destruição. E nunca, desde que existem os judeus, a história conta que eles foram expulsos por tanto tempo de seu venerável culto de adoração, vencidos pela força de seus inimigos. Mas, quando às vezes pareceram abandonados por causa de seu pecado, eles foram visitados, e, de volta à sua terra, recuperaram seus bens e praticaram sem obstáculos seus ritos tradicionais. E são igualmente uma prova da divindade e da santidade de Jesus o número e a gravidade das desgraças que se abateram sobre os judeus durante tanto tempo por causa dele. E direi sem medo nenhum que não haverá para eles restauração alguma. Pois cometeram o mais ímpio de todos os crimes tramando este complô contra o Salvador do gênero humano na cidade em que eles ofereciam a Deus sacrifícios tradicionais, símbolos de profundos mistérios. Por isso foi preciso que essa cidade em que Jesus suportou estes sofrimentos fosse destruída e arrasada e a nação judia expulsa de sua terra; e que o chamado de Deus à bem-aventurança passasse a outros, quero dizer, aos cristãos, aos quais chegou o ensinamento de uma piedade pura e santa: eles receberam leis novas que convinham a uma comunidade estabelecida em todos os lugares, pois as antigas leis dadas a uma única nação governada por chefes da mesma raça e com os mesmos costumes não podiam todas ser observadas em nossos tempos. - Em seguida, ele critica, como de costume, a raça dos judeus e dos cristãos e os compara a um bando de morcegos, a formigas que saíram de seus buracos, a rãs reunidas em conselho à beira de um brejo, a vermes formando uma assembleia num canto do lamaçal, discutindo para saber quem deles são os maiores pecadores, e dizendo: "Deus nos revela e prediz tudo: deixa de lado o mundo inteiro e o movimento do céu, e sem se preocupar com a vasta terra, governa só para nós, comunica-se apenas conosco por seus mensageiros, que continuamente envia procurando de que modo nós lhe ficaremos unidos para sempre." Continua sua ficção pintando-nos como semelhantes a vermes que dizem: "Existe Deus, e, imediatamente depois dele, existimos nós, pois somos criados por ele inteiramente semelhantes a Deus; tudo nos é submetido: a terra, a água, o ar, as estrelas; tudo existe para nós, tudo está ordenado para nosso serviço." E os vermes de que ele fala, que somos nós evidentemente, continuam: "Como existem entre nós aqueles que pecam, Deus virá ou enviará seu Filho, a fim de livrar das chamas os injustos, e a nós que restamos nos dar uma vida eterna." E enfeixando tudo, diz: Quantas tolices mais suportáveis da parte de vermes e rãs do que de judeus e cristãos em suas disputas! Grandeza dos judeus e dos cristãos - Para responder, faço aos que aprovam este ataque contra nós esta pergunta: será o conjunto dos homens que considerais um bando de morcegos, de formigas, de vermes, de rãs, valendo a excelência de Deus? Ou excetuais os outros homens da comparação, conservando-lhes a dignidade de homens por causa da razão e das leis estabelecidas, enquanto desprezais os cristãos e os judeus por suas doutrinas que vos desagradam, comparando-os a vis animais? Qualquer que seja vossa resposta, responderei esforçando-me por mostrar que não convém falar assim da humanidade nem de nós mesmos. Suponhamos então que digais que o conjunto dos homens com relação a Deus seja comparável a estes vis animais, porque a pequenez deles não tem medida comum com a excelência de Deus. Mas de que pequenez se trata? Respondei, meus caros! Da pequenez do corpo? Sabei que a excelência ou a inferioridade no tribunal da verdade não se julga pelo corpo; do contrário, os grifos e os elefantes seriam superiores a nós homens, pois são maiores, mais fortes e vivem mais tempo. Mas nenhum homem sensato diria que estes seres sem razão são superiores aos seres racionais por causa de seus corpos, pois a razão eleva o ser racional bem acima de todos os seres sem razão. Tampouco é verdade quanto aos seres virtuosos e bem-aventurados, bons demônios, como dizeis, ou anjos de Deus, como costumamos chamar, ou quanto a todas as naturezas que podemos encontrar acima dos homens: pois neles a razão atinge sua perfeição, ornada com toda espécie de virtudes. - Se desprezais a pequenez do homem não por causa do corpo mas da alma, inferior para vós aos demais seres racionais, e sobretudo da alma dos virtuosos, inferior porque o vício está nela, por que os maus cristãos e os judeus vivendo no mal seriam um bando de morcegos, de formigas, de vermes, de rãs mais do que os homens perversos das outras nações? A este respeito, qualquer homem, sobretudo quando se abandona à corrente do vício, é morcego, verme, rã, formiga, comparado com os demais homens. Se formos um Demóstenes, orador, com sua covardia e as ações que ela inspirou, ou um Antífono, outro orador de renome, mas negador da Providência num tratado Sobre a verdade, título análogo ao de Celso, seremos igualmente vermes chafurdados num canto do lamaçal da tolice e da ignorância. Contudo, o ser racional, qualquer seja a sua qualidade, não poderia ser razoavelmente comparado a um verme, com suas tendências à virtude. Estas inclinações gerais à virtude não permitem comparar com vermes aqueles que têm a virtude em potência e não podem totalmente perder suas sementes. Portanto, fica claro que os homens em geral não poderiam ser vermes com relação a Deus: pois a razão, que tem seu princípio no Logos que está em Deus, não permite julgar o ser racional absolutamente estranho a Deus. Os maus cristãos e os maus judeus, que não são nem cristãos nem judeus segundo a verdade, tal como os outros homens maus, não podem ser comparados a vermes chafurdados num canto do lamaçal. Se a natureza da razão proíbe esta comparação, é evidente que não vamos caluniar a natureza humana, feita para a virtude, ainda que peque por ignorância, nem a equiparar a animais como estes. - Será por causa de suas doutrinas que Celso não aprova e parece ignorar-lhe a primeira palavra, que os judeus e cristãos seriam vermes e formigas diferentes dos demais homens? Então, comparemos as doutrinas dos cristãos e dos judeus, que são por si mesmas conhecidas de todos, com as doutrinas dos outros homens. Não é evidente, desde o momento em que admitimos que certos homens são vermes e formigas, que estes vermes, formigas e rãs são aqueles que, decaídos de uma sadia compreensão de Deus, adoram por uma aparência de piedade animais sem razão, estátuas, ou mesmo as criaturas, quando é preciso, a partir de sua bondade, admirar o seu Artífice e adorá-lo? Não se deve considerar como homens, e como seres mais honrados que homens se existem tais, aqueles que, sob a direção do Logos, puderam se elevar a partir da pedra e da madeira, e mesmo da matéria estimada como a mais preciosa, a prata e o outro, e que, depois de terem se elevado das maravilhas do mundo ao Criador do universo, confiaram-se a ele? Porque a partir do momento em que ele é o único capaz de cumular todos os seres, de perceber os pensamentos de todos e ouvir a oração de todos, eles lhe dirigem suas preces, realizam suas ações pensando que ele vê o que acontece, e sabendo que ele ouve o que se diz, evitam dizer qualquer palavra que possa ser referida a Deus e lhe desagradar. Esta admirável piedade, que nem fadigas, nem perigo de morte, nem argumentos capciosos podem vencer, para nada servirá aos que a adquiriram para evitar que sejam comparados a vermes, ainda que possam ter sido tais antes de tal piedade? Na verdade, eles nos parecem irmãos de vermes, pais de formigas, semelhantes às rãs, os vencedores do mais ardente desejo das volúpias, que a tantos corações tornaram moles como cera, cuja vitória vem de sua persuasão de que o único meio de chegar à familiaridade com Deus é subir até ele pela temperança? Então, o impacto da justiça que o leva a observar com o próximo e seus familiares a sociabilidade, a justiça e a prática do bem não impede aquele que a pratica de ser um morcego? Pelo contrário, aqueles que se espojam no vício, como a maior parte dos homens, que se aproximam indiferentemente das prostitutas e ensinam que aquilo não pode ser absolutamente contra o dever, não são acaso vermes no lamaçal? Fica mais claro ainda se compararmos com os que instruímos a não "tomar os membros de Cristo" e o corpo habitado pelo Logos, para deles fazer "membros de uma prostituta" (1Cor 6,15), que já aprenderam que o corpo do ser racional, consagrado ao Deus do universo, é o "templo" do Deus que eles adoram, e se torna realmente tal, se tivermos noção pura do Criador; e que, evitando conspurcar "o templo de Deus" por união ilícita, praticam a temperança. - E nada digo dos outros vícios dos homens, de que talvez não estejam isentos aqueles que são considerados filósofos, pois há muitos bastardos da filosofia. Não insisto na presença frequente destas desordens entre os que não são nem judeus nem cristãos. Mas, ou não os encontramos absolutamente entre os cristãos, considerando estritamente o que é o cristão, ou se os encontramos, certamente não é entre os que se reúnem, deliberam, participam das orações da comunidade e delas não são excluídos; exceto talvez um ou outro, dissimulado no meio do povo. Portanto, não somos vermes que formam assembleia, quando, erguendo-nos contra os judeus em nome das Escrituras que eles acreditam sagradas, mostramos que Aquele que os profetas anunciavam veio, que eles mesmos, pela enormidade de suas faltas, foram abandonados, mas que nós, por termos acolhido o Logos, temos em Deus as melhores esperanças, fundadas em nossa fé nele, e numa vida capaz de fazer de nós, seus familiares, puros de toda perversidade e de todo vício. Portanto, proclamar-se judeu ou cristão não é dizer em total unanimidade: é sobretudo por nós que Deus criou o universo e o movimento do céu. Mas ser, como Jesus ensinou, puro "de coração", manso, pacífico, corajoso para enfrentar os perigos pela piedade, nos permite com toda razão confiar em Deus, e, quando compreendemos a doutrina das profecias, chegar ao ponto de dizer: tudo isto Deus no-lo revelou de antemão e predisse a nós que nele acreditamos. - Como ele atribui aos cristãos a quem considera vermes estas palavras: Deus se descura do mundo inteiro e do movimento do céu e, sem se preocupar com a vasta terra, governa o mundo só para nós, comunica-se só conosco por seus mensageiros, enviando-os continuamente e procurando saber por que modo nós lhe estaremos unidos para sempre, devemos responder: isto é acusar-nos de afirmações que não fazemos, pois lemos e sabemos que "Sim, tu amas tudo o que criaste; não te aborreces com nada do que fizeste; se alguma coisa tivesses odiado, não a terias feito" (Sb 11,24) Também lemos: "Mas a todos perdoas, porque são teus: Senhor, amigo da vida! Todos levam teu espírito incorruptível! Por isso, pouco a pouco corriges os que caem, e os admoestas, lembrando-lhes as faltas, para que se afastem do mal e creiam em ti, Senhor" (Sb 11,26-12,1-2) Como poderíamos dizer: Deus se descura do movimento do céu e do mundo inteiro, e sem se preocupar com a vasta terra, governa só para nós? Sabemos que, nas orações, é preciso dizer pensando: "A terra está cheia do amor do Senhor"; "A misericórdia do Senhor é para com toda carne". Deus, em sua bondade, "faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos"; e para que sejamos seus filhos, ele nos exorta à mesma atitude e nos ensina a estender o mais possível nossos benefícios a todos os homens (Sl 32,5; Eclo 18,13; Mt 5,45) Nas palavras da Escritura, ele é "Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé" (1Tm 4,10), e seu Cristo é "propiciação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo inteiro" (1Jo 2,8) Alguns judeus podem afirmar, senão tudo o que Celso escreveu, pelo menos alguns assuntos vulgares; certamente não os cristãos, pois eles aprenderam estas palavras: "Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores" (Rm 5,7-8). No entanto, "dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a morrer". De fato, conforme nossa pregação, foi pelos pecadores do mundo inteiro, para que abandonassem seus pecados e se confiassem a Deus, que veio Jesus, chamado ainda, segundo o uso tradicional da Bíblia, o Cristo de Deus. - Talvez Celso tenha compreendido mal uma frase de alguns que ele chamou de vermes: Existe Deus, e imediatamente depois, existimos nós. Mal-entendido análogo ao de criticar toda uma escola filosófica pelas afirmações de um jovem insensato que, por ter frequentado três dias as lições de um filósofo, ergue-se contra o resto dos homens por causa de sua nulidade e falta de filosofia. Sabemos perfeitamente que existem muitos seres de um valor bem mais alto que o homem. Lemos que: "Deus se levantou na assembleia dos deuses", não dos deuses que os outros homens adoram, "pois todos os deuses das nações são demônios" (cf Sl 95,5). Também lemos: "Deus se levanta no conselho divino, em meio aos deuses ele julga" (Sl 81,1) Sabemos disto: "Se bem que existam os que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores - para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos" (1Cor 8,5-6) Sabemos que os anjos a este respeito são tão superiores aos homens que somente os homens perfeitos se tornam semelhantes aos anjos: "Pois na ressurreição dos mortos, nem eles se casam, nem elas se dão em casamento; pois nem mesmo podem morrer: são como os anjos do céu", e se tornam "semelhantes aos anjos" (Lc 20,36). Sabemos que na organização do universo encontramos seres, uns chamados Tronos, outros Soberanias, outros Principados e outros Autoridades (cf Cl 1, 16) Nós homens, porém, ainda muito distantes deles, temos, contudo, a esperança, fundada numa vida virtuosa e numa conduta em tudo conforme com o Logos, de nos elevar a ponto de nos tornarmos semelhantes a todos eles. Afinal, como "ainda não se manifestou o que nós seremos, sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é" (1Jo 3,2) Sabemos que se sustentarmos as afirmações de alguns que, inteligentes ou estúpidos, entenderam erradamente a doutrina sadia que afirma: Existe Deus, e imediatamente depois, existimos nós, até mesmo isto eu poderia interpretar dizendo: "nós" designa os seres racionais, e melhor ainda os seres racionais virtuosos; pois, segundo o que afirmamos, a própria virtude pertence a todos os bem-aventurados, e por conseguinte, a própria virtude pertence ao homem e a Deus. Por isso, somos instruídos e nos tornamos "perfeitos como nosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48) Concluamos: nenhum homem honesto é verme nadando no lamaçal, nenhum homem piedoso é formiga, nenhum justo é rã, nenhum homem cuja alma resplandece com a luz brilhante da verdade pode razoavelmente ser comparado a morcego. - A meu ver, por ter também entendido mal as palavras: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26), Celso imaginou vermes dizendo: Criados por Deus, somos inteiramente semelhantes a ele. No entanto, se ele tivesse compreendido a diferença entre criar um homem à imagem de Deus, ou criá-lo à sua semelhança, e considerando que Deus, conforme a Escritura, disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", mas Deus fez o homem "à imagem" de Deus, e não ainda "à sua semelhança", ele não nos teria feito acreditar que somos inteiramente semelhantes a Deus. Tampouco dizemos: Até as estrelas nos são submissas. Pois a ressurreição dos justos, na concepção de nossos sábios, é comparada ao sol, à luz e às estrelas por aquele que afirma: "Um é o brilho do sol, outro o brilho da lua, e outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos" (1Cor 15,41-42), e também com o que Daniel outrora profetizou sobre este assunto (cf Dn 12,3) Celso nos atribui que tudo está ordenado para nosso serviço. Talvez não tenha ouvido algum de nossos sábios afirmar tais palavras, talvez ignore em que sentido se diz: "Aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve" (Mt 20,26-27). Quando os gregos citam os versos: "Quando o sol e a lua estão a serviço dos mortais", eles o louvam e comentam. Mas uma palavra do mesmo gênero, que aliás não é dita, ou é dita em outro sentido, é para Celso ainda uma ocasião de nos caluniar. Segundo ele, nós que para ele não passamos de vermes, diríamos que, existindo entre nós os que pecam, Deus virá a nós, ou enviará seu Filho para entregar às chamas os injustos, e para que nós, rãs que somos, tenhamos com ele uma vida eterna. Observa a que ponto, como um bufão, este sisudo filósofo transforma em crítica, em ridículo e em zombaria a promessa divina de um juízo, castigo para os injustos, recompensa para os justos! E resumindo tudo, diz: Aí estão algumas tolices mais suportáveis da parte de vermes e rãs do que de judeus e cristãos em suas disputas! Evitaremos imitá-los e dizer coisas semelhante dos filósofos que pretendem conhecer a natureza do mundo e debatem entre si o problema da constituição do universo, da origem do céu e da terra e de tudo o que eles encerram, e a questão que nega a geração e a criação das almas por Deus, embora estejam sujeitas a seu governo, e se elas mudam de corpo, ou se, inseminadas com os corpos, sobrevivem-lhes ou não. Pois também neste particular, longe de levar a sério e admitir a sinceridade daqueles que se consagraram à descoberta da verdade, poder-se-ia declarar com zombaria injuriosa que se trata de fato de vermes, que num canto do lamaçal da vida humana não medem seus limites, e por esta razão chegam a sentenciar sobre assuntos sublimes como se os dominassem, e que falam com plena certeza de realidades que não podem ser contempladas sem inspiração superior e poder divino: "Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus" (1Cor 2,11). Não temos a loucura de comparar a esplêndida inteligência do homem, tomando inteligência no sentido habitual, com o fervilhar de vermes e de outros animais da espécie, quando ela não se preocupa com os assuntos do povo, mas se entrega à busca da verdade. Ao contrário, sinceramente damos testemunho de que certos filósofos gregos conheceram a Deus, porque "Deus é manifesto entre eles", embora "não o tivessem honrado como Deus nem lhe rendido graças; pelo contrário, eles se perderam em vãos arrazoados", e, "jactando-se de possuir sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis" (Rm 1,19 21-23) - Em seguida, em seu desejo de provar que os judeus e os cristãos não têm nenhuma superioridade sobre os animais mencionados acima, ele declara: Os judeus são escravos fugitivos que outrora fugiram do Egito, que jamais fizeram qualquer coisa de memorável, nem tiveram valor por sua categoria ou número. Mas eu disse nas páginas anteriores que eles não puderam ser nem egípcios, nem escravos fugitivos, mas que eram hebreus estabelecidos no Egito. Se ele julga certo que eles jamais tiveram valor por sua categoria ou número, pois não se encontra qualquer alusão à história dos judeus entre os gregos, eu responderei: se atentarmos para o seu regime inicial e as disposições de suas leis, veremos que foram homens que apresentavam na terra uma sombra da vida celeste. Entre eles, não havia nenhum outro deus a não ser o Deus supremo; nenhum artífice de imagens que tivesse direito de cidadania. Nenhum pintor, nenhum escultor tinha espaço em seu Estado, pois a lei bania todos os artistas desse gênero para eliminar qualquer ideia de fazer estátuas, prática que atrai os simples e desvia os olhos da alma para longe de Deus na direção da terra. Havia pois entre eles esta lei: "Não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra" (Dt 4, 16-18) A intenção da lei era encarar a realidade de cada ser, impedindo que fossem modeladas fora da verdade imagens que mentiam a respeito da verdade do homem e da realidade da mulher, da natureza, dos animais, do gênero dos pássaros, dos répteis, dos peixes. E o motivo era venerável e sublime: "Levantando teus olhos ao céu e vendo o sol, a lua, as es-trelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los!" (Dt 4,19) Que perfeição na vida social de todo um povo em que o efeminado não podia aparecer em público! Coisa também admirável é que as cortesãs, causa da excitação da juventude, eram banidas da sua cidade! (cf Dt 23,1 17). Havia igualmente tribunais, compostos dos homens mais justos depois de durante muito tempo terem dado prova de vida íntegra. Eram-lhes confiados os julgamentos, e por causa da pureza de seus costumes acima da natureza humana, eram chamados "deuses", conforme costume antepassado dos judeus. Era possível ver um povo inteiro se entregar à filosofia. Para terem um tempo de ouvir as leis divinas, foram instituídos entre eles os "sábados" como também suas outras festas. E que dizer da organização de seus sacerdotes e dos sacrifícios que continham mil símbolos transparentes para os que gostam de se instruir? - Como não existe nada de estável na natureza humana, era fatal que mesmo este regime pouco a pouco acabasse degenerando e se corrompendo. Mas a Providência, tendo aplicado ao venerável sistema de sua doutrina as mudanças que era preciso para adaptá-lo como convém às pessoas de todos os países, concedeu a todos os crentes do universo, no lugar da religião dos judeus, a religião de Jesus. E Jesus, gratificado não só com inteligência, mas também com uma condição divina, aboliu a doutrina sobre os demônios terrestres que sentem prazer com o incenso, as emanações de gordura e com o sangue, e que, como os Titãs e os Gigantes da fábula, desviavam os homens da noção de Deus. Ele, sem se preocupar com suas manobras, dirigidas sobretudo contra os melhores, deu leis que garantissem a felicidade dos que conformam sua vida a elas, se abstêm completamente de bajular os demônios com sacrifícios e os desprezam absolutamente graças ao Logos de Deus que socorre os que levantam seus olhos a Deus. E como Deus queria que a doutrina de Jesus prevalecesse entre os homens, os demônios perderam todo poder, embora tivessem abalado todas as influências para aniquilar os cristãos. Reis, Senado, governadores de cada país, e até o povo, inconscientes das manobras irracionais e perversas destes demônios, suscitaram tudo contra o Logos e aqueles que creem nele. Mas a Palavra de Deus é mais poderosa que eles todos, e apesar dos obstáculos, transformando obstáculos em alimento para crescer, ela prosseguiu sua marcha e colheu número crescente de almas: pois ela era a vontade de Deus. Estas observações, ainda que signifiquem digressão, eram necessárias, a meu ver. Pois eu queria responder à acusação de Celso sobre os judeus: são escravos fugitivos que outrora fugiram do Egito, e estes homens amados de Deus jamais fizeram qualquer coisa memorável. Além disso, respondo à sua crítica de que eles não têm valor nem por sua categoria ou número: "raça eleita, sacerdócio real" (1Pd 2,9), batendo em retirada e evitando o contato com a multidão, para que seus costumes não se corrompessem, estavam sob a guarda do poder divino; não tinham ambição, como a maior parte dos homens, de submeter outros reinos; eles não estavam abandonados a ponto de se tornarem, em vista de seu pequeno número, presa fácil, nem por causa deste pequeno número, de serem destruídos radicalmente. Isto durava enquanto continuavam dignos da proteção de Deus. Mas, tendo a nação inteira pecado, e sendo-lhes necessário voltar para Deus pelo sofrimento, eram abandonados por algum tempo ora mais, ora menos longo, até à hora em que, sob o domínio dos romanos, tendo cometido o maior pecado matando Jesus, foram inteiramente abandonados. Tradições e genealogias - Depois disso, dirigindo seus ataques aos relatos do primeiro livro de Moisés intitulado Gênesis, Celso afirma: Eles tentaram descaradamente ligar sua genealogia a uma primeira geração de feiticeiros e vagabundos, invocando o testemunho de palavras obscuras, equívocas, como escondidas nas sombras, que eles erroneamente interpretam diante de ignorantes e tolos, e isto sem que jamais este ponto, durante o longo período que precede, fosse posto em discussão. Parece-me que ele deu aí uma expressão muito obscura de seu pensamento. Sem dúvida, manteve a obscuridade a respeito deste ponto, vendo claramente a força do argumento que prova que a nação judaica descendia de tais antepassados. Por outro lado, quis parecer não ignorar uma questão fundamental para os judeus e sua raça. É bem claro que os judeus ligam sua genealogia aos três antepassados Abraão, Isaac e Jacó; seus nomes têm tal poder que, quando associados na invocação de Deus, não só as pessoas desta nação, nas orações dirigidas a Deus e nos exorcismos contra os demônios, usam a fórmula "Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó", mas também quase todos os que se ocupam com práticas de encantamento e magia. Pois nos livros de magia, encontramos muitas vezes esta invocação de Deus e este emprego do nome de Deus, associado aos nomes destes homens nos exorcismos. Estas razões apresentadas pelos judeus e pelos cristãos para provar a santidade de Abraão, Isaac e Jacó, antepassados da raça judia, não acho que Celso as tenha ignorado inteiramente, mas se abstém de uma exposição clara, incapaz de enfrentar o argumento. - De fato, levantamos esta questão a todos os que usam tais invocações de Deus: dizei-nos, meus caros, qual foi a identidade de Abraão, a grandeza de Isaac, o poder de Jacó, para que a invocação "Deus" associada a seus nomes realize tão grandes milagres? E de quem aprendestes ou podeis aprender sobre a vida destes homens? Quem teve o cuidado de escrever sua história, quer exalte ela diretamente estes homens num sentido literal, quer insinue por alusões grandes e admiráveis verdades às pessoas capazes de as perceber? E para responder a nossa pergunta, como ninguém de vós pode mostrar de que história, grega ou bárbara, ou se não de uma história, ao menos de que tratado secreto vem o poder de tais homens, apresentaremos o livro intitulado Gênesis, que contém as ações destes homens e os oráculos que Deus lhes dirigiu, e diremos: será que o uso que também vós fazeis dos nomes destes três primeiros antepassados da nação, compreendendo com toda evidência que por sua invocação obtém-se efeitos não desprezíveis, não prova o caráter divino destes homens? Mas nós não os conhecemos de nenhuma outra fonte a não ser dos livros sagrados dos judeus. Mas de fato, "o Deus de Israel, o Deus dos hebreus, o Deus que precipitou no Mar Vermelho o rei do Egito e os egípcios" são fórmulas muitas vezes empregadas para lutar contra os demônios ou certos poderes perversos. E aprendemos a história dos personagens assim nomeados, e a interpretação desses nomes graças aos hebreus que, nos escritos tradicionais e na sua língua nacional, os celebram e os explicam. Como para os judeus que tentaram ligar sua genealogia à primeira geração desses personagens, que Celso considerou como feiticeiros e vagabundos, haveria algum descaramento em tentar ligar a si mesmos e sua origem a estes homens cujos nomes hebraicos atestam aos hebreus, pois seus livros são escritos na língua e nos caracteres hebraicos, que sua nação é exatamente a destes homens? E até o dia de hoje os nomes judeus pertencem à língua hebraica, quer provenham eles de seus escritos, quer simplesmente de significações particulares à língua. - Cabe ao leitor do livro de Celso enxergar se ele não insinua isso na passagem: "Eles tentaram ligar sua genealogia a uma primeira geração de feiticeiros e vagabundos, invocando o testemunho de palavras obscuras, equívocas, como escondidas em sombras." Estes nomes são bem ocultos, tirados da luz e do conhecimento do povo. Segundo o que acreditamos, eles não são equívocos, ainda quando empregados por estranhos à nossa religião; mas, segundo Celso, que não estabelece o caráter equívoco destas palavras, não sei por que eles devam ser rejeitados. No entanto, se ele quisesse refutar sensatamente a genealogia que os judeus se arrogavam, segundo ele, com um descaramento extremo gabando-se de Abraão e de seus descendentes, deveria ter citado todas as passagens referentes ao assunto, fundamentar primeiro a opinião que lhe parecia plausível, e em seguida refutar seriamente em nome da verdade que ele via e dos argumentos em seu favor, as passagens relativas ao assunto. Mas, discutindo a questão da natureza dos nomes empregados para os milagres, nem Celso nem ninguém mais poderá dar uma explicação exata e convencer de que se pode facilmente desprezar homens cujos nomes por sua própria força têm poder, não só entre seus compatriotas, mas também entre os estrangeiros. E lhe seria necessário mostrar como, interpretando à nossa maneira aos ignorantes e aos tolos a significação destes nomes, nós enganamos, a seu ver, os ouvintes, ao passo que ele, que se vangloria de não ser nem ignorante nem tolo, dê a verdadeira interpretação deles! E observa de passagem, em seu discurso sobre estes nomes aos quais os judeus ligam sua genealogia, que nunca houve, durante o longo período que precede, qualquer discussão a seu respeito, ao passo que agora os judeus discutem sobre isto com outros, que ele se absteve de citar. Desta forma, mostre quem quiser aqueles que reivindicam e afirmam o menor argumento plausível entre os judeus para estabelecer, com a fragilidade da doutrina dos judeus e dos cristãos sobre os nomes das personagens em questão, que outros deram sobre eles as explicações mais sábias e mais verdadeiras! Mas tenho certeza que ninguém poderá fazer isto, pois é manifesto que os nomes são tirados da língua hebraica que só encontramos entre os judeus. História ou alegoria? O primeiro casal e a serpente - Em seguida, Celso cita pormenores de uma história estranha à divina Escritura: Os povos que reivindicam antiguidade remota: atenienses, egípcios, arcádios, frígios, afirmam que alguns de seus membros nasceram da terra, e cada qual apresenta as provas. Depois afirma: Os judeus, escondidos num canto da Palestina, que jamais tinham ouvido falar que tal história fora decantada outrora por Hesíodo e mil outros autores inspirados, compuseram uma história bastante inverossímil e grosseira: um homem modelado pelas mãos de Deus e recebendo um sopro, uma mulher tirada de sua costela, mandamentos de Deus, uma serpente revoltando-se contra eles e a serpente saindo vitoriosa das prescrições de Deus. Conto da carochinha, impiedade maior do que esta ficção em que Deus é tão fraco desde a origem que nem mesmo pode convencer o único homem que ele mesmo modelou! Eis aí como Celso, autor muito sábio e instruído que censura aos judeus e aos cristãos a falta de saber e cultura, mostra a precisão com que ele sabia as datas de cada escritor grego e bárbaro! Ele acredita em Hesíodo e em mil outros autores, qualificados por ele como inspirados, mais antigos do que Moisés e seus escritos, Moisés que manifestamente é bem anterior à guerra de Tróia! Portanto, não foram os judeus que compuseram a história muito inverossímil e grosseira sobre o homem nascido da terra, são os autores inspirados, segundo Celso, Hesíodo e mil outros. Sem nada ter aprendido nem entendido das tradições bem mais antigas e bem mais veneráveis difundidas na Palestina, eles escreveram histórias sobre suas origens, Eeias e Teogonias, atribuindo, enquanto pudessem, a seus deuses um nascimento e uma infinidade de outras tolices! Platão bane com razão de sua República, como corruptores da juventude, a Homero e aos autores destes poemas. Evidentemente, Platão não julgou inspirados autores que deixaram semelhantes poemas. Mas, haveria um juiz mais competente que Platão, Celso, o epicureu, se realmente foi ele que compôs os dois outros tratados contra os cristãos; mas, talvez seja por espírito de disputa que ele citou como inspirados autores que ele não podia acreditar inspirados. - Ele nos critica o fato de apresentarmos o homem como modelado pelas mãos de Deus. Mas o livro do Gênesis não fala das mãos de Deus nem quando Deus forma o homem nem quando o modela. Apenas Jó e Davi dizem: "Tuas mãos me formaram e me modelaram" (Jó, 10,8; Sl 118,73): a este respeito seria preciso uma longa explicação para definir o pensamento dos que assim falam, não apenas da diferença entre fazer e modelar, mas também das mãos de Deus. Por não terem entendido estas locuções e outras semelhantes nas divinas Escrituras, muitos imaginam que atribuamos ao Deus supremo uma forma semelhante à do homem; e assim sendo, seria lógico acreditarmos que existam asas no corpo de Deus, pois é desta forma que nossas Escrituras, tomadas ao pé da letra, se referem a Deus. Mas o assunto em questão não requer que eu as interprete aqui; foi o objeto principal de meus esforços em meus Comentários sobre o Gênesis. Vê então a maldade de Celso no que vem a seguir. Diz nossa Escritura sobre a formação do homem: "Insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente" (Gn 2,7) Mas ele, com a intenção de criticar maldosamente, sem ter compreendido o sentido da expressão: "Insuflou em suas narinas um hálito de vida", escreveu: Eles compuseram a história de um homem modelado pelas mãos de Deus e recebendo seu hálito, para que o termo "insuflar", que se emprega igualmente em se tratando de odres que são enfunados, provoque riso com as palavras: "Insuflou em suas narinas um hálito de vida"; mas a expressão dita num sentido figurado, requer explicação que mostre que Deus deu ao homem o dom do espírito incorruptível, do qual se diz: "Todos levam o teu espírito incorruptível" (Sb 12,1) - Em seguida, em seu intuito de denegrir a Bíblia, também investe contra esta passagem: "Então o Senhor Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, o Senhor Deus modelou uma mulher..." etc (Gn 2,21-22), mas não cita o texto que pode fazer o leitor entender o caráter figurado do relato. Nem mesmo parece admitir que se trata de alegorias, embora diga em seguida: os mais sensatos judeus e cristãos, pela vergonha que sentem, tentam dar uma interpretação alegórica da história. Podemos responder-lhe: neste caso, a história contada por Hesíodo, teu autor inspirado, sob a forma de um mito sobre a mulher, teria um sentido alegórico quando ele faz dela "um mal" causado por Zeus aos homens "em lugar do fogo", ao passo que a história da mulher, tirada da costela de Adão adormecido com um sonho milagroso, e modelada por Deus, te pareceria escrita sem nenhuma razão nem significado oculto? Mas é insensato não rir da primeira história como se ri de um mito, admirar-lhe ao contrário o sentido filosófico sob o véu do mito, e da segunda, aplicando seu espírito à letra exclusivamente, criticá-la pensando que não tem razão de ser. Pois, se fosse necessário, conforme a letra simplesmente, questionar seu sentido alegórico, vê se os versos de Hesíodo, autor que dizes inspirado, não incorrem com mais razão na mesma crítica. Eis o que ele escreveu: "E irado, Zeus que reúne as nuvens lhe disse: 'Filho de Japeto, que tens a respeito um conhecimento maior que todos os outros, oxalá rias por teres roubado o fogo e enganado minha alma, para tua maior desgraça como para desgraça dos homens que vão nascer! Em vez de fogo, eu lhes darei como presente um mal, no qual todos, no fundo do coração, terão o prazer de cercar de amor sua própria desgraça.' Diz isto e executa o pai dos deuses e dos homens; ordena ao ilustre Hefesto que sem tardar, misture com água um pouco de terra, nela coloque a voz e as forças de um ser humano e forme com ela, à imagem das deusas imortais, um belo corpo amável de virgem; Atena lhe ensina seus trabalhos, a profissão que tece mil cores; Afrodite com o ouro de sua fronte espalhará a graça, o doloroso desejo, os cuidados que rompem os membros, enquanto um espírito impudente, um coração artificioso serão, por ordem de Zeus, colocados nela por Hermes, o Mensageiro, matador de Argos. Ele diz, e todos obedecem ao senhor Zeus, filho de Crono. Às pressas, o ilustre Coxo modela na terra a forma de uma casta virgem, segundo a vontade do Cronida. A deusa de olhos glaucos, Atena, a adorna e lhe cinge a cintura. Em volta de seu pescoço, as Graças divinas, a augusta Persuasão colocam colares de ouro; e em volta dela as Horas dos belos cabelos dispõem em guirlandas flores de primavera. Palas Atena ajusta em seu corpo todos os seus adornos. E em seu seio, o Mensageiro, matador de Argos, cria mentiras, palavras enganosas, coração artificioso, como o deseja Zeus com pesados bramidos. Depois, na qualidade de arauto dos deuses, coloca nela a palavra, e a esta mulher dá o nome de Pandora, porque são todos os habitantes do Olimpo que, com este presente, dão como presente a desgraça aos homens que comem o pão." Ridículo em si mesmo é também o que ele diz sobre a jarra: "A raça humana vivia antigamente na terra resguardada e distante dos sofrimentos, da dura fadiga, das doenças dolorosas, que trazem a morte aos homens. Mas a mulher, levantando com suas mãos a grande tampa da jarra, os dispersou pelo mundo e preparou para os homens tristezas e cuidados. Só a esperança ficou lá no interior de sua inquebrável prisão, sem passar as bordas da jarra, pois Pandora já tinha recolocado a tampa da jarra." Diremos ao que dá uma interpretação alegórica profunda desta passagem, atinja ele ou não o sentido da alegoria: somente aos gregos será permitido encontrar verdades filosóficas sob significados ocultos, como também aos egípcios e a todos os bárbaros que levam a sério a verdade de seus mistérios; mas apenas os judeus, seu Legislador e seus escritores te pareceram os mais idiotas de todos os homens, e esta única nação não recebeu nenhuma parte do poder divino, ela que foi instruída a elevar-se tão magnificamente até à natureza incriada de Deus, a fixar os olhos somente nele, a colocar nele somente suas esperanças? - Celso também critica a passagem sobre a serpente que se rebela contra as ordens que Deus deu ao homem, considerando a narrativa como história da carochinha. Ele evita de propósito mencionar o "jardim" e a maneira como se diz que Deus o plantou "no Éden, no oriente", e que em seguida "fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gn 2,8-9), em seguida as palavras aí acrescentadas, capazes só elas de incitar o leitor de boa fé a ver que tudo isto pode, sem inconveniência, ser compreendido em sentido figurado. Vamos então comparar com ele as palavras de Sócrates sobre Amor no Banquete de Platão, atribuídas a Sócrates considerado mais venerável do que todos os que tratam desta matéria no Banquete. Esta é a passagem de Platão: "No dia em que nasceu Afrodite, os deuses se banqueteavam, e entre eles, o filho de Invenção, chamado Expediente. Ao sair do festim, Pobreza veio mendigar, pois tinham feito uma festança, e lá estava ela na porta. Expediente, embriagado de néctar - ainda não existia vinho - entrou no jardim de Zeus e caiu em profundo sono. Pobreza, então, sem nenhum expediente, planeja ter um filho de Expediente: deita-se a seu lado, e fica grávida de Amor. E assim Amor se tornou companheiro e servo de Afrodite, tendo sido gerado durante as festas de seu nascimento, e além disso naturalmente enamorado de sua beleza, pois Afrodite também é bela. Eis então em que fortuna foi colocado Amor, desde então, como Filho de Expediente e de Pobreza. De início, é pobre, e longe de ser delicado e belo como a maior parte o imagina: ele é rude, sujo, pé no chão, sem eira nem beira, deitando no chão duro ou pelas estradas, como bom filho de sua mãe sempre em harmonia com a indigência. Por outro lado, à semelhança de seu pai, vive à procura de tudo que é bom e belo; corajoso, audaz, com todas as forças prontas a agir, caçador temível sempre tramando ciladas, ávido de pensamento, rico de ideias expedientes, em busca de saber por toda a vida, perito em encantamentos, em filtros, em argúcias. Nem imortal por natureza, nem mortal, ora no mesmo dia está em flor, em plena vida quando seus expedientes surtem efeito, ora morre, mas revive seguindo o atavismo de seu pai. Mas os frutos de seus expedientes continuamente lhe fogem do alcance, de modo que Amor nunca é pobre, jamais rico. De resto, sempre a meio caminho entre o saber e a ignorância." Os leitores desta página, nos moldes da malícia de Celso - oxalá os cristãos não o sigam! - podem zombar do mito e ridicularizar o sublime de Platão. Mas, num estudo filosófico dos pensamentos revestidos da forma do mito, chegando a descobrir a intenção de Platão, podemos admirar a maneira como ele conseguiu ocultar as grandes doutrinas para ele evidentes sob a forma de um mito, por causa do povo simples, e a dizê-los como se deve àqueles que sabem descobrir em mitos a significação verdadeira de seu autor. Citei este mito de Platão por causa de seu "jardim de Zeus" que parece corresponder ao jardim de Deus, por causa igualmente de Pobreza, comparável à serpente que nele se encontra, e de Expediente a quem Pobreza tem aversão, como a serpente que tem aversão ao homem. Mas podemos também nos perguntar se Platão conseguiu encontrar estas histórias por acaso; ou se, como alguns pensam, em sua viagem ao Egito, encontrou os que interpretam filosoficamente as tradições judaicas, aprendeu deles certas ideias, conservou algumas, plagiou outras, evitando ofender os gregos ao conservar integralmente as doutrinas da sabedoria judaica, objeto da aversão geral pelo caráter estranho de suas leis e pela forma particular de seu regime. Mas nem o mito de Platão, nem a história "da serpente" e do jardim de Deus com tudo o que nele ocorreu, precisam receber aqui sua explicação: esta é o assunto principal de meus esforços nos Comentários sobre o Gênesis. - À afirmação que ele faz sobre a narrativa de Moisés: haverá impiedade maior do que esta ficção em que Deus é tão fraco desde a origem que nem consegue convencer o único homem que ele mesmo modelou! Responderei que ela está conexa com a crítica da própria existência do mal, que Deus não pôde afastar de um só homem para que ao menos um só homem qualquer dele ficasse livre, desde a origem. Assim como sobre este ponto a preocupação de defender a Providência fornece justificações tão numerosas quanto válidas, da mesma forma para Adão e sua falta, encontraremos a explicação sabendo que, traduzida do grego, a palavra "Adão" significa homem, e que, ao se referir a Adão, Moisés fala da natureza do homem. É que, segundo a Escritura, "em Adão todos morrem!" (1Cor 15,22), e foram condenados "de modo semelhante à transgressão de Adão" (Rm 5,14), a afirmação da palavra divina referindo-se não propriamente a um só indivíduo, mas à totalidade da raça. E de fato, nas palavras a seguir que parecem ter em vista um só indivíduo, a maldição de Adão é comum a todos; e não existe mulher à qual não se aplique o que se diz contra a mulher. Além disso, a narrativa do homem expulso do jardim com sua mulher, revestido das "túnicas de peles" que Deus, por causa da transgressão dos homens, confeccionou para os pecadores, contém um ensinamento secreto e misterioso bem superior à doutrina de Platão sobre a descida da alma que perde suas asas e é arrastada cá para baixo "até que se agarre a alguma coisa sólida". O dilúvio e a arca - E continua nestes termos: Trata-se então de um dilúvio e de uma estranha arca, que contém todos os seres, de uma pomba e de uma gralha usadas como mensageiras: plágio sem escrúpulo da história de Deucalião; não repararam, penso eu, que esta fábula viria a público, mas a contaram ingenuamente às crianças. Observa aqui também o ódio bem pouco filosófico deste autor contra a antiquíssima Escritura dos judeus. Pois ele não pode denegrir a história do dilúvio. Ele ignora mesmo as objeções possíveis contra a arca e suas dimensões, por exemplo, que ao aceitar como o povo simples faz os números de "trezentos côvados" de comprimento, "cinquenta" de largura, "trinta" de altura, não é possível sustentar que ela abrigou os animais que estão na terra, quatorze de cada espécie pura, quatro de cada espécie impura. Então ele se contenta em qualificá-la como estranha arca abrigando todos os seres. Mas que terá ela de estranho, pois como contam, foi construída em cem anos, e foi reduzida dos trezentos côvados de comprimento, dos cinquenta de largura, até que os trinta côvados de sua altura terminassem num só côvado de comprimento e de largura? Não seria mais admirável que esta construção, semelhante a uma cidade bem grande, fosse descrita pelas dimensões tiradas do poder, de modo que ele fosse, em sua base, de miríades de côvados de comprimento, e de dois mil e quinhentos de largura? Não se deveria admirar o projeto de torná-la sólida e capaz de suportar a tempestade, causa do dilúvio? E com efeito, não é nem de resina, nem qualquer outra matéria desta natureza, mas de betume que ela foi fortemente calafetada? E não é coisa admirável que os sobreviventes de cada espécie tenham sido introduzidos no interior pela Providência de Deus, para que a terra tivesse de novo as sementes de todos os seres vivos, tendo Deus se servido do homem mais justo que seria o pai daqueles que nasceriam depois do dilúvio? - Celso rejeitou a história da pomba para dar a impressão de ter lido o livro do Gênesis, mas nada pôde apresentar como prova do caráter fictício desta história. Depois, conforme seu hábito de traduzir a Escritura em termos ridículos, faz do corvo uma gralha e supõe que Moisés transcreveu aí sem nenhum escrúpulo a história grega de Deucalião; a não ser talvez que ele considere o livro como obra não apenas de Moisés mas de diversos autores, como indica a frase: "Plágio sem escrúpulo da história de Deucalião"; ou também esta: "Não repararam, penso eu, que esta fábula viria a público". Mas como explicar que aqueles que transmitiram a Escritura à nação inteira não repararam que ela viria a público, quando eles mesmos predisseram que esta religião seria pregada a todas as nações? E quando Jesus disse aos judeus: "O Reino de Deus vos será tirado e confiado a um povo que produza seus frutos" (Mt 21,43), que outra disposição tem ele em vista senão apresentar ele mesmo ao público pelo poder divino, toda a Escritura judaica que contém os mistérios do Reino de Deus? Depois disto, como leitores das teogonias dos gregos e das histórias de seus doze deuses, eles lhes atribuem um caráter venerável por meio de interpretações alegóricas; como detratores de nossas histórias, tacham-nas de fábulas ingênuas contadas às crianças! Histórias de famílias - A menção que ele faz de uma procriação totalmente absurda e fora da idade, embora não mencione o nome próprio, designa evidentemente a de Abraão e Sara. Quando rejeita as astúcias de irmãos, quer se referir às de Caim contra Abel, ou também de Esaú contra Jacó. A dor de um pai pode ser a de Isaac na partida de Jacó, talvez também a de Jacó ao ver José levado para ser vendido no Egito. A expressão embustes de mães designa em seu texto, creio eu, as disposições tomadas por Rebeca para fazer cair não sobre Esaú, mas sobre Jacó, as bênçãos de Isaac. Mas que haverá de absurdo em dizer que Deus colaborou de perto em tudo isto, na persuasão que temos de que sua divindade jamais se afasta dos que se consagram a ele, levando uma vida de virtude sólida? Critica igualmente o enriquecimento de Jacó na casa de Labão, por não ter compreendido o sentido das palavras: "As que não tinham marca eram para Labão, as que estavam marcadas, para Jacó" (cf Gn 30, 42) E diz: Deus deu a seus filhos burros, ovelhas e camelos, por não ter visto que "estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos" (1Cor 10,11); as nações diversas foram entre nós marcadas e são governadas pela palavra de Deus, riqueza dada que figurativamente se chama Jacó. A história de Labão e Jacó indica a chegada daqueles que virão das nações à fé em Cristo. - E ele está longe do sentido das Escrituras quando diz: Deus mesmo deu poços aos justos. Não observou que os justos evitam construir cisternas, mas cavam poços para si, procurando descobrir a fonte interior e a origem das águas doces, pois receberam o mandamento que também afirma em sentido figurado: "Bebe a água da tua cisterna, a água que jorra do teu poço. Não derrames pela rua o teu manancial, nem os teus ribeiros pelas praças. Sejam para ti somente, sem reparti-los com estrangeiros" (Pr 5,15-17) Não poucas vezes a Escritura aproveita a ocasião de acontecimentos reais que ela descreve, para expor, em figuras, verdades mais profundas, como são estas passagens sobre os poços, os casamentos e as diferentes uniões dos justos: procuraremos elucidar melhor este assunto oportunamente nos Comentários destas passagens. A prova de que estes poços foram cavados pelos justos na terra dos filisteus, conforme a narrativa do Gênesis, está nestes poços maravilhosos que são mostrados em Ascalon, dignos de menção pelo caráter estranho e insólito de sua construção se comparados aos outros poços. Não somos nós que ensinamos que é preciso compreender alegoricamente as jovens mulheres e as jovens servas, mas aprendemos isto dos sábios que nos precederam. Um deles dizia, elevando seus ouvintes ao sentido espiritual: "Dizei-me, vós que quereis estar debaixo da Lei, não ouvis vós a Lei? Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da serva e outro da livre. Mas o da serva nasceu segundo a carne; o da livre, em virtude da promessa. Isto foi dito em alegoria. Elas, com efeito, são as duas alianças; uma, a do monte Sinai, gerando para a escravidão: é Agar" (Gl 4,21-24) E, mais adiante: "Mas a Jerusalém do alto é livre e esta é a nossa mãe" (Gl 4,26) E quem quiser ler a carta aos Gálatas saberá de que maneira compreender alegoricamente as passagens sobre os casamentos e as uniões com as servas, pois é vontade da Escritura que procuremos com ardor as ações daqueles que as realizaram, não na sua aparência corporal, mas, como costumam chamá-las os apóstolos de Jesus, em seus significados espirituais. - Celso deveria reconhecer a sinceridade dos autores das divinas Escrituras no fato de eles não terem escondido nem mesmo atos desonrosos, e consequentemente, considerar como autênticas as outras histórias ainda mais maravilhosas. Ele fez exatamente o contrário e, sem examinar a letra nem investigar o espírito, chamou de mais abominável do que os crimes de Tieste a história de Ló e de suas filhas. Não precisamos expor aqui o que significam alegoricamente nesta passagem Sodoma e a palavra dos anjos dirigida ao que eles salvavam de lá: "Não olhes para trás de ti nem te detenhas em nenhum lugar da Planície; foge para a montanha, para não pereceres!" (Gn 19,17); ou o que significam Ló, sua mulher transformada "em estátua de sal" por ter virado para trás, suas filhas embriagando o pai para se tornarem mães graças a ele. Mas, procuremos atenuar em poucas palavras os inconvenientes da história. Também os gregos procuraram a natureza das ações boas, más e indiferentes. Dentre eles os que melhor trataram desta matéria fazem depender as boas e más ações unicamente da liberdade; chamam indiferentes no sentido próprio todas as que são investigadas independentemente da liberdade: se a liberdade é usada como convém, é louvável, caso contrário, é censurável. Dizem, portanto, a respeito desta questão das ações "indiferentes", que unir-se à sua filha é em sentido próprio indiferente, embora não se deva fazer isto nas sociedades constituídas. Por hipótese, a fim de mostrar o caráter indiferente de tal ato, imaginaram o caso de um sábio, deixado com sua filha sozinha depois da destruição de todo o gênero humano e se perguntam se seria conveniente que o pai se una à sua filha para evitar, segundo a hipótese, a perda do gênero humano inteiro. Então, será esta uma opinião sadia entre os gregos, defendida pela escola dos estoicos que não é desprezível conforme seu modo de ver? Mas quando as filhas jovens, cientes do incêndio do mundo, mas de modo confuso, à vista do fogo que devasta sua cidade e sua terra, supuseram que a última centelha de vida pela humanidade subsistia no seu pai e nelas, e providenciaram, dentro desta perspectiva, pela manutenção do mundo, seriam elas inferiores ao sábio da hipótese estoica que se uniria legitimamente às suas filhas na destruição da humanidade? Não ignoro o escândalo causado a alguns pela intenção das filhas de Ló, e seu julgamento sobre a impiedade de seu ato: disseram que desta união ímpia se originaram as nações malditas dos moabitas e amonitas. Na verdade, não se pode constatar que a Escritura aprove claramente como boa esta ação, nem que ela a rejeite ou censure. Mas de qualquer modo, o acontecimento pode ser interpretado em sentido espiritual, e ele também tem em si mesmo certa escusa. - Celso abomina o ódio, aquele que Esaú nutria contra Jacó, e cuja maldade a Escritura reconhece; depois, sem citar claramente a história de Simeão e Levi que procuraram vingar sua irmã violada pelo filho do rei de Siquém, ele os acusa a ambos. Fala dos irmãos que vendem: os filhos de Jacó; do irmão que é vendido: José; do pai que se deixa burlar: Jacó, que não teve nenhuma desconfiança quando seus filhos lhe mostraram "a túnica adornada" de José, mas acreditou neles e "chorou", como se estivesse morto, a José vendido como escravo no Egito. Eis o ódio sem amor da verdade com que Celso multiplica os lances da história. Onde ela lhe parece conter motivos de crítica, ele a cita; quando, porém, ela prova a memorável castidade de José, que se recusa, apesar dos rogos e ameaças daquela que era legalmente sua senhora, ele não se lembra mais da história. De maneira bem superior às ações narradas de Belerofonte, vemos de fato José preferir a prisão à perda de sua castidade: pelo menos, quando podia se defender e se justificar contra sua acusadora, sua magnanimidade o levou ao silêncio e a entregar sua causa nas mãos de Deus. - Depois disto, por desencargo de consciência, mas de uma maneira muito obscura, ele menciona sonhos do copeiro-mor e do padeiro-mor, do Faraó, da explicação deles pela qual José foi retirado da prisão, tendo-lhe então o Faraó confiado o segundo trono do Egito. Qual então o absurdo desta história, ainda que entendida literalmente, para Celso fazer dela um motivo de acusação, ele que intitulou Discurso verdadeiro um tratado que não contém doutrinas, mas acusações contra cristãos e judeus? E acrescenta: Aquele que tinha sido vendido trata com benignidade seus irmãos que o haviam vendido, quando foram forçados pela fome a procurar provisões com seus burros; mas não mostra o que ele fez. Cita igualmente o reconhecimento, mas não sei nem seu plano, nem o que ele encontra de absurdo, na cena do reconhecimento. O próprio Momo, se posso dizer, não faria uma crítica sensata desta história que, acima de qualquer sentido alegórico, parece tão atraente. Ele apresenta ainda José, como vendido escravo em outros tempos, posto agora em liberdade e retornando em grande cortejo ao túmulo de seu pai. E julga encontrar na história um motivo de acusação, ao afirmar: Por ele - evidentemente José - a ilustre e divina raça dos judeus, que se multiplicara no Egito, recebeu a ordem de residir em algum outro lugar, e apascentar seus rebanhos numa região desprezada. Seu projeto de ódio o leva a dizer que ela recebeu a ordem de apascentar seus rebanhos numa região desprezada, sem mostrar como o distrito de Gessen no Egito é uma região desprezada. A saída do povo da terra do Egito é chamada por ele de fuga, sem a menor consideração com o que está escrito no Êxodo sobre a saída dos hebreus da terra do Egito. Apresentei estes exemplos para mostrar que mesmo aquilo que, entendido em sentido literal, não parece ser objeto de crítica, Celso transforma em acusação frívola, sem provar por argumento algum o que ele julga perverso nas nossas Escrituras. A interpretação alegórica - Em seguida, entregue por assim dizer unicamente ao seu ódio e à sua animosidade contra a doutrina dos judeus e dos cristãos, ele diz: Os mais sensatos dos judeus e dos cristãos alegorizam tudo isto. E afirma: A vergonha que eles têm desta história os faz se refugiarem na alegoria. Poderíamos dizer: se devemos chamar de vergonhosas em sua acepção primeira as doutrinas dos mitos e das ficções, escritos com um sentido figurado ou de qualquer outra maneira, a que histórias esta qualificação se impõe senão às histórias gregas? Nelas os deuses filhos castram os deuses pais; os deuses pais devoram os deuses filhos; a deusa mãe, no lugar de um filho, entrega àquele que é pai "dos deuses e dos homens" uma pedra; um pai se une à sua filha; uma mulher acorrenta o marido, tomando como cúmplices para o prender o irmão e a filha daquele que ela acorrenta. Mas, por que deveria eu enumerar as histórias absurdas dos gregos sobre seus deuses, manifestamente vergonhosas mesmo alegorizadas? Desta forma, a passagem em que Crisipo de Soles, que, segundo se afirma, honrou o Pórtico com muitas obras geniais, explica um quadro de Samos em que Hera é representada cometendo com Zeus um ato obsceno. O grave filósofo diz em seu tratado que a matéria, tendo recebido as razões seminais de Deus, guarda-as em si mesma para a organização do universo. No quadro de Samos, Hera é a matéria e Zeus é Deus. Por esse motivo e por causa dos mitos deste gênero e de uma infinidade de outros, recusamos chamar, ainda que apenas de nome, o Deus supremo de Zeus, o sol de Apolo, e a lua de Ártemis. Mas, praticando uma piedade pura com o Criador, e louvando a beleza de suas criaturas, nós não aviltamos, nem mesmo de nome, as coisas divinas, aprovando a palavra de Platão no Filebo, que não concorda que o prazer seja um deus: "Minha reverência, Protarco, pelo nome dos deuses é profunda." Também nós na verdade estendemos nossa reverência ao nome de Deus e de suas belas criaturas e recusamos, mesmo sob pretexto de alegoria, qualquer outro mito corruptor para a juventude. - Uma leitura leal da Escritura teria impedido Celso de dizer que nossos livros não admitem alegoria. Com efeito, partindo das profecias em que são relatados os fatos históricos e não a partir da história, podemos nos convencer de que mesmo os fatos históricos foram relatados em vista de uma interpretação alegórica, e muito sabiamente adaptados às necessidades do povo de fé simples, e da elite que quer e pode examinar as questões com inteligência. Se aqueles que, conforme Celso, são hoje considerados judeus e cristãos sensatos fossem os únicos a alegorizar as Escrituras, poderíamos supor que Celso disse uma coisa plausível. Mas, como os autores de nossas doutrinas e os escritores recorrem eles mesmos a estas interpretações alegóricas, o que se há de supor senão que eles escreveram de maneira que estes fatos sejam interpretados alegoricamente conforme sua intuição principal? Entre muitas outras, citarei algumas passagens para mostrar a calúnia gratuita de Celso quando diz que as Escrituras não admitem alegoria. Aqui vai uma declaração de Paulo, Apóstolo de Jesus: "Na lei de Moisés está escrito: 'Não amordaçarás o boi que tritura o grão'. Acaso Deus se preocupa com os bois? Não é, sem dúvida, por causa de nós que ele assim fala? Sim; por causa de nós é que isto foi escrito, pois aquele que trabalha deve trabalhar com esperança e aquele que pisa o grão deve ter a esperança de receber a sua parte" (1Cor 9,9-10) E o mesmo escritor diz em outra parte: "Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher; e serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja" (Ef 5,31-32). E ainda em outra passagem: "Não quero que ignoreis, irmãos, que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, todos atravessaram o mar e, na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés" (1Cor 10,1-2) Depois, interpretando a história do maná e da água que jorrou da pedra milagrosamente, na expressão da Escritura, assim diz: "Todos comeram o mesmo alimento espiritual, e todos beberam a mesma bebida espiritual, pois bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo" (1Cor 10,3-4). E Asaf mostrou que as histórias do Êxodo e dos Números são mistérios e parábolas, como está escrito no livro dos Salmos: "Povo meu, escuta a minha lei, dá ouvido às palavras da minha boca; vou abrir minha boca numa parábola, vou expor enigmas do passado. O que nós ouvimos e conhecemos, o que nos contaram nossos pais, não o esconderemos a seus filhos; nós o contaremos à geração seguinte" (Sl 77,1-3) - Além disso, se a lei de Moisés não contivesse nada que elucidasse os significados simbólicos, o profeta não diria a Deus em sua oração: "Tira o véu dos meus olhos para eu contemplar as maravilhas que vêm de tua lei" (Sl 118,18). Mas na realidade ele sabia bem que há um "véu" de ignorância cobrindo o coração daqueles que leem e não compreendem os sentidos figurados. Este véu é retirado por favor divino quando Deus ouve aquele que fez tudo que pôde, que se acostumou a exercer suas faculdades em distinguir o bem e o mal e constantemente diz em sua prece: "Tira o véu dos meus olhos para eu contemplar as maravilhas que vêm de tua lei." E quando lê que o dragão vive no rio do Egito e os peixes se escondem debaixo de suas escamas, ou as montanhas do Egito são cobertas com os "excrementos" do Faraó, não é ele logo levado a procurar saber quem é aquele que cobre as montanhas do Egito dessa quantidade de excrementos fétidos, quais são as montanhas do Egito, quais os rios do Egito de que se gaba o Faraó acima referido dizendo: "Meus são os rios e fui eu quem os fez" (cf Ez 32,6), quem é o dragão, no contexto da interpretação alegórica dos rios, e quem são os peixes debaixo das escamas? Mas, por que hei de provar também o que não carece de prova, e acerca do qual se diz: "Quem é sábio com-preenda isto, quem é inteligente reconheça-o!" (Os 14,9) Desenvolvi um pouco o argumento, no intuito de mostrar que Celso não podia ter razão de dizer: Os mais sensatos dos judeus e dos cristãos procuram dar uma explicação alegórica destes fatos; mas há alguns deles que não admitem a alegoria e são manifestamente fábulas da espécie mais idiota. E as histórias gregas, na verdade, não são de espécie mais idiota, e também mais ímpia? Pois as nossas têm em vista inclusive o povo simples, o que os autores de ficções gregas esqueceram. Por isso, não é simplesmente por má vontade que Platão expulsa de sua República os mitos e os poemas desta espécie. - Celso também parece ter ouvido falar que existem livros com alegorias sobre a Lei. Se os tivesse lido, não teria dito: Pelo menos as alegorias aparentemente escritas a seu respeito são bem mais vergonhosas e mais absurdas do que os mitos, pois elas procuram, por uma loucura estranha e completamente estúpida, associar coisas que não têm nenhuma relação. Por esta observação ele parece ter em mira os escritos de Fílon, ou de autores mais antigos ainda, como os de Aristóbulo. Imagino, porém, que Celso não leu os livros, pois me parecem em muitos pontos tão felizes que mesmo os filósofos gregos seriam conquistados pelo que dizem. Encontramos neles uma elaboração não só de estilo, mas também de pensamentos e doutrinas, e o emprego daquilo que Celso julga mitos nas Escrituras. Sei que Numênio, o Pitagórico, o melhor comentarista de Platão e o autor mais versado em doutrinas pitagóricas, cita em vários lugares de seus tratados as passagens de Moisés e dos profetas, e lhes aplica interpretações alegóricas que têm certa verossimilhança, como no que ele intitula Epops, ou em seus tratados Sobre os Números e Sobre o Lugar. E no terceiro livro Sobre o Bem, até cita uma história sobre Jesus, sem lhe mencionar, porém, o nome, e a interpreta alegoricamente; com sucesso ou não, vamos responder a isto oportunamente, em outra ocasião. Cita igualmente a história de Moisés, Janes e Jambres. Não quer dizer que encontremos aí um motivo para nos gloriar, mas aprovamos mais que Celso e os outros gregos o autor que quis sinceramente examinar nossas Escrituras e foi levado a ver nelas livros cheios de significados alegóricos e não de loucuras. - Em seguida, entre todos os tratados que contêm alegorias e interpretações num estilo que tem a sua beleza, escolheu o mais comum, capaz de favorecer a fé do povo simples, mas muito incapaz de impressionar os inteligentes. Diz ele: Deste gênero justamente conheço uma controvérsia de um certo Papisco e Jasão, que merece menos o riso do que a compaixão e o ódio. Longe, porém, de mim a intenção de refutar suas inépcias: são evidentes a todos, principalmente àquele que tem a paciência de suportar a leitura em si do livro. Prefiro ensinar isto de acordo com a natureza: Deus nada fez de mortal; mas todos os seres imortais são obras de Deus, e os seres mortais são obras dos imortais. A alma é obra de Deus, mas diversa é a natureza do corpo. Na verdade, a este respeito, não haverá nenhuma diferença entre um corpo de morcego, de verme, de rã ou de homem: a natureza deles é a mesma, e da mesma espécie igualmente seu princípio de corrupção. Contudo, eu gostaria que aquele que ouviu Celso se indignar e declarar que o tratado intitulado Controvérsia de Papisco e de Jasão sobre Cristo merece menos o riso do que o ódio tome em mãos o pequeno tratado e tenha a paciência de suportar a leitura do que ele contém, a fim de condenar imediatamente Celso, porque ele não encontra nada que mereça o ódio. Um leitor imparcial verá que o livro nada tem que mereça riso: aí se apresenta um cristão que discute com um judeu, com base nas Escrituras judaicas, mostrando que as profecias sobre Cristo se aplicam a Jesus, embora o outro se oponha ao argumento de uma maneira que tem sua nobreza e convém ao personagem de um judeu. - Mas, não sei por quê, associando dois sentimentos incompatíveis que não podem andar juntos numa natureza humana, ele diz que este livro merece a compaixão e o ódio. Pois devemos convir que aquele de quem temos compaixão não desperta o ódio e ao mesmo tempo a piedade, e quem é odiado não desperta a compaixão e ao mesmo tempo o ódio. E a razão por que Celso diz não ter a intenção de refutar suas inépcias é, acredita ele, o fato de ser evidente a todos que, antes mesmo de uma refutação racionalmente conduzida, o livro de nada vale e merece a compaixão e o ódio. Mas eu convido o leitor desta apologia que refuta a acusação de Celso a suportar a leitura de nossos livros, e enquanto possível verifique a intenção, a consciência e o estado de espírito dos escritores: verá então homens que defendem com ardor o que lhes foi transmitido, e que alguns escrevem manifestamente uma história de que eles foram testemunhas e que eles consideram como milagrosa e digna de ser narrada para o bem daqueles que a ouvirem. Ou então que se tenha a coragem de negar que a origem e o princípio de todo bem para a alma é acreditar no Deus do universo, é realizar todas as ações visando agradá-lo em tudo, sem mesmo ter qualquer pensamento que lhe cause desagrado, pois não só as palavras e as ações mas até os pensamentos serão julgados por ele! E que outra doutrina seria mais eficaz para converter e levar a natureza humana a uma vida virtuosa senão a fé ou a persuasão de que a de um Deus supremo que vê todas as nossas palavras, nossas ações e mesmos nossos pensamentos? Apresente quem quiser um outro método que ao mesmo tempo converta e melhore não um ou dois indivíduos apenas, mas também, enquanto possível, um número bem grande; então a comparação dos dois métodos levará à compreensão exata sobre qual a doutrina que prepara para a vida virtuosa. Os corpos e as almas são obras de Deus - Na passagem de Celso que citei, que é uma paráfrase do Timeu, encontramos certas expressões como: "Deus nada fez de mortal, mas apenas os seres imortais, e os seres mortais são obras de outros seres. A alma é obra de Deus, mas diversa é a natureza do corpo. E um corpo de homem não tem diferença nenhuma do morcego, do verme ou da rã; pois a matéria é a mesma, e da mesma espécie também seu princípio de corrupção". Vamos então discutir um pouco estes pontos, e provar que ele dissimula sua opinião epicureia, ou talvez se diga que ele a abandonou por melhores doutrinas, ou mesmo, se poderia dizer, que ele é homônimo de Celso epicureu. Como ele externava tais opiniões e se propunha contradizer, conosco, a ilustre escola filosófica dos discípulos de Zenão de Cítio, deveria provar que os corpos dos animais não são obras de Deus e que sua organização tão minuciosa não provém da inteligência primeira. A respeito das plantas, tão numerosas e variadas, regidas do interior por uma natureza que não podemos imaginar e criadas para a importante função no universo de servir aos homens e aos animais que estão a serviço dos homens e em qualquer outra situação, não deveria se contentar com declarar, mas ensinar estas inúmeras qualidades na matéria que constitui as plantas. Tendo apresentado os deuses como criadores de todos os corpos, enquanto apenas a alma seria obra de Deus, se ele quisesse dividir a multidão das obras criadas e atribuí-la a diversos deuses, não deveria ele estabelecer por um argumento válido as diferenças entre os deuses que produzem, alguns os corpos dos homens, outros os do gado, outros os dos animais selvagens? Ao ver alguns deuses criadores de dragões, de áspides, de basiliscos, outros criadores de cada espécie de insetos, outros de cada espécie de plantas e ervas, deveria apresentar as razões desta divisão do trabalho. Pois, talvez, se ele tivesse se empenhado num exame preciso da questão, ou teria sustentado que um só Deus é criador de todas as coisas e fez cada uma em vista de um fim e por uma razão, ou então, se não tivesse sustentado isto, teria visto a réplica a dirigir à objeção que aquilo que é corruptível é, por sua natureza, matéria indiferente, e que não há absurdo nenhum em sustentar que o mundo, constituído de elementos dissemelhantes, é obra de um único Artífice que estabeleceu as diferenças entre as espécies pelo bem do todo. Ou, finalmente, se não soubesse estabelecer o que ele declarava ensinar, não deveria revelar em nada sua opinião sobre uma doutrina desta importância; a não ser que, por acaso, ele que zomba daqueles que professam uma fé simples tenha desejado que nós demos crédito ao que ele afirmava, embora tenha pretendido não exprimir sua opinião, mas ensiná-la. - Ainda não mencionei que se ele tivesse tido a paciência de suportar a leitura, como ele diz, dos escritos de Moisés e dos profetas, teria se perguntado: por que então a expressão "Deus fez" só se aplica ao céu, à terra, ao "firmamento", depois aos luzeiros e às estrelas, depois aos grandes monstros marinhos e a cada um dos "seres vivos que rastejam e fervilham nas águas segundo sua espécie", a toda ave alada "segundo sua espécie", depois deles às feras da terra "segundo sua espécie", aos animais domésticos "segundo sua espécie", aos répteis do solo "segundo sua espécie", enfim ao homem, ao passo que a palavra "ele fez" não se aplica ao resto (Gn 1,1s) Quando se trata de criar a luz, a Escritura apenas diz: "e houve luz", e quando se trata de reunir numa massa única toda a água que está debaixo do céu, ela diz: "e assim se fez". Da mesma forma, quando se trata dos produtos da terra, ela diz: "A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente". Deveria ter investigado a que ser e a que seres se dirigem na Bíblia as ordens de Deus sobre a formação de cada parte do mundo. E não teria tão facilmente criticado como ininteligível e sem significado secreto o que está escrito nestes livros de Moisés, ou diríamos nós, pelo Espírito divino que estava em Moisés e pelo qual ele profetizou, pois ele "conhecia o presente, o futuro e o passado" mais do que os adivinhos munidos entre os poetas de tais conhecimentos. - Mas Celso ainda diz: "A alma é obra de Deus, mas diversa é a natureza do corpo. De fato, a este respeito, não haverá nenhuma diferença entre um corpo de morcego, de verme, de rã ou de homem; pois a matéria é a mesma, e da mesma espécie igualmente seu princípio de corrupção." A este argumento devemos responder: se de fato, como a mesma natureza existe subjacente aos corpos de um morcego, de um verme, de uma rã, de um homem, estes corpos não devem diferir em nada um do outro, é evidente que os corpos destes seres não diferem em nada do sol, da lua, das estrelas, do céu, de qualquer outro ser que os gregos chamam divindade sensível. Pois a matéria que é subjacente a todos os corpos é a mesma: falando a rigor, ela não tem qualidade nem forma, e não sei de onde ela recebe suas qualidades segundo Celso que não admite que nada de corruptível seja obra de Deus. Pois, segundo o argumento de Celso, o princípio de corrupção de qualquer ser, proveniente da mesma matéria que os sustenta, é necessariamente da mesma espécie. A não ser que aqui, diante da dificuldade, Celso divirja de Platão, que faz a alma sair de certa taça, e se refugie em Aristóteles e nos peripatéticos que afirmam que o éter é imaterial e de uma quinta natureza, diversa dos outros quatro elementos: doutrina esta à qual se opuseram nobremente os platônicos e os estoicos. Nós também, apesar do desprezo de Celso, havemos de nos opor a ela, pois pedem que exponhamos e provemos o que é dito nestes termos no profeta: "Firmaste a terra há muito tempo, e o céu é obra de tuas mãos; eles perecem, mas tu permaneces, eles todos ficam gastos como a roupa, tu os mudarás como veste, eles ficarão mudados, mas tu existes, e teus anos jamais findarão!" (Sl 101,26-28) No entanto, estas palavras são uma réplica suficiente à asserção de Celso: a alma é obra de Deus, mas diversa é a natureza do corpo, argumento este que tem como consequência: não há nenhuma diferença entre um corpo de morcego, de verme, de rã e o corpo etéreo. - Vê então se devemos estar do lado do homem que, com doutrinas semelhantes, acusa os cristãos, e se for necessário abandonar uma doutrina que explique a diversidade pelas qualidades inerentes aos corpos ou que lhes são exteriores. Sabemos também nós que existem "corpos celestes e corpos terrestres" e que diverso é "o brilho dos corpos celestes" e diverso o dos "terrestres"; e que, mesmo entre "os corpos celestes" ele não é idêntico, pois "um é o brilho do sol, outro o das estrelas"; e que, entre as estrelas, "uma estrela difere da outra em brilho". Por isso, como esperamos a ressurreição dos mortos, dizemos que as qualidades inerentes "aos corpos" mudam; alguns deles, semeados "corruptíveis, ressuscitam incorruptíveis"; semeados "desprezíveis, ressuscitam reluzentes de glória"; semeados "na fraqueza, ressuscitam cheios de força", semeados corpos psíquicos, ressuscitam espirituais (cf 1Cor 15,40-44) Nós todos que admitimos a Providência temos a certeza de que a matéria fundamental é capaz de receber as qualidades que o Criador quer: pela vontade de Deus, qualquer que seja a qualidade atual de tal matéria, ela será a seguir, digamos, melhor e superior. Além disso, como existem leis estabelecidas referentes às mudanças que ocorrem nos corpos desde o começo até o fim do mundo, há de lhes suceder talvez uma lei nova e diferente depois da destruição do mundo que nossas Escrituras chamam de sua consumação. Por isso não admira que desde já, como dizemos comumente, de um cadáver de homem se formou uma serpente da coluna vertebral, do boi uma abelha, de um cavalo uma vespa, de um burro um escaravelho, e geralmente da maior parte, vermes. Celso julga que isto pode fornecer a prova de que nenhum deles é obra de Deus, mas ao contrário, as qualidades, determinadas não sei por que razões a mudar de um caráter ao outro, não são obra de uma razão divina que faria se sucederem as qualidades inerentes à matéria. - Eis o que me resta dizer contra a afirmação de Celso de que a alma é obra de Deus, mas que diversa é a natureza do corpo. Ele lançou uma doutrina desta importância sem prova, e pior ainda, sem definir seus termos, sem ter indicado claramente se toda alma é obra de Deus, ou se só a alma racional. Eu lhe direi então: se toda alma é obra de Deus, evidentemente a dos animais sem razão, mesmo dos mais vis, também o é, de modo que cada corpo tenha uma natureza diversa da alma. Na verdade, quando diz mais adiante que os animais sem razão são mais amados por Deus do que nós, e têm da divindade uma noção mais pura, ele pareceu afirmar que não é somente a dos homens que é obra de Deus, porém, ainda mais a alma dos animais sem razão; é a consequência de sua afirmação de que eles são mais amados por Deus do que nós. Primeiro, não disse claramente se apenas a alma racional é obra de Deus, depois, resulta de sua maneira confusa de falar da alma, segundo a qual nem toda alma, mas apenas a alma racional seria obra de Deus, que tampouco para todos os corpos a natureza não poderia ser outra. E se a natureza de todos os corpos não pode ser outra e se cada animal tem um corpo correspondente à sua alma, é claro que o corpo, cuja alma é obra de Deus, prevalece sobre o corpo em que habita uma alma que não é obra de Deus. Por isso é uma mentira afirmar que não há diferença alguma entre um corpo de morcego, de verme, de rã, e o corpo de um homem. - Com efeito, seria absurdo acreditar que pedras ou edifícios são mais ou menos puros do que outras pedras ou outros edifícios, porque foram construídos para a honra de Deus ou para receber corpos sem honra e malditos, mas que há corpos que não diferem de outros conforme sejam habitados por seres racionais ou por seres sem razão, e pelos mais virtuosos dos seres racionais ou pelos piores dos seres humanos. Esta é entretanto a razão que levou alguns a pretenderem divinizar os corpos das pessoas superiores, por terem recebido uma alma virtuosa, e a rejeitarem e desonrarem os dos criminosos. Não que esta prática seja perfeitamente sadia, mas ela deriva de uma noção sadia. Será que o sábio, depois da morte de Anito e de Sócrates, teria um cuidado igual com a sepultura do corpo de Sócrates e da de Anito, será que ele ergueria à memória dos dois o mesmo montículo funerário? Estas são as reflexões motivadas pela afirmação de Celso: nenhum deles é obra de Deus, em que a palavra "deles" pode se referir ao corpo do homem ou das serpentes que vêm deste corpo, e ao do boi ou das abelhas que vêm do corpo de boi, e ao do cavalo ou do burro e das vespas saídas do cavalo, dos escaravelhos saídos do burro. É a razão por que tivemos de voltar à afirmação: A alma é obra de Deus, mas diversa é a natureza do corpo. - E ainda afirma: Comum é a natureza de todos os corpos acima referidos, única no fluxo e refluxo de mudanças alternadas. Devemos responder que evidentemente, segundo o que ficou dito, a natureza é comum, não só a dos corpos citados anteriormente, mas também a dos corpos supracelestes. Nesta perspectiva, evidentemente para ele, mas não sei se verdadeira, única é a natureza de todos os corpos no fluxo e refluxo de mudanças alternadas. É indiscutivelmente o pensamento daqueles que pensam que o mundo é corruptível. E mesmo aqueles que se negam a crer que ele seja corruptível e não admitem um quinto elemento procurarão mostrar que também segundo eles, única é a natureza de todos os corpos no fluxo e refluxo das mudanças alternadas. Mas desta forma, até o que é perecível permanece através da mudança; pois segundo aqueles que sustentam que a matéria é incriada, o substrato da qualidade perecível permanece enquanto perece a qualidade. Todavia, se um argumento pode estabelecer que ela não é incriada, mas que foi criada para um uso determinado, manifestamente ela não terá a mesma natureza permanente tanto quanto na hipótese em que ela seria incriada. Mas o que importa aqui não é filosofar sobre a natureza para responder às críticas de Celso. - Diz ele igualmente: Nada é imortal daquilo que provém da matéria. A isto basta que respondamos: Se nada é imortal daquilo que provém da matéria, ou o mundo inteiro é imortal e assim não provém da matéria, ou não é imortal. Ora, se o mundo é imortal, e esta é a opinião daqueles que dizem que só a alma é obra de Deus e sai de uma taça, que Celso mostre que ele não provém de uma matéria sem qualidade, para ficar na lógica de sua afirmação que nada é imortal daquilo que provém da matéria. Mas se o mundo, proveniente da matéria, não é imortal, este mundo mortal é corruptível ou não? Se é corruptível, é como obra de Deus que ele será corruptível. Assim sendo, nesta corrupção, cabe a Celso dizer que fará a alma que é obra de Deus! Quer ele acaso dizer, pervertendo a noção de imortalidade, que o mundo é imortal, pois, embora sujeito à corrupção, ele não será corrompido, pois, capaz de sofrer a morte, na verdade não morre? É claro que haveria então, conforme ele, uma realidade ao mesmo tempo mortal e imortal, porque capaz de uma sorte como de outra; que ela seria mortal, embora não morra; e que não sendo imortal por natureza, pode ser chamada, num sentido particular, imortal, porque não morre. Em que sentido, portanto, se ele fizesse esta distinção, diria ele que nada é imortal daquilo que provém da matéria? Visivelmente, submetendo-as a um exame rígido, provamos que as ideias deste livro nada têm de nobre nem de incontestável. E em cláusula final, ele afirma: Eis que falamos bastante sobre este ponto: quem for capaz de ouvir e investigar mais compreenderá. Vejamos, pois, nós que segundo ele somos idiotas, o mínimo daquilo que nossa capacidade nos permitiu ouvir e investigar. Natureza e origem do mal - A seguir, julgando-nos capazes de compreender em algumas máximas a natureza do mal, questão à qual tantos tratados de valor dedicam pesquisas variadas e apresentam respostas diferentes, afirma: Não poderia haver nem mais nem menos mal no mundo, antigamente, hoje e no futuro: pois a natureza do universo é uma só e a mesma, e a origem do mal é sempre a mesma. Tenho a impressão que é ainda uma paráfrase desta passagem do Teeteto, em que Platão punha na boca de Sócrates estas palavras: "Não é possível que o mal desapareça do meio dos homens, nem que ele encontre lugar entre os deuses...", etc. E me parece que ele não entendeu exatamente Platão, embora pretenda encerrar a verdade num só tratado e intitule Discurso verdadeiro seu livro dirigido contra nós. Pois a passagem que afirma no Timeu: "Quando os deuses purificam a terra pelas águas" bem demonstra que a terra uma vez purificada pelas águas contém menos mal do que antes de sua purificação. E que então tenha havido menos mal, afirmo-o segundo Platão, em vista da passagem do Teeteto segundo a qual não é possível que o mal desapareça dentre os homens. - Mas não sei como Celso pode afirmar, apesar de admitir a Providência, a julgar pelas expressões de seu livro, que não há nem mais nem menos mal, mas um mal de certa forma limitado, e desfazer a belíssima doutrina de que a malícia é ilimitada e o mal é indefinido no rigor do termo. A tese segundo a qual não houve, não há nem haverá nem mais nem menos mal parece implicar esta consequência: assim como, para aqueles que sustentam que o mundo é incorruptível, o equilíbrio dos elementos é mantido pela Providência, impedindo que um deles predomine, para evitar que o mundo pereça, assim também uma espécie de providência preside o mal, por mais difundido que seja, para que não haja nem mais nem menos mal. De uma outra maneira ainda é refutado o argumento de Celso acerca do mal pelos filósofos que examinaram a questão do bem e do mal. Provaram eles pela história que as cortesãs se prostituíram primeiro fora da cidade e, mascarando o rosto, se entregaram ao desejo dos que passavam; e que em seguida, despudoradas, retiraram as máscaras, ficando ainda fora das cidades cujas leis lhes proibiam entrar; e que, crescendo a cada dia a perversão, elas acabaram ousando se introduzir até nas cidades. É o que declara Crisipo em sua Introdução à questão do bem e do mal. Outra indicação de que há mais ou menos mal: antigamente, pessoas chamadas ambíguas se prostituíam publicamente para servirem passivamente à volúpia daqueles que se apresentavam; mais tarde as autoridades as expulsaram. E podemos dizer que não existiam outrora males sem conta introduzidos pela devassidão. As mais antigas histórias em todo caso, apesar de todas as suas acusações contra os pecadores, não sabem que estes atos infames foram cometidos. - À luz destes fatos e de outros semelhantes, porventura Celso não parece ridículo ao declarar que não poderia haver nem mais nem menos mal? Com efeito, ainda que a natureza do universo seja uma só e mesma, é absolutamente falso que a origem do mal seja sempre a mesma. Pois, embora a natureza de um indivíduo determinado seja uma só e a mesma, não há identidade contínua em seu espírito, na sua razão, em suas ações: há um tempo em que ele não recebeu a razão, um outro em que a razão é acompanhada de malícia, e de uma malícia mais ou menos alastrada: ora ele se orienta para a virtude e faz mais ou menos progresso, ora atinge a perfeição e chega à virtude com mais ou menos contemplação. A mesma observação se impõe com tanto maior razão acerca da natureza do universo; embora seja uma só e mesma coisa genericamente, os acontecimentos no universo nem sempre são os mesmos nem da mesma espécie. Assim como nem sempre há estações férteis ou estéreis, abundância de chuva ou de seca, assim também não se pode estipular a abundância ou a carestia de almas virtuosas, ou o fluxo crescente de almas viciosas. A doutrina que se impõe quando queremos falar o mais exatamente possível é que o mal nem sempre subsiste no mesmo grau, porque a Providência cuida zelosamente da terra, ou a purifica pelos dilúvios e incêndios, e talvez não só a terra, mas também o mundo inteiro, que tem necessidade de purificação toda vez que a malícia é superabundante. - A seguir Celso declara: A origem do mal não é fácil de conhecer para quem não é filósofo; mas basta dizer ao povo simples que o mal não vem de Deus, que ele é inerente à matéria e reside nos seres mortais; o período dos seres mortais é semelhante do começo ao fim, e, durante ciclos determinados, foram, são e serão necessariamente sempre as mesmas coisas. Celso afirma que a origem do mal não é fácil de conhecer para quem não é filósofo, como se o filósofo pudesse facilmente conhecê-la, e como se o não filósofo não pudesse facilmente perceber a origem do mal, mas apesar disso pudesse conhecê-la, embora não sem esforço. A isto responderei que a origem do mal não é fácil de se conhecer mesmo para um filósofo; talvez mesmo lhe seja impossível conhecê-la puramente, a não ser que por inspiração divina seja manifestada a natureza do mal, seja revelado seu modo de aparecer, seja compreendida a maneira como desaparecerá. Desta forma a ignorância de Deus faz parte do mal, e o pior mal é não saber a maneira de honrar a Deus e lhe manifestar sua piedade. E isto, mesmo nas palavras de Celso, alguns filósofos não conheceram absolutamente, e a diversidade das escolas de filosofia o mostra. Ora, para nós é impossível conhecer a origem do mal se não tivermos reconhecido que é um mal acreditar que a piedade está salva nas leis estabelecidas pelos Estados compreendidos no sentido comum do termo. Também é impossível conhecer a origem do mal se não tivermos conhecido os ensinamentos sobre o diabo e seus anjos, o que ele era antes de se tornar um diabo e a razão por que os anjos tomaram parte em sua apostasia. E para poder conhecê-la, é preciso ter compreendido exatamente que os demônios não são criaturas de Deus enquanto demônios, mas enquanto criaturas racionais, e como chegaram a ser assim como o seu espírito os constitui em seu estado de demônios. Portanto, entre as árduas questões para a nossa natureza, exigindo dos homens um exame aprofundado, podemos colocar a origem do mal. - Em seguida, como se tivesse alguns segredos sobre a origem do mal, mas os guardava para só dizer o que fosse adaptado ao povo simples, afirma que basta dizer ao povo a respeito da origem do mal que o mal não vem de Deus, que é inerente à matéria e reside nos seres mortais. Mas é bem verdade que o mal não vem de Deus. Pois segundo nosso Jeremias, é claro que: "Não é da boca do Altíssimo que saem os males e a felicidade" (Lm 3, 37). Mas para nós não é verdade que a matéria que reside nos seres mortais seja a causa do mal. O espírito de cada um é a causa de sua malícia pessoal: ela é o mal; os males são apenas as ações que ela ordena, e para nós, falando no rigor dos termos, nada mais é algum mal. Sei, porém, que o assunto exige uma discussão e uma argumentação desenvolvidas: graças a um dom de Deus que ilumina o espírito, elas podem ser conduzidas ao bem por aquele que Deus julga digno de semelhante conhecimento. Necessidade e liberdade - Mas não sei por que Celso, ao escrever contra nós, julgou útil tratar levianamente uma doutrina que requer uma longa demonstração, ao menos plausível, para mostrar na medida do possível que o período dos seres mortais é semelhante do começo ao fim, e durante ciclos determinados, necessariamente foram, são e serão sempre as mesmas coisas. Se assim fosse, adeus liberdade para nós. Pois, se durante ciclos determinados, necessariamente foram, são e serão sempre as mesmas coisas no período dos seres mortais, é claro que necessariamente Sócrates sempre se consagrará à filosofia, será acusado de introduzir divindades novas e de corromper a juventude, e que Anito e Meleto sempre o acusarão, e o Conselho no Areópago pronunciará por decreto contra ele a condenação à morte pela cicuta. Também necessariamente sempre, durante os períodos determinados Fálaris será tirano e Alexandre de Feres cometerá as mesmas crueldades, e os condenados ao touro de Fálaris mugirão sempre nele. Se isto for admitido, não sei como nossa liberdade será salva e como se poderá razoavelmente merecer louvor ou censura. Responderemos à hipótese de Celso dizendo que, se o período dos seres mortais é sempre semelhante do começo ao fim, e que, durante ciclos determinados, necessariamente foram, são e serão sempre as mesmas coisas, então durante períodos determinados necessariamente sempre Moisés com o povo judeu sai do Egito, e Jesus volta ao mundo para fazer as mesmas coisas que ele fez não uma vez, mas número infinito de vezes durante períodos. Além disso, as mesmas pessoas serão cristãs nos ciclos determinados e Celso, novamente, escreverá este livro que ele antes escrevera uma infinidade de vezes. - Para Celso, só o período dos seres mortais, durante ciclos determinados, necessariamente foi, é e será sempre. Mas para a maior parte dos estoicos é não só este período dos seres mortais, mas também o dos seres imortais e daqueles que eles consideram como deuses. Depois do incêndio do universo, que foi uma infinidade de vezes e será uma infinidade de vezes, é a mesma ordem que, do começo ao fim foi e será. Para tentar, porém, atenuar as inverossimilhanças, os estoicos declaram que, não sei como, todos os homens durante um período serão totalmente semelhantes aos dos períodos antecedentes: de modo que não é Sócrates que nascerá de novo, mas alguém muito semelhante a Sócrates que, de modo muito semelhante, se casará com Xantipa, e será condenado por pessoas muito semelhantes a Anito e a Meleto. Mas não sei como o mundo é sempre o mesmo, não um mundo bem semelhante a um outro, ao passo que as coisas que ele encerra não são as mesmas, mas bem semelhantes. Entretanto, o argumento principal contra as expressões de Celso e as dos estoicos será aprofundado mais oportunamente em outra parte, pois não convém nem à ocasião presente, nem ao projeto atual prolongar a discussão. - Declara ele em seguida: As coisas que vemos não foram dadas ao homem; cada qual nasce e morre para a salvação do todo, conforme a mudança que já apontei a respeito de umas e de outras. Mas é supérfluo insistir na refutação destes princípios que já fiz da melhor maneira possível. Já respondemos a esta afirmação: Não pode haver mais ou menos bem nem mais ou menos mal nos seres mortais. Também já discutimos este ponto: Deus não precisa aplicar nova reforma. Além disso, não é à maneira de um artesão que fabricou uma obra defeituosa mal construída que Deus realiza uma reforma no mundo ao purificá-lo por dilúvios ou incêndios. Mas ele impede que a onda do vício se espalhe mais; creio mesmo que com ordem ele o destrói inteiramente para o bem do universo. E se após esta destruição do vício, ele tem ou não uma razão para fazer o mundo voltar a existir, é uma questão a ser discutida num tratado à parte. Deus sempre faz questão de reparar os erros por uma nova reforma. Sem dúvida, ele ordenou do melhor modo e da maneira mais estável todas as coisas quando da criação do mundo; contudo, ele precisou aplicar um tratamento medicinal às vítimas do pecado e ao mundo inteiro manchado por ele de certa forma. Sem dúvida, Deus jamais deixou ou deixará de fazer a cada momento o que convém fazer neste mundo variável e em transformação. Como o agricultor nas diversas estações do ano realiza os diferentes trabalhos dos campos que a terra e seus produtos exigem, assim também Deus administra a totalidade dos séculos como se eles formassem apenas, por assim dizer, alguns anos. Ele realiza em cada um deles tudo o que exige aquilo que por natureza é razoável para o conjunto. E Deus é o único a entender e realizar este conjunto com toda a clareza, uma vez que possui a verdade. - E a respeito do mal, Celso formula esta observação: Mesmo quando uma coisa parece ser um mal, ainda não é evidente que ela seja um mal, pois não é conhecida sua utilidade para a própria pessoa, para o outro, para o todo. Observação prudente, concordo; mas supõe que a natureza do mal não é prejudicial, pois admite que aquilo que parece um mal para cada pessoa individualmente pode ser útil ao todo. Para evitar, porém, que uma falsa interpretação de meu pensamento sirva de pretexto à obstinação no mal, à ideia de que a malícia traz ou pode trazer proveito ao universo, bastará que eu diga: embora Deus, deixando intacta a liberdade da pessoa, utilize a malícia dos maus para a ordem do universo, subordinando-os à utilidade do universo, tal indivíduo não é menos digno de censura e como tal ele recebe uma função detestável para o indivíduo, mas útil ao universo. O mesmo poderíamos dizer no caso das cidades: o culpado por determinados crimes, condenado por estes crimes a trabalhos de utilidade pública, presta serviço à cidade inteira, embora se encontre empenhado numa ação detestável em que cada homem de bom senso não desejaria se encontrar. Em vista disto, Paulo, Apóstolo de Jesus, nos ensina que até os mais celerados contribuirão para o bem do todo, empenhados em situações detestáveis, mas que os mais virtuosos também prestam o máximo de serviço ao todo, o que lhes merecerá serem colocados no lugar mais belo: "Numa grande casa, não há somente vasos de ouro e de prata; há também de madeira e de barro; alguns para uso nobre, outros para uso vulgar. Aquele, pois, que se purificar destes erros será um vaso nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para toda boa obra" (2Tm 2,20-21) É o que julguei necessário opor à afirmação: Mesmo quando uma coisa parece ser um mal, ainda não é evidente que ela seja um mal, pois não é conhecida sua utilidade para a própria pessoa nem para outra qualquer. E ninguém deve aproveitar a ocasião do que foi dito a este respeito para cometer o pecado, alegando prestar assim serviço ao todo. Expressões antropomórficas - Depois disto, por falta de compreensão do texto bíblico, Celso ridiculariza as passagens da Bíblia que atribuem a Deus sentimentos humanos, palavras de ira contra os ímpios, e ameaças contra os pecadores. Devemos responder: no trato com as crianças, ninguém deve expor as verdades recorrendo à eloquência, mas adaptando-se à fraqueza dos pequenos, dizendo e fazendo o que se julga útil à conversão e à correção destas crianças, consideradas como tais. O próprio Logos de Deus parece nos ter concedido as Escrituras pondo na exata proporção as palavras que convêm à capacidade dos ouvintes e ao benefício que delas obterão. Exatamente esta maneira, em geral, de anunciar as realidades divinas é que é expressa no Deuteronômio: "O Senhor teu Deus se adaptou a ti como um pai se adapta a seu filho" (cf Dt 1,31). O Logos fala desta maneira adotando as maneiras humanas pelo bem dos homens. Pois não era necessário ao povo simples que Deus posto em cena exprimisse do modo que lhe convém como suas as palavras destinadas ao povo. Mas aquele que leva a sério a elucidação das divinas Escrituras, comparando as coisas espirituais às espirituais, descobrirá a partir delas a significação do que é dito aos mais fracos e do que é exposto aos mais inteligentes, ambas as coisas muitas vezes expressas na mesma frase para quem sabe compreendê-la. - Quando, pois, se fala da ira de Deus, trata-se não de uma paixão que ele sente, mas de um procedimento que ele adota para corrigir por um método de educação mais severo os que cometeram pecados numerosos e graves. Falar da ira de Deus e de seu furor é procedimento pedagógico; e este é o pensamento do Logos, claramente expresso no Salmo 6: "Senhor, não me castigues com tua ira, não me corrijas com teu furor!" (Sl 6,2), e em Jeremias: "Corrige-me, Senhor, mas em justa medida, não em tua ira, para que não me torne pequeno demais" (Jr 10,24) Mas ao ler no segundo livro dos Reis, que foi a ira de Deus que persuadiu Davi a recensear o povo, e no primeiro dos Paralipômenos que foi "o diabo", e ao comparar as expressões de um e de outro, veremos o que designa "a ira": é a esta ira de que todos os homens são filhos, na expressão de Paulo: "E éramos por natureza, como os demais, filhos da ira" (Ef 2,3) Na seguinte passagem, Paulo mostra que a ira não é paixão de Deus, e que cada pessoa a atrai sobre si pelos pecados que comete: "Ou desprezas a riqueza da sua bondade, paciência e longanimidade, desconhecendo que a benignidade de Deus te convida à conversão? Ora, com tua obstinação e com teu coração impenitente estás acumulando ira para o dia da ira e da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo suas obras" (Rm 2,4-5) Como pode então alguém acumular contra si mesmo ira para o dia da ira, se a ira é considerada como uma paixão? E como a paixão da ira pode ser um meio de educação? Além disso, o Logos nos ensina que não devemos nos irar, e declara no Salmo 36: "Deixa a ira, abandona o furor" (Sl 36,8), e em Paulo diz: "Mas agora abandonai tudo isto: ira, exaltação, maldade, blasfêmia, conversa indecente" (Cl 3,8). Não poderia, pois, ter atribuído ao próprio Deus a paixão de que nos pede total abandono. É muito claro que as expressões sobre a ira de Deus devem ser tomadas em sentido figurado, a julgar pelo que está escrito sobre seu sono: como se quisesse acordá-lo, o profeta diz: "Desperta! Por que dormes, Senhor?" E acrescenta: "O Senhor acordou como um homem que dormia, como um valente embriagado pelo vinho" (Sl 43,24; 77,65). Se então a palavra "sono" tem outra significação que não a usual, por que não entender também a ira da mesma maneira? Além disso, as ameaças são advertências sobre a sorte reservada aos maus. Também poderíamos chamar ameaças as palavras do médico a seus pacientes: "Eu te aplicarei o ferro e o fogo se não obedeceres às minhas prescrições e não seguires este regime e esta regra de conduta." Por isso, não é atribuir a Deus paixões humanas, nem defender sobre ele opiniões ímpias, nem incidir em erro o fato de apresentar as explicações que lhe são concernentes, a partir das próprias Escrituras comparadas entre si. Os pregadores prudentes da doutrina não têm outra missão senão desviar tanto quanto possível os ouvintes da tolice e torná-los pessoas refletidas. - Por não ter entendido os textos relativos à ira de Deus, afirma: Não é realmente ridículo que um homem, em sua ira contra os judeus, extermine todos os seus jovens, queime suas cidades e os aniquile: e que o Deus Altíssimo, ao ouvi-los, se zangue, se irrite, ameace e envie seu Filho, e que este sofra a tal ponto? Mas de fato, o massacre de toda a juventude dos judeus, o incêndio de suas cidades, depois do tratamento que eles ousaram infligir a Jesus, todos estes sofrimentos são apenas o tesouro de ira que eles tinham acumulado para si, isto é: o juízo de Deus pronunciado contra eles por disposição divina, que o costume tradicional dos hebreus designa com o nome de ira. Mas o Filho de Deus Altíssimo sofreu, porque quis, pela salvação dos homens, assim como ficou declarado acima da melhor forma possível. Ele continua: Entretanto, para que a discussão não se restrinja apenas aos judeus, pois não é esta minha intenção, mas se estenda à natureza toda, como prometi, vou explicar mais claramente o que acabo de dizer. A estas palavras, que leitor modesto e consciente da fraqueza humana não ficaria chocado pelo presunçoso que promete explicar o conjunto da natureza, com a mesma jactância que aparece no título que teve a coragem de dar a seu livro? Vejamos então esta discussão e este esclarecimento prometidos sobre toda a natureza. Deus fez tudo principalmente para o homem - Prosseguindo, ele nos acusa longamente de afirmar que Deus fez tudo para o homem e, descrevendo os animais e a sagacidade que eles manifestam, pretende mostrar que não foi mais para os homens do que para os animais sem razão que tudo veio à existência. Neste ponto, me parece que ele se exprime como aqueles que, por ódio a seus inimigos, critica-os por aquilo que eles aprovam entre seus melhores amigos. O ódio então cega os homens e os impede de ver que acusam igualmente seus amigos nos ataques que julgam dirigir contra seus inimigos: da mesma maneira Celso, na confusão de seu espírito, não viu que ele acusava igualmente os filósofos do Pórtico. Pois estes, com toda razão, colocam o homem e, em geral, a natureza racional acima de todos os seres sem razão, dizendo que a Providência fez todas as coisas principalmente pelo bem da natureza racional. Os seres racionais, que são as criaturas principais, exercem o papel das crianças que vêm à luz do mundo, os seres sem razão e inanimados, o da placenta criada com o embrião. Além disso, a meu ver, como nas cidades, os inspetores das mercadorias e dos mercados só exercem vigilância pelos homens, mas os cães e os outros animais sem razão aproveitam das sobras de alimento, enquanto a Providência cuida sobretudo dos seres racionais, mas em consequência, os seres sem razão aproveitam daquilo que é feito para os homens. Portanto, como seria errado dizer que os inspetores dos mercados não cuidam mais das necessidades dos homens do que da dos cães, pois os cães aproveitam das sobras de mercadorias, assim, com tanto maior razão, para Celso e para os que pensam como ele, é uma impiedade para com Deus que cuida dos seres racionais, declarar: por que estas coisas seriam produzidas mais para a alimentação dos homens do que para a das plantas, das árvores, das ervas, dos espinheiros? - Em primeiro lugar, ele sustenta que trovões, raios e chuvas não podem ser obras de Deus, deixando ver melhor que é epicureu. Mas afirma em segundo lugar: Na hipótese de serem obras de Deus, elas não são produzidas para alimento de nós, homens, mas para o das plantas, árvores, ervas e espinheiros; como verdadeiro epicureu, ele concorda assim que elas acontecem por acaso e não pelos desígnios da Providência. Se, por um lado, estas coisas não são feitas em nosso benefício, mas para o das plantas, árvores, ervas e espinheiros, é claro que, por outro lado, elas não provêm da Providência, ou que vêm de uma Providência que não cuida de nós como cuida das árvores, da erva e do espinheiro. Tanto uma como outra suposição é de impiedade flagrante, e seria insensato refutar estas afirmações para responder a um homem que nos acusa de impiedade: sua observação revela a todos quem é o ímpio. E prossegue: Dirá alguém que isto cresce para os homens - evidentemente as plantas, as árvores, as ervas, os espinheiros? - Por que julgar que isto cresça mais para os homens do que para os animais selvagens sem razão? Celso que nos diga claramente: a grande diversidade de tudo que cresce sobre o solo não é obra da Providência, mas um choque fortuito de átomos produziu estas qualidades tão diversas; deste choque fortuito resulta que tantas espécies de plantas, árvores e ervas sejam semelhantes entre si; nenhuma razão ordenadora as pôs na existência, e elas não têm sua origem de um espírito infinitamente admirável. Mas nós, cristãos, consagrados unicamente ao Deus que criou todas as coisas, também por elas damos graças ao Criador por ter ordenado por nós, e por causa de nós, pelos animais a nosso serviço, uma pátria tão grande: "Fazes brotar relva para o rebanho e plantas úteis ao homem, para que da terra ele tire o pão e o vinho, que alegra o coração do homem" (Sl 103,14-15) Será de espantar que ele tenha preparado também alimentos para os mais selvagens dos animais? Pois até estes animais, segundo outros filósofos, foram criados para exercerem as forças do animal racional. E um de nossos sábios diz alhures: "Não é preciso dizer: 'O que é isto? Por que aquilo?' Porque tudo foi criado para uma destinação. Não é preciso dizer: 'O que é isto? Por que aquilo?' Porque tudo deve ser estudado a seu tempo" (Eclo 39,21 17) - A seguir, Celso nega que os produtos do solo sejam destinados pela Providência mais para nós do que para os mais selvagens dos animais, e diz: Nós outros, à custa de fadigas e sofrimentos contínuos, garantimos com grande sacrifício nosso alimento; para eles tudo cresce sem sementeira nem lavoura. Não vê que Deus, querendo que a inteligência humana se exerça sob todos os aspectos para não ficar ociosa e ignorante das artes, criou o homem indigente: assim sua própria necessidade o obriga a inventar artes, umas para se alimentar, outras para se proteger. Para os que não estudam os mistérios divinos nem a filosofia, seria melhor ficar na necessidade para empregar sua inteligência na invenção das artes, pois a abundância faz esquecer inteiramente a inteligência. A necessidade do que é necessário à vida, portanto, produz a cultura dos campos, da vinha, as hortas, a técnica da madeira e a do ferro, que fabricam instrumentos para as artes que servem à aquisição do alimento. A necessidade de se proteger introduziu a tecelagem depois da cardação e da fiação, a arte de construir, e desta forma a inteligência se elevou até à arquitetura. A necessidade do que é necessário fez transportar, pela navegação e a pilotagem, os produtos de certas regiões para as que não as possuíam. Razões a mais para admirarmos a Providência que, para benefício do ser racional, criou-o desguarnecido em comparação com os animais sem razão. Os animais sem razão, por não terem aptidão para as artes, têm seu alimento já preparado; e têm uma proteção natural, pois são providos de pêlos, penas, escamas e conchas. Basta isto para respondermos às palavras de Celso: nós, à custa de fadigas e sofrimentos contínuos, garantimos com grande sacrifício nosso alimento; para eles tudo cresce sem sementeira nem lavoura. - Depois disso, esquecendo sua intenção de acusar os judeus e cristãos, ele objeta a si mesmo um jambo de Eurípides, contrário a seu pensamento, e investe contra a afirmação que ele acusa de mal fundada. Eis a passagem de Celso: Citam este verso de Eurípides: "O sol e a noite estão a serviço dos mortais?" Mas então, por que a nosso serviço e não a serviço das formigas e das moscas? A noite também permite a elas repousarem, e o dia verem e trabalharem. Está muito claro que certos judeus e cristãos não são os únicos a terem dito que o sol e os outros corpos celestes estão a nosso serviço. Quem foi ouvinte das lições de Anaxágoras sobre a natureza, considerado o filósofo do palco, diz a mesma coisa: é a serviço de todos os seres racionais, designados por sinédoque como um só ser racional, o homem, que as coisas que têm seu lugar no universo são designadas igualmente por sinédoque como "o sol e a noite". Talvez por isso, o poeta trágico, falando do sol que faz o dia, para designar a luz do dia, quis ensinar que os seres que precisam especialmente do dia e da noite são seres sublunares, e os outros não estão na mesma situação que os da terra. Portanto, o dia e a noite estão a serviço dos mortais, porque são feitos para os seres racionais. O fato de as formigas e as moscas, de dia trabalhando e de noite repousando, aproveitarem daquilo que foi criado para os homens não autoriza a dizer que o dia e a noite foram criados também para as formigas e as moscas, ou para algum outro ser. Mas devemos crer que nos desígnios da Providência eles foram criados para os homens. Homens e animais - Mais adiante, ele objeta a si mesmo a razão dada da superioridade dos homens, a saber, que para eles foram criados os animais sem razão: À afirmação que somos os reis dos seres sem razão porque capturamos os animais sem razão na caça e deles fazemos nossas refeições, responderemos: por que não é o contrário, nós é que somos feitos para eles, pois eles nos caçam e nos devoram? Além disto, nós precisamos de redes, de armas, do auxílio de muitos homens e cães contra os animais que caçamos. A natureza deu a eles armas que estão imediatamente à sua disposição para nos submeter sem dificuldade a seu domínio. Também aí vemos como na inteligência nos foi dado um grande auxílio, superior a todas as armas de que os animais ferozes parecem munidos. De qualquer forma, embora mais frágeis corporalmente do que muitos animais, e bem menores do que alguns, dominamos pela inteligência as feras e prendemos em caça os enormes elefantes. Os que a natureza fez domesticáveis, nós os domesticamos com brandura. Contra aqueles que naturalmente não podem ser, ou que, uma vez domesticados, não pareceriam dever ser de alguma utilidade, cuidamos tão bem de nossa segurança que, quando queremos, mantemos presas estas enormes feras, e quando precisamos nos alimentar de seus corpos, nós as matamos tão facilmente quanto aos animais domésticos. O Criador, portanto, colocou-as todas a serviço do animal racional e de sua inteligência natural. Para certos fins utilizamos, por exemplo, os cães para guardar os rebanhos de ovelhas, de vacas, de cabras ou as casas; para outros os bois, para lavrar a terra; para outros as bestas de carga, para transportar fardos. E dizem que as raças de leão, de urso, de pantera, de javali e de animais deste gênero nos foram dadas igualmente para desenvolvermos o germe de coragem que possuímos. - Depois, ele se dirige à raça dos homens conscientes de sua superioridade sobre os animais sem razão: À vossa pretensão que Deus nos deu o poder de prender as feras e utilizá-las à nossa vontade, responderemos que provavelmente, antes de existirem cidades, artes, os laços sociais de hoje, armas e redes, eram os homens que arrebatavam as feras e as devoravam, e não eram as feras que capturavam os homens. Ainda que os homens capturem as feras e as feras arrebatem os homens, vê bem a diferença entre o triunfo da inteligência sobre a força da selvageria e da crueldade e a guarda contra a ferocidade das feras sem a utilização da inteligência. E quando ele diz: "Antes de existirem cidades, artes, os laços sociais de hoje", parece esquecer o que afirma mais acima: O mundo é incriado e incorruptível, e só as coisas terrestres estão sujeitas aos dilúvios e aos incêndios, e não caem todas ao mesmo tempo nestas calamidades. Assim sendo, como não podemos, na suposição de o mundo ser incriado, falar de seu começo, tampouco podemos encontrar tempo em que não tenham existido cidades nem artes. Mas, suponhamos que ele concorde conosco neste ponto, embora não esteja mais de acordo consigo mesmo nem com o que diz acima. Em que isto contribui para provar que na sua origem os homens eram arrebatados e devorados pelas feras, mas as feras ainda não eram capturadas pelos homens? Pois se o mundo existe graças à Providência, e se Deus cuida do todo, seria necessário que as pequenas centelhas daquilo que é o gênero humano, tenham sido, no começo de sua existência, colocadas sob a guarda de seres superiores, de modo que houvesse desde a origem um laço social entre a natureza divina e os homens. É o que o poeta Askra compreendeu quando disse: "Pois havia naquele tempo banquetes comuns e assembleias comuns entre deuses imortais e homens mortais." - Além disso, a palavra de Deus, relatada por Moisés, apresentou os primeiros homens escutando a voz divina e seus oráculos e às vezes tendo visões de anjos de Deus que vinham visitá-los. Era de fato conveniente que no começo do mundo a natureza humana fosse mais auxiliada até o momento em que pelos progressos dos homens no caminho da inteligência e das outras virtudes, na invenção das artes, estes pudessem viver por si mesmos, sem precisarem da ajuda e do governo contínuos, miraculosamente manifestados, dos servos do poder divino. Consequentemente, não é verdade que na origem, eram os homens que arrebatavam e devoravam as feras, e de modo algum as feras que capturavam os homens. Assim sendo, fica bem claro que também estão erradas estas palavras de Celso: Portanto, deste ponto de vista, Deus preferiu submeter os homens às feras. Pois Deus não submeteu os homens às feras. Ao contrário, permitiu que as feras fossem apreendidas graças à inteligência dos homens e às artes inventadas contra elas pela inteligência. Pois não é sem alguma ajuda divina que os homens inventaram os meios de garantir sua proteção contra as feras e as dominar. A vida em sociedade - Mas esse homem ilustre não vê quantos filósofos admitem a Providência e dizem que ela tudo faz pelos seres racionais. Ele procura com todas as suas forças derrubar doutrinas tão úteis para harmonizar o cristianismo com a filosofia. Não vê o prejuízo e empecilho para a piedade que resultam do fato de admitir que, diante de Deus, o homem em nada leva vantagem sobre as formigas e as abelhas. E declara: Se os homens parecem se avantajar sobre os seres sem razão porque construíram cidades, possuem um regime político com autoridades e governos, isto nada prova: as formigas e as abelhas fazem a mesma coisa. As abelhas, pelo menos, têm uma rainha com seu séquito e suas servas; elas combatem, alcançam vitórias, massacram as vencidas; possuem cidades e mesmo subúrbios, distribuem nelas os serviços, e nelas julgam as preguiçosas: em todo caso, expulsam e punem os zangãos. Também neste particular ele não viu a superioridade das ações realizadas por razão e reflexão sobre as que provêm de uma natureza sem razão e de sua simples constituição natural. Estas ações não podem ser explicadas por uma razão presente naqueles que as praticam: eles não a possuem. Mas o ser supremo, Filho de Deus, rei de tudo o que existe, criou uma natureza sem razão que, mesmo sem raciocinar, assiste os seres que não mereceram ter a razão. Entre os homens, cidades foram construídas com artes múltiplas e uma legislação. Mas regimes, autoridades, governos, entre os homens, são empregados ou em sentido estrito de maneiras de ser e agir virtuosas, ou num sentido mais lato, em razão da imitação tão fiel quanto possível das primeiras. Fixando os olhos sobre as primeiras, os que legislaram com sucesso estabeleceram os melhores regimes, autoridades e governos. É impossível encontrar sequer um entre os seres sem razão, ainda que Celso aplique às formigas e às abelhas os vocábulos racionais e usados para as organizações racionais, como cidade, regime, autoridades, governos. Quanto a isso, não precisamos elogiar as formigas nem as abelhas, pois elas não fazem isto com reflexão; mas devemos admirar a natureza divina que estende até aos animais sem razão uma espécie de imitação dos seres racionais, talvez para sua confusão: a fim de que à vista das formigas eles se tornem mais operosos e mais econômicos das coisas que lhes são úteis, e que, considerando as abelhas, obedeçam às autoridades e assumam sua parte respectiva nos trabalhos comuns úteis ao bem-estar das cidades. - Até mesmo estas espécies de guerras das abelhas talvez sejam um ensinamento para que as guerras entre os homens, se algum dia fosse necessário, sejam justas e ordenadas. Não há cidades nem subúrbios entre as abelhas; mas elas têm suas colmeias, seus alvéolos hexagonais, dedicam-se a seus trabalhos respectivos, porque os homens precisam de mel para muitas coisas, como remédio dos corpos doentes ou alimento sadio. E não é preciso comparar os procedimentos das abelhas contra os zangãos aos julgamentos feitos nas cidades contra os preguiçosos e maus, nem aos castigos que lhes são aplicados. Mas, como disse, em tudo isto devemos admirar a natureza; e é preciso admitir que o homem, capaz de abarcar o universo e nele estabelecer a ordem, como cooperador da Providência, realiza os trabalhos não só da Providência de Deus, mas também de sua previdência humana. A ajuda mútua - Depois de ter falado das abelhas para diminuir o mais possível, não só a nós, cristãos, mas também aos outros homens, as cidades, os regimes, as autoridades, os governos, as guerras pela defesa da pátria, Celso acrescenta palavras de elogio às formigas. A finalidade deste elogio é depreciar os cuidados que os homens têm com sua alimentação e, por comparação com as formigas, depreciar sua previdência diante do inverno, que nada tem de superior à previdência irracional que as formigas têm, a seu ver. Mas que homem, ainda o mais simples e incapaz de penetrar a natureza de todas as coisas, Celso não haveria de dissuadir, o quanto possível, de ajudar aqueles que estão carregados de fardos e compartir seus sofrimentos, dizendo: As formigas carregam os fardos umas das outras quando veem alguma delas fatigada? De fato, quem não tem formação de raciocínio e de nada entende poderá dizer: como não somos superiores às formigas em nada, mesmo quando ajudamos os que estão cansados de carregar os fardos por demais pesados, por que tornar inútil este sofrimento? As formigas, animais sem razão, não podem ser expostas ao orgulho pela comparação de seus trabalhos com os dos homens. Mas os homens aos quais a razão torna capazes de compreender a maneira como ele deprecia sua sociabilidade, correm o risco máximo de sofrer o prejuízo que as palavras de Celso podem causar-lhes. Em seu afã de afastar do cristianismo os leitores de seu tratado, não reparou que também impede os não cristãos de ajudar os que carregam os mais pesados fardos. Se fosse um filósofo sensível ao bem comum, teria evitado destruir ao mesmo tempo o cristianismo e as crenças úteis que são comuns aos homens, e na medida do possível defender as belas doutrinas comuns ao cristianismo e ao resto dos homens. Ainda que as formigas carreguem os brotos e os armazenem para que não germinem mas subsistam durante o ano para sua alimentação, não devemos supor que a causa seja um raciocínio da parte das formigas, mas a natureza, mãe de todas as criaturas: ela dispôs tão bem mesmo os que estão privados de razão que não deixou o menor de todos inteiramente desprovido de um vestígio desta razão que vem da natureza. A não ser que assim Celso talvez queira dizer com palavras veladas - pois em muitos pontos ele gosta de platonizar - que todas as almas são da mesma espécie e que a do homem em nada é superior à das formigas e abelhas. É a lógica do sistema que faz a alma descer da abóbada do céu, não só num corpo humano, mas também nos outros corpos. Os cristãos não admitirão tal lógica, pois já aprenderam que a alma humana foi criada à imagem de Deus e veem claramente a impossibilidade de a sua natureza modelada à imagem de Deus perder absolutamente todas as suas características e recuperar outras, nos seres sem razão, à imagem de não sei quê. - Diz ainda: Para as formigas que morrem as vivas escolhem um lugar especial, que seja para elas um túmulo de família. Devemos responder: quanto mais ele exalta os animais sem razão, tanto mais ele exalta, queira ou não, a obra do Logos ordenador de todas as coisas, e ressalta a habilidade dos homens, capaz de ordenar pela razão até os dons superiores da natureza dos seres sem razão. Mas, por que dizer: dos seres sem razão? Celso não considera como sem razão os seres que, segundo as noções comuns, a todos são considerados sem razão. Pelo menos as formigas ele não as considera sem razão, ele que se gaba de falar da natureza universal e pretende, pelo título de seu livro, dizer a verdade! Eis com que termos ele fala das formigas, como se elas conversassem entre si: E naturalmente, quando elas se encontram, também conversam entre si, e é por isso que não erram o caminho; existem, portanto, entre elas plenitude de razão, noções comuns de certas realidades universais, som significante, acontecimentos, sentidos figurados. De fato, a conversa entre um homem e um outro se dá numa linguagem que exprime o que queremos significar, e muitas vezes também se conta o que se designa como acontecimentos, mas querer aplicar isto às formigas não seria o cúmulo do ridículo? - E destacando para a posteridade o inconveniente de seu sistema, não tem vergonha de afirmar: Assim sendo, olhando do alto do céu para a terra, que diferença poderiam oferecer nossas atividades e as das formigas e das abelhas? Em sua hipótese, olhar do alto do céu sobre a terra para as atividades dos homens e as obras das formigas será fixar o olhar sobre os corpos dos homens e das formigas sem considerar o princípio hegemônico racional e aplicado pelo raciocínio, e por outro lado o princípio hegemônico desprovido de razão, movido irracionalmente por tendência e representação, graças a uma espécie de disposição natural? Mas seria absurdo, olhando do alto do céu as coisas da terra, querer fixar os olhos a tão grande distância sobre os corpos dos homens e das formigas sem preferir olhar as naturezas dos princípios diretores, e a origem racional ou irracional das tendências. É claro que olhar apenas a origem de todas as tendências é ver também a diferença e a superioridade do homem não só sobre as formigas, mas também sobre os elefantes. Pois, dirigindo do alto do céu seu olhar para os seres sem razão, por maior que seja seu corpo, não veremos nele outro princípio, se assim posso dizer, senão a ausência de razão. Nos seres racionais, ao contrário, veremos o logos, comum aos homens, aos seres divinos e celestes, e talvez ao próprio Deus supremo. Daí a expressão da Escritura, de uma criação "à imagem" de Deus, pois a imagem do Deus supremo é seu Logos. Os poderes mágicos - Prosseguindo, obstinado em rebaixar mais ainda a raça dos homens, equiparando-os aos seres sem razão, e sem querer omitir nada das características que manifestam a superioridade que existe nos seres sem razão, declara que mesmo os poderes da magia existem igualmente em alguns dos seres sem razão, de modo que, até nesta matéria, os homens não podem se gloriar especialmente, nem pretender manter a superioridade sobre os seres sem razão. Estas são suas palavras: Mas se os homens encontram vaidade nos poderes da magia, mesmo nesta matéria, serpentes e águias revelam maior ciência: elas conhecem pelo menos muitos remédios contra os venenos e as doenças, bem como as virtudes de certas pedras que utilizam para salvar seus filhotes; os homens, quando as encontram, julgam-se na posse de um tesouro maravilhoso. Em primeiro lugar, não sei por que ele dá o nome de magia ao conhecimento de contravenenos naturais de que os animais ora têm experiência, ora uma percepção natural; pois a palavra "magia" em geral tem outra acepção. Mas, como epicureu, talvez ele queira atacar qualquer emprego destas práticas que tenham por base a pretensão dos feiticeiros. Apesar disto, concedendo-lhe que os homens, feiticeiros ou não, encontram vaidade no conhecimento destes segredos, será uma razão dizer que as serpentes têm mais ciência do que os homens nesta matéria, pelo fato de empregarem o funcho para avivar a vista e mover-se mais rapidamente, quando para elas é dom natural que vem não do raciocínio, mas de sua constituição. Os homens não chegam a tanto apenas pela natureza, à maneira das serpentes, mas ora pela experiência, ora pela razão e às vezes pelo exercício do raciocínio científico. Da mesma forma, se as águias, para salvarem seus filhotes em seu ninho, levam para ele a pedra de águia que elas encontram, por que concluir que as águias têm uma ciência, e mesmo uma ciência superior à dos homens que, por experiência, descobriram graças ao seu raciocínio e empregaram com inteligência este socorro naturalmente dado às águias? - Mas digamos que outros contravenenos sejam conhecidos dos animais. Que prova haverá de que não é a natureza mas a razão que os faz descobrir? Pois se fosse a razão a descobri-los, ela não descobriria exclusivamente este remédio único entre as serpentes, digamos mesmo um segundo e um terceiro, e outro com a águia, e assim por diante entre os outros animais, mas tantos remédios quantos entre os homens. Mas de fato, como cada animal é por natureza inclinado ao emprego exclusivo de certos remédios, é claro que entre eles não há uma sabedoria ou razão, mas uma constituição natural, criada pelo Logos, que os leva a procurar estes remédios para o bem de sua espécie. Sem dúvida, se eu quisesse continuar a discussão com Celso, poderia citar esta passagem de Salomão, tirada dos Provérbios: "No mundo há quatro coisas pequenas, mais sábias do que os sábios: as formigas, povo fraco, que no verão assegura o alimento; os arganazes, povo sem força, mas que moram nas rochas; os gafanhotos, que não têm rei e marcham todos em ordem; as lagartixas, que se deixam apanhar pela mão, mas entram nos palácios do rei" (Pr 30,24-28) Mas eu não me interesso pelo sentido óbvio das expressões, mas, de acordo com o título - pois o título do livro é Provérbios - eu os esquadrinho como enigmas. É costume destes autores dividir ora o que tem um sentido óbvio, ora o que tem uma passagem secreta, em diversas classes das quais uma é os provérbios. Eis por que em nossos evangelhos está escrito que nosso Salvador disse: "Disse-vos estas coisas em pro-vérbios. Chega a hora em que já não vos falarei em provérbios" (Jo 16,25). Não são, pois, as formigas sensíveis que têm uma ciência superior até mesmo à dos sábios, mas aquelas que são designadas sob a forma dos provérbios. Devemos dizer o mesmo do resto dos animais. Mas Celso julga os livros dos judeus e dos cristãos muito simplistas e vulgares, e acredita que uma interpretação alegórica forçaria o sentido que os autores nele colocaram. Seja isto, portanto, uma prova de que ele de fato nos caluniou, e uma refutação de seu argumento sobre as águias e as serpentes, que ele declara mais sábias do que os homens. O poder divino de predizer - Mas ele quer ainda mostrar mais demoradamente que mesmo as noções da divindade no gênero humano não são superiores às de todos os seres mortais, e muito mais, que certos animais sem razão têm manifestamente noções sobre Deus, ao passo que existem tão graves desacordos sobre Deus entre os mais penetrantes dos homens de todos os países, gregos ou bárbaros, e diz: Se pensamos que o homem, por ter noções divinas, é superior ao resto dos animais, que os defensores desta tese saibam: até este título, muitos outros animais poderiam reivindicá-lo. E não sem boas razões. De fato, que se pode declarar mais divino do que a previsão e a predição do futuro? Pois bem! É o que os homens aprendem dos outros animais e especialmente das aves: e todos os que entendem os sinais que eles dão são adivinhos. Portanto, se as aves e todos os outros animais adivinhadores preveem por dom de Deus o futuro e nos ensinam por meio de sinais, eles parecem estar por natureza mais próximos da união com Deus, mais sábios e mais queridos de Deus. Homens inteligentes dizem mesmo que entre as aves existem conversas, evidentemente mais santas do que as nossas; eles mesmos compreendem um pouco as suas palavras; a prova que eles dão na prática desta compreensão é que, quando avisam que as aves lhes anunciaram que iriam a certo lugar para aí fazer alguma coisa ou outra, elas mostram que para lá vão realmente e fazem o que de fato haviam predito. Além disso, ninguém parece mais fiel ao juramento, mais dócil à divindade do que os elefantes, sem dúvida alguma porque têm algum conhecimento de Deus. Aí está como ele resolve e dá como provados muitos pontos em questão entre os filósofos gregos e bárbaros, que descobriram ou aprenderam de certos demônios os segredos das aves e dos outros animais pelos quais, como dizem, certos poderes de adivinhação foram comunicados aos homens. De fato, o primeiro ponto é saber se há ou não uma arte de conhecer por vaticínios e, em geral, por adivinhação através dos animais. O segundo, que divide os partidários da adivinhação por meio das aves, é a razão da feição que assume esta adivinhação: uns dizem que certos demônios ou deuses adivinhadores dão aos animais seus impulsos, às aves seus diferentes voos e suas diferentes vozes, aos outros animais esta ou aquela espécie de movimentos; outros pensam que suas almas são mais divinas e próprias a este uso, o que é muito improvável. - Como ele queria, nesta passagem, provar que os animais sem razão são mais divinos e mais sábios que os homens, Celso devia estabelecer de maneira mais desenvolvida a existência desta arte divinatória, apresentar em seguida uma justificação mais clara dela: refutar apoditicamente as razões dos negadores da arte divinatória, destruir apoditicamente igualmente as razões dos que atribuem aos demônios ou aos deuses os movimentos fatídicos dos animais, aduzir enfim as provas que a alma dos animais sem razão é mais divina. Se ele tivesse assim manifestado sua competência filosófica nestas graves questões, eu teria me esforçado em me opor a seus argumentos plausíveis: eu teria refutado a asserção de que os animais sem razão são mais sábios do que os homens, teria desmascarado a mentira que existe em lhes atribuir noções da divindade mais santas que as nossas e conversas mútuas e santas. Mas de fato, ele incrimina nossa fé no Deus supremo e nos quer fazer acreditar que as almas das aves têm noções mais divinas e mais claras que as dos homens. Se isto é verdade, as aves têm de Deus noções bem mais claras do que as noções de Celso; e não admira que Celso rebaixe o homem a este ponto. E além disso, seguindo seu pensamento, as aves teriam noções mais nobres e mais divinas, não digo do que nós, cristãos, ou do que os judeus que se servem das mesmas Escrituras que nós, porém, até mais do que os teólogos gregos, pois eram homens! Portanto, segundo Celso, a raça das aves que ele julga divinatórias compreendeu melhor a natureza da divindade do que Ferecides, Pitágoras, Sócrates e Platão! E nós deveríamos frequentar sua escola para que, assim como nos ensinam o futuro por meio da adivinhação conforme a concepção de Celso, da mesma forma libertem os homens das dúvidas sobre a divindade, comunicando-lhes a clara noção que dela lhes foi transmitida. - Seria, portanto, lógico para Celso, já que ele pensa que as aves são superiores aos homens, que tomasse como mestres as aves, e não um destes filósofos gregos. Mas, entre muitas observações possíveis, devo dizer ainda algumas palavras sobre a questão, para concluir minha demonstração de que sua opinião falsa é uma ingratidão para com seu criador. Pois Celso, como homem que é e, portanto, "constituído em honra, não compreendeu" (cf Sl 48,21); assim sendo, não contente com se colocar no nível das aves e dos outros animais sem razão que ele julga divinatórios, cedeu-lhes a primazia até mais que os egípcios que adoram como deuses os animais sem razão, sujeitou-se a eles, e enquanto pôde rebaixou todo o gênero humano, como se ele tivesse um sentido menos nobre e menos elevado da divindade do que os animais sem razão. Portanto, em primeiro lugar, é preciso verificar se existe, sim ou não, uma arte divinatória por meio das aves e dos outros animais tidos como divinatórios. Pois os argumentos em favor de uma ou de outra hipótese têm o seu valor. De um lado, somos dissuadidos a aceitar a adivinhação, receando que o ser racional se afaste dos oráculos divinos para consultar as aves. No lado oposto, afirma-se, mediante o testemunho evidente de muitas pessoas, que muitos foram salvos de gravíssimos perigos porque tinham acreditado nesta adivinhação pelas aves. Vamos admitir, por um instante, que a ciência divinatória tenha um bom fundamento. Queremos assim demonstrar aos que são partidários desta ciência que, apesar desta concessão, o homem tem uma superioridade indubitável sobre os animais sem razão e até dos que são capazes de adivinhação, e não existe entre os dois mundos qualquer comparação possível. Devemos então dizer que se houvesse nestes animais uma natureza divina, capaz de prever o futuro, tão rica que pudesse mostrar além disso a qualquer pessoa o que lhe há de acontecer, é claro que muito antes eles conheceriam o destino delas. Mas se eles conhecessem o destino delas, evitariam voar para os lugares onde os homens lhes estendem armadilhas e redes, onde os arqueiros os têm na mira dos arcos em seu voo e lhes lançam flechas. E sem dúvida alguma, se as águias previssem o ataque contra seus filhotes por parte quer das serpentes que sobem para eles e os destroem, quer por parte dos homens que se apoderam deles para se divertirem ou usá-los como remédio, elas não iriam fazer seus ninhos onde seriam expostas aos ataques. E, em geral, nunca nenhum destes animais seria apreendido por homens, pois seria mais sábio e mais divino do que os homens. - Além disso, suponhamos que as aves tenham entre si combates, e que, como diz Celso, as aves divinatórias e os outros animais sem razão tenham uma natureza divina e noções da divindade, e uma previsão do futuro: elas haveriam de predizer isto aos outros animais. Assim, o pardal de que fala Homero não faria seu ninho onde o dragão há de devorá-lo a ele e a seus filhotes, e a serpente do mesmo poeta teria evitado ser presa pela águia. Eis a passagem do admirável Homero sobre o primeiro: "Então se nos apresentou um terrível presságio. Uma serpente de dorso fulgurante, terrível, chamada à luz pelo próprio Deus do Olimpo, expelindo da parte de baixo um altar, arremessou-se contra um plátano. Havia aí uma ninhada de filhotes empoleirados no mais alto galho, abrigados debaixo da folhagem - oito filhotes; nove, contando com a mãe de que tinham nascido. A serpente os devorou a todos, apesar de seus fracos gritos infelizes. Em volta dele a mãe esvoaçava, lamentando-se de sua ninhada. A serpente se enrosca e subitamente a agarra pela asa, enquanto a águia grita a mais não poder. Porém, mal acabara de comer os filhotes e sua mãe com eles, o deus que a tinha feito aparecer deixou um sinal memorável: o filho de Crono o Astuto a tinha de repente transformado em pedra. Ficamos imóveis, a admirar o acontecido, como monstros tão terríveis tinham vindo perturbar a hecatombe dos deuses." E sobre o segundo: "Estando ansiosos por atravessá-lo (o fosso), sobrevém-lhes um presságio: uma águia aparece voando no alto deixando o exército à esquerda. Ela carrega em suas garras uma serpente vermelha, enorme, viva, que palpita ainda e não desistiu da luta. À ave que a prende ela golpeia o peito, perto do pescoço, dobrando-se subitamente para trás. A águia então a atira longe sobre o solo: transida de dor, ela deixa a serpente cair no meio do povo, e com um grito alça voo, no sopro do vento. Os troianos estremecem vendo na terra, no meio deles, a serpente que se contorce, presságio de Zeus porta-égide." Então a águia seria divinatória, ao passo que a serpente, animal utilizado pelos áugures, não seria? Mas, se é fácil provar que a distinção é arbitrária, por que não se pode provar também que nenhuma nem outra eram divinatórias? Pois se a serpente era divinatória, não teria ela evitado sofrer assim dos ataques da águia? Poderíamos encontrar ainda inúmeros exemplos desta espécie que provam que os animais não têm em si mesmos uma alma divinatória; mas, de acordo com o poeta e a maior parte dos homens, "ele foi chamado à luz pelo próprio deus do Olimpo", e é num sentido figurado que Apolo igualmente emprega como mensageiro o gavião, pois, dizem que "o gavião é o rápido mensageiro de Apolo". - Segundo o que afirmamos, alguns maus demônios, titãs ou gigantes, se posso assim dizer, que se tornaram ímpios com a divindade verdadeira e os anjos do céu, caíram do céu e vagam pela terra em volta dos corpos espessos e impuros. Por não estarem revestidos de corpos terrestres, eles têm algum discernimento do futuro, e exercem esta atividade para desviar o gênero humano do Deus verdadeiro. Eles se insinuam nos mais rapinantes e mais cruéis animais, e em outros mais astutos, e os levam a praticar, quando querem, as ações que desejam. Ou então dirigem as representações destes animais aos voos e aos movimentos desta ou daquela espécie, para que os homens, seduzidos pelo poder divinatório inerente a estes animais sem razão, deixem de procurar o Deus que contém o universo e de aprofundar a verdadeira piedade, para caírem de novo pelo raciocínio ao nível da terra, das aves e das serpentes, e mesmo das raposas e lobos. De fato, as pessoas peritas neste campo observaram que as previsões mais claras vêm de animais deste gênero, pois os demônios não têm sobre os animais mais dóceis um poder tão grande quanto o que eles exercem para moverem estes animais, em virtude de uma afinidade de malícia que, naqueles animais, não é malícia, mas uma aparência de malícia. - Afinal, entre outras coisas que acho admiráveis em Moisés, ressalto como dignos de admiração seu conhecimento das diferentes naturezas dos animais e o fato de que, por terem aprendido de Deus a verdade sobre si mesmos e sobre os demônios aparentados com cada animal, ou por tê-lo encontrado por seus progressos na sabedoria, ele tenha, na sua lista dos animais, declarado impuros todos os que os egípcios e o resto dos homens consideram como aptos à adivinhação, e geralmente puros os que não são desta espécie. São impuros para Moisés o lobo, a raposa, o dragão, a águia, o falcão e seus semelhantes (cf Lv 11). E em geral, não só na Lei, mas também nos profetas podemos ver que estes animais são apresentados como exemplo dos vícios mais odiosos, e que jamais o lobo e a raposa nela são mencionados como figuras do bem. Parece então que existe uma afinidade entre cada espécie de demônios e cada espécie de animais. E como, entre os homens, há os que podem ser mais fortes que outros, independentemente de qualquer característica moral, assim há demônios que podem ser mais fortes que outros em matérias diferentes. Alguns utilizam animais determinados para enganar os homens, conforme a intenção daquele que as Escrituras chamam "o príncipe deste mundo" (cf Jo 12,31; 14,30), e outros predizem por meio de outra espécie. E vê até onde chega a perfídia dos demônios: alguns utilizam doninhas para mostrar o futuro. Mas julga por ti mesmo o que será melhor aceitar: que o Deus supremo e seu Filho incitem as aves e os outros animais à adivinhação, ou que aqueles que incitam estas categorias de animais - e não os homens, embora homens estejam presentes - são demônios, e, como os chamaram nossas santas Letras, "impuros". - Se de fato a alma das aves é divina porque predizem o futuro, tanto maior razão teremos de dizer, quando os homens recebem presságios, quão divina é a alma daqueles que ouvem estes presságios! Portanto, conforme estes autores, era divina a alma desta escrava moleira, que em Homero disse a respeito dos pretendentes: "Naquele dia não terão eles sua derradeira refeição entre nós!". Ela era divina, ao passo que o grande Odisseu, o amigo de Atena de Homero, não era adivinho, mas se alegrou quando compreendeu o presságio anunciado pela divina moleira, nas palavras do poeta: "E o divino Odisseu se encheu de alegria com este presságio". Considera, pois, que se as aves têm alma divina e per-cebem Deus, ou, como diz Celso, os deuses, e naturalmente, também nós homens, quando espirramos assim fazemos porque uma divindade está presente em nós e concede às nossa alma um poder divinatório. É o que atestam muitas testemunhas. Por isso estas palavras do poeta: "Mas ele espirrou fazendo um juramento"; e estas palavras de Penélope: "Não vês? Meu filho espirrou a todas as tuas palavras". - A verdadeira Divindade não emprega, para o conhecimento do futuro, nem os animais sem razão, nem homens quaisquer, porém as mais santas e puras almas humanas que ela inspira e faz profetizar. Por isso, entre outras palavras admiráveis contidas na Lei de Moisés, devemos destacar estas: "Não praticareis adivinhações nem encantamentos" (Lv 19,26); e em outra parte: "Eis que as nações que vais conquistar ouvem oráculos e adivinhos. Quanto a ti, isto não te é permitido pelo Senhor teu Deus." E acrescenta imediatamente: "O Senhor teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos" (Dt 18,14 12 15) E Deus, querendo um dia desviar por um adivinho da prática da adivinhação, fez seu espírito falar pela boca de um adivinho: "Pois não há presságio contra Jacó nem augúrio contra Israel. Mas, a seu tempo será dito a Jacó e a Israel o que Deus quiser" (Nm 23,23) Reconhecendo, pois, o valor de tais mandamentos e de outros semelhantes, observamos este mandamento que tem um sentido místico: "Guarda teu coração acima de tudo" (Pr 4,23), para que nenhum demônio penetre em nosso espírito e nenhum espírito hostil governe nossa imaginação a seu bel-prazer. Mas oramos para fazer brilhar "o conhecimento da glória de Deus" em nossos corações (2Cor 4,6), que é o Espírito de Deus que reside em nossa imaginação e nos sugere imagens de Deus: pois "todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14) - Importa saber que a previsão do futuro não é necessariamente divina: ela é por si mesma coisa indiferente, que sucede aos maus e aos bons. Os médicos, por exemplo, fazem previsões graças à sua habilidade médica, ainda que moralmente maus. Da mesma forma igualmente os pilotos, ainda que perversos, preveem os sintomas e a violência dos ventos, as mudanças das condições atmosféricas, baseando-se na experiência e na observação. E não imagino que haja uma razão de chamá-los divinos se são moralmente maus. É, portanto, mentira a asserção de Celso: que poderíamos declarar mais divino do que a previsão e a predição do futuro? Mentira também é dizer que muitos animais reivindicam noções divinas: nenhum animal sem razão tem qualquer noção de Deus. Mentira enfim afirmar que os animais sem razão estão mais próximos da união com Deus. Na verdade, entre os homens, os que ainda são maus, muito embora estejam na dianteira do progresso, permanecem longe da união com Deus. Portanto, somente os verdadeiros sábios que praticam sinceramente a piedade estão mais próximos da união com Deus. Tais eram nossos profetas, e Moisés de quem a Escritura deu testemunho por sua extrema pureza: "Só Moisés se aproximará do Senhor; os outros não se aproximarão, nem o povo subirá com ele" (Êx 24,2) - Mas que impiedade para quem nos acusa de impiedade ousar dizer, não apenas que os animais sem razão são mais sábios do que a natureza humana, mas também que são mais queridos de Deus! E quem não desviaria sua atenção de um homem para quem dragão, raposa, lobo, águia, gavião são mais queridos de Deus do que a natureza humana? Deveríamos concluir de suas palavras que, se de fato estes animais são mais queridos de Deus que os homens, evidentemente estes animais são mais queridos de Deus do que Sócrates, Platão, Pitágoras, Ferecides e os teólogos que ele festejou pouco antes. E de nossa parte caberia exprimir-lhe este desejo: se de fato estes animais são mais queridos de Deus do que os homens, oxalá te tornes querido de Deus na companhia deles e pareças com aqueles que, segundo dizes, são mais queridos de Deus do que os homens! E que ninguém entenda este voto como uma maldição! Quem não desejaria parecer inteiramente com aqueles a respeito dos quais se tem a convicção de que são mais queridos de Deus, e se tornar como eles também querido de Deus? Para provar que as conversas dos animais sem razão são mais santas do que as nossas, Celso não atribui esta história a qualquer, mas aos inteligentes. Pois são os virtuosos na verdade os inteligentes, nenhum homem mau é inteligente. Eis a maneira como ele se exprime: "Homens inteligentes dizem mesmo que as aves têm conversas entre si, evidentemente mais santas do que as nossas; eles mesmos compreendem alguma coisa de suas palavras; a prova que eles apresentam na prática desta compreensão é que, ao prevenirem que as aves lhes anunciaram que eles iriam a tal lugar para aí fazer uma coisa ou outra, eles mostram que vão de fato e fazem o que elas já tinham predito." Mas na verdade, nenhum homem inteligente contou tais histórias e nenhum sábio disse que as conversas dos animais sem razão são mais santas do que as dos homens. E se para apreciar as opiniões de Celso examinássemos as consequências delas, é evidente que, segundo ele, as conversas dos animais sem razão seriam mais santas do que as conversas respeitáveis de Ferecides, Pitágoras, Sócrates, Platão e outros filósofos. O que naturalmente não só é inverossímil, mas completamente absurdo. Admitindo crer que alguns tenham aprendido do canto indistinto das aves que as aves declaram antecipadamente que eles iriam a tal lugar fazer uma coisa ou outra, eu diria que também isto os demônios indicam aos homens por meio de sinais: sua intenção é enganar o homem e rebaixar seu espírito do céu e de Deus, fazendo-o descer à terra e mais baixo ainda. A fidelidade, a piedade filial - Não sei como Celso ouviu falar de um juramento dos elefantes e julgou saber que eles são mais dóceis à divindade do que nós e têm um conhecimento de Deus. De minha parte, conheço características numerosas e admiráveis que se contam da natureza deste animal e de sua brandura, mas não me lembro realmente que alguém tenha falado de juramentos de elefantes, a não ser talvez que alguém chame de brandura a sua fidelidade ao juramento e uma espécie de pacto que fazem com os homens quando ficam sob sua dependência; também isso é falso. Por mais raro que seja o fato, entretanto, dizem que os elefantes, uma vez adquirida esta brandura aparente, tornaram-se cruéis com os homens e cometeram crimes, e por causa disto, foram condenados à morte como seres inúteis desde então. E depois disso, para deixar claro, como acredita, que as cegonhas têm mais piedade filial do que os homens, ele cita o que se conta deste animal: ela dá testemunho de sua gratidão e traz alimento a seus pais, devemos responder: também isso as cegonhas não fazem por consideração de um dever, nem por raciocínio, mas por instinto natural, pois a natureza, ao formar os animais sem razão, deseja que deixem um exemplo capaz de encher os homens de confusão a respeito da gratidão devida aos pais. Se ele tivesse sabido que imensa diferença existe entre fazer isto por razão e realizá-lo sem razão e por natureza, Celso não teria dito que as cegonhas têm mais piedade filial do que os homens. E continuando a defender a piedade dos animais sem razão, Celso dá como exemplo: A ave da Arábia chamada Fênix, que depois de longos anos emigra para o Egito, transporta o corpo de seu pai, encerrado numa bola de mirra como numa urna funerária e o coloca no lugar em que se encontra o templo do sol. É verdade o que se conta; mas o fato, ainda que exato, pode ser proveniente da natureza. A generosidade da divina Providência aparece igualmente nas diferenças entre os animais, para mostrar aos homens a variedade na constituição dos seres deste mundo, e mesmo entre as aves. E ela criou um animal único para assim tornar admirado não o animal propriamente, mas Aquele que o criou. Conclusão - De tudo isto, eis a conclusão que Celso apresenta: Portanto, não foi para o homem que tudo foi criado, tampouco para o leão, para a águia ou o delfim, mas para que este mundo se realize como uma obra de Deus, completa e perfeita em todas as suas partes. Por isso todas as coisas se harmonizam não umas com as outras, a não ser secundariamente, mas com o todo. É do todo que Deus cuida; jamais sua Providência o abandona; ele não se deteriora; Deus não o chama de volta a si depois de um instante, não se irrita por causa dos homens, tampouco por causa dos macacos e ratos; não ameaça estes seres que receberam, cada um, seu destino em seu lugar. Seja-me permitida uma breve resposta. Creio realmente ter demonstrado, pelo que antecede, como todas as coisas foram feitas em benefício do homem e de todos os seres racionais. Pois é principalmente pelo animal racional que todas as coisas foram criadas. Celso tem a liberdade de dizer que não é nem pelo homem, nem pelo leão, nem pelos outros animais mencionados por ele. Nós diremos: não é nem pelo leão, nem pela águia, nem pelo delfim que o Criador os fez, mas ele criou todas as coisas pelo animal racional, e para que este mundo se realize como uma obra de Deus completa e perfeita em todas as suas partes. Este é um belo pensamento que devemos aprovar. Mas Deus, como acredita Celso, não cuida unicamente do todo, mas além do todo, ele cuida de cada ser racional em particular. Jamais a Providência abandonará o todo. No caso de uma parte do todo se deteriorar por falha do ser racional, Deus providencia a sua purificação e, depois de um instante, faz o todo retornar a si. Além disso, ele não se irrita nem contra os macacos, nem contra os ratos, mas faz os homens passarem por juízo e castigo pelas transgressões das tendências naturais. Dirige-lhes ameaças por meio de seus profetas e pelo Salvador, que veio ao gênero humano em sua totalidade, para que os que se mostram atentos à ameaça se convertam, e os que desprezam os apelos à conversão sofram as penas que merecem; e convém que Deus, em sua vontade de prover ao bem do universo, as inflija aos que precisam receber tal tratamento e correção tão severa. Mas como este quarto livro já atingiu uma dimensão suficiente, encerro aqui o raciocínio. E que Deus, por seu Filho que é o Deus Logos, Sabedoria, Verdade, Justiça e tudo o que a teologia das santas Escrituras dele afirma, me conceda iniciar ainda o quinto livro para a utilidade dos leitores, e levá-lo a bom termo com o auxílio de seu Logos que habita em nossa alma..

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