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Eugene Lang College, School for Liberal Arts - Sermões para os Domingos e Festas de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos à Septuagésima Dia de Todos os Santos - 1º Sermão para a Festa de Todos os Santos Bem-aventurança dos Santos. Realização da Obra de Deus SUMÁRIO Bem-aventurança dos santos, realização da obra de Deus. Glória de Jesus Cristo e o amor de Deus Pai a iluminá-los. Ego claritatem quam dedisti mihi, dedi eis (São João 17, 22) Dilectio qua dilexisti me in ipsis sit, et ego in eis (São João 17, 26). Deus ampliará as almas para que possam ter uma felicidade, suprema e uma alegria sobrenatural. Advocabit cœlum desursum et terram discernere populum suum (Salmo 49, 4). Omnia vestra sunt, vos autem Christi Tudo é vosso e vós sois de Jesus Cristo, diz São Paulo falando aos justos (1 Coríntios 3, 22-23). Nunca viveríamos, como vivemos, num tão claro desprezo dos interesses da nossa salvação, se gastássemos a pensar nas grandezas da eternidade metade do tempo que inutilmente dispendemos com os interesses vãos deste mundo. Mas precipitou-nos nesta desgraça o nosso pecado. Não bastou ter-nos feito perder o reino celestial em cuja posse nos ensinaram a ter esperança. Despojou-nos por tal forma da firmeza de ânimo, que quase nem nos atrevemos já a aspirar à conquista desse reino seja qual for o auxílio que nos prestem para nele entrarmos. Dessa ideia resta-nos simplesmente uma pálida lembrança e, se alguma recordação dessas pode sobreviver mais clara em ruína tão comum, ela, senhores, não tem a força bastante para comover-nos. Penetra-nos menos do que as fantasias dos nossos sonhos. Daí resulta o concebermos sempre incompletamente quanto diga respeito à vida eterna cujas verdades não se radicam já nas nossas almas, de tanto que se aferram às ilusões dos sentidos. E assim nos parecemos com aqueles loucos que, sem atentarem nos grandes desígnios por Deus concebidos para os seus santos, se julgavam condenados ao mesmo destino dos ímpios, por os verem sujeitos à mesma necessidade da morte. Videbant finem sapientis, et non intelligent quid cogitaverit de eo Dominus (Sabedoria 4, 7). Querereis vós, meus senhores, que, para evitarmos este juízo duro, meditemos sobre os tão admiráveis desígnios de Deus para com os bem-aventurados no dia em que a Igreja os saúda pela sua felicidade? Porque, se tanto posso afirmar, a alegria imensa em que eles vivem só lhes permite estabelecer alguma diferença entre as vantagens da sua eleição por amarem acima de tudo a sua bem-aventurança, razão esta que também mais deve acrisolar a nossa coragem. Falemos, pois, senhores de tão admiráveis desígnios. Fazendo-o, descobriremos os maiores segredos das breves palavras-do Apóstolo por mim dadas como texto e assim todo o meu sermão consistirá na explicação dessas quatro ou cinco palavras. Veremos como Deus colocou os Santos acima de todas as suas obras e como pensou neles em todas as suas empresas: Omnia vestra. Teremos ensejo de explicar por que meios Deus tão intimamente legou os Santos à pessoa de seu Filho: Vos autem Christi. E, depois disto, que nos cumprirá fazer senão considerar, quanto possível, a execução destes grandes desígnios de Deus? Imploremos, pois, etc. PRIMEIRO PONTO Sendo Deus, na sua categoria, único e incomparável, e nada vendo que não lhe seja infinitamente inferior, nada pode ver digno da sua estima que não lhe diga respeito. Portanto, nada, como Ele próprio, merece ser o fim das suas ações. Mas as suas riquezas não aumentarão, por mais que Ele se considere em todas as Suas obras. E, se, pela Sua grandeza, tem de ser Ele o único centro de todos os Seus desígnios, é porque só Ele constitui a Sua própria felicidade. Por isso, por mais grandiosas e belas obras que Deus produza, em toda a Sua omnipotência, não colhe outro bem que não seja o de beneficiar os outros. Nada mais pode ganhar do que o título de benfeitor. E os interesses das criaturas andam tão afortunadamente ligados com os Seus, que, assim como os Seus benefícios redundam em Sua glória, assim não pode ter glória maior do que conceder esses benefícios. Só por isto nós ousamos rogar-lhe graças extraordinárias. Por esta razão nos atrevemos a esperar dEle milagres, às vezes, porque o nosso progresso é inapartável da Sua glória e porque o natural de Deus é tão magnânimo, que o Seu maior prazer é ser generoso. Isto vemos nós provado no Gênesis, quando Deus, depois de ter criado tão belas criaturas, se põe a contemplá-las uma após outra. Se víssemos fazer o mesmo a qualquer outro artista, indubitavelmente julgaríamos que examinava as suas obras para lhes descobrir os defeitos cometidos apesar do seu cuidado. Mas, com respeito a Deus, ou às suas obras, seria sacrílego tal pensamento. Não, meus senhores. Deus trabalha sobre um original infinitamente belo e com arte infinitamente perfeita para que pudesse corrigir as Suas obras. E por isso, contempladas elas, vemos que nada teve que aperfeiçoar: Et erant valde bona. Pelo que, se nos é licito devassar os Seus desígnios, o contemplar as Suas obras significa o querer ter o gozo da sua liberalidade. É, portanto, verdadeiro, e podemos afirmá-lo com testemunho tão alto, que nada é mais digno da sua grandeza nem mais consentâneo com o seu gosto do que comunicar-se às Suas criaturas. Ora, se assim é, será licita a dúvida de que Deus tenha preparado para os seus Santos deslumbrantes maravilhas? E, se Ele tanto se desvelou pelas naturezas carecidas de razão e de conhecimentos, dando-lhes com tanto afeto a Sua benção e ligando-as por tão belas qualidades ao seu Ser, não é de supor que terá reservado grandes dons àqueles para quem Ele construiu o Universo? Porque, além do mais; não posso crer que tivesse complacência em derramar os Seus tesouros por criaturas, só capazes de receberem os benefícios e incapazes de os agradecerem e até de verem a mão que as embelezar. Se há prazer e glória em dar, só pode havê-los, beneficiando pessoas que, pelo menos, conheçam as graças que lhes dispensam. É certo que as criaturas mais insensíveis possuem admiráveis predicados, mas isso mesmo me convence de que as fez Deus tão perfeitas só para as dar a quem o mereça. Ora, se só as criaturas inteligentes podem conhecer o valor dos benefícios de Deus, só elas têm a capacidade de os receber e só elas podem abençoar o seu benfeitor. É indubitável, pois, que só para elas foram criadas aquelas criaturas insensíveis. A ordem da Providencia de Deus faz-nos aceitar esta verdade, porque o primeiro anelo do Criador é a manifestação do Seu nome. E isto requeria que primeiro visse quais as naturezas que poderiam conhecer, e, como só por elas começava os seus desígnios, tinha de formar todos os demais desígnios sobre este primeiro plano para que todos os elementos tivessem mútua e íntima relação. Por isso, depois de ter querido baixar às criaturas, dignas de O conhecerem, um clarão da inteligência infinita que nele reside, Deus imprimiu no número imenso doutras criaturas diferentes caracteres de bondade, para que, dando umas almas a matéria para os louvores e concorrendo outras com a inteligência e com a voz, se formasse um concerto de todos os seres que compõem o mundo, proclamando, noite e dia, as grandezas do Senhor de todas as coisas. Para realizar este desígnio, preparou para os seus Santos uma vida serena e imortal, temendo que qualquer incidente pudesse interromper o sacrifício de louvores por eles continuamente oferecidos à sua Majestade. E por isso Deus lhes fala sem a intervenção das suas criaturas, porque pretende arrancar-lhes dos lábios louvores mais dignos dEle. E, para que os Seus interesses vivam eternamente consubstanciados com os dos Seus escolhidos, não só lhes aparecerá como realmente é, para lhes dar um profundo sentimento da sua Majestade, mas torná-los-há felizes na contemplação da Sua infinita beleza. Que mais vos direi? Deus eleva os seus Santos acima do que nós podemos imaginar de maior, para colher assim mais glória do seu afeto. Como seria pouco ser louvado por homens, faz deles deuses e assim se comprazerá com os seus louvores. Emfim, Deus, Nosso Pai, para satisfazer a vontade de firmar a Sua glória na magnificência, criou um povo inteiro para Si, povo em que reina mais pelos benefícios do que pelo poder, e ao qual se dará Ele mesmo, por não ter nada melhor para dar-lhe. Ponderado isto, julgo não ser difícil concluir que Deus fez tudo para a glória dos seus Santos. Ainda que só tivessem a glória de lhe estarem ligados tão de perto, toda a restante Humanidade devia submeter-se ao império deles. E, por mais singular que esta graça nos pareça, não devemos furtar-nos todos ao império dos bem-aventurados, se eles tiveram a felicidade de nascer para possuírem Deus. E, porque assim é, o mais veemente desejo dos Santos é servirem o Criador; todos os esforços das coisas naturais é, segundo o Apóstolo, dar ao mundo filhos de Deus. E eis a razão por que no-los descreve como "nas dores do partos": omnis creatura parturit. Lastimam as criaturas constantemente a desordem do pecado que lhes ocultou os verdadeiros herdeiros do seu Senhor, confundindo-os com os alvos da sua cólera. Tudo que podem fazer é esperar que Deus separe os bons dos maus no grande dia do Juízo Final: Omnis creatura ingenúscit et parturit usquc adhue, revelationem filiorum Dei expectans (Romanos 19, 22). E, nesse dia, meus senhores, Deus que lhes deu esse impulso para que a Sua afeição pelos Santos seja conhecida por todos, chamará o céu e a terra para julgar o seu povo: Advocabit coelum desursum et terram discernere populam suum (Salmo 49, 4). E o céu e a terra lá irão com Deus a combater contra os insensatos (Sabedoria 5, 21) e mais ainda para reduzir à obediência todos os Seus filhos. Porque, entretanto, havendo alguns com o cunho visível de Deus vivo nas frontes, ver-se-hão as feras mais sanguinárias rojadas aos pés deles, as chamas retirarem-se com medo de os molestarem, e uma impaciência estranha fará em mil estilhaços as rodas e cavaletes destinados aos seus martírios. Como não seria, pois, tudo para a glória dos Santos, se os perseguidores deles os coroam e as suas vitórias são os próprios tormentos? Só na humildade são honrados: é só a fraqueza que os torna poderosos. E "os próprios instrumentos do seu suplicio são, empregados na pompa do seu triunfo": Transeunt in honorent triumphi etiam instrumenta supplicu. Por isso, o Filho de Deus, na última sentença que há de determinar, para sempre o último estado de todas as criaturas, as chama ao reino que lhes é preparado desde a criação do mundo. E, contudo, foi feito ao mesmo tempo que o paraíso, como houve logo condenados e bem-aventurados. É indubitável, pois, que o nosso juiz pretende ensinar-nos que a criação do mundo foi apenas um preparativo da grande obra de Deus, cujo remate será a glória dos Santos. Quando Ele dizia: "Vinde, bem amados de meu Pai, que tudo criou para vós", mal acabava de erguer os alicerces deste universo, e já começava a pensar na vossa glória: a constitutione mundi (São Mateus 25, 34) e nada mais fazia do que preparar-vos o vosso reino: Venite, benedicti Patris mei (São Mateus 25, 34). Nisto, meus senhores, se me afigura haver bastantes estímulos para as almas menos generosas. Que pensais vós desta honra? Achais pouco, em vosso juízo, serdes o fim das obras de Deus, o último alvo da Sua omnipotência, repousando depois toda a eternidade? Haverá nisso com que satisfazer a Sua natureza infinita. Ele, que julgou empresa indigna dEle a criação do Universo, ficará satisfeito completando o número dos Seus eleitos. E toda a eternidade lhes dirá: Eis a minha obra. Vede. Não tiveram o melhor êxito os meus desígnios? Podia eu almejar fim mais excelente? Mas dir-me-heis vós: Como é possível que todos os desígnios de Deus se limitem aos bem-aventurados? Não é Jesus Cristo o primogênito de todas as criaturas? Não foi criado nEle tudo que há de visível e de invisível? Ele é a consumação de todas as obras de Deus. E, sem irmos mais longe, as palavras do meu texto fazem-nos ver com bastante clareza que não são os Santos o fim que Deus se propôs em todas as Suas obras, por que eles mesmos só o são para Jesus Cristo: Vos autem Christi (1 Coríntios 3, 23). Tudo isso é verdadeiro, meus senhores. Contudo, segundo a minha opinião, isso mesmo é a melhor confirmação de tudo quanto acabo de dizer. O mesmo Apóstolo que diz ser tudo para Nosso Senhor, diz que é tudo para os eleitos. E não só o diz, deu-nos uma admirável doutrina para o compreendermos. Ensina-nos ele que Deus, para poder dar esta prerrogativa ao seu Filho sem derogar nada do que preparava para os seus Santos, achou o meio de unir tão sutilmente os seus interesses, que ficaram comuns as graças e bens deles (Romanos 8, 28). E é isto que devo explicar em poucas palavras. Se Deus me conceder a graça de poder dizer algo que se aproxime de verdades tão altas, ficaremos assombrados com a Sua afeição pelos santos e com a grandeza a que Ele os chama. SEGUNDO PONTO Tendo o Eterno Pai dado ao seu Filho todas as riquezas da divindade, quis que todos os povos nEle fossem abençoados. E, como Ele lhe deu as luzes mais puras, estabeleceu esta lei universal, que nenhuma graça haveria sem dEle provir. Por isso o filho, de Deus disse a seu Pai, que dera aos justos a mesma claridade que de seu Pai recebera: Ego claritatem quam dedisti mihi, dedi eis (São João 28, 22). E assim, como vedes, compara a santidade à luz para compreendermos que ela é una e indivisível e que assim como os raios do sol, incidindo sobre um corpo, lhe dão na verdade novo brilho e nova beleza, mas que não passam duma impressão da beleza do sol e duma efusão da luz original nele residente; assim a justiça dos eleitos é só a justiça de Nosso Senhor a derramar-se neles sem se separar da sua origem, de maneira que o esplendor deles é só a do Filho de Deus e são cercados da glória dEle, e, para falarmos como o Apóstolo, são todos revestidos por Jesus Cristo. O espírito de Deus, meus senhores, "esse imenso espírito que em si tudo compreende": hoc quod continet omnia (Sabedoria 1, 7) incide sobre eles para lhes dar uma vida comum. Vai-os penetrando, até ao fundo das almas; e, dentro deles, trabalha incessantemente até deixar a luz de Jesus Cristo. E, como é de força invencível, liga-os a Si por uma união incomparavelmente mais íntima do que a estabelecida nos nossos corpos pelos nervos e pelas cartilagens, os quais, ao menor esforço, se quebram e distendem. E é esta milagrosa ligação que faz com que Jesus Cristo seja toda a sua vida: Christus vita vestra (Colossenses 3, 4) Eles são "o seu corpo e a sua plenitude": corpus ejus et plenitudo (Efésios 1, 23) como diz o Apóstolo São Paulo, que é o mesmo que se dissesse faltar qualquer perfeição ao Filho de Deus, se o separassem dos eleitos, o que o mutilaria. E é por isso que o Divino Mestre, na admirável oração que fez para os seus Santos, como se lê em São João, 17, os recomenda a seu Pai não como Seus, mas como Ele mesmo. "Quero, dizia ele, que em toda a parte onde eu esteja estejam comigo os meus amigos" - Volo, Pater, ut ubi sum ego, et illi sint mecum Dir-se-ia que Ele não pode passar sem eles, e que o Seu reino lhe não agradaria, se os não tivesse consigo e se Ele não fizesse deles um pedaço de Si próprio. Não quer até que seu Pai os distinga dEle na Sua afeição. Constantemente lhes significa que Ele está neles e eles nEle, que com Ele se devem confundir, formando com Ele a mesma perfeita unidade que faz com seu Pai. E parece temer que estabeleçam qualquer diferença: Ego in eis et tu in me, ut sint consummati in unum ut sciat mundus quia dilexisti eos sicut et me dilexisti (São João 23). E, pouco depois: Dilectio qua dilexisti me in ipsis sit, et ego in eis (São João 26). Eu estou neles e vós em mim, para que tudo se reluza à unidade e para que o mundo saiba que não fazeis a menor distinção entre nós, que os amais e zelais como a mim mesmo. Ouvindo estas palavras, meus senhores, quem será tão empedernido, que se não comova? E são tão dignificantes para nós, que seriam injuriosas para o Divino Mestre, se Ele as não tivesse proferido. Mas quem pode duvidar de tal prodígio? E, se, a princípio, nos assaltam as duvidas, não será demais a Sua palavra para vê-las destruir? Confiemos tenazmente nesta promessa e deixemos ao cuidado do Eterno Pai o velar pelos interesses de seu Filho; Ele saberá dar-lhe a categoria devida à Sua natureza e ao Seu mérito sem violar a unidade que Ele próprio lhe pediu com tanta instância. Como uma boa mãe que, tendo o seu querido filho entre os braços, o acaricia em diferentes partes do corpo, segundo os sentimentos que a comovem, enfeita mais umas do que outras, conservando-as com mais transporte, apesar de animada pelo mesmo amor, assim o Eterno Pai, sem dividir o amor que tem em comum ao seu Filho, e aos Seus membros, sabe dar-lhe a predominância de chefe. E, se algum reparo há a fazer neste exemplo, meus senhores, é que a união dos Santos com Jesus Cristo é muito mais intima, porque empregará para a fazer não só a Sua mão omnipotente como esse espírito vinculador que os Santos Padres chamaram o laço da Trindade. Dizei-me o que vos aprouver da grandeza, das vitórias, do sacrifício do Divino Mestre; eu confessarei tudo isso, meus senhores, e ainda confessarei mais, porque nunca diremos o bastante em Sua glória. Mas continuarei a sustentar que aquele que não aspira ao mesmo reino, que não leva a sua ambição até ás mesmas honra, que não espera a mesma felicidade, não é digno do nome de cristão, nem de ser lavado com o sangue, nem de ser animado pelo espírito de Jesus Cristo. Por quem venceu Ele, senão por nós? Não foi por nós que se imolou? Pertencia-lhe a Sua glória por direito de nascimento e, se tinha alguma coisa a conquistar, eram os fieis, que Ele chama povo de aquisição. Avaliaremos nós quanto Ele sabe o que é devido às Suas vitórias? Ouçamos como Ele fala no Apocalipse: (Apocalipse 3, 21) "Venci. Sentei-me como um triunfador à direita de meu Pai e quero que os que subiram em meu nome se sentem no mesmo trono que eu" - Qui vicerit, dabo ei ut sedeat in throno meo. Sereis capazes de supor união mais perfeita? Não se contenta com transportar-nos ao mesmo reino e associar-nos ao Seu império. Quer que nos sentemos no Seu trono, não por que o deixe para no-lo dar (não o quereriam os Santos com essa condição) mas para nesse trono com Ele reinemos eternamente. E como havemos de explicar isto, senão dizendo que somos o mesmo corpo e que não se deve estabelecer a menor diferença entre Ele e nós? Sendo tais os grandes desígnios da Providencia a respeito dos bem-aventurados, interessando-se Deus em pessoa pela grandeza deles, tomai cuidado, meus senhores, ao ouvirdes falar do reino dos céus, em o não representardes como as coisas que impressionam os sentidos, ou como os prazeres enfermos que mais iludem, do que satisfazem, a nossa imaginação. Tudo nos parecerá novo no reino dos céus, nada teremos nunca que lhe seja semelhante: Nova facio omnia (Isaías 43, 19; livro do Apocalipse, 21, 5). Como Deus, sem olhar ao número das Suas obras, não verá senão o que delas pode fazer; como não seguirá mais a Sua natural disposição e tirará as leis só do Seu poder e amor, seria tão temerário pretendermos conceber o que faz no íntimo dos eleitos como pretender compreender a Sua omnipotência. Colocar as coisas no estado natural em que as vemos seria bom para começar as obras de Deus. Mas, se Deus quer fazer, dos Santos, alguma coisa dEle digna, trabalhará in manu potenti et brachio extento (Deuteronômio 5, 15) quero dizer, de braço estendido, volteando as coisas por forma que as afeiçoe à Sua semelhança, e só atendendo à Sua natural disposição o preciso para as não forçar. E então dará o impulso magistral que há de tornar os Santos assombrados para sempre com a Sua própria glória. De tal maneira ficarão enriquecidos com os benefícios de Deus, que a eternidade mal chegará para completamente O reconhecerem. Onde estará o corpo outrora sujeito a tantas enfermidades? Onde aquela alma de faculdades tão limitadas? Ser-lhes-há incompreensível que ela seja capaz de tantas maravilhas. A sua alegria será excessiva para ter os vulgares meios condutores. Será por isso que Deus os ampliará, dando-lhes, por assim dizer o seu espírito tanto como lhes dará a gozar a sua felicidade. Ponderai um momento, eu vo-lo peço, o que será esta bem-aventurança. Nada pode encontrar a nossa alma nesta carne mortal que a satisfaça. A carne é dum humor difícil. Acha sempre que exigir. Que alegria ter encontrado um bem infinito, uma beleza completa, um objeto que docemente se apodere da sua liberdade, que encontre para sempre todas as suas afeições, sem que o menor desejo venha perturbar ou interromper a sua felicidade! E que pode ela conceber de maior de que possuir quem a possui, do que pertencer-lhe quem a domina? Porque nada é mais dela do que o que lhe serve de recompensa, tanto como a recompensa está ligada, a uma ação cujo domínio lhe pertence. Como a alma louva a Deus por a ter guiado tão bem, por ter operado nela tantas maravilhas, ao mesmo tempo que o próprio Deus a louva! Cantarão ali sempre, Senhor, os Vossos louvores; não falarão nem pensarão senão nas Vossas maravilhas; nunca se cansarão de falar da magnificência do Vosso reino: Magnificentiam gloriae sanctitatis tuae loquentur, et mirabilia tua narrabunt (Salmo 144, 6). E vós não vos cansareis de lhes dizer que bem procederam, falar-lhes-eis dos seus trabalhos com ternura de pai, e por parte de Deus e das almas, a eternidade decorrerá em congratulações perpétuas. Oh! Como lhes parecerá pequena a terra! Como se rirão das vãs alegrias deste mundo! E bastará isto, meus senhores, ou será preciso mais para estimular-vos? Que mais seria preciso para que o Eterno Pai a Si nos atraísse? Chama-nos ao reino do seu Filho único, a nós que não passamos de Seus servos, e inúteis. Não quer ter segredos nem reservas para nós. Abandona-nos o objeto que lhe dá a felicidade. Sendo nós cinza e podridão, faz-nos companheiros da Sua glória e, em troca disto, apenas nos pede o nosso amor e pequenos serviços que lhe são devidos pelos inúmeros benefícios que lhe devemos, serviços excessivamente pagos pela menor das Suas graças. E, contudo, quem o acreditaria, se uma dolorosa experiencia não no-lo ensinasse? O insensato não quer aquelas grandezas. É tão ardente no seu amor pelos prazeres mortais, como se não tivesse nascido para uma eterna glória. E, como se quisesse ser feliz pelo seu Criador, acha, à procura da felicidade, um caminho diametralmente oposto ao que Deus lhe prescreve e só sente alegria, opondo-se à Sua vontade. E a sua loucura ainda seria desculpável, se esta vida tivesse alguns encantos capazes de a satisfazerem. Mas Deus, como um bom pai que conhece as fraquezas dos Seus filhos, e que conhece a impressão que nós recebemos das coisas presentes, quis de propósito que esta vida fosse cortada de mil tormentos, para nos elevar mais alto as nossas afeições. E se a estas dores mistura algumas doçuras, é para nos suavizar a amargura que poderia tornar-nos a vida insuportável. Julgai por isto o que é esta vida. Só com muita habilidade e astúcia ocultar-nos as suas misérias e, contudo, ó cegueira do espírito humano! É ela que nos seduz, ela que só nos perturba e agita, ela que em nada é consistente, ela que dá tantos passos para o seu fim quantos são os momentos da sua duração, e que nos há de deixar de repente como um falso amigo na ocasião em que nos pareça dar mais repouso. Em que é, pois, que nós pensamos? Onde está aquela generosidade do cristianismo que fazia julgar triste a pompa do mundo aos olhos dos primeiros fiéis como inferior ao lodo, existimavi sicut stercora; (Filipenses, 3, 8) que lhes fazia dizer com tanta, resolução: Cupio dissolvi et esse cum Christo; (Filipenses, 1, 23) que num estado de constante incerteza, numa vida continuamente dolorosa, os conserva serenos pela firmeza da esperança, spe viventes? (Romanos 12, 12). Mas ah! Como eu erro em querer encontrar entre nós a perfeição do cristianismo! Muito já seria que nós tivéssemos qualquer pensamento digno da nossa vocação e que denunciasse um pouco o novo homem. Mas, pelo menos, meus senhores, consideremos com alguma atenção qual não será a nossa vergonha em sermos chamados à mesma felicidade que gozam os grandes homens que implantaram a Igreja à custa do Seu sangue, e termo-la perdido covardemente numa inação profunda, ao passo que os outros a ganharam, combatendo, a despeito da fúria dos tiranos, dos verdugos, do inferno. Feliz do que ouve estas verdades e sabe prelibar? A bondade do Senhor! "Feliz do que vai inocentemente pelo caminho dEle, e passa dias e noites a contemplar a beleza das suas leis santas! (Salmo 1, 4) Florescerá, como uma árvore plantada na corrente das águas. Virá tempo em que regurgitará de frutos. Não se perderá uma só das suas folhas. O Senhor irá colhendo todas as suas boas obras e fará prosperar todas as suas ações. Ah! E assim não sucederá aos ímpios! Dissipá-los-á na impetuosidade da sua cólera, como o pó é arrebatado por um turbilhão". Ah! Senhor que enlevo dentro dos Vossos tabernáculos! Transporto-me para fora da terra, quando penso na Vossa morada. Extasiam-se-me os sentidos e desprende-se-me a alma quando penso que Vos gozarei na terra dos vivos. Mais uma vez o digo, e não me cansarei de o repetir: "É mais delicioso passar um só dia na vossa morada do que toda a vida nas voluptuosidades do mundo". Animai, Senhor, os nossos corações com esta elevada esperança. Dia de Todos os Santos - 2º Sermão para a Festa de Todos os Santos Deus será tudo em todos SUMÁRIO Exordio. Desenvolvimento do texto. Deus é tudo pela imensidade da sua essência, está em todos pela incompreensível fecundidade com que se comunica. Proposição e divisão. Para tornar o homem feliz, devemos dar-lhe a verdade, a alegria e a paz. No céu teremos: 1º A presença de Deus, o verdadeiro e mais nobre exercício do nosso espirito; Neste 1º Ponto - Os bem-aventurados possuem pela presença de Deus a verdade sem erro, sem dúvidas, sem fadigas. Felizes, os que têm o coração puro, porque verão a Deus devendo purificar-se neste mundo. 2º No gozo de Deus, a perfeita alegria dos nossos corações; Neste 2º Ponto - As alegrias do mundo não passam de ilusões. No céu, a nossa alma flutuará eternamente na mais nobre e perfeita alegria. Aspiremos a essa alegria. 3º Na tranquila posse de Deus, a imutável firmeza do nosso repouso. Neste 3º Ponto - No céu eternos repousos. A nossa paz não será perturbada como neste mundo. Peroração. Meditemos esta felicidade. Votos pela glória e pela felicidade do rei neste mundo e no outro. Ut sit Deus omnia in omnibus. Deus será tudo em todos (1 Coríntios 15, 28). Senhor. Vai ser hoje o assunto da nossa atenção aquilo que os olhos não viram, que os ouvidos não ouviram, que nunca penetrou no coração humano. Esta solenidade foi instituída para que ponderemos as infinitas graças que Deus preparou aos seus servos para eles serem eternamente felizes, e uma só palavra do Apostolo nos vai explicar estas maravilhas. Diz ele: "Deus será tudo em todos." Haverá nada mais conciso? E pode imaginar-se nada de mais vasto e imenso? Deus é um e, ao mesmo tempo, é tudo. E, sendo tudo para Si próprio, porque lhe basta a Sua grandeza, é também tudo para os Seus eleitos porque enche com a Sua plenitude toda a sua capacidade e todos os seus desejos. Se precisam dum triunfo para honrarem a Sua vitória, Deus é tudo. Se têm necessidade de repouso para se refazerem dos seus longos trabalhos, Deus é tudo. Se pedem consolos depois de terem chorado santamente no meio dos espinhos da penitência, Deus é tudo. Deus é a luz que os ilumina. Deus é o prazer que os extasia. Deus é a vida que os anima. Deus é a eternidade que lhes dá uma morada de glorioso repouso. Ó amplitude! Ó profundidade! Ó extensão sem limites e ó inacessível altura! Poderei eu encerrar-Vos num só discurso? Vamos todos, meus irmãos, e entremos neste abismo de glória e de majestade. Lancemo-nos confiadamente a este oceano. Mas chamemos o nosso pai e a nossa estrela, isto é, a Virgem Santíssima, e imploremos a assistência do Espirito Santo. Ave. Pode discutir-se se o homem, para ser feliz, tem ou não necessidade de possuir mais do que uma coisa, ou se a felicidade é um conjunto de vários elementos e o concurso de muitos bens reunidos. E, em primeiro logar, afigura-se que o coração, que se divide, confessa, dividindo-se, a fraqueza do atrativo que o domina e que o coração assim dividido ruais procura, do que realmente encontrou, a sua felicidade. Porque, se por um lado parece que só um objeto deve contentar-nos, por não termos mais dum coração, por outro lado, parece que nos são necessários muitos bens por termos muitos desejos. Na verdade, desejamos a saúde, a vida, o repouso, a glória, a abundância, a liberdade, a ciência, a virtude, e que não desejaremos nós mais ainda? Como seria possível, pois, esperarmos satisfação completa, por meio dum só, objeto, duma tão grande multiplicidade de desejos e inclinações que nós mesmos alimentamos? Conciliou o Apóstolo estas aparentes contradições no texto que eu escolhi, porque nele nos mostra, um mesmo objeto, primeiro a simplicidade, porque é uno, e depois a variedade, porque é infinito. Diz ele: "Deus uno é tudo em todos." É um e é tudo. É tudo não só em Si mesmo pela imensidade da Sua essência, mas também é tudo em nós pela incompreensível fecundidade com que se comunica às Suas criaturas: Erit Deus omnia in omnibus. Mas o que pelo apóstolo São Paulo nos foi proposto num sentido genérico, explica-o em particular Santo Agostinho quando, ao interpretar a Epístola aos Corintios, apresenta este belo comentário: "Deus, diz ele, será todas as coisas em todos os bem-aventurados, porque será o seu comum espetáculo, será a sua comum alegria e será a sua paz comum" - Commune spectaculum erit omnibus Deus, communis gaudium erit omnibus Deus, communis pax erit omnibus Deus. E, na verdade, para sermos felizes segundo as máximas do mesmo santo, devemos não ser enganados, nada sofrermos e nada temermos. Porque, sendo a verdade tão preciosa, por maiores que sejam os outros bens que o homem possua, carece dum grande tesouro, se for enganado e, embora conheça a verdade, não vive decerto contente com isso, se sofre; e, ainda que não sofra, não tem tranquilidade, se teme. Portanto lá, na Jerusalém Celeste, não haverá erro, porque se verá Deus; não haverá dor, porque se gozará Deus; não haverá receio nem inquietação porque se repousará para sempre em Deus. E por isso nós lá seremos bem-aventurados porque teremos naquela presença de Deus um Verdadeiro exercício do nosso espírito; saborearemos nesse gozo a perfeita alegria dos nossos corações; possuiremos nessa paz a firmeza imutável da nosso repouso. Eis as três verdades sublimes que Santo Agostinho nos expõe e que me esforçarei por vos tornar sensíveis, se me dispensardes a vossa atenção, para que vos convenceis de que, como não há liberdade maior do que Deus, concedendo-nos tão grandes dons, nada também há mais ingrato e cego do que o homem que não souber aproveitar tão grande Beneficência. PRIMEIRO PONTO Se o apóstolo São Paulo disse que os fiéis são um espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens (1 Coríntios 4, 9) podemos nós acrescentar que são um espetáculo para o próprio Deus. Ensina-nos Moysés, que esse grande sábio e arquiteto, diligente contemplador da sua própria obra, ia admirando todas as partes do belo edifício do mundo, que ia construindo: Vidit Deus lucem quod esset bona; (Gênesis, 1, 4) que, tendo formado o todo, ele o tinha amado, e porque, na verdade, a beleza arquitetônica resplandece no todo e mais ainda no conjunto do que em cada uma das suas partes, o achará perfeitamente belo; Et erant valdé, bona: e, finalmente, que se contentara consigo mesmo, vendo nas Suas criaturas reflexos da Sua sabedoria e da efusão da Sua bondade. Mas, como o prodígio da Sua graça e a obra-prima do Seu poder são o justo e o homem de bem, é este o melhor espetáculo para os Seus olhos: Oculi Domini super justos (Salmo 23, 15) "Os olhos de Deus, diz o Santo Salmista, fixam-se sobre os justos" não só porque Deus vela por eles, para os proteger, como porque se compraz em contemplá-los do alto dos céus, como o objeto mais querido das suas complacências. "Não vistes, diz ele, quanto o meu servo Jó é reto, justo e temente a Deus, como evita o mal com escrúpulo e não tem ninguém igual na terra?" (Jó, 1, 8). Como é feliz o soldado que combate aos olhos de seu capitão e de seu rei aos quais o seu valor invencível parece um espetáculo tão belo! Deus quer, se os justos são o seu espetáculo, ser por seu turno o espetáculo deles. Comprazendo-se em vê-los, quer que eles também o vejam. Extasia-os pela completa visão da Sua eterna beleza e mostra-lhes límpida a própria verdade em luz tão pura, que dissipa todas as trevas e nuvens. Mas, perguntareis vós, que é a verdade: Que imagem nos dais dela? Em que forma aparece ela aos homens? Mortais grosseiros e carnais, nós julgamos tudo pelo aspecto corporal. Pretendemos sempre imagens e formas concretas. Não poderei eu despertar-vos os olhos espirituais e interiores que tendes ocultos no fundo da vossa alma, afastá-los, por um momento, dessas imagens vagas e vacilantes que são imprimidas pelos sentidos, e habituá-los a encarar a verdade pura? Tentemos, esforcemo-nos, vejamos. Por isso vos rogo, meus senhores, que atendais apenas ao que fazeis, e que penseis na ação que hoje vos reúne neste lugar sagrado. Prego-vos a verdade e vós escutais-la. Ora a verdade que especialmente vos proponho é que só é feliz quem não está sujeito ao erro, e que não se engana nunca. É uma segura e incontestável verdade. Não carece de demonstração, porque a vedes em toda a evidência. Mas, meus senhores, onde é que vós a vedes? Porventura nas minhas palavras? De maneira alguma, crede. Porque, assim como eu, designando-vos com o dedo um quadro ou um adorno da capela real, apenas dirijo a vossa vista, e não vos dou luz, nem vos posso inspirar o sentimento, assim eu vos falo neste púlpito. Falo-vos, advirto-vos, estimulo-vos a atenção. Mas há uma voz secreta da verdade que fala em mim, dentro de mim, e essa voz é a que vos fala também. Se ela não existisse, as minhas palavras cortariam o ar inutilmente e apenas aturdiriam os ouvidos. Assim, se, conforme a sábia organização do ministério eclesiástico, uns são pregadores e outros ouvintes, todos, segundo a ordem desta oculta inspiração da verdade, são ouvintes e são discípulos. É certo que, olhando as coisas superficialmente, eu falo e vos escutais. Mas, a rigor, vós e eu ouvimos no fundo da consciência a verdade que nos fala e nos ensina. Eu vejo a verdade. Vós vede-la também. E vêmo-la todos juntos, porque a verdade é uma. E vêem-na em toda a terra os olhos que estão abertos à verdadeira luz. Portanto, não se pode determinar onde é que ela está, apesar de não faltar em parte alguma. Apresenta-se a todos os espíritos, mas, ao mesmo tempo, está acima de todos. Podem os homens cair no erro. Ela subsiste sempre. Podem eles aproveitá-la ou desprezá-la, serem mais ou menos instruídos: a verdade nem aumenta nem diminui. Sempre uma, sempre igual, sempre imutável, julga tudo e não depende do julgamento de ninguém. Como diz Santo Agostinho, "casta e fiel, própria para cada um, embora comum a todos" - et omnibus communis est et singulis casta est, - é feliz quem a possui e só nos prejudicamos a nós mesmos, quando a rejeitamos. Constitui, portanto, a verdade, a bem-aventurança e o suplício de todos os homens porque "os que se furtam a considerá-la são punidos pela sua própria cegueira e pelas suas trevas - Cum integra et incorrupta, et conversos laett tificet lumine et aversos puniat coecitate. Eis o que é a verdade. E, meus irmãos, esta verdade, se pensarmos bem, é Deus. Ó verdade! Ó luz! Ó vida! Quando vos verei e conhecerei eu? Conhecemos nós a verdade nestes dias cheios de treva? De onde a onde, entrevemos apenas o luzir dum tíbio clarão seu. E por isso a nossa razão vacilante não sabe a que apegar-se nem no que firmar-se no meio de tantas sombras. Se ela se satisfaz seguindo os seus sentidos, apenas distingue a superfície das coisas e, se pretende avançar, confunde-a a sua própria sutileza. Não são obrigados os mais sábios a conter o espírito a cada passo? Ou evitam as dificuldades, ou as dissimulam, aparentando tranquilidade, ou se arrojam a afirmar o que lhes ocorre sem o compreenderem, ou visivelmente se iludem e sucumbem debaixo de tal fardo. Até nas questões terrenas, a verdade dificilmente é conhecida. Os cidadãos desconhecem-na, embora pretendam criticar tudo, por não terem amplitude de conhecimentos, nem as necessárias relações. Os governantes, ocupando situação mais elevada, descobrem indubitavelmente melhor as consequências das coisas, mas estão arriscados aos mais artificiosos disfarces. Eis a razão porque um sábio antigo - dizia a um seu amigo que perderão favor do soberano: "Como sois feliz agora por não terdes nada na vossa fortuna que vos obrigue a mentir e a enganar-vos a vós próprios!" - Felicem te, qui nhil habes propter quod tibi mentiatis! Que hei de fazer? Para quem me voltarei, sendo cercado por todos os lados pela mentira e pelo erro? Desconfio dos outros e não me atrevo a acreditar na minha própria razão. Apenas julgo ver o que vejo e possuir o que possuo, descubro quase sempre que a minha razão me engana. Mas, ah! Achei um remédio para me preservar do erro. Suspenderei o meu espírito. Contendo a sua indiscreta e leviana mobilidade, terei ao menos dúvidas, já que me não é permitido ter a verdade rigorosa. Mas ó meu Deus, que fraqueza e que miséria, Não me atrevo a sair do meu lugar nem a mexer-me! Só com o medo de cair. Miserável refugio contra o erro ver-me constrangido a mergulhar na incerteza e a desesperar da verdade! Oh! Felicidade da vida futura! Porque ouvi o que promete Isaías aos bem-aventurados cidadãos da celeste Jerusalém: "O vosso sol nunca terá ocaso e a vossa lua não terá minguante" - Non occidet ultra sol tuus, et luna tua non minuetur (Isaías 60, 20). Quer dizer, que não só a verdade brilhará sempre, mas que o vosso espírito será sempre iluminado uniforme e igualmente. Oh! Que felicidade nunca ser enganado, nunca surpreendido, nunca transviado, nunca deslumbrado pelas aparências, nunca suspeitoso nem apreensivo! Não me assombra, cristãos, que São Gregório Nazianzeno - chame aos bem-aventurados deuses, visto que este título melhor lhes cabe a eles do que aos príncipes; e aos reis do mundo a quem é conferido por Davi: "Eu disse-o: Vós sois deuses em tudo e sois filhos do Altíssimo!" - Ego dixi: Dii estis et filii Excelsi omnis (Salmo 81, 6). Mas notai o que ele diz a seguir. Contudo, acrescenta o Salmista, ó deuses de carne e de sangue, ó deuses de terra e de pó, não vos deixeis deslumbrar por esta divindade efêmera e emprestada. "Porque afinal vós morreis como homens e, do trono, haveis de descer ao túmulo" - Veruntamen sicut homines moriemini; et sicut unus de principibus cadetis A majestade, confesso-o, nunca se dissipou nem aniquilou, e vemos que ela vai toda revestir os sucessores de quem a teve. O rei, dizemos nós, não morre nunca, porque a imagem de Deus é imortal, mas, entretanto, o homem cai e a glória deixa-o à porta do sepulcro. Não acontece o mesmo aos imortais cidadãos da pátria celeste. Não só são deuses, porque não mais morrem, mas também são por outra forma deuses, porque estão livres da mentira. Disse Davi num seu transporte: "Todo o homem é mentiroso" (Salmo 115, 11) todo o homem pode enganar e ser enganado, é capaz de mentir aos outros e de mentir a si próprio. Portanto vós, bem-aventurados espíritos que reinais com Jesus Cristo, já não sois rigorosamente homens, porque estais tão unidos à verdade que nunca mais haverá nuvem que vo-la oculte, nem ambiguidade que vo-la perturbe, nem dúvida que a enfraqueça. Por isso nesse feliz estado não serão precisos grandes esforços para encontrar a verdade, nem arrancá-la do fundo, como que por meio de máquinas e artifícios, por meio de séries longas de efeitos ou grandes torneios de arrazoados. A verdade oferecer-se-á por si mesma, completamente pura e evidente, sem confusão, sem mistura, e "tornar-nos-á semelhantes a Deus, porque nós o veremos como Ele é, realmente", diz São João: Cum apparuerit, similes ei erímus, quia videbimus eum sicuti est (São João 3, 3). Mas atendei à sequência desta bela passagem: "Quem tiver em Deus esta esperança, conservar-se-á puro como o próprio Deus é puro" - Omnis qui habet hanc spem in eo, sanctificat semetipsum, sicut et ille sanctus est (São João 3). Nada impuro pode entrar no reino de Deus. Passar-se-á pela prova dum rigoroso exame, para que uma beleza tão pura não seja vista nem aproximada de espíritos impuros, e foi isto o que fez dizer ao Salvador no Evangelho deste dia: "Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois que eles verão a Deus" (São Mateus 5, 8). Ouvi, espíritos temerários e desvairadamente curiosos, que dizeis: Nós queríamos ver, nós queríamos ouvir todas as verdades da fé. Chegou o tempo de vos purificardes e ainda não chegou o de verdes. Deixai tratar dos vossos olhos doentes; permiti que vo-los lavem, e os fortifiquem, porque, se depois não puderdes ainda suportar a luz do pleno dia, já gozareis ao menos a suave impressão duma claridade moderada. E, se todas as luzes do cristianismo são para nós trevas, metei a mão na vossa consciência. Quais são as vossas ocupações? Em que costumais pensar? Sobre que costumais discorrer? Poderei eu dizer neste púlpito, contido pelo Santo Apóstolo: (Efésios 5, 3) "Que estas coisas nem sequer sejam nomeadas entre vós?" Pois quê? Enquanto meditais apenas sobre a carne e o sangue, na frase da Sagrada Escritura, podeis esperar impressões de discursos espirituais? Como se haviam de insinuar em vós as verdades castas e puras do cristianismo? Há de descer do seu trono a sabedoria a ensinar-vos, quando vós a não procurais? Vivamos, pois, cristãmente e a verdade nos será patente um dia. E nunca tereis respirado ar mais suave. Nunca a vossa fome terá sido saciada por maná tão delicioso. Nunca tereis extinguido a vossa sede com tão salutar consolo. Nada mais harmonioso do que a verdade. Não há melodia mais doce, concerto mais amplo, beleza mais perfeita e arrebatadora. Atendei um pouco, cristãos, esta imortal beleza que todo o cristão deve servir. Não ostenta esta beleza divina aos nossos olhos nem graça artificial, nem adornos emprestados, nem mocidade efêmera, nem brilho sempre moribundo. Tem ela a graça e a duração, a majestade e a doçura, a gravidade e o agrado, a honestidade e o prazer e a alegria. É o que nós vamos ponderar na segunda parte do meu sermão. SEGUNDO PONTO A mais completa ilusão de todas as paixões é a alegria. Nunca o Sábio falou com mais acerto do que quando disse no Eclesiastes "que considerava o riso um erro e a alegria uma mentira" - Risum reputavi errorem; et gaudio dici: Quid frustra deciperis? E na verdade, não devemos acreditar que este lugar de confusão, onde os bons vivem misturados com os maus, possa ser a mansão das verdadeiras alegrias. "Outros são os bens que Deus deixa para a consolação dos cativos; outros os que Ele reservou para fazer a felicidade dos Seus filhos" - Alind solatium captivorum, aliud gaudium liberorum. Mas, para dar-vos ideia mais nítida dos verdadeiros prazeres que inebriam os bem-aventurados, filosofemos um pouco, antes do mais, sobre a natureza das alegrias do mundo. Que me importa, diz o epicurista, a causa da minha alegria, se eu estou contente? Verdade ou erro, é sempre doloroso repelir a alegria, venha ela donde vier. Mas o Espírito Santo afirma pelo contrário quanto é insensato aquele que se alegra com coisas vãs, e diz ser abandonado de Deus aquele que se alegra com coisas más. Finalmente acha desgraçado aquele que só ama os prazeres condenados ou desprezados pela razão. Acima de tudo, pois, devemos ponderar donde nos vem a alegria e qual o seu objeto. E, em primeiro lugar, cristãos, todas as alegrias derivadas dos bens da terra são cheias de ilusão e de vaidade. E é por isso que, nas questões terrenas, o mais sensato é aquele que menos se deixa arrebatar pela alegria. Ouvi a bela sentença pronunciada pelo Eclesiástico: "O homem inconsiderado ri constantemente com ruído; e o sábio apenas ri com moderação" - Fatuus in risu exaltatvocem suam, vir autem sapiens vix tacite ridebit (Eclesiastes, 21, 23). Efetivamente, ao ver-se um homem impulsivo que, deslumbrado ou pela sua posição ou pela sua fortuna, se entrega à alegria sem conter-se, nós ficamos convencidos de que é uma alma sem ponderação, e que a sua leviandade o há de tornar constante joguete de todas as ilusões do mundo. O sábio, pelo contrário, pensando constantemente nas misérias e vaidade da vida humana, nunca se persuade de que possa haver na terra nenhum verdadeiro motivo de alegria. É por isso que ele ri, tremendo, como dizia o Eclesiástico, isto é, suprime ele próprio a sua indiscreta alegria por uma certa altivez de alma que nega a sua fraqueza e que, conhecendo ter nascido para os bens celestes, se envergonha de sentir tão forte atração para as coisas desprezíveis. Depois de termos visto a origem da nossa alegria, devemos considerar para onde nos leva ela. Porque, ó prazeres, aonde nos conduzis? A que esquecimento de Deus e de nós mesmos? Não foram estes desregrados prazeres os conselheiros de todos os crimes, os nocivos aduladores e infiéis conselheiros que todos os dias em nós arruínam a alma, o corpo, a glória, a fortuna, a religião e a consciência? Porque qual é o seu principio universal? Não é que folguemos com o que não devemos? A razão, portanto, obriga-nos a desconfiar dos prazeres. Finalmente devemos meditar pobre a duração da alegria. Porque Deus, que é a própria verdade, não permite o duradouro reinado da ilusão. É ele, diz o Rei-Profeta, quem se compraz, para punir o voluntário erro dos que se comprazem em ser enganados, "em aniquilar na sua santa cidade todas as felicidades imaginárias e quem, para punir o voluntário erro dos que se comprazem em ser enganados, faz suceder males pungentemente reais à passageira mentira das suas fantasias: Velut somnium sargentium, Domine, in civitate tua imaginem ipsorum ad nihilum rediges (Salmo 72, 20). Concluamos, pois, cristãos, que, se a felicidade é uma alegria, é só quando fundada na verdade, gaudium de veritate, como a definiu Santo Agostinho. Assim é a alegria dos bem-aventurados não só uma alegria, mas alegria sólida e real, cuja essência é a verdade, cujo efeito é a santidade, cuja duração é a eternidade. Assim é a alegria dos bem-aventurados cuja plenitude é infinita, cujos transportes são inefáveis e os excessos absolutamente divinos. Afastemos do pensamento as alegrias sensuais que perturbam a razão e impedem a alma de se possuir a si própria. Aqui é vivamente impressionada no mais profundo do seu íntimo, no que tem de mais delicado e sensível; completamente fora de si; e toda de si própria, possuindo Aquele que a possui e tendo a razão sempre atenta e satisfeita. Mas, meus irmãos, devo desistir de publicar tais maravilhas, se o Espírito Santo tão vivamente nos representa a triunfante alegria da Jerusalém celeste pela boca do profeta Isaías: "Diz o Senhor: criarei um novo céu e uma nova terra e todas as angustias serão esquecidas e nunca mais voltarão" - Oblivioni traditae sunt angustiae priores, et non ascendent super cor (Isaías 65, 16 seguintes). "Mas ficareis extasiados e a vossa alma mergulhará na alegria durante toda a eternidade nas coisas que eu crio" - Gaudebitis ei exultabitis usque in sempiternum in his quae ego creo Porque farei que Jerusalém viva no êxtases e que o seu povo viva todo na alegria. Et exultabo in Jerusalem, et gaudebo in populo meo. Eis como o Espírito Santo nos representa as alegrias dos seus filhos bem-aventurados. Depois, voltando-se para os que estão na terra, na Igreja Militante, convida-os nestes termos a tomar parte nos transportes da santa e triunfante Jerusalém: "Congratulai-vos com ela, diz ele, ó vós que a amais, congratulai-vos com ela em grande alegria e sugai com ela o úbere das suas consolações, para que tenhais abundantes delícias, porque o Senhor disse: Farei correr sobre ela um rio de paz, e esta torrente a trasbordará com abundancia; todas as nações da terra tomarão parte nela e eu vos consolarei com a mesma ternura da mãe que acaricia o filho" - Laetamini cum Jerusalem, et exultate in ea, omnes qui diligitis eam; gaudete cum ea in gaudio... ut sugatis et repleamini ab ubere consolationis ejus, ut mulgeatis et deliciis affluatis ab omnimoda gloria ejus. Quia haec dicit Dominus: Ecce ego declinabo super eam quasi fluvium pacis et quasi torrentem inundantem gloriam gentium... Quomodo si cui mater blandiatur, ita ego consolabor vos (Isaías 65, 17 seguintes). Qual seria o coração insensível a estas, ternuras divinas? Aspiremos a estas alegrias celestes, as quais serão tanto mais tocantes quanto serão acompanhadas por um repouso perfeito, porque não as poderemos nunca perder. Deixemos, meus irmãos, todos os nossos prazeres vãos. Quão diferentes não são os desejos dos doentes! E é a doença quem tem desejos: a saúde volta e todos esses apetites desregrados se dissipam. Não julguemos que a felicidade é a satisfação dos irregulares apetites despertados pela doença. Que tem o mundo de comparável? Mas, se ele se vangloria de vos dar alegrias, nunca se atreve a prometer-vos repouso. É que isso é a herança dos Santos, é o quinhão dos bem-aventurados, e é tratando deste ponto que eu vou concluir. TERCEIRO PONTO O eterno repoiso dos bem-aventurados foi-nos figurado logo no princípio do mundo, quando Deus, tendo tirado do nada as suas criaturas e tendo-as disposto tão bem em seis dias, estabeleceu e santificou o repouso no dia em que, como diz a Sagrada Escritura, descansou de toda a sua obra (Gênesis, 2, 2). Sobejamente sabeis, cristãos, que Deus, fazendo tudo sem esforço, não tem necessidade de descansar depois do trabalho. E sabeis também que Deus, consagrando o dia de descanso, não cessou depois de trabalhar incessantemente. "Meu Pai, diz o Filho de Deus, trabalha constantemente" (São João 5, 17). E, se ele por um momento deixasse de sustentar o universo pela força do seu poder, o sol afastar-se-ia do seu caminho, o mar transporia todos os seus limites, a terra cairia do seu eixo; em suma, toda a natureza se afundaria, de golpe, não digo no velho caos, mas na sua total ruína, no não-ser. Quando, pois, aprouve a Deus santificar o sétimo dia, e dele fazer dia de descanso, quis fazer-nos compreender que, depois da ação contínua pela qual desenvolve toda a ordem de séculos, designou um dia que é o dia da eternidade no qual ele repousará com todos os seus eleitos: ou, para melhor nos exprimirmos, no qual os seus eleitos repousarão eternamente nele mesmo. Tal é o misterioso sabbat, o dia de repouso reservado ao povo de Deus, segundo a doutrina do Apóstolo: Itaque relinquitur sabbatismus populo Dei, diz a profunda Epístola aos Hebreus (Hebreus 4, 9). A base deste repouso dos predestinados é que a eternidade lhes fica assegurada. Porque, meus irmãos, o Eterno medita coisas eternas e toda a ordem dos seus conselhos, por diversas revoluções e por diversas mudanças, deve terminar finalmente num estado imutável. É por isso que depois destes dias de fadiga, destes dias do antigo Adão, dias penosos, laboriosos, de gemidos e de penitência, em que devemos subsistir e ganhar o pão da vida à custa do nosso suor, seremos conduzidos à cidade santa e lá o Espírito Santo nos assegura "a que repousaremos de todas as dores" (Apocalipse 14, 13). Foi atendendo à eternidade desta cidade triunfante que São Paulo a chamou "uma cidade firme e que tem uns alicerces" - fundamenta habentem civitatem (Hebreus 11, 10) Não há alicerces na terra. Quando julgamos repousar, arrebata-nos o tempo, e somos presa da nossa própria duração. Se fixardes um pouco os olhos, haveis de ver tudo em movimento ao redor de vós. Girará tudo, ou giraremos nós? Tudo gira e nós todos juntos giramos, porque a figura deste mundo é passageira (1 Coríntios 7, 31). E, se não sentimos sempre esta violência, é porque somos arrebatados com tudo o mais sob a mesma rapidez. Onde estão, pois, a solidez e a consistência? Em vós, ó santa Sião, cidade eterna, "cujo arquiteto e fundador é Deus" - cujas artifex et conditor Deus (Hebreus 11, 10). Em vós é que está a consistência, porque a Sua mão soberana é o nosso imutável amparo, e o Seu poder invencível é o vosso inabalável alicerce. "Esforcemo-nos, pois, diz o Santo Apóstolo, por entrar nesse eterno repouso" (Hebreus 4, 11). Qual de nós não deseja o repouso? E aquele que lida em sua casa, que trabalha no campo, e o que navega nos mares, e o que negocia na terra, e o que serve nos exércitos, e o que intriga nas cortes, todos aspiram a algum repouso. Mas nós queremo-lo honesto e sobretudo certo. Se é assim, cristãos, não o procureis na terra. "Levantai-vos, caminhai sem descanso, porque aqui não pode haver repouso para vós", diz o profeta Miquéias (Miquéias 2, 10). Raciocinai um pouco comigo sobre este importante assunto, ou antes metei a mão na vossa própria consciência, e, enquanto eu falar, consultai a vossa experiência. Ponho de parte palavras sonoras, fujo aos grandes movimentos da arte oratória para convosco ponderar friamente, as coisas de ânimo seguro. Nesta inconstância das coisas humanas e no auge de tantas e tão violentas agitações, como as que ou nos perturbam, ou ameaçam perturbar-nos, julgo verdadeiramente feliz quem pode ter um refugio, porque, sem ele, cristãos, nós estamos por demais sujeitos aos ataques da sorte para podermos ter algum descanso. Por exemplo, viveis vós aqui na Côrte. Sem devassar os vossos negócios particulares, eu quero crer que a vida se vos afigure suave. Mas não vos esquecestes tanto das procelas convulsas deste mar, que vos arrojeis a confiar cegamente nesta bonança. E eis a razão porque não conheço homem sensato que não ambicione viver longe do bulício, olhando essa vida tranquila como um porto em que se abrigue, quando for batido por ventos adversos. Mas esse abrigo que há tanto tempo procurais é ainda duvidoso e, por mais ampla que seja a vossa previdência, nunca podereis combater os caprichos da fortuna. Julgareis estar, defendidos por todos os lados, e o vosso edifício pode desabar de repente. Se os alicerces são sólidos pode vir de cima um raio e fulminá-lo de alto a baixo. Quero eu dizer em linguagem simples, sem figuras de retórica, que por muitos modos nos assaltam e penetram as desgraças para podermos estar prevenidos e defendidos por todos os lados. Nada do que é terreno e em que confiamos, quer sejam os filhos, quer sejam as posições e os cargos, é seguro, e até deixa de poder dar-nos uma infinita amargura. Seríamos excessivamente ignorantes da história da vida humana, se ainda precisássemos de provas para reconhecermos esta verdade. Estabeleçamos, pois, para nós que o que pode acontecer e mil vezes temos visto suceder aos outros, também nos acontece a nós mesmos. Porque não há dúvida de que, apesar dos vossos títulos, não tendes salvaguarda contra a fortuna, pois não há privilégios nem isenções contra as misérias humanas. Julguemos, portanto, possível que a esperança da nossa fortuna pode ser arruinada por qualquer desgraça, que a nossa família pode ser infelicitada por qualquer desastrosa morte, que a nossa saúde pode ser destruída por uma doença cruel. Se não tiverdes um lugar onde encontreis abrigo, sofrereis com dureza o furor dos ventos e das tempestades. Mas onde encontrareis esse abrigo? Percorrei tudo à volta com o olhar. O dilúvio inundou a terra inteira. Toda a superfície dela está coberta de males. Não tereis onde pôr o pé enxuto. É-vos, pois, necessário procurar o meio de sair de todo o ambiente do mundo. É Verdade que há uma parte de nós mesmos em quem a fortuna não pode exercer a sua força. É o nosso espírito, a nossa razão, a nossa inteligência. E só por nossa culpa, dela, que era livre e independente, fizemos existência interessada nos bens mundanos, e por isso a submetemos com tudo o mais aos golpes da fortuna. Imprudentes! A própria natureza ensinou aos animais perseguidos, quando o corpo está descoberto, a esconderem a cabeça, e nós, cuja parte principal estava naturalmente livre dos insultos de todos, fomo-la descobrir, expondo a todos os golpes o que era inacessível e invulnerável! Que resta, portanto, agora senão, arrancando do meio do mundo esta parte imortal, irmos dar-lhe morada na cidade Santa que Deus nos preparou? Talvez julgueis não poderdes ir viver, onde não entrais e que em vão vos falo da terra e da segurança do porto enquanto vogais no meio das ondas. Pois quê! Não vedes aquele navio que, afastado do seu porto, e batido pelos ventos e pelas ondas, voga num mar desconhecido! Se os vendavais o sacodem, se as nuvens toldam o sol, o piloto hábil, temendo esbarrar com os cachopos, manda lançar a ancora. E essa ancora dá ao navio a consistência, e a terra no meio das ondas é uma espécie de porto seguro na imensidade e no tumulto do oceano. Assim, diz o Santo Apóstolo: "Firmai no céu a vossa esperança que servirá para a vossa alma como uma âncora firme e segura" - quam sicut anchoram habemus animae tutam ac firmam (Hebreus 6, 19). Lançai essa sagrada âncora cujas garras nunca se quebram na bem-aventurada terra dos vivos e podeis crer que, encontrando vós um fundo tão sólido, essa âncora servirá de alicerce para o vosso navio até que ele chegue ao porto. Mas, meus senhores, para termos esperança, é preciso termos fé. E por isso todos os dias nos dizem: Dai-me a fé, e eu deixo tudo. Convencei-me sobre a vida futura e por uma esperança tão bela troco tudo quanto amo. Mas que dizes tu, homem? Poderás acreditar que tudo em nós é corpo, matéria? Pois quê! Tudo morre e se sepulta? O túmulo iguala-vos aos animais irracionais e não tendes dentro de vós nada que lhes seja superior? Bem sei, meus senhores, que tendes o espírito cheio de tantas belas doutrinas. São dum Montaigne - digo-vos o nome do autor delas - foi ele quem vo-las ensinou. Dizem-vos elas que os animais irracionais são preferíveis ao homem, que o seu instinto vale mais do que a vossa razão, que a sua natureza simples e inocente - palavras de Montaigne - é preferível às vossas astúcias e malícias. Mas dize-me, filósofo, que tão ironicamente te ris do homem, porque julgas ser alguma coisa, achas de nenhuma importância conhecer Deus? Achas nulo conhecer uma natureza primaria, adorar a sua eternidade, admirar a sua omnipotência, louvar a sua sabedoria, abandonarmo-nos à sua providencia, obedecer à sua vontade? É isto tão pouco que não nos distinga dos animais irracionais? Têm então esperado baldadamente em Deus todos os Santos cuja memória gloriosa nós hoje honramos? E só os epicuristas é que têm conhecido bem o que é o homem? Não vedes antes que, se uma parte de nós depende da natureza concreta, a parte que conhece e ama a Deus, que nisso a Ele é semelhante, porque Ele mesmo reconhece e ama, necessariamente depende de princípios mais elevados? Oh! Não! Podem os elementos pedir-nos que lhes restituamos o que nos deram, porque Deus pode pedir-nos a alma que Ele criou à Sua semelhança! Devem morrer todos os pensamentos que dedicamos às coisas mortais, mas o que nasceu digno de Deus tem de ser imortal como Ele. Portanto, homem sensível, que não renuncias à vida futura senão por temeres os seus justos suplícios, não podes esperar o nada. Não, não o esperes. Quer o queiras, quer não, a tua eternidade é segura. E, na verdade, só de ti depende torná-la feliz. Mas, se tu recusas essa dádiva divina, espera-te uma outra, eternidade e tu serás digno dum mal eterno por teres perdido voluntariamente um bem que eterno podia ser. Ouvis estas verdades? Que réplica lhes dais? Julgais-vos invencíveis com os vossos raciocínios frívolos e com as vossas forçadas zombarias? Murmurai e zombai quanto quiserdes. O Omnipotente tem as Suas leis imutáveis apesar de murmúrios, sarcasmos e ditos chistosos e Ele vos fará compreender quando lhe aprouver, o que vos recusais a acreditar agora. Ide, correi todos os perigos, ostentai bravura e intrepidez, arriscando todos os dias a vossa eternidade. Mas vós, cristãos, temei cair nas suas terríveis mãos. Remediai as desordens das consciências gangrenadas. Pecadores, há já muito tempo "que a dilatação, das vossas chagas não tem ligadura, que as vossas velhas feridas não foram friccionadas por nenhum balsamo" - Vulnuus et livor, et plaga tumens; non est circumligata, nec curata medicamine, neque fota oleo (Isaías 1, 6). Procurai médico que vos trate. Procurai um confessor que vos faça a ligadura duma salutar disciplina. Sejam os seus conselhos o vosso óleo. Seja a graça do Sacramento um benigno bálsamo para as suas chagas. Ou, se vos aproximastes de Deus, se fizestes penitência nesta grande solenidade, ide e não mais pequeis! (São João 8, 11). Pois quê! Esperais tudo só desta vida! Ah tais pensamentos não são inspirados pela razão, e sim pelo despeito e pelo desespero. Se assim fosse, cristãos, se todas as nossas esperanças se limitassem ao mundo, teríamos então alguma razão em nos julgarmos inferiores aos animais irracionais. As nossas doenças, as nossas angústias, as nossas loucuras ambiciosas, as nossas tristes e desgraçadas previsões, que precedem os males, em vez de lhes impedirem o curso, levariam as nossas misérias ao seu auge. Despertai, pois, ó filhos de Adão, mas despertai ó filhos de Deus, pensando na nossa origem. Senhor, seria aborrecido de Deus e dos homens quem não desejasse a nossa glória mesmo nesta vida e quem se recusasse a concorrer para ela com todas as suas forças por meio de serviços leais. Mas eu seria desleal e traidor para com Vossa Majestade, se eu limitasse os meus votos a essa vida perecedoura. Vivei, pois, sempre feliz, sempre ajudado da fortuna e da vitória sobre os vossos inimigos, como o pai dos vossos povos: mas vivei sempre bem, sempre justo, sempre humilde e sempre piedoso, sempre devotado à religião e protetor da Igreja. Assim vos veremos sempre rei, sempre augusto, sempre coroado, neste mundo e no outro. E é a felicidade que vos desejo com o Pai, com o Filho e com o Espirito Santo. Disse. Dia de Finados - 3º Sermão da Ressurreição Final Ressurreição Final SUMÁRIO Exordio. A morte é obra do pecado e do demônio. Jesus Cristo, destruindo o pecado, triunfa da morte. Proposição, divisão. Nós devemos concorrer para a operação da graça que nos ressuscita pela palavra, pelo corpo e pelo espírito de Jesus Cristo. 1º Ponto - Dirigem-se duas palavras aos mortos, porque há duas partes no homem e ambas têm a sua morte: assim como o corpo morre quando perde a sua alma, assim o espírito morre quando perde o seu Deus. Deus há de reconstituir o corpo que serviu a alma e há de reuni-los tomo o requer a sua sabedoria. 2º Ponto - O corpo de Jesus Cristo é o modelo, o penhor e o princípio da ressurreição do nosso corpo. 3º Ponto - O Espírito Santo habita em nossas almas. Há como que um sagrado enlace entre o nosso espírito e o espírito de Deus. Nesta união o corpo acompanha a alma como sendo uma parte do seu dote. O espírito que ressuscitou Jesus Cristo há de ressuscitar-nos também. Peroração - Desprendamo-nos da vida, da saúde e da vaidade, e morreremos sem aflição para ressuscitar com glória. O último inimigo a ser destruído há de ser a morte (1 Coríntios 15, 26). Quando for volvida a ordem dos séculos e os mistérios de Deus consumados e as Suas promessas cumpridas e o Seu Evangelho anunciado por toda a terra; quando o numero dos nossos irmãos estiver preenchido, isto é, quando a santa sociedade dos escolhidos estiver completa, e o corpo místico do Filho de Deus composto de todos os Seus membros e as celestes legiões, em que a deserção dos anjos rebeldes fez vagar tantos lugares, inteiramente restabelecidas por esta nova recruta; então será tempo, ó Cristãos, de destruir completamente a morte, e de a relegar para sempre para os infernos donde saiu: Et infernus et mors missi sunt in stagnum ignis (Apocalipse 20, 14) como está escrito no Apocalipse. Está escrito que "Deus não fez a morte (Sabedoria 1, 13) mas que ela é que entrou no mundo por inveja do demônio" (Sabedoria 2, 24) e pelo pecado do homem. Porque o homem, consentindo no pecado, sujeitou-se à morte; do mesmo modo, contra a intenção do Criador, o homem, que tinha saído imortal das suas santas e divinas mãos, tornou-se mortal e frágil pela malicia do demônio. Mas, quando o Salvador vier à terra para desfazer a obra do demônio, há de destruir primeiramente o pecado; e depois, por uma consequência necessária duma vitória tão ilustre e tão gloriosa, abolirá também o poder e o império da morte. É por isso que o Apóstolo exclama: "Ó morte, onde está a tua vitória?" - Ubi est, mors, victoria tua? (1 Coríntios 15, 55). Mas é preciso aqui notar que, enquanto houver na terra algum vestígio do pecado, a morte não deixará de destruir tudo e há de exercitar sempre no gênero humano o seu duro e tirânico poder (A sua insuportável tirania). Na consumação dos séculos, porém, depois de ser destruído na terra o reino do pecado, e ser dissipada toda a pompa (glória) do mundo, e finalmente depois de ser consumido tudo o que se eleva contra a glória (ciência) de Deus, é que Jesus Cristo há de então acometer a Sua última inimiga, que é a morte; e, tirando-lhe todos os Seus filhos das mãos, liberta-los-á para sempre dessa cruel, dura e insuportável tirania: (Liberta-los-á para sempre da sua tirania. Novissima inimica destruetur). Ainda que este triunfo de Jesus Cristo sobre a morte só se realize no fim dos séculos, ele começa desde a vida presente; e no meio deste século de corrupção, prepara-se a obra da nossa imortalidade. Que devemos fazer para concorrer à operação da graça que nos ressuscita? A Escritura propõe-nos três princípios de ressurreição: a palavra de Jesus Cristo, o corpo de Jesus Cristo e o espírito de Jesus Cristo. A palavra de Jesus Cristo: Venit hora in qua omnes qui sunt in monumentis audient vocem Filii Dei (São João 5, 28). O corpo de Jesus Cristo: Qui manducat meam carnem habet vitam aeternam, et ego resuscitabo eum in novissimo die (São João 6, 55). O espírito de Jesus Cristo: Quod si spiritus ejus qui suscitavit Jesum a mortuis habitat in vobis, qui suscitavit Jesum a mortuis vivificabit et mortalia corpora vestra propter inhabitantem Spiritum ejus in vobis (Romanos 8, 11) O que nos pede esta palavra? O que devemos a este corpo? O que exige de nós este espirito. PRIMEIRO PONTO Nós vemos no Evangelho duas palavras do Filho de Deus que são dirigidas aos mortos, uma no fim dos séculos e outra durante o curso do século presente. Escutai o que ele diz no capítulo 5 de São João: Amen, amen dico vobis, quia venit hora, et nunc est, quando mortui audient vocem Filii Dei, et qui audierint, vivent (São João 5, 25). "Chega o momento, e ei-lo agora" Notai que esta palavra não se refere à consumação dos séculos. Ele primeiro diz que os mortos hão de ouvir a voz do Filho de Deus: "O que ouvir a minha palavra e crer no que me enviou", transiet de morte ad vitam. Mas ainda aqui há outra palavra: (No julgamento) "Chega o momento"; e já não diz: "Ei-lo agora", "porque todos os mortos hão de ouvir a sua voz, e os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida, e os que praticaram o mal, para a ressurreição da condenação" (São João 5, 24. 28-29). São estas, portanto, as duas palavras dirigidas aos mortos, porque há duas espécies de mortes, ou, para melhor dizer, há duas partes no homem, e ambas têm a sua morte. "A alma, diz Santo Agostinho, é a vida do corpo, e Deus é a vida da alma" Assim como o corpo morre quando perde a sua alma, assim o espírito morre quando perde o seu Deus. Esta morte não nos impressiona, porque não é sensível; e todavia, Cristãos, se soubéssemos penetrar no conhecimento das coisas, esta morte dos nossos corpos, que nos parece tão cruel, bastava para nos fazer compreender quão mais terrível é o pecado. Porque, se é uma grande desventura perder o corpo a sua alma, quanto maior não é perder a alma o seu Deus? E se nos sentimos horrorizados ao ver este corpo frio e insensível, caído por terra, sem energia e sem movimento, quão mais horrível não é contemplar a alma racional, cadáver espiritual e túmulo vivo de si própria, que, ao ser separada de Deus pelo pecado, já não tem vida nem sentimento a não ser para eternizar a sua morte? É, portanto, a estes mortos espirituais, é às almas pecadoras que Jesus Cristo dirige a Sua voz para as chamar à penitência: Venit hora, et nunc est. E se me perguntardes porque é que ele dirige ainda no fim dos séculos uma segunda palavra aos mortos que jazem nos túmulos, eu vo-lo direi finalmente, pois demais o sei eu. A alma pecou pelo ministério e até de algum modo pela instigação do corpo, e por isso é justo que ela seja punida com o seu cúmplice. A alma também se serviu, nas boas obras, do ministério do corpo que ela cuidou em dominar, a fim de que os nossos membros, como diz o Apóstolo (Romanos 6, 19) servissem à justiça divina e suportassem o glorioso jugo de Jesus Cristo e do Evangelho. Por consequência, este corpo, que participou de todos os labores, também deve ser chamado como um companheiro fiel à sociedade da glória. Ou se quisésseis que vos desse uma razão mais sublime e mais digna ainda da majestade do Salvador, era justo que o Filho de Deus depois de tomar corpo e alma e de unir inteiramente o homem à Sua divina pessoa, fizesse sentir o Seu poder ao corpo e a alma, e submetesse completamente o homem à autoridade do Seu tribunal. É por isso que, depois de ter falado aos mortos espirituais para lhes ressuscitar as almas, fala no fim dos séculos aos mortos que jazem nos sepulcros, para os fazer sair de lá e lhes restituir a vida (Para lhes ressuscitar os corpos). Et qui audierint, vivent. Quando, pois, chegar esta hora derradeira, em que Deus resolveu acordar os escolhidos do seu sono, baixará uma voz do céu e da própria boca do Filho de Deus, que ordenará aos mortos que ressuscitem: "Ossos áridos, ossos secos, ouvi a palavra do Senhor" - Ossa arida, audite verbum Domini (Ezequiel 37, 4). Ao som desta voz omnipotente que num momento se fará ouvir do oriente ao ocidente, e do setentrião ao meio-dia, os corpos jacentes, os ossos secos, a cinza e o pó frios e insensíveis abalar-se-ão no vácuo dos seus túmulos; toda a natureza começará a agitar-se; e o mar e a terra e os abismos preparar-se-ão para entregar os seus mortos que se julgava tivessem sido tragados como verdadeiras presas, mas que apenas foram recebidos como um depósito para serem entregues fielmente à primeira ordem. Porque, meus irmãos, "Jesus, que ama os seus, e os ama até ao fim" (São João 13, 1) terá cuidado em juntar de todas as partes do mundo os seus restos sempre preciosos para Ele. Não vos admireis de tão grande efeito; pois dele se escreveu, que "sustenta todo o universo pela sua palavra eficacíssima" (Hebreus 1, 3) Toda a vasta extensão da terra e as profundezas dos mares e toda a imensidade do mundo, não são mais que um ponto para Ele. Com o Seu dedo sustenta os fundamentos da terra, o universo inteiro está ao Seu alcance. E Ele, que muito bem soube achar os nossos corpos no próprio nada donde os tirou pela Sua palavra, não os deixará escapar ao Seu poder no meio das Suas criaturas. Porque esta matéria dos nossos corpos nem por isso lhe deixa de pertencer por ter mudado de nome e de forma; portanto Ele bem saberá juntar os restos dispersos dos nossos corpos, que sempre lhe são caros, porque uma vez os uniu a uma alma que representa a Sua imagem e que Ele encheu com a Sua graça, e são uns restos preciosos que estão sempre guardados pela Sua mão poderosa em algum canto do universo onde a lei das transformações os arremessou. E, quando a violência da morte os tivesse reduzido ao nada, Deus nem por isso os teria perdido. Porque "ele chama o que não existe com a mesma facilidade com que chama aquilo que existe" - Vocans ea quae non sunt, tanquam ea quae sunt (Romanos 4, 17) E Tertuliano tem razão em dizer que "tanto lhe pertence o nada como tudo" - ejus est nihilum ipsum, cujus totum. Depois de ter assim restabelecido os corpos dos seus predestinados numa integridade perfeita, reuni-los-á às suas almas santas e eles voltarão à vida. Em seguida, abençoará esta união, para não mais se dissolver, e torná-los-á imortais. E fará com que esta união seja tão íntima que os corpos hão de participar das honras de que gozam as almas e, por consequência, vê-los-emos gloriosos. Tais são os magníficos presentes que Jesus Cristo fará neste dia aos Seus escolhidos pelo poder da Sua palavra. Fá-los-á sair dos túmulos para lhes dar a vida, a imortalidade e a glória; e a morte deixará de existir, e serão abolidos todos os sinais de corrupção: Novissima inimica destruetur mors. Ó poder de Jesus Cristo! Ó morte gloriosamente vencida! Ó ruínas do gênero humano divinamente reparadas! Mas, irmãos meus, antes da morte ser aniquilada, é necessário que o pecado seja destruído, porque é pelo pecado que a morte tem reinado na terra. Lembrai-vos, pois, meus irmãos, do que dissemos no princípio, que não foi Deus quem fez a morte; pelo contrário, assim como Ele criou a alma racional para habitar no corpo humano, assim queria no princípio que a Sua união fosse indissolúvel; e é talvez neste sentido que se deve tomar esta palavra do Salmista: Corpus autem aptasti mihi: (Salmo 39, 1; Epístola aos Hebreus, 10, 5) "Vós haveis-me adaptado um corpo" Era como se ele próprio dissesse ao Criador: Ó Senhor, Vós fizestes-me a alma duma natureza bem diferente do corpo, porque depois de terdes feito este corpo de lama, isto é, dum barro amassado, não foi do barro, nem da água, nem da mistura duma coisa com outra, nem finalmente de parte alguma da matéria, que haveis tirado a alma que juntastes a esta massa para a vivificar. Foi de Vós mesmo, foi da Vossa boca que a fizestes sair; destes um sopro de vida, e o homem ficou animado, não pela disposição dos órgãos, nem pelo temperamento das qualidades, nem pela distribuição dos espíritos vitais, mas por um outro princípio de vitalidade que Deus tirou do Seu próprio seio por meio duma nova criação (operação) inteira-mente diferente da que saiu do nada e que formou a matéria. E se esta teologia vos não enfada, direi ainda, Cristãos, que Deus fizera esta alma duma natureza imortal; porque, pondo de parte as outras razões que nos mostram esta verdade, basta considerar a que nos dá a Escritura Sagrada, e é que Deus a fez à Sua imagem e que ela participa da vida de Deus. Vive em certo modo como Ele, porque vive de razão e de inteligência, e Deus tornou-a susceptível de O amar e de O conhecer, como Ele próprio Se ama e Se conhece. Ora, sendo feita à Sua imagem e estando ligada racionalmente à Sua imortal verdade, a Sua existência não deriva da matéria nem ela está sujeita às suas leis; de maneira que não morre, seja qual for a alteração que sofra, nem pode voltar ao nada, a não ser que aquele que a tirou de lá e a fez à Sua imagem, a chame a si, como sendo princípio seu, abra as mãos de repente e a deixe cair no abismo. Todavia, como ela está na última ordem das substâncias inteligentes, é nela que se fará a união entre os espíritos e os corpos. Deus fez substâncias separadas dos corpos, porque Ele pode fazê-las em diversos graus, isto é, mais ou menos perfeitas; de maneira que, se formos descendo na escala da imperfeição, poderemos enfim chegar a alguma substância, que seja tão imperfeita, que se encontre de algum modo nos confins dos corpos e seja de natureza a poder unir-se a eles. Continuando a descer gradualmente do perfeito para o imperfeito, chega-se sucessivamente aos extremos, onde, como nos confins, o superior e o inferior se juntam e se tocam. Porque eu creio que se pode compreender facilmente que tudo se acha disposto na natureza gradualmente, e que o primeiro princípio gera a existência e assim se vai propagando a pouco e pouco. Portanto a alma racional há de encontrar-se naturalmente unida a um corpo: Corpus autem aptasti mihi. Mas isto de adaptar um corpo tem uma significação mais particular. Porque é preciso convencermo-nos de que a alma racional fala e diz ao seu Criador: Assim como me haveis feito imortal, criando-me à Vossa imagem, assim me haveis tão perfeitamente adaptado um corpo, que a nossa paz e a nossa união seriam eternas e invioláveis, se o pecado havido entre dois entes não tivesse perturbado esta celeste harmonia. Porque foi que o pecado separou duas coisas tão bem irmanadas? É fácil compreendê-lo por esta excelente doutrina de Santo Agostinho. Porque, diz ele, há uma lei imutável da justiça divina que diz que o mal que escolhemos seja punido por um mal que odiamos. De maneira que foi uma ordem justíssima esta que prescreveu que a morte nos acompanhasse contra nossa vontade, em virtude de termos escolhido o pecado, e que "a nossa alma fosse obrigada a abandonar o corpo como justa punição do abandono a que ela lançou a Deus por uma depravação voluntária" - Spiritus, quia volens deseruit Deum, deserit corpus invitus. Diz o Apóstolo, meus irmãos, que foi desta maneira que "entrou o pecado neste mundo, e, pelo pecado, entrou a morte também" (Apocalipse 3, 1) É por isso que o Filho de Deus só destrói a morte depois de haver destruído o pecado; e, antes de dirigir aos mortos, no fim do mundo, a palavra que os ressuscita, dirige no decorrer dos séculos a todos os pecadores a sua palavra, que os converte e que os chama à penitência. É esta palavra que vos pregamos. Ó mortos, é pois a vós que eu falo, não a esses mortos que jazem nos túmulos, e descansam em paz e com esperança debaixo desta terra abençoada, mas a esses mortos que falam e que ouvem, "que se chamam vivos, e que na realidade são verdadeiros mortos" Nomen habes quod vivas, et mortuus es (Apocalipse 3, 1) que têm a morte na alma, porque têm nela o pecado. Escutai, ó mortos espirituais: é Jesus Cristo quem vos falia para ressuscitardes com Ele. "Porque quereis morrer, ó casa de Israel?" (Ezequiel 33, 11). Sai dos vossos túmulos, deixai os vossos maus hábitos. É hoje o dia de eu vos exaltar; mas antes de o fazer, devo primeiro humilhar-vos! Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur. Deus ameaça-os de os destruir, e são eles próprios que se destroem, destruindo até a raiz as suas inclinações corrompidas: Subvertitur plane, dam calcatis deterioribus studiis ad meliora convertitur; subvertitur plane, dum purpura in cilicium, afluentia in jejunium, Iaetitia mutatur in fletum. De que vos lamentais, Senhor? Não dissestes que Nínive havia de ser destruída? E foi-o realmente na ocasião em que emendou os es ravios da vontade. "Nínive acha-se verdadeiramente destruída, porque o luxo dos seus trajes transformou-se num habito e num cilício, a superfluidade dos seus banquetes num jejum austero, a alegria dissoluta das suas devassidões nos santos gemidos da penitencia" Ó cidade utilmente destruída! E tu, ó Paris, cujo orgulho se não pode abater, e cuja vaidade se continua sustentando apesar de tantas coisas que a deveriam deprimir, quando te verei destruída? Quando ouvirei esta feliz nova: O reino do pecado está destruído completamente; as suas mulheres já não lutam contra o pudor, e os seus filhos já não morrem pelos prazeres mortais nem perdem a alma por causa deles; essa impetuosidade, esses arrebatamentos, esse grito dos corações lascivos está suprimido; os que atentaram no terreno que outros andaram pisando, etc.; o bem de outrem... et adhuc in arca tua ignis thesauri iniquitatis qui devorant te (Miquéias 6, 10) Tu julgas que os tens de posse pelo uso de tantos anos; e afinal tudo está destruído. Mas levantai-vos, saí desses tribunais, verdadeiros túmulos salutares dos penitentes: aproximai-vos da mesa dos fiéis, acordai para a vida, vinde receber o verdadeiro pão que Moisés não pôde dar aos nossos pais; (aos israelitas, São João, 6, 32) vinde receber o corpo de Jesus, que é o segundo princípio de ressurreição e de vida. SEGUNDO PONTO O corpo de Jesus Cristo é em primeiro lugar o modelo da nossa ressurreição. Um arquiteto que constrói um edifício propõe-se um plano e um modelo; Jesus Cristo propõe-se o seu próprio corpo: Reformabit corpus humilitatis nostrae configuratum corpori claritatis suae (Filipenses, 3, 21). Em segundo lugar é o penhor: Si mortui non resurgunt neque Christus resurrexit (1 Coríntios 15, 13). "As primícias da ressurreição": Primitiae dormientium (1 Coríntios 15, 20). "O grão de trigo": Sed generis humani una in fini saeculi messis assurget; tentatum est experimentum in principali grano. Era terceiro lugar é o principio de incorrupção. A corrupção pelo sangue e do mesmo modo a imortalidade: São Gregório de Nisse e São Cirilo de Alexandria. Porque é então que é preciso morrer e estar sujeito à corrupção? Se é carne de pecado, está cheia de enfermidades e de doenças. Ide aos hospitais durante estes dias santos e contemplai o espetáculo da enfermidade humana; ali vereis de quantas formas a doença zomba dos nossos corpos. EIa conserva-nos estendidos ou encolhidos; enfraquece-nos ou entorpece-nos; conserva um corpo paralítico e imóvel ou o agita completamente pela convulsão. Lastimosa variedade! Diversidade espantosa! Cristãos, a doença é que zomba dos nossos corpos como lhe apraz, e o pecado é que nos entrega aos seus caprichos cruéis. Considera, ó homem, no pouco que és e no pouco que vales; vem saber a lista funesta dos males de que está ameaçada a tua fraqueza. E a fortuna, para ser igualmente injuriosa, não se torna menos fecunda em acontecimentos fatais. O auxilio que lhes é ministrado é a imagem do grande auxílio que lhes dá um dia Jesus Cristo, libertando-os por completo, mas, no entretanto, é preciso que eles caiam para serem regenerados; e só deixarão à terra a sua mortalidade e a sua corrupção. É preciso que este corpo seja destruído até ficar reduzido a pó; a carne mudará de natureza, o corpo tomará outro nome; até o nome de cadáver lhe não ficará por muito tempo. A carne converter-se-á numa coisa que não tem nome em língua alguma, tão certo é morrer tudo na pessoa deles até ao ponto em que estes restos infelizes são exprimidos por estas fúnebres palavras: Post totum ignobilitatis elogium, cadacae in originem terram, et cadaveris nomen; et de isto quoque nomine periturae in nullum inde jam nomen, in omnis jam vocabuli mortem. Mas tendo participado do corpo do Salvador, principio de vida... Nós recebemos pelo batismo um direito real ao corpo de Jesus Cristo, e, por consequência, um direito à Sua vida, à Sua graça, à Sua imortalidade. Não renunciemos a esse direito, não o percamos, e ficamos sempre na comunhão do mistério, não só na atual participação senão no direito de comungar. Corpus non fornicationi, sed Domino et Dominus corpori (1 Coríntios 6, 13. - Veja segundo discurso da Pureza). Ele faz o nosso corpo semelhante ao Seu, um templo: Solvite templum hoc (São João 2, 19). Convenho em que devamos orná-lo como um templo, com um certo decoro, mas sempre com dignidade. Nada que seja vão, nada que seja profano. E então, ó santa castidade, flor da virtude, ornamento imortal dos corpos mortais, sinal firme duma alma bem formada e verdadeiramente generosa, protetora da santidade e da fé mútua nos casamentos, fiel depositária da pureza do sangue e que só dele sabes conservar o vestígio; vem consagrar estes corpos corruptíveis, vem servir-lhes de bálsamo eterno contra a corrupção; vem dispô-los para uma santa união com o corpo de Jesus Cristo; e faze com que, tomando este corpo, dele tenhamos todo o espírito. TERCEIRO PONTO Eu já o disse, meus irmãos, mas é preciso dizê-lo mais uma vez, que durante este tempo de corrupção, Deus começa já nos nossos corpos a obra da Sua beatífica imortalidade. Sim, em quanto este corpo mortal é oprimido de languidez e de enfermidades, Deus vai lançando nele interiormente os princípios duma consistência imutável; em quanto envelhece, Deus rejuvenesce-o; em quanto ele se acha todos os dias exposto às doenças mais perigosas e a uma morte certíssima, Deus trabalha, em honra do Espírito Santo, para a sua ressurreição gloriosa. De que maneira se realiza tão grande mistério? Santo Agostinho, que o soube do divino Apóstolo, é que vo-lo-á de explicar em breve por uma excelente doutrina. Mortais, conhecei a glória; terra e cinza; escutai atentamente as divinas operações que se começam em vós. É preciso, pois, saber, antes de mais nada, que o Espírito Santo habita em nossas almas, e que nelas preside pela caridade que nelas vai derramando. De que maneira se estende ao corpo esta divina operação? Basta ouvirdes uma palavra de Santo Agostinho para o ficardes compreendendo: "Aquele que receber a parte dominante, diz este santo bispo, fica possuindo tudo" - Totum possidet, qui principale tenet. "Ora em nós, continua o grande homem, é fácil, conhecer que é a alma que ocupa o primeiro logar, e que é a ela que pertence o império" Destes dois princípios tão claros, tão indubitáveis, tira logo Santo Agostinho esta consequência fácil: "Possuindo Deus a parte principal, que é a alma e o espírito, fica de posse da natureza inferior"; possuindo o príncipe, também possui o vassalo; e dominando a alma que é a soberana, estende a mão sobre o corpo e sujeita-o ao seu domínio (e apodera-se dele) É assim que o nosso corpo é regenerado pela graça do Cristianismo. Muda felizmente de dono e passa a melhores mãos; pela natureza pertencia à alma, pela corrupção servia ao vício, pela graça e pela religião pertence a Deus. Dá-se como que um sagrado enlace entre o nosso espírito e o espírito de Deus; o que prova que "aquele que se ajunta ao divino Espírito forma um só espírito com Deus": Qui adhaeret Domino unus spiritus est (1 Coríntios 6, 17). E assim como nos casamentos, diz Tertuliano, a mulher institui seu esposo senhor dos seus bens, cedendo-lhe o uso deles, assim a alma, unindo-se ao espírito de Deus e submetendo-se a Ele como a seu esposa, também lhe cede todo o seu bem, como sendo o chefe e o senhor desta comunidade beatífica. "A carne a acompanha, diz Tertuliano, como uma parte do seu dote, e em vez de ser apenas serva da alma, é também serva do espírito de Deus" - Sequitur animam nubentem spiritui caro, ut dotale mancipium; ei jam non animae famula, sed spiritus. Com efeito, não vedes que o corpo do cristão muda de natureza, e que em vez de ser simplesmente o órgão da alma, converte-se no instrumento fiel de todas as santas vontades que Deus nos inspira? Que é que dá a esmola, senão a mão? Que é que confessa os pecados, senão a boca? Que é que os chora, senão os olhos? Que é que anceia. pelo zelo de Deus, senão o coração? Finalmente, diz o Santo Apóstolo, "todos os nossos membros são sacrificados a Deus e devem ser as suas hóstias vivas" (Romanos 12, 1). Quem não vê que o Espírito Santo se apodera dos nossos corpos, visto que eles são os instrumentos da Sua graça, os templos em que Ele reside com a Sua majestade, e emfim as hóstias vivas da Sua soberana grandeza? Mas levemos mais longe ainda este raciocínio, e tiremos a consequência destes belos princípios. Se Deus, aperfeiçoando as nossas almas, se apoderou dos nossos corpos, é porque nem a morte, nem violência alguma, nem o esforço da corrupção poderão jamais arrebatar-lh'os. Cedo ou tarde, Deus entrará na posse do seu bem e retirará o seu domínio. O Filho de Deus pronunciou que "ninguém pode arrebatar coisa alguma das mãos de seu Pai: Meu Pai, diz ele, é maior que toda a natureza" - Nemo potest rapere de manu Patris mei (São João 10, 29). E com efeito, sendo as duas mãos tão poderosas, não há força que as possa vencer nem obrigar a largar a presa. Portanto, tendo Deus colocado sobre os nossos corpos a Sua mão soberana, tendo-se apoderado deles pelo seu Espírito, a que a Escritura chama dedo, e estando já de posse deles, ó carne, razão tive eu em dizê-lo, que, seja qual for o sítio do universo onde a corrupção te lance e te esconda, tu ficas sempre ao alcance de Deus. E tu, ó terra, ao mesmo tempo mãe e sepulcro comum de todos os homens, seja qual for o sombrio retiro onde tenhas tragado, espalhado e escondido os nossos corpos, hás de restituí-los inteiros; e antes sejam destruídos o céu e a terra do que pereça um só dos nossos cabelos, porque, sendo Deus o senhor de todos os corpos, não há força que possa impedi-lo de acabar neles a Sua obra. Não duvideis, Cristãos, "de que se o espírito imortal que ressuscitou Jesus habita em vós, esse Espírito, que ressuscitou Cristo, também pelo seu espírito, que em nós habita, há de vivificar os vossos corpos mortais" (Romanos 8, 11) Pois este espírito omnipotente, infinitamente deleitado com o que fez em Jesus Cristo, atua sempre em conformidade com estas divinas operações; e, contanto que o deixem atuar, ele há de acabar a Sua obra. Não há no mundo força alguma que possa impedir a sua ação, e só nós lhe podemos servir de obstáculo, porque os dons de Deus exigem ou uma fiel cooperação, ou, pelo menos, uma aceitação voluntária. Deixemo-nos, pois, dirigir pelo espírito de Deus, deixemos que Ele domine os nossos corpos mortais. Se quisermos que Ele espalhe por eles toda a Sua virtude, deixemos que os sujeite à Sua divina operação. Desprendamo-nos dos nossos corpos para nos ligarmos fortemente ao espírito de Deus. Pois que fazemos nós, Cristãos, quando deleitamos o nosso corpo, que fazemos senão, aumentar a presa da morte, enriquecer-lhe o saque, cevar-lhe a vítima? Porque te possuo eu, ó corpo mortal (Porque estou eu unido a ti, ó corpo mortal)... e como te hei de tratar? Se te enfraqueço, fico cansado; se te trato com moderação, não posso evitar a tua força que me lança por terra (Se te enfraqueço, esgoto as minhas forças; se te trato com moderação, não posso evitar as tuas que me prostram)... ou que me mata. Que hei de então fazer de ti e como te hei de chamar, fardo incômodo, esteio necessário, inimigo lisonjeiro, amigo perigoso, com o qual não posso ter guerra nem paz, porque a cada momento preciso da harmonia, e a cada momento tenho de atacar? Ó imponderável união e alienação não menos estupenda! Poderei privar-me deste corpo? Poderei também ligar-me a ele tão fortemente e contrair com um corpo sujeito à morte uma amizade imortal? Como sou infeliz! "Quem me livrará deste corpo frágil?" (Romanos 7, 24). É este o motivo geral porque gemem todos os verdadeiros filhos de Deus. Todos deploram a sua servidão, todos conhecem dolorosamente que "o peso do corpo oprime o espírito" - corpus quod corrumpitur aggravat animam (Sabedoria 9, 15) e priva-o da sua verdadeira liberdade. É por isso que o grande Santo Ambrósio gravemente nos ensina (nos adverte) que, estando o nosso espírito transitoriamente no corpo, não devemos consentir que ele se ligue a esta natureza dessemelhante; mas que, pelo contrário, devemos quotidianamente quebrar os nossos laços, para que o espírito, recolhendo-se em si mesmo, conserve a sua nobreza e a sua castidade. Há duas especies de laços: os da natureza e os da amizade. Quanto aos primeiros, é a Deus que compete quebrantar; quanto aos segundos, a nós, cumpre o seu rompimento: Quotidie morior (1 Coríntios 15, 31). Pela primeira união, está a alma encarcerada e cativa, o corpo domina-a, é senhor dela. Sacudamos este jugo, libertemo-nos desta indigna dependência, e haverá outra união pela qual a alma há de dominar. Sit quotidianus usus in nobis affectusque moriendi, ut per illam, quam diximus, segregationem a corporeis cupiditatibus, anima nostra se discat extrahere, et quasi in sublimi locata, quo terraenae adire libidines et eam sibi glutinare non possint suspiciat mortis imaginem, ne paenam mortis incurrat. É por isso que na função que é destinada à nossa alma de animar e de mover os órgãos corporais, o mesmo Santo Ambrósio adverte que não cuidemos inteiramente deles: Non credamus nos huic corpori, nec misceamus cum illo animam nostram; mas que, pelo contrário, nos alheemos quanto podermos: Summis, ut ita dicam, digitis sicut nervorum sonos, ita pulsat carnis passiones. Este cuidado extremo com o corpo é indigno do cristão. Vós quereis ser imortais, e basta a menor dor, a menor fraqueza para vos oprimir e vos desalentar, e eis que abandonais todos os exercícios de piedade. Receais excitar esse sangue, esse cérebro já escandecido e esse temperamento tão fraco e tão delicado. Porque não aproveitais antes esta ocasião favorável para quebrar esses laços ternos e sedutores, em quanto a natureza vos auxilia distendendo-os, se de todo pão conseguir quebrá-los ainda? Aprendei a considerar este corpo, cuja fraqueza vos agrava, não como uma agradável habitação, mas como um cárcere importuno; não como vosso órgão, mas como vosso obstáculo e vosso fardo. A fraqueza e a dor que agitam todo o corpo forçam a alma a desprender-se dele, e, limitando-a nos seus próprios bens, obrigam-na a corrigir um secreto escrúpulo e um certo repouso dos sentidos, que muito facilmente acomete os homens numa saúde vigorosa. E se a atração à própria saúde e à vida é tão viciosa e tão contraria à dignidade do Cristianismo, que direi da curiosidade, da vaidade e dessa viveza que tanto se mostra no arrebique e no aspecto? Fraca e miserável criatura, inutilmente chamada a uma beleza e a uma glória eterna, haveis de sentir mágoa se vísseis cair essa flor efêmera, desbotar essa cor viva e desaparecer esse ar de juventude. Considerais a perda de tudo isso como uma afronta que só se deve sentir quando se comete um erro. Quereis ocultar os anos, e não só ocultá-los, senão resistir ao seu curso impetuoso, ao seu esforço violento, e esquivar-vos às suas mãos tão sutis que nunca deixam de vos arrebatar alguma coisa, por mais artifícios que empregueis. É nisso que consiste a glória do corpo de Jesus? (Outra saúde, outra beleza outra vida) Oh! Deixai-vos despojar desse frágil ornamento que apenas serve para alimentar a vossa vaidade, para vos expôr à tentação e para vos cercar de escândalos. Privai esse corpo do extraordinário amor e do demasiado desvelo que lhe dispensais; pois se continuardes a estimá-lo tanto, oh! Então é que a morte vos há de ser cruel, é debalde vos heis de lastimar, dizendo como o rei dos Amalecitas; Siccine separat amara mors? (1, Reis, 15, 32). "Então é assim que a morte crua nos rouba tudo?" Que golpe! Que esforço! Que violência! Um homem de bem, pelo contrário, nada tem a perder neste dia. A dor familiariza-o com a morte. A indiferença pelo prazer desabitua-o do corpo. Há já muito tempo que ele desatou ou quebrou os laços mais delicados que a ele nos prendem; e, portanto, não se entristece por abandonar o corpo, porque sabe que o não perde. O Apóstolo disse-lhe que todos temos de fazer uma viagem dupla; porque enquanto estamos no corpo, viajamos longe de Deus; e quando estamos com Deus, viajamos longe do corpo. Uma e outra não são mais que uma viagem, e não uma completa separação, porque do corpo passamos a Deus, e vamos para Deus na esperança de voltar aos nossos corpos. Por consequência, quando vivemos nesta carne, não devemos ligar-nos a ela como se nela devêssemos ficar em todo o tempo; e quando temos de separar-nos dela, não devemos entristecer-nos como se a ela nunca mais devêssemos voltar. E então, quando chegar o nosso último momento, já livres dos grandes cuidados da vida e das apreensões da morte, adormecemos em paz e ficamos esperançados. Pois que receio tens, alma cristã, de que a morte se avizinhe? Receias perder o teu corpo? Deves antes consolidar a tua fé; contanto que submeta o corpo ao Espírito de Deus, esse Espírito omnipotente ha de fazer-lo mais perfeito (Bem saberá conservar-lo para sempre, ou: te restituirá a vida) Talvez que se vires cair a tua casa, imagines que ficas sem abrigo. Escuta, porém, o divino Apóstolo: "Nós sabemos, disse ele aos Corintios, e não somos levados a acreditá-lo por conjecturas duvidosas, mas sabemo-lo com uma plena certeza, que se esta casa de barro e de lama, em que habitamos, for destruída, temos outra casa que não é edificada pela mão do homem, mas que é preparada no céu" (Segunda Epístola aos Coríntios, 5, 1). Ó governo misericordioso de Quem provê a todas as nossas necessidades! "Ele formou o desígnio, diz excelentemente São João Crisóstomo, - de reparar a casa que nos deu: enquanto ele a destrói para a edificar de novo, é necessário que saiamos dela" E que faríamos neste tumulto e neste pó? É ele próprio que nos oferece o seu palácio e nos dá um aposento para esperarmos tranquilamente a completa reparação do nosso primeiro edifício. Não receemos, pois, coisa alguma, meus irmãos; pensemos apenas em viver convenientemente, porque tudo está garantido para o cristão. Eis outro exórdio, que foi composto provavelmente com o fim de relacionar o sermão que se acaba de ler com o tempo da Quaresma: Quando for volvida a ordem dos séculos e todos, os mistérios de Deus consumados e todas as suas promessas cumpridas e todas as nações da terra evangelizadas; quando o número dos nossos irmãos estiver preenchido, isto é, quando a sociedade dos escolhidos estiver completa, e o corpo místico do Filho de Deus composto de todos os seu? Membros e as celestes legiões, em que a deserção dos anjos rebeldes fez vagar tantos lugares, inteiramente restabelecidos; então será tempo, ó Cristãos, de destruir completamente a morte e de a relegar para sempre para os infernos donde saiu. Tudo agora parece estar surdo à voz de Deus, e até os próprios homens, não obstante ser-lhes dado ouvidos para ouvir a Sua palavra, e um coração para se submeter a ela; e neste caso toda a natureza há de ter vida para a ouvir. Baixará uma voz do céu, pela boca da Filho de Deus, que ordenará aos mortos que ressuscitem: os corpos jacentes, os ossos secos, a cinza e o pó frio e insensível abalar-se-ão no fundo dos seus túmulos, todos (Começarão a agitar-se no vácuo dos seus túmulos) Os elementos começarão a agitar-se, e o mar e a terra e os abismos preparar-se-ão para entregar os seus mortos que se julgava tivessem sido tragados como verdadeiras presas, mas que, como havemos de presenciar, apenas foram recebidos como um depósito para serem entregues fielmente à primeira ordem. De maneira que Deus ama os seus, e ama-os até ao fim, tendo cuidadosamente juntado de todas as partes do mundo os seus restos sempre preciosos para ele e sempre guardados pela sua mão poderosa em algum canto do universo onde a lei das transformações os tenha arremessado, e, tendo por este meio estabelecido os seus corpos numa perfeita integridade, uni-los-á às suas santas almas e eles ficarão com vida; abençoará esta união e eles serão imortais; e torná-la-á de tal forma íntima que os corpos hão de participar das honras da alma e ficarão cobertos de glória. E são estes os três dons magníficos que Deus nos há de dar neste dia como penhor do Seu amor eterno: a vida, a imortalidade e a glória. Se eu anunciasse a infiéis este Evangelho de vida e de ressurreição eterna, grande trabalho teria, cristãos, para deduzir os raciocínios que a sabedoria humana aqui opõe ao poder de Deus e de glória da nossa natureza tão poderosamente reparada (Á honra da nossa natureza tão misericordiosamente reparada). Mas visto que falo a cristãos a quem esta doutrina celeste não é menos familiar nem menos natural do que o leite que os alimentou na infância, não é intento meu tornar-me prolixo para vos provar com um longo discurso a realidade destes três dons, mas tão somente preparar-vos para os receberdes neste dia derradeiro, da justiça de Deus e da Sua mão liberal. Eu disse já, Cristãos, que é necessário preparar a alma, como parte principal, para receber em nossos corpos estes dons preciosos. Disse e prometi fazer-vos ver que todas estas santas preparações se encerram vantajosamente na da penitência. Que é que se vos pede na penitência, senão que vos retireis de todos os vossos pecados, que tomeis precauções para não tornardes a pecar, e que, por meio duma satisfação conveniente, tireis vingança em vós mesmos da vergonha do vosso pecado? Portanto, se tiverdes vontade de viver em graça, também os vossos corpos hão de ter uma vida nova; as sabias precauções para não tornar a morrer, hão de assegurar-lhes a imortalidade; o zelo de ser grato: e um Deus irritado pelas santas humilhações da penitência, há de fazer com que eles sejam revestidos duma glória cheia de divindade. São estas as duas palavras que o Filho de Deus dirige aos mortos: Venit hora et nunc est in qua... Há duas espécies de mortes; duas partes no homem, e ambas tem a sua morte. Jesus fê-los ressuscitar pela Sua palavra: a primeira dirigida aos pecadores para os chamar à penitência, a segunda dirigida aos mortos sepultados para os chamar à vida; a primeira é a disposição para tornar a segunda salutar. É necessário começar pela alma a fim de preparar o corpo para a vida; e é preciso aliar estas duas coisas, a penitência, cujo tempo agora decorre, e a ressurreição dos mortos, que pela antiga instituição desta igreja, deve hoje ser pregada nesta tribuna: Ó mortos, é a vós que eu me dirijo, não a esses mortos que jazem nos túmulos e descansam nesta terra abençoada, mas a esses mortos que falam e que ouvem. Quero fazer chegar aos ouvidos deles a palavra do Filho de Deus, para que eles a ouçam e tenham vida. Ó Jesus, vós prometestes pronunciar a palavra que há de chamar os mortos à ressurreição geral; mas quereis que os outros mortos, que desejais vivificar pela sua conversão, sejam chamados a esta vida pelos Vossos ministros. Dai-me poisa Vossa palavra pela graça do Vosso Espírito Santo e e pela intercessão... Veja acerca do Dia de Finados: Morisot, Petit, Palu Beretonneau, Biroat, Ségaud, etc. 1º Domingo do Advento - 1º Sermão para o 1º Domingo do Advento Necessidade de Trabalhar para a Salvação da Alma Pregado a 29 de novembro de 1665, com a assistência do rei e da corte. SUMÁRIO Exordio. A Igreja fala-nos no juízo final com o fim de nos excitar a trabalhar para a nossa salvação e a velar por todas as nossas disposições e ações. Proposição e divisão. Eu hei de combater o sono, que nos insensibiliza para o trabalho da nossa salvação, e a languidez que, além de nos tornar indolentes, não nos deixando agir, ainda nos conduz de novo ao sono. 1º Ponto - Adormecermos na indiferença a respeito da grande obra da salvação, é cometer o crime de ateísmo, porque, aqueles que não creem em Deus, também não admitem que outros creiam verdadeiramente nele. Deus não dá logo o castigo porque é misericordioso e eterno. O sono letárgico dos pecadores já é um castigo terrível. Ai de ti, pecador indiferente: Thesaurisas tibi iram. 2º Ponto - Nós devemos consagrar à grande obra da nossa salvação todos os instantes porque a morte há de arrebatar-nos como se fosse um rapinante. A juventude, em vez de ser um tempo de dissipação e de desregramento deve, pelo contrário, ser um tempo de colheita. Peroração - Receai a insensibilidade e praticai a vigilância contínua. Real Senhor, de que vos serviriam as vossas conquistas e a vossa grandeza, se não trabalhásseis em obras que merecem ser escritas no livro da vida. Deus compõe um diário da nossa vida, e nós devemos nos esforçar por embelezá-lo. Já é tempo de despertarmos do nosso sono (Romanos 13, 11). Quem acreditará que quase toda a natureza humana está adormecida e que, por entre estas diligências e esta atividade que há (Que, no meio desta ação tão viva a e tão ansiosa que há)... principalmente na Corte, a maior parte (Os homens) descai intimamente numa letargia mortal? Verdadeiramente não há ninguém que vele, a não ser o que cuida da sua salvação. E sendo assim, cristãos, também este auditório está imerso num sono profundo, também ele, prestando atenção, não ouve, e, mesmo com os olhos abertos, não vê, e talvez infelizmente ainda não desperte com o meu discurso! A intenção da Igreja é tira-lo hoje deste pernicioso adormecimento. É por isso que ela nos lê, nos Santos mistérios deste dia, a história do juízo final, quando a natureza, admirada da majestade de Jesus Cristo, quebrar todo o concerto dos seus movimentos, e quando se ouvir um ruído tal que se imagine ser o desabar de tremendas ruínas e estar assistindo a uma destruição pavorosa. Aquele que não despertar a este ruído aterrador é porque está profundamente adormecido, e dorme um sono mortal. Todavia, se a ele ficarmos surdos, a Igreja, para mais nos excitar, ainda faz chegar aos nossos ouvidos a palavra (A voz) do Apóstolo. O grande São Paulo eleva a sua voz no meio do ruído confuso do universo e diz-nos em tom retumbante (Retumbante e firme) Ó fiéis, "já é tempo de despertarmos" - Hora est jam nos de somno surgere. Desta forma, creio não esquecer o Evangelho, senão respeitar-lhe a intenção e o espírito, quando interpreto a epistola que a Igreja lê neste dia (Hoje). Oxalá que aquele por quem eu falo, e de quem energicamente anúncio as ameaças e, as sentenças, faça com que os que dormem nos seus pecados acordem e se convertam! É a graça que eu lhe peço por intermédio das orações à Virgem Maria. É uma verdade provada, estabelecida pela Escritura e justificada pela experiência, que a causa de todos os crimes e de todas as infelicidades da vida humana, é a falta de atenção e de vigilância. Se os justos pecam tantas vezes após uma longa perseverança, é porque adormecem à vista das suas boas obras, julgando ter vencido completamente os seus maus desejos. A confiança que depositam nesta tranquilidade de espírito faz com que abandonem o leme, isto é, com que percam a atenção devida a si próprios e à Divindade. É por isso que perecem miseravelmente; e, por terem deixado de velar, perdem num momento todo o fruto de tantos trabalhos. Mas se a atenção e a vigilância são tão necessárias aos justos para lhes evitar o pecado funesto, mais necessárias são aos pecadores para regenerarem e corrigirem os seus erros. Por isso é que de todos os preceitos, que o Espírito Santo subministrou aos homens, o que o Filho de Deus repetiu mais vezes, o que os santos e os apóstolos inculcaram com mais persistência, foi o de velar continuamente. Em todas as Epistolas, em todos os Evangelhos, em todas as páginas da Escritura abundam estas palavras: "Velar, orai, estai atentos e preparados a todas as horas, pois ignorais em qual há de vir o Senhor" Com efeito, por falta de vigilância pela nossa salvação e pela nossa consciência, o nosso inimigo, que está sempre vigilante, e as nossas paixões, que estão sempre atentas ao que as determinam, surpreendem-nos, arrebatam-nos, subjugam-nos por completo e arrastam as nossas almas cativas perante o temível tribunal de Jesus Cristo, antes mesmo de pensarmos em evitar-lhe os rigores por meio da penitência. Era este perigoso adormecimento que receava o divino Salmista, quando fazia esta oração: "Abri-me os olhos, Senhor, pois receio o sono da morte" (Salmo 12, 4). É para evitar o efeito desta letargia que hoje nos diz o Apóstolo: "Meus irmãos, já é tempo de despertardes do vosso sono" E eu, para seguir as suas intenções, combaterei ao mesmo tempo o sono e a languidez: o sono que nos insensibiliza; e a languidez que, além de nos tornar indolentes, não nos deixando agir, ainda nos conduz de novo ao sono. Em primeiro lugar, Cristãos, hei de mostrar-vos em dois pontos que os que não creem em Deus nem na Sua justiça adormeceram no meio duma grande indolência e duma grande infelicidade; e em segundo lugar, que já chegou a hora de despertarmos deste sono, e que essa hora é precisamente este momento em que eu vos excito e vos estou falando. Por consequência, depois de ter acordado os que dormem nos seus pecados, tratarei de vencer as delongas dos que disputam por muito tempo com a sua preguiça. É esta simplesmente e em poucas palavras a divisão do meu discurso. Concedei-me a vossa atenção, ao menos, num discurso em que se trata da própria atenção. PRIMEIRO PONTO Para que ninguém imagine que seja um crime pouco grave o fato de não pensar em Deus, ou de pensar nEle sem considerar quão terrível coisa é cair nas Suas mãos, vou tentar demonstrar-vos que este crime é uma espécie de ateísmo. Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus, diz o Salmo 52: "O insensato diz firmemente: Não há Deus" Os santos Padres ensinam-nos que, com este juízo desacertado e monstruoso, podemos ser criminosos de várias maneiras: por erro, por vontade e por esquecimento. Há em primeiro lugar, os ateus e os libertinos, que dizem abertamente que as coisas se dão ao acaso, sem ordem, sem governo, sem direção superior. Insensatos, que, no império de Deus, no meio das Suas obras e dos Seus benefícios, se atrevem a negar a existência d'Aquele a quem se deve toda a natureza! Mas na terra há poucos monstros desta índole; os próprios idolatras e os infiéis detestam-nos. E, quando na luz do Cristianismo descobrirmos algum, devemos estimar o seu encontro infeliz e abominável. Veja, porém, o homem dado ao prazer, o homem sensual, que deixa dominar os sentidos e só cuida em satisfazê-los, veja que Deus não o entrega de tal forma à tirania dos insensatos que fique imaginando depois que o que não é sensível não é real; que o que se não vê nem se toca não é mais que uma sombra e um fantasma; e que, pelo fato de predominarem as ideias sensíveis, não lhe pareçam todas as outras duvidosas ou inteiramente vãs. Porque é a isto que insensivelmente são elevados os que deixam dominar os sentidos e só cuidam em satisfazê-los. Há outros, diz o douto Theodoreto, que não chegam ao excesso de negar a divindade; mas que, instados e incomodados nas suas paixões desregradas pelas leis de Deus que os constrangem, pelas Suas ameaças que os assombram, e pelo receio dos Seus juízos que os perturbam, desejariam que Deus não existisse; e até mais, queriam ter espírito para acreditar que Deus não é mais que um nome vão e dizem firmemente, não por convicção, mas por, vontade própria: "Deus não existe." Eles desejariam poder reduzir ao nada este manancial fecundo da existência. "Ingratos e ignorantes, diz Santo Agostinho, que, pelo fato de serem desordenados, querem destruir a ordem e desejam que não haja lei nem justiça" - Qui dum nolunt esse justí, nolunt esse veritatum qua demnantur injusti. Também lanço estes à margem, e quero crer que nenhum dos meus ouvintes seja tão depravado e tão corrupto. Vou entrar num terceiro modo de dizer que Deus não existe, e do qual não poderemos alegar motivos de inculpabilidade. O princípio que estabeleço é este: coisa em que não desejamos pensar consideramo-la sem valor algum para nós. Os que dizem firmemente que Deus não existe, e que não admitem que outros creiam verdadeiramente nele, mal creem na Sua verdade revelada, pela predica, na Sua majestade afirmada pelo sacrifício, na Sua justiça quando Ele dá a punição e na Sua bondade quando dá a recompensa. Finalmente, têm-no em tão pouco preço que imaginam verdadeiramente nada terem a recear, enquanto só o tiverem a Ele por testemunha. Qual de nós é que não pertence a este número? Quem não se deteve nas suas empresas, ao dar-se com um homem que não é sabedor do seu segredo nem da sua cabala? E todavia ou desprezamos, ou nos esquecemos do olhar de Deus. Não chamemos para aqui o exemplo dos que meditam n'algum roubo ou n'algum assassínio; pois tudo o que encontram os perturba, a luz do dia e a sua própria sombra os atemoriza. Até lhes custa suportar o horror do seu funesto segredo, e vivem numa soberana tranquilidade a respeito dos olhares de Deus. Mas deixemos estes trágicos atentados; e digamos o que se vê todos os dias. Quando, secretamente difamais os que lisonjeais em público; quando os ofendeis incessantemente com a vossa língua perversa; quando artificiosamente confundis a verdade com a mentira para dar verossimilhança às vossas histórias maliciosas; quando violais o sagrado depósito do segredo que um amigo muito ingênuo guardou no vosso coração, e que sacrificais aos vossos interesses a sua confiança que vos obrigava a cuidar dos seus, quantas precauções tomais para isto se não divulgar? Quantas vezes olhais para a direita e para a esquerda? E se não vedes testemunha que vos possa censurar a vossa covardia para com a sociedade, se estendeis os vossos laços tão sutilmente que sejam imperceptíveis aos olhos dos homens, dizeis: "Ninguém nos viu" - Narraverunt ut absconderent laqueos; dixerunt: Quis videbit eos? (Salmo 63, 5). Como diz o divino Salmista. Não contais, portanto, no número dos que têm vista o que habita nos céus? E todavia ouvi o mesmo Salmista: "Como assim? O que formou o ouvido não ouve? E o que fez os olhos é cego?" Qui plantavit aurem non audiet? Aut qui finxit oculum non considert? (Salmo 93). Porque não considerais que todo ele é vista, todo ouvidos, todo inteligência; que os vossos pensamentos lhe falam, que o vosso coração tudo lhe descobre, e que a vossa própria consciência é a sua espiã e a sua testemunha de acusação? E todavia a estes olhos tão vivos, a estes olhares tão penetrantes, gozais placidamente do prazer de estardes escondido; entregais-vos à alegria e viveis tranquilamente no meio das vossas delícias criminosas, sem vos lembrardes de que Aquele que vo-las proíbe e que vos deixou tantas delícias inocentes, virá um dia inopinadamente perturbar os vossos prazeres duma maneira terrível pelos rigores da Sua sentença, quando menos o esperardes! E não é manifestamente tê-lO em menos preço o dizer com firmeza insensata: "Deus não existe?" Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus Quando procuro as causas profundas dum tão prodigioso esquecimento, começo a pensar no motivo porque o homem, tão sensível aos seus interesses e tão atento aos seus negócios, perde contudo de vista e tão facilmente a coisa mais necessária, mais temível e mais evidente do mundo, que é Deus e a Sua justiça. Acho que o nosso espírito, cujos limites são tão estreitos, não tem uma compreensão suficientemente vasta para se estender além do seu recinto; e é por isso que ele só acredita, verdadeiramente, no que o impressiona, e nos obriga a formar juízo das coisas que nos rodeiam, relativamente à nossa própria disposição. O que está encolerizado imagina que toda a gente se preocupa com a ofensa que ele recebeu, em quanto fala acerca dela. Vemos que o preguiçoso que deixa correr todas as coisas indolentemente, nunca imagina quão viva é a atividade dos que lutam contra o infortúnio. Enquanto dorme à sua vontade e está a descansar, imagina que tudo dorme também, e então só acorda quando o assalta a adversidade. É uma ilusão de tal natureza, verdadeiramente universal, que faz convencer todos os pecadores de que, enquanto eles tendem para a ociosidade, para o prazer e para a impenitência, também a justiça divina afrouxa e fica de todo adormecida. Pelo fato de se esquecerem de Deus, também imaginam que Deus se esquece deles: Dixit enim in corde suo: Oblitus est Deus: (Salmo 10, Epístola aos Hebreus, 11) Mas o seu erro é extremo; e se Deus se aplacar por algum tempo, nem sempre se aplacará: "Eu vigiarei pelos pecadores, disse ele, quanto ao mal que praticarem e não quanto o bem" Vigilabo super eos in malum et non in bonum (Jeremias 44, 27). "Aplaquei-me, disse ele noutra parte, guardei o silêncio, fui paciente, mas de repente hei de enfurecer-me; por muito tempo represei a cólera no meu peito, mas hei de manifestá-la depois, hei de aniquilar os meus inimigos e hei de envolvê-los a todos numa mesma vingança" Tacui semper, silui, patiens fui sicut parturiens loquar, dissipabo et absorbebo simul (Isaías 42, 14). Por consequência, cristãos, não tomemos o seu silêncio por uma confissão, nem a sua paciência por um perdão, nem a sua longa dissimulação por um esquecimento, nem a sua bondade por uma fraqueza. Ele sofre com paciência as culpas dos homens porque, é misericordioso, e, se se desprezam as Suas misericórdias, muitas vezes continua sofrendo e não exerce logo a vingança, porque sabe que as Suas mãos são inevitáveis. Assim como um rei, que vê o seu trono consolidado e o seu poder estabelecido, sabe que se maquinam no seu Estado intrigas contra o seu governo (Que se imaginam no seu Estado secretos planos de revolta) porque é difícil enganar um rei que tem os olhos abertos e que sabe vigiar, e que, podendo abafar logo esta cabala, deseja todavia, baseado na sua consciência e no seu próprio poder, ver até onde chegarão as temerárias conspirações dos seus vassalos infiéis, e não precipita a sua justa vingança até eles terem chegado ao termo fatal em que ele resolveu detê-los; assim também, e com mais forte razão, esse Deus onipotente, que, do centro da Sua eternidade, desenrola toda a ordem dos séculos, e que, como sábio distribuidor dos tempos, marcou o destino de todos os momentos perante a origem das coisas, nada tem a precipitar. Os pecadores não lhe escapam da vista nem das mãos, porque Ele sabe o tempo que lhes deu para se arrependerem, e sabe a ocasião em que os há de humilhar. Eles chamam o céu e a terra para se ocultarem, quando podem, na confusão de todas as coisas; essas mulheres infiéis e esses homens corruptos e corruptores acobertam-se, sempre que podem, com todas as sombras da noite, envolvem (Os que se conluiam de forma a concorrerem para a sua perda envolvem)... as suas inteligências desonestas na obscuridade duma intriga impenetrável; mas eles serão descobertos no dia apresado, e a sua causa há de ser levada ao tribunal da Jesus Cristo, onde a sua criminalidade não poderá ser iludida por desculpa alguma, nem a sua pena retardada por nenhuma queixa. Mas eu tenho de vos revelar verdades mais profundas. Não pretendo somente infundir nos pecadores o receio pelos rigores do juízo final, nem pelos suplícios insuportáveis do século futuro. Receando que o repouso em que eles agora vivem sirva para lhes alimentar no coração cego e impenitente a esperança da impunidade, o Espírito Santo ensina-nos que o seu próprio repouso é uma punição. Pecadores, estai agora atentos. Há uma outra maneira de exercer vingança, pertencente exclusivamente a Deus, que consiste em Ele deixar os Seus inimigos em repouso e puni-los por meio duma insensibilidade e dum sono letárgico, que são de maior eficácia do que se exercesse neles um castigo exemplar. A verdade, cristãos, é que sucede muitas vezes que Deus, com estar muito irritado, concentra em Si toda a Sua cólera; de maneira que os pecadores, admirados das suas longas prosperidades e do curso afortunado dos seus negócios, imaginam que nada têm a recear e não sentem a consciência perturbada. Ora isto é a indolência perniciosa, é o sono mortal em que já tantas vezes tenho falado. É este, irmãos meus, o último flagelo que Deus envia aos Seus inimigos; é o cumulo de todas as desgraças, é a mais próxima disposição para a impenitência final e para a ruína extrema e irremediável. Para o compreender, é preciso notar numa excelente máxima dos santos Doutores, que diz "que quanto mais rigorosos são os pecadores na apreciação dos seus vícios, tanto mais moderada é a sentença que Deus lhes dá" - In quantum non peperceris tibi, in tantum tibi Deus, crede, parcet. Na verdade, assim como está escrito que Deus ama a justiça e detesta a iniquidade, enquanto houver qualquer coisa em nós que clame contra os pecados e se eleve contra os vícios, também há qualquer coisa que toma o partido de Deus, e é esta uma disposição favorável (Inevitável) para o reconciliar conosco. Mas quando já somos tão infelizes em sermos pecadores, quando, pelo mais indigno dos atentados, que foi a destruição desse augusto tribunal da consciência que condenava todos os crimes, nós chegamos ao ponto de abolir em nós mesmos a santa verdade de Deus, a impressão da Sua vontade e da Sua luz, e o sinal da Sua justiça soberana, é então que o império de Deus se acha destruído, que a audácia da rebelião está consumada e que os nossos males já quase não têm remédio. É por isso que esse grande Deus onisciente, que sabe que a soberana felicidade consiste em servi-lO e em agradar-Lhe, e que a melhor coisa que resta aos que se desviaram dele pelos seus crimes é serem perturbados e angustiados pela desgraça de Lhe ter desagradado, depois de ver desprezadas por muito tempo as Suas graças, as Suas inspirações, os Seus misericordiosos (Os seus favoráveis) conselhos e os golpes com que nos fere de vez em quando, não já para nos punir com todo o rigor, mas simplesmente para nos despertar, toma finalmente esta última resolução para Se vingar dos homens ingratos e demasiado insensíveis: retira a Sua santa luz, cega-os e insensibiliza-os; e, deixando-lhes esquecer os Seus divinos preceitos, faz com que ao mesmo tempo eles se esqueçam da sua salvação e de si próprios. Ainda que esta doutrina pareça bem estabelecida na ordem dos juízos de Deus, eu creio que nada terei conseguido se a não provar claramente, mostrando-vos na sua Escritura o progresso dum tão grande mal (Creio que nada terei conseguido se a não provar claramente pela sua Escritura) O profeta Isaías representa-no-lo com uma taça na mão, a que ele chama a taça da sua cólera: (Da cólera divina) Bibisti de manu Domini calicem irae ejus. Diz o profeta que a taça está cheia duma bebida que ele obriga a beber aos pecadores; mas duma bebida gasosa, semelhante a um vinho novo, que lhes sobe à cabeça e os embriaga. Essa bebida que embriaga os pecadores, que outra coisa será, meus senhores, a não ser os seus próprios pecados e os seus desejos violentos a que Deus os entrega? Eles bebem como pela primeira vez (Isaías 51) e pouco a pouco começa a cabeça a andar-lhes à roda, e, no ardor das suas paixões, a reflexão, já mais apagada, só despede clarões duvidosos. A alma, portanto, já se não acha iluminada como dantes; as verdades da religião e os terríveis juízos de Deus apenas se nos mostram como através duma nuvem espessa. É o que se chama nas Escrituras "o espírito de vertigem" (Isaías 19, 14) que faz os homens irresolutos e inconstantes. Mas eles ainda deploram a sua fraqueza, porque volvem de vez em quando um olhar para o lado da virtude que abandonaram. A consciência desperta-lhes de onde a onde, e diz, soltando um suspiro abafado: Ó piedade! (Ó castidade!) Ó inocência! Ó santidade do batismo! Ó pureza do Cristianismo! Mas os sentidos prevalecem sobre a consciência; e eles continuam a beber e as forças diminuem-lhes e a vista perturba-se-lhes. Resta-lhes, contudo, um leve conhecimento e uma ligeira lembrança de Deus. Bebei, bebei, ó pecadores, bebei até à última gota, tragai até às fezes. Mas que encontrarão eles no fundo? "Uma bebida de extrema indolência, diz o santo Profeta, que acaba por embriagá-los até os privar de todo o sentimento" - Usque ad fundum calicis soporis bibistii, et potasti, usque ad faeces (Salmo 51, 17). E produz este efeito singular: "Eu vejo-os, continua Isaías, caídos pelas esquinas tão profundamente adormecidos que parecem estar de todo mortos" - Filii tui projecti sunt, dormierunt in capite omnium viarum (Salmo 20). É a imagem dos grandes, que tendo-se embriagado por muito tempo com o vinho das suas paixões e das suas criminosas delícias, perdem finalmente todo o conhecimento de Deus e todo o sentimento do mal próprio. Pecam sem escrúpulo; lembram-se dos pecados sem pesar; confessam-se deles sem contrição; neles tornam a cair sem temor; perseveram neles sem desassossego, e morrem, enfim, pecadores sem arrependimento. Abri, pois, os olhos, ó pecadores, e vede o estado em que vos encontrais. Enquanto satisfazeis os vossos ruins desejos, bebeis um longo esquecimento de Deus; de vós se apodera um sono mortal, o vosso entendimento obscurece-se, os vossos sentidos insensibilizam-se. Todavia no coração de Deus desenvolve-se contra vós uma "acumulação de ódio e de cólera" - thesaurizas tibi iram (Romanos 2, 5) como diz o Apóstolo; a Sua ira por muito tempo represada produzirá subitamente um fragor terrível. Então heis de ser acordados por um golpe mortal, mas acordados somente para sentirdes o vosso suplício intolerável. Evitai tão grande desgraça; já é tempo de acordardes: Hora est jam nos de somno surgere. Acordai para ouvirdes o conselho, se não quereis que vos acordem para ouvirdes a vossa sentença. Não vos demoreis mais; este momento em que vos falo deve ser, se fordes prudentes, o momento do vosso despertar. É do que trata a segunda parte. SEGUNDO PONTO Jesus Cristo ordena aos seus ministros que declarem a todos os que retardam de dia para dia a sua conversão, que serão surpreendidos infalivelmente nos laços da morte e do inferno, e que, a não vigiarem a todas as horas, ficarão sem recurso algum no momento em que os surpreender uma hora imprevista. Escutai, não a palavra dos homens, senão a palavra do próprio Cristo, em São Mateus e em São Lucas: "Vigiai, visto que ignorais a que hora chegará o vosso Senhor. Pois sabei que se o pai de família estivesse avisado da hora a que deve vir o ladrão, certamente vigiaria e não o deixaria entrar em casa. Por isso vós estai também sempre alerta, porque o Filho do homem virá quando menos o esperardes. Qual é o criado fiel e prudente a quem o amo encarregou de vigiar por todos os outros criados e de lhes dar as refeições a horas? Feliz será esse criado, se o amo ao chegar a casa foi dar com ele entregue aos seus deveres! Em verdade vos digo que lhe dará ainda maiores bens. Mas se esse criado for mau e se disser para consigo: Meu amo não vem agora cá; e se começar a maltratar os companheiros, e a comer, e a beber, e a embriagar-se, e a levar uma vida licenciosa, o amo desse criado virá no dia em que ele o não espera e á hora a que ele ignora, e imediatamente o despede e o considera como infiel e hipócrita. Daí haverá lágrimas e ódios" (São Mateus 24. 42 seguintes; São Lucas, 12, 39 seguintes). Esta parábola do Evangelho mostra-nos em termos formais duas verdades importantes: a primeira, que Jesus Cristo pretende surpreender-nos; a segunda, que o único evitar a surpresa, é vigiar continuamente. Tal é o conselho de Deus e a prudente economia que este grande pai de família estabeleceu em sua casa. Quiz ter criados vigilantes e perpetuamente atentos. E foi porque ele assim dispôs o curso imperceptível do tempo, que nós nem sentimos a sua fuga nem os latrocínios que ele nos faz; de maneira que; a ultima hora surpreende-nos sempre. É necessário imaginarmos aqui esta ilusão enganadora (este engano) do tempo, e o modo como ele zomba da nossa fraca imaginação. O tempo, diz Santo Agostinho, - é uma leve imitação da eternidade. Esta (A eternidade) é sempre a mesma; o que o tempo não consegue igualar pelo seu rigor, procura imitá-lo pela continuação. Se nos rouba um dia, dá-nos subtilmente outro semelhante, que nos evita o pesar pelo que acabamos de perder. É assim que o tempo zomba de nós e nos oculta a sua rapidez. Talvez seja também nisto que consiste esta malícia do tempo de que o Apóstolo nos adverte por estas palavras: "Resgatai o tempo, diz ele, porque os dias são maus" (Efésios 5, 16) isto é, enganadores e maliciosos. Na verdade, o tempo engana-nos sempre, porque, ainda que varia continuamente, mostra quase sempre o mesmo aspecto, e o ano que já passou parece ressuscitar no ano seguinte. Todavia, uma longa série descobre-nos toda a ilusão. As rugas na fronte, os cabelos grisalhos e as enfermidades provam-nos à saciedade que já perdemos por completo uma grande parte do nosso ser. Mas em tão grandes mudanças o, tempo afeta sempre alguma imitação da eternidade. E como é próprio da eternidade conservar as coisas no mesmo estado, o tempo, para a imitar, veio-nos privando de tudo, mas a pouco e pouco, e conduz-nos às extremidades opostas por um declive tão suave e de tal forma insensível que nós vemo-nos no meio das sombras da morte antes de havermos pensado seriamente na nossa conversão. Ezequias não sente aumentar a idade, pois aos quarenta anos parece-lhe que ainda vai a nascer: Dum adhuc ordirer, succidit me (Isaías 38, 12) - "Ele cortou a duração da minha vida que apenas ia a começar" Portanto a malignidade enganadora do tempo faz com que caiamos a súbitas e impensadamente nas mãos da morte. Para nos evitar esta surpresa, Jesus Cristo apenas nos deixou um único meio na parábola do Evangelho, que consiste em estarmos sempre atentos e vigilantes: "Vigiai continuamente, diz ele, pois não sabeis a que hora virá o Senhor" A este respeito admiramos grandemente a cegueira dos homens, que não são menos audaciosos do que o foi outrora o apóstolo São Pedro, quando desmentiu a própria verdade. É com admiração que lemos a temeridade deste discípulo que, na ocasião em que Jesus Cristo lhe diz claramente que o há de negar três vezes, se atreve a responder-lhe em rosto: "Não, não vos hei de negar" (São Mateus 26, 33). Mas calemos a nossa admiração por tamanha audácia, que ele com tantas lágrimas expiou; admiremo-nos de nós mesmos e da nossa temeridade insensata. Jesus Cristo disse-nos a todos em palavras claras: Se não vigiardes continuamente, surpreender-vos-ei. E nós atravemo-nos a responder-Lhe: Não, Senhor, havemos de dormir á nossa vontade; todavia nós iremos ao vosso encontro, e faremos uma rápida confissão que nos ha-de salvar da vossa cólera. Como assim! O Filho de Deus diz que a ciência dos tempos é um dos segredos que seu Pai guardou em seu poder (Atos dos Apóstolos, 1, 7) e nós queremos sondar este segredo impenetrável, e fundar as nossas esperanças num mistério tão oculto e que a nossa inteligência não consegue desvendar! Quando Jesus Cristo vier majestosamente para julgar o mundo, hão de precedê-lo mil acontecimentos terríveis, toda a natureza se agitará com a Sua presença; e todavia o universo, ameaçado de ruína total por um tão grande abalo, não deixará de ficar surpreendido. Está escrito que este dia finai virá como um rapinante que empolgará todos os homens inopinadamente, tal é a impenetrabilidade da sabedoria divina que nos oculta os seus conselhos. E imaginamos nós poder sentir e compreender a dissolução deste corpo frágil que traz a corrupção no seu próprio seio! Enganamo-nos e iludimo-nos crassamente. A morte não virá dum país longínquo e estrepitosamente para nos assaltar. Insinua-se com o alimento que ingerimos, com o ar que respiramos e com os próprios remédios com que procuramos evitá-la. Está no nosso sangue e nas nossas veias; e foi na própria fonte da vida que ela armou as suas secretas e inevitáveis ciladas. De lá é que ela há de sair, ora súbita, ora após uma doença declarada, mas sempre de surpresa e raras vezes prevista. A experiência mostra isto bem, e Jesus Cristo disse-nos no Seu Evangelho que foi Deus que assim o quis. Foi por um desígnio premeditado que ele nos ocultou o nosso derradeiro dia, "a fim de que, diz Santo Agostinho, vigiemos todos os dias" - Latet ultimus dies, ut observentur omnes dies. Visto que Ele resolveu surpreender-nos, se não vigiarmos, seremos mais industriosos em desviar a mão de Deus para que Ele não descarregue o golpe? Ou imaginamos ter contra Ele outras precauções e outros meios diferentes do que nos deu, que foi de vigiar sempre? Que loucura! Que cegueira! Que perturbação de espírito! E não sei que outro nome devamos dar a tão grande desvario! Consintamos todavia aos homens, se o entenderdes, que gozem tranquilamente o prazer da vida; deixemos que a juventude possa contar com dias longos, e não lhe invejemos (Não lhe arrebatemos) a triste esperança de envelhecer. Imaginais que se deva fundar a sua futura conversão nesta esperança? Desenganai-vos, cristãos, e aprendei e conhecer-vos melhor. Tal é a natureza da vossa alma e da vossa vontade, que, sendo livre, não pode ser obrigada pelos seus objetos, porque se obriga a si própria. É semelhante a manilhas de ferro e torna-se numa como necessidade pelos seus atos: é o que se chama hábito, cuja violência muito conhecida e muito experimentada não me demorarei a descrever-vos. O que desejo é declarar-vos que há um certo ardor das paixões e uma força violentíssima da natureza, que a idade pode suavizar. Mas esta segunda natureza que se forma pelo hábito, mas esta nova ardência ainda mais tirânica que nasce do costume, mais a aumenta e a consolida o tempo (Que loucura deixar fortificar um inimigo que se pode vencer!) Portanto iludimo-nos deploravelmente, quando esperamos do tempo o remédio para as nossas paixões, que a razão em vão nos apresenta. Se não adquirirmos virtuosamente e por um esforço generoso a facilidade de as vencer, é loucura manifesta imaginar que a idade no-la dá (É um erro manifesto imaginar que a idade no-la traz). E, como prudentemente diz o Eclesiástico, "a velhice não encontrará o que a juventude não juntou" - Quae in juventute tua non congregasti, quomodo in senectute tua invenies? (Eclesiastes, 25, 5) E não é necessário chamar aqui de bem longe, nem os dois velhos da Babilônia, imprudentes caluniadores da pudica Suzana, nem a deplorável velhice de Salomão, sábio doutras eras. A experiência de agora evita-nos o trabalho de procurar cuidadosamente os exemplos dos séculos passados. Volvei apenas os olhos para os vossos parentes, para os vossos amigos, para todos os que vos cercam; e só vereis todos os dias que os vícios não diminuem com a natureza, e que as inclinações não se alteram com a cor dos cabelos. Pelo contrário, se deixarmos dominar a cólera, a velhice, em vez de a moderar, irritá-la-á pela sua tristeza. E quando se entrega tudo ao prazer, diz São Basílio que, na idade mais avançada, só se vêem ideias muito fixas, desejos muito juvenis; e, para dizer tudo, pesares que renovam todos os crimes. Por consequência, começai a despertar já, vós que, recusando agora converter-vos, dizeis que vos heis de converter um dia; desenganai-vos: Hora est jam. Pois que outra hora quereis escolher? Parece-vos que haverá alguma que seja mais cômoda ou mais favorável? Conhecei o segredo do vosso coração, e ouvi a mola que faz mover uma machina tão delicada. Eu sei que sois livres; não obstante, para vos excitar, é preciso uma razão que vos convença; e que razão mais convincente tereis então a não ser a que vos apresento? Haverá outro. Jesus Cristo, outro Evangelho, outra fé, outra esperança, outro paraíso e outro inferno? Que vereis de novo que seja capaz de vos excitar? Porque resistis agora? Porque quereis convencer-vos de que haveis de ceder mais facilmente noutro tempo? Donde virá essa nova força á verdade, ou essa nova docilidade ao vosso espírito? Quando essa paixão, que ora vos domina, quando esse secreto tirano do vosso coração tiver abandonado o império que usurpou (tiver, por assim dizer, descido do trono que usurpou) nem por isso sereis mais livre, nem mais senhor de vós. Se não vigiardes pelas vossas ações, o coração cederá o lugar a outro vício, em vez de o entregar ao legítimo Senhor, que é a Razão-Deus. Deixará, por assim dizer, um sucessor da sua raça, filho como ele da mesma cobiça. Quero eu dizer que os pecados hão de suceder-se uns aos outros; e se não fizerdes um grande esforço para interromper a sequência dessa sucessão infeliz, que só vê erros e dilações, ireis até ao túmulo. Sabei, pois, que todas essas dilações não são mais que um capricho manifesto, e que nada há mais insensato do que esperar a vitória das nossas paixões, do tempo que as fortifica. Mas eu ainda não disse o que os pecadores adormecidos mais devem recear. A morte súbita para eles é motivo de receio; mas, como pretendem convencer-se, apesar da experiência e de todos os exemplos, de que dela os preserva o seu vigor atual, acham que têm sempre tempo demais. Mortais temerários e pouco previdentes, que imaginamos que a justiça divina apenas tem um meio de nos perder! Não, meus irmãos, desenganai-vos. Muitas vezes somos condenados e punidos terrivelmente, antes de se declarar a vingança, e antes mesmo de a sentirmos. E de certo poderíamos compreender esta verdade pelo exemplo das coisas humanas. Nem sempre se diz aos criminosos a triste situação em que se encontram; muitas vezes vemo-los cheios de confiança, enquanto se decide a sua morte. Não é pronunciada a sentença, mas já está escrita no espírito dos Juízes. Um indivíduo qualquer, cujo crédito subsistia aparentemente, perdeu toda a consideração na corte e ficou completamente excluído de todas as graças. Se a justiça dos homens tem os seus segredos e os seus mistérios, a justiça divina não há de também ter os seus? Certamente, e muito mais terríveis. Mas é preciso estabelecer isto por meio das Escrituras. Ouvi, pois, o que se acha escrito no Deuteronômio: "Sabei que o Senhor vosso Deus pune sem demora os que o odeiam e inutiliza-os para logo, dando-lhes na mesma ocasião o que eles merecem" - Reddens odientibus se, statim ut disperdat eos, et ultra non differat, protinus eis restituens quod merentur (Deuteronômio 12, 10). Pesai estas palavras: sem demora, para logo, na mesma ocasião. Será verdade Deus punir sempre desta maneira? Não é verdade, se considerarmos a vingança a manifestar-se; mas é verdade, se considerarmos as penas ocultas que Deus envia aos seus inimigos, penas tão grandes e tão terríveis que vos demonstrei na primeira parte do meu discurso. O que peca é punido sem demora, porque é privado da graça na mesma ocasião, porque a sua fé diminui, porque um pecado atrai outro, e, porque se cai sempre mais facilmente depois de se ter caído a primeira vez. Tais são as penas terríveis que acompanham o crime no momento em que é cometido. É que os homens corruptos perdem todo o temor de Deus, isto é, todo o freio da sua excessiva liberdade; e as mulheres acabam de perder o último sentimento da modéstia, isto é, todo o ornamento do seu sexo. Finalmente o crime já não tem para nós um aspecto estranho que nos atemorize; mas infelizmente tornou-se familiar e já não surpreende a alma insensível. Não achais isto um grande suplício? Como assim? Disse o grande Santo Agostinho; se quando pecamos, fossemos logo acometidos duma doença súbita, se perdêssemos a vista, se nos faltassem as forças, acreditaríamos na punição de Deus, e teríamos um interesse sagrado em aplacar a Sua justa cólera por meio duma penitência rápida. Não é a vista corporal, senão a luz da alma que se extingue em nós; não é essa saúde frágil que perdemos, senão Deus que nos entrega às nossas paixões, que são as nossas doenças mais perigosas. Deixamos de ver e de apreciar as verdades da fé. Cegos e endurecidos, caímos num adormecimento e numa insensibilidade mortal; e ao passo que Deus a isto nos entrega por uma justa punição, não sentimos nós a Sua mão vingadora, e imaginamos que Ele nos perdoa e nos salva. De que nos serve viver no meio dos homens, se afinal estamos mortos e perdidos para Deus e para os anjos? Para fazer morrer uma arvore nem sempre é necessário desarraiga-la. Vede aquele grande carvalho seco, que já não cresce; nem floresce, nem dá bolotas, nem folhas; tem a morte no seio e na raiz: Nomen habes quod vivas, et mortuus es: (Apocalipse 3, 1) "Dizem que estais vivo; mas realmente estais morto", e continua firmando-se no tronco e estendendo os seus vastos ramos. Cristão de coração insensível, eis a tua imagem. És uma árvore estéril, a quem Deus ainda não cortou a raiz nem deitou por terra para atirar ao lume (à chama) mas a quem tirou o espírito de vida. Receai, pois, pecador adormecido, receai a extrema insensibilidade. Acordemos que já é tempo. Porque tendes os vossos corações duros como o de Faraó? Acordai sem demora, pois, quanto mais vos demorardes mais agravares as vossas penas. Esperais talvez acordar quando de novo vos entregardes aos prazeres? E quando deve o cristão vigiar, senão quando falar Jesus Cristo? Refleti, bem; imaginais estar longe dessa mortal letargia, dessa insensibilidade funesta de que estais ameaçado tão terrivelmente por tantos oráculos da Escritura? Se pensásseis nos vossos primeiros pecados, havíeis de impressionar-vos: Percussit eum cor David (2, Reis, 24, 10) Os vossos remorsos eram mais vivos e as vossas graças a Deus mais frequentes. Não raras vezes derramáveis lágrimas pela vossa condenação; ao passo que, se morrêsseis, o vosso triste funeral seria pelo menos honrado com algum luto. Agora que haveis cometido o crime, já os sagrados conselhos vos não impressionam nem julgais úteis os Sacramentos. Emfim, cristãos, o que deveis recear é que Deus vos condene às penas eternas e que a vossa alma se transforme num navio feito em destroços, que já não possa conter a graça. É do que estão ameaçados pelo Espírito Santo os que profanam os Sacramentos pelas suas reincidências e que conservam os seus maus desejos pela sua condescendência. "Hei de parti-los, disse o Senhor, como se fossem um vaso de barro, e hei de reduzi-los a pó de tal maneira que não ha de ficar o menor fragmento em que se possa colocar uma faulha ou com que se possa tirar uma gota de água". Singular condição a desta alma despedaçada, completamente destruída! Se se aproxima do sacramento da penitência e desse manancial de graça que dele deriva, não recebe uma gota de água. Se ouve sagrados discursos que seriam capazes de abrasar corações, não recebe a menor cintila. É um navio inteiramente despedaçado, e, se ela não fizer um último esforço para acordar o espírito da graça e para excitar a fé adormecida, perecerá sem remédio. Mas, irmãos meus, ainda que eu assim fale, tenho esperança em que haveis de proceder melhor. Mas então será inútil a minha, palavra? Não atuará o espírito do meu Deus? Não haverá qualquer coisa no imo dos vossos corações? Se há, então viveis, e a vossa saúde não está arruinada. Não percamos este momento de energia; soltai lamentos, soltai suspiros, que são os sinais de vida que vos pede o médico celeste. Depois, deixai atuar a sua mão benfazeja. "Pois porque desejais morrer? Eu não quero a morte do que morre; convertei-vos e vivei, disse o Senhor omnipotente" - Et quare moriemini, domus Israel? Quia nolo mortem morientis, revertimini, et vivite (Ezequiel 18, 31-32). Mas eu nada consegui, cristãos, em ter talvez excitado um pouco a vossa atenção com o fim de vos salvardes pela palavra de Jesus Cristo e do Evangelho, se vos não convencer de que haveis de pensar nisto a miúde. Todavia, não cabe a um mortal levar ao espírito dos outros estas verdades importantes; a Deus é que compete gravar-lhas. E como hoje nada mais fiz do que recitar-vos as Suas santas palavras, direi ainda, para acabar, o que Ele pronunciou pela Sua própria boca no Deuteronômio: "Escutai, Israel; o Senhor vosso Deus é o único Senhor. Haveis de amá-lo de todo o vosso coração, de toda a vossa alma e com toda a vossa energia. Gravai no coração as minhas palavras e as leis que hoje vos dou; comunicai-as a vossos filhos e vós meditai nelas, quer estando em vossa casa sentado, quer andando a caminhar. Tende-as sempre presentes ao deitar e ao levantar; atentai sempre nos meus preceitos, de maneira que nunca os percais de vista" Tal é a lei inviolável dos artigos que Deus tinha dado a nossos pais. Pesai todas as Suas palavras, e vereis que ela lhes ordena que tragam gravados no coração, tanto a Deus como aos Seus sagrados mandamentos, que falem muitas vezes nele para se não esquecerem; que lhe testemunhem sempre um secreto agradecimento e que, no meio das suas ocupações; o tenham sempre na mente. Alem disso, que dediquem um certo tempo para nEle pensarem a sós, tranquilamente, com uma aplicação particular; que acordem e adormeçam com este pensamento, para que, se o inimigo os quiser surpreender, lhe possam evitar as suas ciladas. Não me digais que esta atenção só é dada aos conventos e à vida solitária. Este preceito formal foi escrito para todo o povo de Deus. Os judeus, por serem sensuais e rudes, reconhecem ainda hoje que lhes é imposta esta obrigação indispensável. Se pretendermos que este preceito tenha menos força na lei da graça e que os cristãos se obriguem menos a esta atenção do que os judeus, desprezamos o Cristianismo e menoscabamos Jesus Cristo e o Evangelho. O falso profeta dos árabes, cujo paraíso é sensual e cuja religião apenas consiste em política, não deixou de prescrever aos seus infelizes sectários que adorassem cinco vezes a luz, e bem vedes a que ponto chega a sua pontualidade a esta observância. Os cristãos julgar-se-iam dispensados de pensar em Deus, porque não se lhes marcou horas precisas? É porque eles devem vigiar e orar sempre. Não penseis que esta prática vos seja impossível: a passagem que eu recitei dar-vos-á um meio infalível. Se Deus ordena aos israelitas que se ocupem perpetuamente dos Seus sagrados preceitos, ordena-lhes primeiro que O amem e que se interessem vivamente pelo Seu culto. Amai o Senhor, disse Ele, e gravai no vosso coração estas santas palavras. Tudo o que temos no coração, se nos mostra facilmente, sem forçar a nossa atenção, sem cansar o nosso espírito e a nossa memória. Perguntai a uma mãe se é preciso lembrar-lhe o filho único. E será preciso aconselhar-vos a que penseis na vossa fortuna e nos vossos negócios? Quando parece terdes noutra parte o vosso espírito, não estais sempre vigilantes, sempre ativos e secretamente atentos a este respeito, bastando a menor palavra para vos acordar? Se pudésseis tomar à peito a vossa salvação eterna e considerar como negócio importante aquele que assim devia ser considerado, os nossos salutares conselhos não seriam para vós um suplício, e havíeis de pensar mil vezes por dia num interesse desta importância. Mas na verdade, se não amarmos a Deus, se não cuidarmos de nós, e se apenas somos cristãos no nome, excitemo-nos emfim, e encaremos seriamente a nossa eternidade. Grande Rei, que sois muito superior a antecessores tão augustos, e que nós infatigalmente vemos entregue aos grandes negócios do vosso Estado, que encerram os negócios de toda a Europa, eu proponho a tão grande gênio obra mais importante e objeto mais digno da sua atenção: é o culto a Deus e a salvação da vossa alma. Porque, real Senhor, de que vos servirá terdes elevado a tão grande altura a glória da vossa França, de a terdes feito tão poderosa no mar e na terra, e, com o auxílio das vossas armas e dos vossos conselhos, haverdes feito com que o mais celebre, o mais antigo, o mais nobre reino do universo seja a todos os respeitos o mais temível, se depois de terdes enchido todo o mundo com o vosso nome e com todas as histórias dos vossos feitos, não continuardes a trabalhar em obras que sejam contadas a Deus e que mereçam ser escritas no livro da vida? Vossa Majestade não viu no Evangelho deste dia a admiração do mundo assustado, esperando o dia tremendo em que Jesus Cristo há de aparecer cheio da sua majestade? Se os astros, se os elementos, se as grandes obras que Deus parece ter querido edificar tão solidamente para as tornar eternas estão ameaçados de ruína, que virá a ser das obras que tiverem feito mãos de mortais? Não vedes o fogo devorador que precede o juiz terrível, que há de aniquilar num só dia cidades, fortalezas, cidadelas, palácios, casas de campo, arsenais, mármores, inscrições, títulos, histórias, e que de todos os monumentos reais há de fazer uma grande fogueira e pouco depois um montão de cinzas? Podemos pensar na grandeza do dia em que tudo há de ser reduzido a pó? É necessário que haja outros fatos e outros anais. Meus senhores, Deus faz um diário da nossa vida: uma mão divina, escreve a nossa história, que um dia nos há de ser apresentada e a todo o universo. Tratemos, pois, de a embelecer. Façamos desaparecer por meio da penitência o que nela nos cobriria de confusão e de vergonha. Acordemos que já é tempo. As razões por que devemos, ser solícitos fortalecem-se todos os dias cada vez mais. A morte avança, o pecado vence, a insensibilidade aumenta; todos os momentos fortificam o discurso que vos fiz, e que há de amanhã atuar ainda mais energicamente do que hoje. O Apóstolo disse-o depois do meu texto: Propior est nostra salus: (Romanos 13, 11) "A nossa salvação todos os dias se aproxima, cada vez mais" Se a nossa salvação se aproxima, também se aproxima a nossa condenação; uma e outra caminham igualmente. "Pois como havemos de salvar-nos, disse o mesmo Apóstolo, se desprezarmos a salvação?" - Quomodo nos effugiemus, si tantam negligerimus salutem? (Hebreus 2, 3). Cuidemos pois da nossa salvação, visto que Deus nos envia um Salvador: Jesus Cristo virá ao mundo "cheio de graça e de verdade"; (São João 14) sejamos fiéis à Sua graça e ouçamos com atenção a Sua verdade, a fim de compartilharmos da Sua glória. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 1º Domingo do Advento - 2º Sermão para o 1º Domingo do Advento O Juízo Pregado em São Tomé do Louvre em 1668. SUMÁRIO Exordio. - A Igreja, sabendo que o receio vem antes do amor, mostra-nos Jesus Cristo terrível nos seus juízos antes de no-lo mostrar condescendente para com as nossas misérias. Proposição, divisão. - Os que desprezarem a bondade do Senhor, hão de suportar a Sua justa cólera. Se se sublevarem contra o Seu poder, ela há de abatê-los; se desprezarem a Sua bondade, experimentarão os Seus rigores; se não quiserem viver num império suave e legítimo, ficam sujeitos a uma dura e insuportável tirania. 1º Ponto - Devemos usar da nossa liberdade para nos submetermos filialmente a Deus a quem pertencemos absolutamente. 2º Ponto - O amor de Deus enche-nos de favores, e se nós desconhecemos os benefícios do Senhor e as liberdades infinitas de Jesus Cristo, sofreremos as Suas terríveis consequências. 3º Ponto - Visto que não quisestes servir o Senhor alegremente, haveis de sofrer o jogo do vosso inimigo. Não há império mais suave e mais legítimo do que o de Deus sobre o homem. Peroração - Os nossos inimigos preferem antes corromper-nos do que atormentar-nos. Envergonhemo-nos de suportar a sua tirania e de sermos algemados, depois de Jesus Cristo nos ter feito reis. Justus es Domine, et rectum judicium tuum Senhor, vós sois justo e o vosso juízo é reto (Salmo 118, 134). O receio vem antes do amor, e Deus manda primeiro o Seu espírito de terror antes de inocular nos corações o espírito de caridade e de graça. É preciso que o homem saiba temer a Sua mão suprema e recear os Seus juízos antes de haver recebido o espírito de confiança; aliás esta confiança poderia degenerar em temeridade e disparar numa audácia insensata. Dentro em pouco aparecerá o Salvador cheio de verdade e de graça. Vem trazer a paz, vem excitar o amor, vem estabelecer a confiança. Mas a Igreja, que se ocupou, durante este tempo do Advento, a preparar-lhe os seus desígnios, estabelece primeiro o receio, porque, sempre norteada pelo Espírito Santo e muito prudente em Seus intentos, sabe que deseja excitar as almas antes de as tranquilizar, e causar medo antes de inspirar amor. Falemos agora, cristãos, das Suas qualidades; consideremos Jesus Cristo como juiz antes de o considerarmos como Salvador. Vejamo-lo descer do céu no meio das nuvens com aquela majestade temível, antes de contemplarmos aquela brandura, aquela bondade e aquelas infinitas ternuras para com o gênero humano, que em breve nos hão de aparecer no Seu sagrado e feliz nascimento. E sê imaginais talvez que o juiz tem duas palavras, e que se os maus são condenados por que ao fogo eterno, também os bons ficam gozando dum eterno repouso, escutai o que diz o próprio Cristo: "Aquele que acreditar nEle, diz ele, não será julgado" (São João 3, 18). Não diz que não será condenado, mas que não será julgado, para ficarmos sabendo que o que ele deseja dar-nos a entender, principalmente no juízo final (Universal) é o seu rigor implacável e essa terrível execução da última sentença, que será pronunciada contra os rebeldes. Quem me dará, cristãos, palavras bastantemente eficazes que penetrem o vosso coração e vos inspirem o temor pelo dia do juízo? Falai vós, Senhor, nesta tribuna; que só a vós assiste o direito de falar nela, e nunca nela se deve ouvir senão à vossa palavra. Mas, irmãos meus, nesta ação em que se trata de representar o que Deus fará de mais grandioso e de mais terrível, limito-me mais do que nunca a por na boca dEle o que diz a sua Escritura. Oxalá que o seu Espirito divino e santo falte aos corações, em quanto eu falar, etc. É a graça que lhe peço etc. Quod si nec sic volueritis disciplinam, sed ambulaveritis ex adverso mihi, ego quoque contra vos adversus incedam, et percutiam vos septies propter peccata vestra... Et ego incedam contra vos in furore contrario... Et conteram superbiam duritiae vestrae. Et abominabitur vos anima mea (Levítico, 26 19, 23 seguintes). "E se depois de aconselhados, ainda não quiserdes submeter-vos à disciplina e caminhardes diretamente contra mim, eu igualmente caminharei diretamente contra vós, e ferir-vos-ei sete vezes, isto é, sem atender ao número dos vossos pecados, e quebrarei a vossa soberba e indomável dureza, e a minha alma há de execrar-vos" O Deuteronômio é mais curto, mas não menos terrível: Sicut laetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic laetabitur subvertens atque disperdens: (Deuteronômio 28, 63) "Assim como o Senhor se regozijou com elevar-vos (Engrandecer-vos) e fazer-vos bem, assim se há de regozijar com perder-vos e destruir-vos completamente" Mas eis uma terceira ameaça que completa os males dos pecadores: Eo quod non servieris Domino Deo tuo in gaudio cordisque laetitia propter rerum omnium abundantiam: servies inimico tuo, quem immitet tibi Dominus, in fame, et siti, et nuditate, et omni penuria; et ponet jugum ferreum super cervicem tuam, donec te conterat (Deuteronômio 47, 48). "Visto que não quisestes servir o Senhor vosso Deus com a alegria do vosso coração, no meio da abundância de todas as espécies de bens, sereis entregues (Servireis) ao vosso inimigo, que o Senhor há de enviar contra vós, com a fome, com a sede, com a nudez, e com uma extrema carestia; e esse inimigo cruel há de colocar-vos sobre os ombros um jugo de ferro por meio do qual haveis de ser esmagados". Para ligar estas três passagens sejam dados três caracteres: no primeiro, o poder desprezado; no segundo, a bondade irritada pela ingratidão; no terceiro, a majestade e a soberania violadas. E aqui estão em três palavras os três fundamentos da vingança divina que o Espírito Santo nos quer dar a entender! Haveis-vos sublevado contra o poder infinito, mas Ele há de oprimir-vos! Desprezastes à bondade, mas haveis de experimentar os Seus rigores. Não quisestes viver num império suave e legítimo, mas ficareis sujeitos a uma dura e insuportável tirania. PRIMEIRO PONTO Mas para proceder com ordem na explicação das palavras que referi, devemos considerá-las na sua relação. A primeira que apresentei foi esta: Quod si nec sic volueritis disciplinam - "E se não quiserdes submeter-vos à disciplina" Antes de mais nada mostra-lhes ele a liberdade da escolha que lhes é dada, porque é essa liberdade que nos faz criminosos e que miseravelmente nos entrega à justiça divina, se dela fizermos mau uso. Para compreender esta verdade, é preciso saber que Deus, que é por natureza nosso soberano, quis também sê-lo por escolha nossa. Julgou que a glória do Seu império seria menos perfeita, se não tivesse vassalos voluntários; e foi por isso que Ele fez as criaturas racionais e inteligentes, e que, pertencendo-Lhe já quando nasceram, pudessem ainda obrigar-se a obedecer-Lhe voluntariamente e a submeterem-se ao Seu império por um consentimento expresso. Esta verdade importante acha-se magnificamente revelada no livro de Josué, onde vemos que este fiel servo de Deus, depois de ter remido o povo, lhe dirige estas palavras: "Se não estais satisfeitos de servir o Senhor, optai livremente; escolhei hoje o que quiserdes, dizei a que senhor quereis servir e determinai a quem haveis resolvido submeter-vos" - Eligite hodie quod placet, cui potissimum servire debeatis. E todo o povo respondeu: "Nós não desejamos abandonar o Senhor; pelo contrário, queremos servi-Lo, porque Ele é que efetivamente é o nosso Deus" Josué não se contenta com esta primeira aceitação, e, falando novamente, diz ao povo: "Pensai no compromisso que tomais. Vós não podereis servir o Senhor nem viver na Sua presença, porque Deus é forte, santo e infinitamente bom, e não perdoará os vossos crimes e os vossos pecados". E o povo replicou: "Não, Ele não há de ser como dizeis, e nós havemos de servi-Lo e ficaremos sendo seus vassalos" Então Josué lhes observa: "Pois nesse caso sois hoje testemunhas da escolha que propriamente fazeis do Senhor para vosso Deus e para O servir. - Pois seremos testemunhas" Se eu tentasse referir-me a tudo o que há a notar nestas palavras, faria um discurso completo, mas não desenvolveria o assunto principal. É claro que Deus, deixando-nos o direito de opção, não renúncia; ao direito que lhe assiste, não pretende dispensar-nos da obrigação primitiva que temos de lhe pertencer, nem conceder-nos de tal forma a escolha que possamos pacificamente e com justiça subtrair-nos ao Seu império. Quer, pelo contrário, que Lhe pertençamos tão voluntariamente como já Lhe pertencemos de direito natural, e que confirmemos por uma escolha expressa a nossa dependência necessária e inevitável. Porque deseja Ele isto desta maneira? Por causa da nossa perfeição e da nossa glória. Aquele a quem devemos tudo, deseja mostrar-se reconhecido para conosco, conferindo-nos um título que nos autoriza a pedirmos-Lhe recompensas. E se não lhe quisermos obedecer damos-Lhe nós um título que nos acarreta suplícios. Eu estou aqui para expor as verdades eternas, e não para responder a todos os murmúrios dos que se elevam contra estes oráculos; não obstante, direi estas palavras: Ó homem, quem quer que sejas, que lamentas não ser um animal irracional, e a quem pesa a luz da razão e a honra da liberdade, não te lastimes pelos favores que recebes, nem acuses temerariamente o teu benfeitor. Se fosses independente por índole, e que Deus ainda assim exigisse de ti que te tornasses dependente por tua vontade, talvez tivesses razão em achar a obrigação importuna, ou o pedido incivil, mas o uso que Ele pretende da tua liberdade é deveras legítimo. O que Ele exige é muito fácil, muito natural e muito justo. É a espontaneidade do coração que no-lo impõe. Se fosse preciso sairmos do nosso estado e transportarmo-nos a um domínio estranho, seria talvez uma violência fazê-lo; mas apenas se trata de consentir em ficar no mesmo estado. Emfim, quando Deus exige que sejamos Seus vassalos, quer que sejamos o que somos e que acomodemos a nossa vontade à nossa própria essência. Nada mais natural, nem mais fácil, a não ser que a vontade seja absolutamente pervertida. Desta maneira devemos confessar que elá o é estranhamente em todos os pecadores. Porque desde que eles não queiram depender de Deus, também já não querem ser o que são. Combatem em si próprios os primeiros princípios e o fundamento do seu ser. Corrompem a sua própria retidão. Não se harmonizam com Deus, e, por consequência, Deus não se harmoniza com eles. Submetidos a Ele como juiz, Deus julga-os, porque conhece o seu desvario, e odeia-os, porque as regras da Sua verdade repugnam à injustiça deles. Nada é contrario a Deus, dizem eles, nada Lhe repugna, nada O ofende, porque coisa alguma O prejudica ou perturba. - Dizei também que nada se faz no mundo que seja contrário à razão; levai até aí o desconcerto do vosso juízo depravado. Se fordes privados da vossa propriedade, a vossa razão, que é fraca e humana, continha a subsistir, quanto mais a divina e a original? É preciso que ela subsista eternamente e seja inviolável, para que se exerça a justiça. Et erit in tempore illo, visitabo supra viros defixos in faecibus suis, qui dicunt in cordibus suis: Non faciet bene Dominus, et non faciet male: et erit fortitudo eorum in direptionem (Sofonias 1, 12-13) Videbitis quid sit inter justum et impium, inter servientem Domino et non servientem ei (Malaquias 3, 18). É, pois, necessário fazer-vos aqui compreender a que nos obriga a nossa liberdade, e as grandes responsabilidades que ela traz consigo pelas ações que praticamos. Com esta liberdade hostilizamos a Deus, e o uso dessa liberdade é feito com uma audaciosa transgressão de todas as suas leis. Transgredimos ambas as tábuas da lei de Deus. "Tu adorarás o Senhor teu Deus" (Deuteronômio 6, 13). Em que lhe prestamos esta adoração? Porventura confessamos ter faltado a este dever? Como se este preceito, sendo o principal de todos, não fosse o primeiro do Decálogo senão por deferência e implicasse menos obrigação! Santificai os dias santos. Imaginais certamente ter satisfeito ao espírito (Cumprido o espírito) da lei com uma Missa que dura menos de meia hora, que nunca é curta de mais e que se ouve sem atenção e até sem respeito aparente? Durante as vinte e quatro horas que tem o dia devíamos dedicar alguns momentos a essa celebração. Ocorre-me aplicar aqui esta censura; "Este povo honra-me com os lábios" (Isaías 29, 13) etc.; mas nós, nem ao menos com os lábios o honramos. Eu não sei quem mais hei de censurar, se os que apenas O honram com os lábios, se os que nem ao menos com os lábios O honram; se os que apenas aparentam honrá-Lo, se os que nem sequer sabem aparentar. De maneira que a diferença que existe entre os dias santos e os outros dias é que nos dias santos as profanações e as irreverencias são mais públicas, mais escandalosas e mais universais. E quanto à segunda tábua que diz respeito ao próximo, manchamos-lhe todos os dias a honra com as nossas murmurações, o repouso com os nossos vexames, a propriedade contra os nossos roubos e até o leito com os nossos adultérios. Digamos depois disto que não travamos luta com Deus! Mas é que Ele também trava diretamente luta conosco. Jesus desce das nuvens para destruir os Seus inimigos como um sopro e dissipá-los com a luz da Sua vinda gloriosa. Se o fraco se eleva contra o forte, o forte oprime o fraco. O forte ofereceu a paz ao fraco, mas o fraco quis combater; resta saber quem prevalecerá e quem ganhará a vitória. Se, resistindo altivamente a um soberano semelhante a Deus, continuamos a viver felizes, segue-se que Deus já não é Deus; nós prevalecemos sobre Ele e a Sua vontade é vencida pela da criatura. Mas porque ela é invencível, só pode ser feliz quem Lhe obedecer; e todo o que se sublevar contra Ele tem de necessariamente ser oprimido pelo Seu poder. É ainda por esta razão que Ele acrescenta estas palavras: "E eu hei de abater a vossa altiva e indócil dureza" Vós sois cruéis para com Deus, e Deus é cruel para convosco. Vós lutais com Ele e Ele luta convosco: vós, como homem, com toda a força do vosso coração, e ele como Deus, com toda a força do seu, se assim me posso expressar. Vós sois constante e Ele também o é. Vós persistis em ficardes possuidores da propriedade roubada, e eu vejo sempre nos vossos cofres, diz o santo Profeta (Miquéias 6, 10) essa chama devoradora, esse tesouro de iniquidade, essa propriedade roubada que há de talvez destruir a vossa casa e certamente fará perder a vossa alma. Perseverança tenaz (Humana) ah! Deus vos oporá uma perseverança divina, uma firmeza imutável, um decreto fixo e irrevogável, uma resolução eterna, Sois incorrigíveis, e é por isso que Ele vos há de amaldiçoar; e, como incorrigíveis, há de ferir-vos sem piedade e já não ouvirá os vossos gemidos. É um ódio fundo que Deus vos tem (Se escutardes uma palavra da bondade de Deus, que vós desprezais, vereis como Ele vos fala). SEGUNDO PONTO Ainda que um Deus irritado nunca se mostre aos homens senão com magnífica pompa, nunca, porém, ele é mais terrível do que no estado em que eu devo representá-lo, não como se poderia imaginar, envolvido numa nuvem inflamada ou num turbilhão fulminante (sempre ameaçador, sempre fulminante, e despedindo da vista um fogo devorador) mas armado dos seus benefícios e sentado num trono de graça. Nolite contristare Spiritum sanctum Dei, in quo signati estis (Efésios 4, 30). Sente prazer em fazer bem, e aflige-se quando lh'o negam. Afligir e entristecer o Espírito de Deus! Não é tanto o ultraje que é feito à Sua santidade, como a violência que sofre o Seu amor desprezado e a Sua boa-vontade ferida pela nossa resistência tenaz. Diz o Santo Apóstolo que o que aflige o Espírito Santo é o amor de Deus a atuar em nós para a conquista dos nossos corações. Deus irrita-se contra os demônios; mas, como já não espera deles o afeto, não se aflige nem entristece com a sua desobediência. A um coração cristão é que Ele deseja fazer sentir a Sua ternura, desejando que correspondam a ela. Daqui nasce o desprezo que O aflige e O entristece, e uma repulsão da parte dos ingratos, que O ofendem duramente. Sicut Iaetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic Iaetabitur subvertens atque disperdens (Deuteronômio 28, 63). O amor repelido, o amor desdenhado, o amor ultrajado pelo mais injurioso desprezo, o amor esterilizado pelo excesso da sua abundância, faz esgotar o manancial das graças e abrir o das vinganças. Nada há mais furioso do que um amor desprezado e ultrajado. Deus, abençoando-nos, entregou-Se à Sua natureza benfazeja; mas nós entristecemo-lO e afligimos o Seu Espírito Santo; transmudamos o prazer do benefício num prazer de punição; e é justo que ele repare a tristeza que causamos ao Espírito da graça, com uma alegria eficaz, com um triunfo do seu coração e com um zelo da sua justiça em castigar as nossas ingratidões. Justiça do Novo Testamento que se aplica pelo sangue, pela bondade até e pelas graças infinitas dum Deus redentor. Ecce Agnus Dei (São João 1, 36) Jam enim securis ad radicem posita est (São Mateus 3, 10). A cólera vem sempre a par da graça; o golpe dá-se sempre com o próprio benefício; e se a santa inspiração não nos vivifica, mata-nos. Pois donde imaginais que saem as chamas que devoram os cristãos ingratos? Dos Seus altares, dos Seus Sacramentos, das Suas chagas, desse lado aberto na cruz que é para nós um manancial de infinito amor. É deles que hão-de sair a indignação da justa ira, e tanto mais implacável quanto mais diluída há de ser no próprio manancial das graças. Porque é justo e muito justo que tudo, incluindo as próprias graças, seja funesto para um coração ingrato. Ó peso das graças repelidas! Peso dos benefícios desprezados! A facie irae colambae (Jeremias 25, 38) Operite nos a facie... Agni (Apocalipse 6, 16). Não é tanto o aspecto de Pai irritado; é o aspecto dessa pompa terna e benfazeja que gemeu tantas vezes por eles, e desse Cordeiro que por eles se imolou. Sol obscurabitur et luna non dabit lumen suum, et stellae cadent de caelo et virtutes caelorum commovebuntur; et tunc parebit signum Filii hominis... Et tunc plangent omnes tribus terrae: et videbunt Filium hominis venientem in nubibus caeli cum virtute multa, et majestate (São Mateus 24, 29-30). Meditemos atentamente no que havemos de oferecer à justiça de Deus pelo desprezo ultrajante dos Seus favores infinitos. Quem dá tem direito de exigir, e Ele exige agradecimentos; se Lhe não derem agradecimentos, exigirá suplícios: não perde os seus direitos. As graças que desprezais preparam uma eternidade infeliz. "A graça, diz o Salvador, é fons aquae salientis" (São João 4, 14). Quando, pois, vos sentis abalados, quando às vezes sentis um certo desprezo pelas pompas do mundo que desaparecem, "com a sua sua figura passageira" (1 Coríntios 7, 31) com as suas flores que murcham durante o dia; quando aborrecidos de vós mesmos e da vossa vida desregrada, contemplais satisfeitos, os vastos atrativos da virtude... Ó castidade, ó modéstia! Ó pudor transitório! Ó ternura de consciência que não podia suportar crise alguma! Mas ó abandono, aviltamento dum coração (O' santa timidez, guarda da inocência! Mas ó força prestes a fraquejar! Ó ousadia para alcançar o perdão! Ó covarde abandono de um coração corrupto e entregue aos seus desejos!) Que deseja o Senhor vosso Deus, senão que vos concilieis fortemente com Ele, e que, com essa conciliação vivais felizes? Foi por isso que Jesus Cristo veio ao mundo "cheio de graça e de verdade" (São João 1, 14). Foi por isso que comunicou a todos os Seus Sacramentos uma influencia vital para que, participando dela, possamos viver. Se soubermos aproveitar todos os Seus benefícios, adquiriremos, mercê da Sua bondade, um eterno direito sobre ele próprio para pacificamente o possuirmos. Mas se os desprezarmos, certamente lhe damos reciprocamente um título justíssimo para nos castigar com suplícios tanto mais inauditos quanto mais extraordinários eram os seus benefícios - Sicut laetatus est Dominus bene vobis faciens vosque multiplicans, sic Iaetabitur subvertens atque dispersens. E, na verdade, é justo que a Sua cólera esteja na proporção dos Seus benefícios e das nossas ingratidões, e que o Seu furor implacável atormente tanto mais um coração infiel quanto mais encantos para o conquistar havia empregado o Seu amor benfazejo. É por isso que não devemos crer que acabem as graças divinas; de modo nenhum. As graças que desprezamos junta-as Deus em Seu seio, onde a Sua justiça as transforma em dardos penetrantes com que hão de ser feridos os ingratos. Eles hão de saber, os miseráveis! O que é abusar dos benefícios dum Deus, forçar o seu natural benfazejo, obrigá-lo a ser cruel e inexorável, quando, Ele só queria ser liberal e benfeitor. Deus não deixará de os fulminar com a Sua mão soberana e vitoriosa que lhes distribuiu dons, que eles injuriosamente recusaram, e que se hão de converter em eternas censuras que sobre eles hão de pesar. E então, sempre vivos e sempre moribundos, imortais para a dor, fortes demais para morrer, e extremamente fracos para o sofrimento, eles hão de gemer eternamente em leitos de chamas, oprimidos de furiosas e irremediáveis aflições. E, soltando por entre blasfêmias execráveis mil gemidos desesperados, hão de suportar para sempre o peso infinito de todos os Sacramentos profanados, de todas as graças repelidas e não serão oprimidos pelas misericórdias de Deus, senão pelo excesso intolerável das Suas vinganças. Tremei, pois, cristãos, no meio dessas graças imensas e desses benefícios infinitos que vos cercam! Todos os movimentos da graça são dum peso terrível para nós. Na nossa vida nada há que se despreze. O nosso destino, o nosso estado e a nossa vocação têm qualquer coisa de grandioso. Tudo nos serve ou nos aborrece extremamente. Cada instante da nossa vida, cada movimento da nossa respiração ou das nossas artérias, se assim me posso expressar, cada centelha do nosso pensamento tem consequências eternas. Há eternidade dum lado e d'outro. Se acompanhardes fielmente o instinto da graça, a feliz eternidade concilia-se com com ela; mas se desprezardes a graça, outra eternidade vos espera, e vós tereis uma pena eterna por terdes perdido (Se perderdes) voluntariamente um bem que poderia subsistir. TERCEIRO PONTO Resta considerar a terceira pena com que Deus ameaça o Seu povo rebelde, a qual aprouve ao Espírito Santo exprimir-nos nestas palavras, que eu repito mais uma vez: "Visto que não quisestes servir o Senhor vosso Deus com o prazer do vosso coração, no meio da abundância de todas as espécies de bens, servireis ao vosso inimigo, que o Senhor enviará contra vós, na fome, na sede, na nudez e numa extrema necessidade de tudo; e esse inimigo colocar-vos-á sobre os ombros um jugo de ferro que vos esmagará" (Deuteronômio 28, 47-48). Quer isto dizer, conforme já expliquei, que sereis justamente submetidos a uma dura e insuportável tirania, visto não quererdes viver num império suave e legítimo. Há aqui expressas duas condições do império de Deus: nenhum há que seja mais legítimo, nem também mais suave. Vós não quisestes servir a Deus Nosso Senhor e, na verdade, não há Senhor de direito mais bem estabelecido nem de título mais legítimo. Foi Ele que nos criou e nos resgatou. Pela criação somos obra das Suas mãos, pela redenção o prêmio do Seu sangue, somos ainda pela criação os Seus vassalos e pela adoção os Seus filhos. Pertencemos-Lhe, fomos assinalados por Ele, criados à Sua semelhança e cimentados com o Seu Espírito Santo. Não podemos negá-lo sem que a nossa entidade nos negue, nem finalmente renunciar a ele sem renunciar a nós mesmos. Sendo este império o mais legítimo, é, por consequência, o mais natural; e sendo o mais natural, segue-se que é também o mais suave. Não é, pois, sem motivo que é prometido o gozo do coração aos que servem o Senhor seu Deus. Porque aquele que estiver no estado que a natureza exige fica cheio de contentamento. O gozo é, pois, necessário a quem servir a Deus, assim como a abundância e a plenitude. Ninguém sabe melhor o que nos convém do que quem nos criou; nem melhor no-lo pode dar, visto que tem tudo em Suas mãos. Ninguém mais sinceramente o deseja, visto que nada convém melhor ao que começou a obra, dando-nos o ser, do que completá-la, dando-nos a felicidade e o descanso. Tal é a condição da criatura sob o império do seu Deus; vive rica, satisfeita e feliz. Deus, que de nada carece, só deseja governar-nos para nosso bem, e possuir-nos para tudo possuirmos nEle. Portanto, ó criaturas rebeldes! Ó pecadores que vos sublevais contra Deus! Cumpri agora a vossa sentença. Dizei, senhores, o que merecem os que recusam submeter-se a um governo tão vantajoso e tão justo. Que merecem senão a opressão dum jugo de ferro, em vez dum jugo agradável; em vez dum poder benéfico e amigo, um inimigo insolente e que ultraja; um tirano, em vez dum pai; a sujeição e o terror dos escravos, em vez da alegria dos filhos; em vez do júbilo e da abundância, a fome, a sede, a nudez e uma extrema carestia. Devo dizer-vos qual é o inimigo que Deus há de enviar contra vós. O que se declarar inimigo de Deus e que, não podendo defrontar com Ele, se vingar da Sua imagem, desdourando a e deixando fixar no espírito invejoso uma frívola ideia de vingança, é como Satanás com os seus anjos. Espíritos negros, tenebrosos, enfurecidos e desesperados, que, irremediavelmente perdidos, só mostram agora essa negra e satânica alegria própria dos perversos por terem cúmplices, dos invejosos por terem companheiros, e dos soberbos caídos por arrastarem outros consigo. É essa raiva, é esse furor de Satanás e dos seus anjos que o profeta Ezequiel nos representa pelo nome e pela figura de Faraó, rei do Egito. Espetáculo medonho! Em volta dele estão cadáveres vitimados por chagas cruéis. Ali jaz o Assur, diz o profeta com toda a sua multidão; acolá caiu Elam e todo o povo que o acompanhava; além Moloch e Thubal, com os seus príncipes e os seus capitães e todos os outros do seu séquito; número ilimitado, reunião infinita, multidão imensa, todos estão caídos por terra, nadando no seu sangue. Faraó está no meio, deleitando a vista com tão grande mortandade de gente consolando-se com a sua perda e com a ruína dos seus. Faraó com o seu exercito, Satanás com os seus anjos: Vidit eos Pharaó, et consulatus est super universa multitudine sua quae interfecta est gladio, Pharaó et omnis exercitas ejus (Ezequiel 32, 22 - 24 - 26 - 31). Emfim, parecia dizerem, não havemos de ser nós os únicos miseráveis. Deus quis suplícios e conseguiu-o; o sangue jorra e é grande a matança. Quiseram igualar-nos aos homens, e eles é que são iguais a nós nos tormentos. Esta igualdade apraz-lhes. Eles sabem que os homens devem julga-los e ficam assoberbados de raiva! Mas antes deste dia, dizem eles, quantos não havemos nós de matar! E, fazenda nós muitas vítimas há de haver entre os criminosos alguns que possam sentar-se no meio dos juízes! Mas agora reparo, irmãos meus, que já há muita estou profanando a minha boca e os vossos ouvidos, obrigando a falar estes blasfemadores! Basta que lhes adivinheis o ódio, que é tal, notai bem e pasmai do excesso, é tal o ódio que eles nos têm, que se comprazem não só de amargurar, mas também de macular (De aviltar) a nossa alma. Sim, eles preferem ainda mais corromper-nos do que atormentar-nos, preferem privar-nos da inocência e privar-nos do descanso, e antes querem perverter-nos do que felicitar-nos; de maneira que quando estes cruéis triunfadores começam a dominar uma alma, entram nela cheios de fúria, saqueiam-na e violam-na. Ó alma purificada pelo sangue do Cordeiro, alma que havia saído das águas batismais tão pura, tão casta e tão virginal! Esses corruptores violam-na, não tanto para se satisfazerem como para a macularem e envilecerem. Vós renunciastes ao seu império. Cada império tem as suas pompas e as suas obras. As pompas do diabo são tudo o que corrompe a modéstia, tudo o que enche o espírito de falsas grandezas, tudo o que ostenta glória e vaidade, tudo o que pretende agradar e chamar a atenção, tudo o que encanta a vista, tudo o que serve para ostentação e triunfo da vaidade do mundo, tudo o que faz parecer grande o que o não é, e eleva outra grandeza sem ser a divina. As obras são a iniquidade: Operatio eorum est hominis eversio... tu que corrompes os princípios da religião e do temor de Deus com as tuas perigosas zombarias; vós que vos não ostentais apenas por vaidade, mas que armais por assim dizer essa beleza corruptora da inocência. Eles dominam-nos com sedutoras paixões, e são avarentos. A propriedade roubada confunde-se com o vosso patrimônio. A ambição, cansada de percorrer grandes distâncias... os caminhos mais curtos e que, as mais das vezes, são criminosos. E como abusam da impudicícia! Foi então que erguemos esse trono abatido e reconstruímos esse império de iniquidade, corrompemos o batismo, apagamos a cruz de Jesus impressa na nossa fronte, desprezamos a Sagrada unção, essa unção real que nos fizera reis, Cristãos e ungidos de Deus, o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e talvez a ordem e o sacerdócio. Finalmente todos os mistérios do cristianismo se tornaram o joguete dos demônios. Não há cristianismo nos nossos costumes. Quem immitet tibi Dominus (Deuteronômio 28, 48) revestido de todos os direitos de Deus contra os pecadores. Deus instituiu-o nosso soberano, coloca-o no seu lugar, confere-lhe por assim dizer todo o seu poder; é estrangeiro que nos há de desterrar da pátria, usurpador que só há de destruir, escravo revoltado, cuja insolência não terá limites. Só Jeremias é capaz de ter lamentações iguais às calamidades. Hereditas nostra versa est ad alienos, domus nostrae ad extraneos. Servi dominati sunt nostri: cecidit corona capitis nostri: vae nobis, quia peccavimus (Lamentações 5, 2, 8, 16) Aperuerunt super te os suum omnes inimici tui: sibilaverunt et fremuerunt dentibus suis, et dixerunt: Devorabimus: en ista est dies quam expectabamus; invenimus, vidimus (Lamentações 2, 16) Fecit Dominus quae cogitavit: - laetificavit super te inimicum, et exaltavit cornu hostium tuorum (Lamentações 17). Nós, a quem Jesus Cristo fez reis, não nos sentiremos humilhados por ficarmos cativos? Arremessamos aos pés de Satanás a coroa que o Salvador colocou nas nossas cabeças: Vae nobis, quia peccavimus. Brademo-lo, ao menos do fundo dos nossos corações esse Vae, esse ai de nós. Renovemos os votos do nosso batismo: Eu renuncio, etc. Onde está a água para nos batizarmos? Ah! Mergulhemo-nos na água da penitência, nesse batismo de sangue, nesse batismo laborioso. Mergulhemo-nos nela, e de lá nunca saiamos, até que Jesus nos chame, etc., ou nos conduza, etc. 1º Domingo do Advento - 3º Sermão para o 1º Domingo do Advento O Juízo Final Pregado em 1669. SUMÁRIO Exordio. - A alma é julgada depois de se ter separado do corpo, e quando da ressurreição geral; no juízo final é que os pecadores hão de ser confundidos e cobertos de opróbio. Proposição, divisão. - No juízo final os pecadores que se esconderam serão descobertos, os que se disseram inocentes serão declarados criminosos, os que eram tão orgulhosos e tão insolentes ficarão humilhados e estarrecidos. 1º Ponto - Há diversas categorias de ateus: os que negam a existência de Deus, os que desejariam que Ele não existisse e os que são indiferentes pela sua existência. Teme-se o olhar dos homens e não se teme o de Deus. A luz há de fazer-se e os hipócritas serão vergonhosamente punidos. 2º Ponto - Ó pecador hipócrita é semelhante a um ouriço, e é como Adão que se esconde e se mostra inocente. Os pecadores serão confundidos na presença dos justos: quod fecerunt utique fieri posse docuerunt. Pensai nisto, cristão, em quanto vos for útil o Pensamento. 3º Ponto - Deus e os santos hão de rir-se dos pecadores, sobretudo dos pecadores insolentes e escandalosos. Peroração. - Evitemos esta vergonha eterna: notam ignominiae sempiternam. Não está longe a hora da morte em que o nosso estado há de ser definido. Real Senhor, vivei feliz, vitorioso, sempre temente a Deus e sempre disposto a dar-Lhe contas. Tunc videbunt Filium hominis venientem in nube, cum potestale magna et majestate Então eles verão o Filho do homem sobre uma nuvem, cheio de grande poder e de grande majestade (São Lucas 20, 27). Ainda que a nossa alma, no momento em que se separar do corpo, deva ser julgada em última instância, e o assunto da nossa salvação imutavelmente resolvido, aprouve porém a Deus que, além da sentença que há de ser dada, ainda tenhamos a recear outro exame e uma terrível revisão do nosso processo no juízo final e universal. Porque, assim como a alma pecou conjuntamente com o corpo, é justo que ela seja julgada e punida com o seu cúmplice, e que o Filho de Deus, que tomou inteiramente a natureza humana, submeta também o homem completamente à autoridade do seu tribunal. É por isso que, depois da ressurreição geral, somos todos emprazados a comparecer de novo perante este temível tribunal, a fim de que todos os pecadores, chamados e representados em corpo e alma, isto é, na integridade da sua natureza, recebam também o completo e extremo suplício. E é o que dá lugar a este juízo final que se acha proposto no nosso Evangelho. Mas porque é este aparato tribunalício, porque é esta solene convocação e esta assembleia geral do gênero humano? Porque é, pensais vós, senhores, a não ser porque este dia final, que é chamado na sagrada Escritura "um dia de trevas e de borrasca, um dia de vento e de tempestade, um dia de calamidade e de angústia", também é chamado "um dia de confusão e de ignomínia?" (Sofonias, 1, 15). Eis uma verdade eterna; é justo e muito justo que o que faz mal seja coberto de opróbrio; que todo o que usou de arrogância seja confundido; e que o pecador seja aviltado, não só pelos outros, mas por si próprio, isto é, pelo rubor da sua fronte, pela confusão do seu parecer e pela censura pública da sua consciência. Todavia nós vemos que estes pecadores, que se tornaram tão dignos de ignomínia, encontram muitas vezes o meio de a evitar nesta vida. Porque, ou ocultam os seus crimes, ou se dizem inocentes, ou enfim, em vez de ficarem vexados, descobrem-nos escandalosamente à face do céu e da terra, e ainda se glorificam de os terem praticado. É assim que eles procuram evitar a humilhação, os primeiros pela obscuridade das suas ações, os segundos pelos artifícios da sua inocência, e finalmente os últimos pela sua protérvia. É por isso que Deus os chama à luz do seu julgamento, onde os que se esconderam serão descobertos, os que se disseram inocentes serão declarados criminosos, os que eram tão orgulhosos e tão insolentes nos seus crimes ficarão humilhados e estarrecidos; e assim pairá sobre todos estes pecadores, sobre os que enganam o mundo; sobre os que o escandalizam; assim, repito, cairá sobre a face de todo o gênero humano, dos homens e dos anjos, a eterna confusão que lhes é salutar e que é o natural apanágio de que eles se tornaram tão dignos. PRIMEIRO PONTO "O insensato diz firmemente: Deus não existe" - Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus (Salmo 52, 1). Os santos Padres ensinam-nos que, com este juízo desacertado e insano, podemos ser criminosos de varias maneiras. Há, em primeiro lugar, os ateus e os libertinos, que dizem abertamente que as coisas se dão ao acaso, sem ordem, sem governo, sem direção superior. Insensatos, que no império de Deus, no meio das Suas obras e dos Seus benefícios, se atrevem a negar a existência dAquele a quem se deve toda a natureza! Há poucos monstros desta índole; o número deles é pequeno entre os homens, ainda que, infelizmente, possamos dizer com horror que os há sempre no mundo em excesso. Há outros, diz o douto Teodoreto, que não chegam ao ponto de negar a Divindade; mas que, instados e incomodados nas suas paixões indômitas pelas leis de Deus que os constrangem, pelas Suas ameaças que os assombram e pelo receio dos Seus juízos que os perturbam, desejariam que Deus não existisse, e quereriam ter espírito para acreditar que Deus não é mais que um nome vão; e é assim que dizem firmemente, não por convicção, mas por vontade própria: "Deus não existe" "Insensatos, diz Santo Agostinho - que, pelo fato de serem desordenados, querem destruir a ordem e desejam que não haja lei nem justiça, só porque eles não são justos" Também lanço estes à margem, e quero crer que dos meus ouvintes nenhum há que seja tão depravado e tão corrupto. Vou entrar num terceiro modo e dizer que Deus não existe, e do qual haveis de confessar que a maior parte dos que me ouvem não podem alegar motivos de inculpabilidade. Quero referir-me àqueles que, reconhecendo a existência de Deus, o tem ainda assim em tão pouco preço que imaginam verdadeiramente nada terem a recear, enquanto só o tiverem a Ele por testemunha. Esses, que manifestamente têm Deus em menos preço, dizem então firmemente: "Deus não existe." Ah! Quem de entre nós é que não pertence a este número? Quem de entre nós se não deteve numa ação ímproba ao dar com um homem que não é sabedor da nossa cabala? E, todavia, com que imprudência sabemos sustentar o olhar de Deus! Não chamemos para aqui o exemplo dos que meditam nalgum tenebroso plano: pois tudo o que encontram os perturba, a luz do dia e a sua própria sombra os atemoriza. Até lhes custa suportar o horror do seu funesto segredo, e vivem contudo numa soberana tranquilidade à vista de Deus. Mas deixemos estes trágicos atentados, e digamos o que se vê todos os dias. Quando secretamente difamais o que lisonjeais em público; quando o ofendeis incessantemente com a vossa língua perversa; quando artificiosamente confundis a verdade com a mentira para dar verosimilhança às vossas histórias maliciosas; quando violais o sagrado depósito do segredo que um amigo muito ingênuo guardou inteiramente no vosso coração, e que sacrificais aos vossos interesses a sua confiança que vos obrigava a cuidar dos seus, quantas precauções tomais para isto se não divulgar? Quantas vezes olhais para a direita e para a esquerda? E se não vedes testemunha que vos possa censurar a vossa covardia para com a sociedade, se estendeis os vossos laços tão sutilmente que sejam imperceptíveis aos olhos dos mortais, dizeis: "Ninguém nos viu" - Narraverunt ut absconderent laqueos, dixerunt: Quis videbit eos (Salmo 63, 6). Eles cogitaram nos meios de encobrir as ciladas, e disseram: "Quem poderá descobri-las?" Não contais, portanto, no número dos videntes o que habita nos céus? E não obstante ouvi o mesmo Salmista: "Como assim! O que formou os ouvidos não ouve? E o que fez os olhos é cego?" - Qui plantavit aurem non audiet? aut qui finxit oculum, non considerat? (Salmo 33, 9). Pelo contrário, não sabeis que todo Ele é vista, todo ouvidos, todo inteligência; que os vossos pensamentos Lhe falam, que o vosso coração tudo Lhe descobre, que a vossa consciência é a Sua espiã e a Sua testemunha de acusação? E todavia a estes olhos tão vivos, a estes olhares tão penetrantes, gozais placidamente do prazer de estardes escondido. Não é tê-lo em menos preço dizer com firmeza insensata: "Deus não existe"? - Dixit insipiens in corde suo; Non est Deus Não é justo, meus senhores, que os pecadores, favorecidos pelas trevas, se livrem sempre de opróbrios que merecem. Há mulheres infiéis e homens corruptos que se acobertam, sempre que podem, com todas as sombras da noite e envolvem as suas ações desonestas na obscuridade duma intriga impenetrável; mas Deus há de descobri-los um dia e há de confundi-los da forma que eles merecerem. Foi por isso que destinou este dia final "que há de penetrar as trevas mais espessas e há de manifestar, como diz o Apóstolo, os conselhos mais ocultos" - Qui et illuminabit abscondita tenebrarum, et manifestabit consilia cordium (1 Coríntios 4, 5). Então qual será o estado dos grandes do mundo que sempre têm visto na terra os seus sentimentos aplaudidos e até os seus vícios adorados? Que acontecerá a esses homens escrupulosos, que não podem admitir que os seus erros se venham a saber, e que se incomodam, que ficam num manifesto enleio e vivamente ourados, quando se lhes descobre o fraco? "Então, diz o profeta Isaías, os braços hão de cair-lhes de fraqueza", omnes manus dissolventur; "o coração angustiado há de desfalecer-lhes", omne cor hominis contabescet; "cada um ficará enleado ante o seu próximo", unusquisque stupebit aa proximum suum; "os próprios pecadores hão de vexar-se mutuamente, e hão de ficar enrubescidos", facies combustae vultus eorum; (Isaías 13, 7-8) tal é o opróbrio que pesa sobre eles" Ó trevas pouco duradouras! Ó intrigas mal urdidas! Ó olhar de Deus mais que penetrante e injustamente escarnecido! Ó vícios mal ocultos! Ó ignominia mal disfarçada! Mas de todos os pecadores que se ocultam, nenhuns serão descobertos com mais ignominia do que os beatos-falsos e os hipócritas. São estes, senhores, que são os inimigos mais perniciosos de Deus e que lutam contra Ele à sombra dos seus pendões. Não há ninguém que mais avilte a honra da piedade do que o hipócrita, que a toma como disfarce e capa da sua malícia. Ninguém que viole a santa majestade de Deus, com mais sacrilégio do que o hipócrita, que se serve do seu nome augusto e o quer fazer compartilhar dos seus crimes e escolhe para protetor dos seus vícios quem asperamente os condena. Ninguém, portanto, há de ver em Deus juiz mais severo do que o hipócrita que procura cumpliciá-lO em certo modo: Mas não falemos mais dos que remedam os religiosos. O mundo ainda tem outros hipócritas. Não há hipócritas da honra, hipócritas da amizade, hipócritas da probidade e da boa fé, que andam sempre com os preceitos sagrados na boca, com o fim exclusivo desarmar aos simples e aos inocentes; e tão tratáveis, tão condescendentes e tão arteiros, que até os mais avisados caem nos laços que eles lhes armam? Também estes hão de ficar humilhados. Vinde cá, provados embusteiros, sempre oprimidos, sempre dissimulados, covardes e miseráveis cativos dos que queríeis cativar; vinde cá, deixai erguer a máscara que haveis afivelado e tirar o ouropel com que vos disfarçastes; mas é melhor deixá-lo no vosso rosto turvado, para que pareçais duplamente horríveis, como uma mulher arrebicada e cada vez mais feia, na qual se não sabe o que mais desagrada, se a feialdade se os arrebiques. É assim que, na presença de Jesus Cristo, todos esses embusteiros inutilmente disfarçados hão de ficar confundidos não só pelo crime que ficou ignorado, mas também pela sua hostilidade aparente. E também ficarão confundidos por terem considerado a virtude como pretexto, como alarde e como vaidade; e não por a terem considerado como preceito: Ergo et tu confundere et porta ignominiam tuam (Ezequiel 16, 52). Se todavia eles caminharem de cabeça erguida e gozarem aparentemente da liberdade duma boa consciência, se iludirem o mundo e se Deus dissimular, não imaginem por isto que tenham escapado às Suas mãos. Ele tem dia aprazado e hora marcada, que pacientemente aguarda. Poderei explicar-vos convenientemente tão grande mistério por meio de qualquer comparação tirada das coisas humanas? Assim como um rei, que vê o seu trono consolidado e o seu poder estabelecido, sabe que se urdem intrigas contra o seu governo (pois é difícil enganar um rei que tem os olhos abertos e que sabe vigiar) e que, podendo abafar logo esta cabala já descoberta, deseja, todavia, baseado na sua consciência e no seu próprio poder, ver até onde chegarão as temerárias conspirações dos seus vassalos infiéis, e não precipita a sua justa vingança até eles terem chegado ao termo fatal em que ele resolveu detê-los; assim também, e com mais forte razão, esse Deus omnipotente, soberano árbitro e distribuidor dos tempos, que, do centro da sua eternidade, desenrola toda a ordem dos séculos, e que, perante a origem das coisas, marcou o destino de todos os momentos segundo os desígnios da sua sabedoria, com mais forte razão, cristãos, nada tem a precipitar nem a antecipar. Os pecadores não lhe escapam da vista nem das mãos, porque Ele sabe o tempo que lhes deu para se arrependerem, e sabe a ocasião em que os há de humilhar. No entretanto, podem fazer cabalas, podem usar de intrigas, podem chamar o céu e a terra para se acobertarem na confusão de todas as coisas, porque serão descobertos no dia aprazado; e a sua causa há de ser levada ao grande tribunal geral de Deus, onde a sua descoberta não poderá ser impedida por nenhuma astúcia, nem a sua criminalidade iludida por desculpa alguma. É este o tema da segunda parte, que eu, para abreviar, juntarei com a terceira na mesma ordem de raciocínio. SEGUNDO PONTO O grande papa São Gregório, na terceira parte da sua Pastoral, compara os pecadores com ouriços. Diz ele: Quando vos achais longe deste animal e que ele não receia ser apanhado, vedes-lhe a cabeça, os pés e todo o corpo; mas quando vos aproximais para o apanhar, apenas vedes uma massa esférica toda coberta de espinhos agudos; e o que de longe víeis por completo desaparece-vos de repente apenas lhe lançais as mãos. Intra tenentis manus totus simul amittitur, quod totum simul ante videbatur. É a imagem do homem pecador, diz São Gregório, que se envolve nas suas razões e nas suas desculpas. Se lhe descobris todos os enredos e lhe reconheceis distintamente toda a ordem do crime, vedes-lhe os pés, o corpo e a cabeça. Assim que pensais em convencê-lo de culpabilidade, relatando-lhe as circunstâncias do crime, ele encolhe os pés, encobre todos os vestígios do seu malefício, esconde a cabeça, oculta profundamente as suas intenções e envolve o corpo, isto é, toda a série da sua intriga, na trama artificiosa duma história de pura invenção. O que imagináveis ter visto tão distintamente não é mais do que uma massa, informe e confusa, onde se não vê princípio nem fim; e essa verdade tão evidente despareceu para logo: Qui totum jam deprehendendo viderat tergiversatione pravae defensionis ilusus, totum pariter ignorat. Esse homem que imagináveis ter reconhecido o seu crime, quando afinal se tinha entrincheirado e envolvido nele próprio, só agora vos oferece espinhos; também se arma contra vós, e, se lhe tocais, ficais com as mãos ensanguentadas, quer dizer, a vossa honra ficará ofendida por mil recriminações feitas contra a vossa injuriosa credulidade e contra as vossas suspeitas temerárias. É assim que fazem os pecadores: se podem, escondem-se como fez Adão; e se não podem esconder-se, como ele, não deixam ao menos de desculpar-se, a exemplo do que ele fez. Adão, que foi o primeiro de todos os pecadores, logo depois de ter cometido o pecado, entranha-se no mais denso da floresta, e desejava lá poder esconder o crime e esconder-se a ele. Quando se vê descoberto, recorre às desculpas. Os seus filhos, desventurosos herdeiros do seu crime, são-no também dos seus pretextos frívolos. Dizem tudo o que podem; e quando não têm que dizer, lançam as culpas sobre a fragilidade da natureza, sobre a violência da paixão e sobre a tirania do hábito. Desta maneira não há ter cuidados em procurar desculpas; porque o próprio pecado se encarrega de as dar, justificando-se pelo seu próprio excesso. Mas quando hei de acabar, se me deixar induzir por esta individuação infinita das desculpas particulares? Basta dizerem síntese: Todos se desculpam e todos se justificam; fazem-no em parte por temor, em parte também por orgulho e em parte por astúcia. Eles próprios enganam-se às vezes, e procuram depois enganar os outros. Algumas vezes, convencidos realmente da injustiça das suas ações, pretendem apenas divertir o mundo com razões dissimuladas; e depois, deixando-se levar pelas suas falsidades, vão-nas dizendo e gravando no espírito, e, em vez da verdade, adoram o inútil fantasma que imaginaram para enganar o mundo. Tal é o aviltamento do homem e da sua própria consciência: Adeo nostram quoque conscientiam ludimus, disse o grave Tertuliano. Deus é a luz, Deus é a verdade, Deus é a justiça. No império de Deus, nunca será com falsos pretextos, senão com um humilde reconhecimento dos pecados, que se evitará a vergonha eterna que é a sua justa recompensa. Tudo será manifestado perante o tribunal de Jesus Cristo. Uma voz muito intensa de justiça e de verdade há de sair do trono, e por ela hão de ver os pecadores que não há desculpa alguma aceitável que possa colorir-lhes a rebelião, senão que o cúmulo do crime consiste na audácia de o justificar e no orgulho de o dar por falso. Porque é preciso, meus senhores, notar aqui uma doutrina importante: é que enquanto nesta vida a nossa razão vacilante obedece muitas vezes ao nosso coração depravado, nos desgraçados precitos haverá uma eterna contrariedade entre o espírito e o coração. O amor da verdade e da justiça deixará de existir para estes miseráveis, mas o seu conhecimento há de ficar-lhes indelevelmente gravado no espírito para vergonha deles. É por isso que Tertuliano lia estas palavras memoráveis no livro do Testemunho da alma: Merito omnis anima et rea et testis est: "Toda a alma pecadora, diz este grande homem, é ao mesmo tempo ré e testemunha"; ré pela corrupção da vontade, testemunha peja luz da razão; ré pelo ódio à justiça, testemunha pelo conhecimento provável das leis sagradas; ré porque sempre insistiu no mal, testemunha porque sempre condena a sua insistência. Terrível contrariedade e insuportável suplício! É, pois, este conhecimento da verdade que há de ser a imortal proveniência duma confusão infinita. E por isso o Profeta diz: Alii evigilabunt in opprobrium ut videant semper (Daniel, 12, 2) - "Muitos, para vergonhá sua, hão-de despertar para ver sempre" Os que se tinham firmado em razões conciliáveis e em palavras lisonjeiras, imaginavam ter escapado ao opróbrio e haviam adormecido nos seus pecados ao abrigo das suas justificações inutilmente plausíveis, "hão de, para vergonha sua, despertar de improviso para ver sempre", evigilabunt ut videant semper. E que é que eles hão de ver sempre? Essa verdade que os confunde, essa verdade que os julga. Então hão de ficar humilhados por dois motivos, pelos crimes cometidos e pelas desculpas que apresentam. A força da verdade provada há de destruir-lhes as defesas insignificantes; e, cortando-lhes duma vez todos os inúteis pretextos com que tinham pensado velar os seus crimes, apenas lhes deixará o pecado e a ignomínia. Deus mostra-se triunfante com isto nestas palavras ditas pela boca de Jeremias: Discoopemi Esau; desarmei o pecador, dissipei as falsas aparências com que pretenderá encobrir os crimes, manifestei as suas más intenções tão sutilmente disfarçadas, e ele já não pode desculpar-se com pretexto algum: Discoopemi Esau, revelavi abscondita ejus, et celari non poterit (Jeremias 49, 10). Mas estai mais atentos para ouvirdes o que mais há de servir para convencer e confundir os ímpios: são os justos que lhes hão de ser apresentados, as pessoas de bem que hão de ser comparadas com eles. Até aqui eram os pecados muito vulgares, cometiam-se muito facilmente e justificavam-se logo; pecados que perdiam tantas almas e que causavam no gênero humano tão tremendas ruínas; pecados que com tanta facilidade se perdoavam sempre, e que pareciam estar suficientemente justificados, quando se dizia que eram pecados de fragilidade; mas agora esses pecados já não terão defesa alguma, porque haverá a escolhida grei, pequena realmente em comparação dos ímpios, mas grande e numerosa em si, em que se hão de distinguir almas fiéis, que, com a mesma carne e as mesmas intenções, conservaram contudo imaculadas, aqueles a flor sagrada da pureza, e estes a honradez do leito nupcial. Outros vos serão também apresentados: aqueles que realmente caíram por fraqueza; mas que tendo-se levantado, nos hão de dar o testemunho fiel de que, apesar da fragilidade, triunfaram sempre tantas vezes quantas quiseram combater; e, como diz Julião Pómero: "Hão de mostrar, pelo que fizeram, o que também podíeis fazer" - Cum fragilitate carnis in carne viventes, fragilitatem carnis in carne vincentes, quod fecerunt utique fieri posse decuerunt. Pensai agora, cristãos, no que podereis responder; pensai nisto enquanto é tempo e enquanto o pensamento vos pode ser útil. Não alegueis fraquezas, não vos desculpeis com a vossa fragilidade. Se era frágil a natureza, era forte a graça. Se tínheis uma carne que dominava o espírito, também tínheis um espírito que dominava a carne. Se tínheis doenças, também tínheis remédios nos Sacramentos. Tim heis um tentador? Também tínheis um Salvador. As tentações eram frequentes? Não o eram menos as inspirações. Estavam sempre presentes os objetos? Também a graça estava sempre patente ao espírito; e podíeis evitar o que não conseguíeis vencer. Enfim, para qualquer lado que vos volteis, já vos não resta pretexto algum, nem subterfúgio, nem meio de evasão, porque sois reconhecidos como criminosos. É por isso que o profeta Jeremias diz que os pecadores, neste dia, hão de ser comparados àqueles que são surpreendidos em flagrante delito: Quomodo confunditur fur, quando deprehenditur (Jeremias 2, 26) Ele não pode negar o fato nem justificá-lo; não pode defender-se com argumentos, nem escapar por meio da fuga. "Então diz o santo Profeta, hão de ficar assombrados, confundidos e perturbados os ingratos filhos de Israel"; sic confusi sunt domus Israel Ninguém escapara a este opróbrio. E senão escutai o Profeta: Todos, diz ele, hão de ser confundidos, "eles, com os seus reis e príncipes e sacerdotes e profetas" - ipsi et reges eorum, principes et sacerdotes et prophetae eorum (Jeremias 2, 26). Os reis, porque hão de ver um rei mais alto e de superior majestade; os príncipes, porque hão de ocupar lugar nessa assembleia e hão de ser confundidos com o povo; os sacerdotes, porque o seu caráter sagrado e a sua santa unção há de condená-los; os profetas, os pregadores, os que pronunciaram os divinos oráculos, porque a palavra que eles anunciaram há de ser um testemunho de acusação. "O homem há de aparecer, diz Tertuliano, perante o trono de Deus e não há de poder falar" - Et stabit ante aulas Dei nihil habens dicere. Havemos de ficar tão perturbados e tão poderosamente convencidos do nosso crime, que nem mesmo havemos de ter a miserável consolação de nos podermos lastimar: Sic confusi erunt domus Israel ipsi et reges, etc. TERCEIRO PONTO Mas, senhores meus, ainda que eu me socorresse das expressões mais enérgicas e das figuras mais violentas da retórica, não poderia explicar-vos suficientemente a confusão daqueles, cujos crimes escandalosos profanaram o céu e a terra. Como vedes, entrei já na terceira parte, que quero concluir em poucas palavras, mas com razões convincentes. Para estabelecer as bases em que ela há de assentar, farei notar, senhores, que o opróbrio que Deus reserva aos pecadores no dia do juízo é de diversos graus e acha-se diferentemente expresso na Escritura. Diz-nos ela vezes repetidas nas passagens por nós já citadas que há de confundir os seus inimigos e cobri-los de ignomínia. Isto seria comum a todos os pecadores. Mas nós também lemos nos santos Profetas que Deus e os seus servos hão de escarnecer deles e insultá-los com recriminações, de envolta com a irrisão e a zombaria, e que, não contente com tirar-lhes a máscara da hipocrisia e convencê-los dos crimes que praticaram, como já dissemos, há de imolá-los por entre o gargalhar de todo o universo. Eu tenho para mim, senhores, que esta irrisão é o que mais convém e o que mais verdadeiramente cabe aos pecadores públicos e escandalosos. Visto que todos os pecadores transgridem a lei, também todos merecem ser confundidos; mas nem todos insultam publicamente a santidade da lei. Esses escarnecem dela, insultam-na, fazem gala dos seus crimes e ostentam-nos temerariamente à face do céu e da terra. A esses pecadores insolentes, se não se humilharem imediatamente pela penitência, está reservada para o dia do juízo essa irrisão, essa zombaria terrível e esse justo e inevitável insulto dum Deus ultrajado. Pois que há de mais indigno? Nós estamos a ver todos os dias no mundo esses, pecadores soberbos que, com ar protervo, se atrevem, não só a desculpar, mas a defender os seus crimes. Acham que a intemperança lhes não daria suficiente prazer, se dela não se vangloriassem publicamente, "se a não estadeassem, como diz Tertuliano, em plena luz do dia e com pleno testemunho do céu" - Delicta vestra et loco omni et luce omni et universa caeli conscientia fruuntur. "Anunciam os pecados como Sodoma", dizia um profeta: peccatum suum sicut Sodoma praedicaverunt; (Isaías 3, 9) e dão um ar de superioridade ao desenfreado desregramento. Ocorre-me dizer neste lugar estas belas palavras de Tácito, que, falando dos excessos de Domiciano depois de seu pai ter sido elevado a imperador, disse que "em vez de cuidar dos negócios públicos, apenas começou a mostrar que era filho do imperador pelos adultérios e devassidões a que se dava" - Nihil quidquam publici muneris attigerat sed stupris et adulteriis filium principis agebat. Nós então vemos esses exaltados que se comprazem de fazer alarde do seu desregramento, que imaginam elevar-se muito acima das coisas humanas pelo desprezo das leis, e que consideram o poder como uma fraqueza indigna deles, só porque ele mostra na sua reserva qualquer coisa de temeroso; e desta maneira não fazem apenas um sensível ultraje, mas um insulto público à Igreja, ao Evangelho e à consciência dos homens. Tais pecadores escandalosos corrompem os bons costumes pelos seus perniciosos exemplos. Profanam a terra e, se assim me posso expressar, recriminam asperamente o céu que há muito tempo os tolera pacientemente. Mas Deus bem há de saber justificar-se duma maneira terrível, e talvez já nesta vida com uma punição exemplar. E se Deus durante esta vida os esperar com a penitência; se, por não escutarem a sua voz, eles merecerem que Deus os reserve para o juízo final, hão de nele tragar não só a beberagem da vergonha eterna, que está preparada para todos os pecadores, mas também, como diz Ezequiel, "hão de beber o cálice largo e profundo da irrisão e da zombaria, e hão de ser oprimidos com os insultos amaríssimos de todas as criaturas" - Calicem furoris tuae bibes profundum et latum; eris in derisum et in subsannationem quae est capacissima (Ezequiel 23, 32) Tal será o justo suplicio da sua imprudência. Evitemos, senhores, este opróbrio que não há de desaparecer nunca. Pois não imaginemos que havemos só de receber nesse tribunal uma confusão passageira; pelo contrário, devemos ficar sabendo, conforme diz São Gregório Nazianzeno, que, pela verdade imutável desse juízo final, Deus há de imprimir-nos na fronte "o eterno ferrete da ignomínia", notam ignominiae sempiternam. E São João Crisóstomo acrescenta que esse opróbrio há de ser mais terrível do que todos os outros suplícios. E o pecador há de indignar-se com o peso dos seus crimes e com a contínua perseguição da sua consciência; e, querendo procurar o nada, não o há de encontrar. Como o fel do opróbrio há de então ser inesgotável! E como é fácil agora purificarmo-nos dele para sempre! Vamos mostrar o nosso arrependimento, irmãos, ao tribunal da penitência. Não desejemos que lamentem sempre a nossa fraqueza, que a censurem, que a repreendam, que a condenem. O tempo foge, disse o Apóstolo (1 Coríntios 7, 29) e o momento aproxima-se. Não me quero referir ao dia de juízo, porque Deus não revelou esse segredo, mas refiro-me ao momento da morte, em que o nosso estado se há de determinar. Tal como morrermos, assim inevitavelmente havemos de aparecer no tribunal do Criador. Oh! Que confusão nesse dia! E quantos hão de descer de lugares elevados! Quantos hão de procurar os seus antigos pergaminhos, e em vão hão de lamentar a nobreza que perderam! E como lhes há de custar habituarem-se à baixeza! Oxalá que os muitos nobres que me estão ouvindo não percam a sua nobreza nesse dia! Praza a Deus que o augusto monarca nunca veja a coroa derribada: e que se lembre sempre de São Luiz, que o protege e lhe mostra o lugar que ocupa. Deus queira que este lugar não fique vago! E que aquele que neste mundo não desejar a sua glória e a não quiser proporcionar com todas as suas forças pelos seus fiéis serviços, seja odiado por Deus e pelos homens. A este respeito bem sabe Deus os votos do meu coração. Mas, Senhor, infiel sou a Vossa Majestade, se a vosso respeito limitar os meus votos nesta vida transitória. Vivei, portanto, feliz, afortunado, vitorioso dos vossos inimigos e pai dos vossos povos. Mas vivei sempre bom e sempre justo; vivei sempre humilde e sempre temente a Deus, sempre disposto a dar-lhe conta da nobre parte do gênero humano que vos cometeu. É assim que havemos de ver-vos sempre rei, sempre augusto, sempre coroado, assim na terra como no céu; e o que eu desejo a Vossa Majestade é a glória eterna, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. 2º Domingo do Advento - 1º Sermão para o 2º Domingo do Advento Jesus Cristo, objeto de Escândalo SUMÁRIO ESCRITO PELA MÃO DE BOSSUET O seu coração escutava a voz da miséria e solicitava o seu braço. A alma, afastando-se de Deus, desvigoriza o corpo. Pecado maior que o castigo. Pobres evangelizados. De como ele veio a ser objeto de escândalo: Scandalizantur in me? Razão porque não consideramos a obra de Deus como scandalum: é porque imaginamos que Deus tudo destrói quando reedifica, contra o empreendedor. É preciso crer antes de ver. Devemos submeter o entendimento assim como a vontade. Crer no que é incrível e fazer o que é difícil. É preciso reconhecer o perdão, porque a natureza tende a pecar. Jesus Cristo, escândalo para todos e até para os cristãos. Caeci videnl, claudi ambulant, leprosi mundantur, surdi audiunt, mortui resurgunt, pauperes evangelizantur, et beatus esi qui non fuerit scandatizatus in me. Os cegos recebem vista, os surdos ouvem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres, e bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar (São Mateus 11 5, 6). Se hoje vísseis São João Batista enviar os seus discípulos ao nosso Salvador para lhe perguntar quem Ele era, não imagineis por isso que o Elias do Novo Testamento e o grande percussor do Messias ignoravam o Senhor a quem vinham preparar os decretos. Eu sei que houve alguns homens muito doutos, e entre outros o grave Tertuliano - que imaginaram que no tempo em que São João Batista mandou fazer esta pergunta ao Salvador se havia apagado na sua alma a luz profética que até então o tinha alumiado; mas eu não receio dizer-vos, com o devido respeito para com a opinião desses autores, que tal opinião é inteiramente destituída de verosimilhança. "Abraão viu a luz de Nosso Senhor; Isaías viu a sua glória e falou nos dela", diz-nos o evangelista São João (São João 8, 56; 12, 41). Todos os profetas o conheceram espiritualmente; e havia de ignorá-lo o maior dos profetas! O que foi enviado para dar testemunho da luz havia de ter permanecido nas trevas! E depois de haver designado tantas vezes ao povo esse Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, depois de ter visto o Espírito Santo descer sobre Ele quando quis ser batizado por suas mãos, havia de esquecer-se de repente de quem ele deu a conhecer a tantas pessoas! Bem vedes, fiéis, que isto era impossível. Mas, dizeis vós, para que havia ele de mandar os discípulos a informarem-se de quem Ele era, se havia a certeza de ser o Messias? Quem interroga, deseja saber; e quem deseja saber, ignora. Se ele conhecia Jesus Cristo, que motivo o levava a mandar perguntar quem Ele era? Não receava que a sua dúvida abalasse a fé de muitos e diminuísse em grande parte a autoridade do testemunho certo que tantas vezes deu ao Salvador? - É isto o que nos podem objetar. Mas essa objeção não me admira; pelo contrário, do que me contrapõem quero eu tirar proveito. Eu digo que ele interroga, porque sabe; e que pergunta a Jesus quem é, porque O conhece muito bem. Como pode ser isso? Perguntais vós. - Ora aqui, cristãos, é que está a verdadeira explicação do nosso Evangelho e a razão indispensável de todo este discurso. São João que conhecia o Salvador; cuja palavra tantas vezes pregara, bem sabia que só a Ele competia dizer quem era e manifestar-se aos homens, de quem vinha a ser o preceptor. É por isso que Lhe envia os discípulos, para que eles fiquem sabendo por Ele próprio da Sua vinda, que só Ele era capaz de nos declarar. Portanto, não receeis, cristãos, que Ele destrua o testemunho que deu a respeito de Jesus Cristo: pois mandando-Lhe perguntar quem era, mostra bem que reconhece nEle uma autoridade infalível e que apenas Lhe enviara os discípulos com o fim deles ouvirem a doutrina da Sua própria boca. E não podendo anunciar aos homens a Sua vinda, porque estava detido nas prisões de Herodes, pede a Jesus Cristo que se dê Ele próprio a conhecer; e enviando-lhe uma embaixada na presença de todo o povo, pretende que Ele dê um ensinamento memorável aos espectadores que imaginavam o Messias inteiramente diferente do que devia ser. E realmente assim foi. Jesus, que lhe conhecia o pensamento e que queria recompensar-lhe a humildade, mostra aos discípulos os efeitos do Seu poder infinito. Cura na presença deles todos os doentes que apareceram, abre-lhes o Seu coração, dá-lhes conselhos importantes para conhecerem o segredo de Deus e destruírem uma falsa ideia do Messias que preocupara aos judeus excessivamente sensuais e, sabendo que o maior prazer que pode ter o seu amado precursor era saber da glória do Seu bom mestre, ordena aos enviados de São João que lhe deem novas dele, querendo-lhe dar este conforto num cativeiro que, por amor dele, estava suportando. "Ide contar a João, disse Ele, as maravilhas que vistes"; dizei-lhe que "os surdos ouvem, que os cegos veem, a vida foi restituída aos mortos (que os mortos ressuscitaram) que o Evangelho foi anunciado aos pobres, e que feliz daquele que em mim se não escandalizar". Era como se dissesse: Os judeus, seduzidos pelas aparências e pelos sentimentos da carne, consideram o Messias como um rei poderoso que, colocando-se à frente de grandes exércitos, há de subjugar todos os seus inimigos, e há de dar-se a conhecer pelo brilho duma pompa mundana e por uma magnificência real. Mas João, avisado dos segredos de Deus, sabe que Ele deve manifestar-Se por sinais bem mais augustos, ainda que, na opinião de todos, tenham menos aparência. Ide, pois, em paz e contai-lhe as curas admiráveis que vistes com os vossos próprios olhos. Dizei-lhe que o autor de tantos milagres não se dedigna de conversar com os pobres; pelo contrário, que os chama para junto de si, para familiarmente lhes falar dos mistérios do reino de Deus e das verdades eternas; e que, não obstante o poder com que obra tão grandes maravilhas e a incrível boa vontade com que cura a enfermidade dos mais pobres e dos mais abjectos, bem-aventurado é aquele a quem não dou motivo de escândalo. Dizei isto a João, e por estes sinais ele bem saberá quem sou. Tal é o sentido deste discurso, muito curto na aparência e muito simples, mas com uma tão alta significação e com tantas observações ilustres tiradas das profecias antigas que falam da grandeza do Messias, que toda a eloquência humana seria insuficiente para vos mostrar todas as Suas riquezas. Todavia, fiéis, vou tentar descobrir hoje, com o auxílio divino e dentro dos limites do meu saber, os segredos da Divindade. Seguirei lentamente o texto do meu Evangelho, conferindo as palavras do nosso Salvador com as ações da sua vida e com os vaticínios dos profetas, constituindo assim uma encadeação de ideias. Todos havemos de admirar a profunda orientação de Deus na manifestação de seu Filho. Mas para proceder com ordem, reduzamos toda esta prática a três pontos tirados das próprias palavras do Filho de Deus. Três coisas eu noto no seu discurso: a cura dos enfermos, a catequese dos pobres e o escândalo dos infiéis. Nos Seus milagres, reconheço-lhe a bondade porque se compadece dos nossos males; nos Seus ensinamentos, reconheço-lhe a simplicidade porque só tem trato com os mais pobres; finalmente no escândalo que dá, reconheço as furiosas oposições que há de ter a Sua benéfica doutrina. Vem, ó judeu incrédulo, vem a admirar o Messias, vem reconhecê-lO pelos verdadeiros sinais que te deram os seus profetas. Tu imaginas que Ele há de manifestar o Seu poder, estabelecendo na terra um poderoso império a que juntará todas as suas nações, ou que se manifesta pela reputação da Sua grandeza, ou ainda pelas Suas armas vitoriosas. Fica sabendo que o Seu poder só há de manifestar-se pela Sua bondade e pela terna compaixão que há de ter das nossas enfermidades. Tu imagina-lO no meio duma corte soberba, cercado de glória e de majestade; pois sabe que a Sua simplicidade não lhe consentirá outra companhia que não seja a dos pobres. Finalmente imaginas ver deslizar-lhe a vida num curso continuo de prosperidades, quando ela a todos os momentos só há de ter injustos revezes. Numa palavra, o Messias prometido pelos oráculos divinos deve ser um homem infinitamente misericordioso, cujo coração se há de enternecer com as misérias da nossa natureza, um homem que há de receber os pobres com a Sua mais intima familiaridade e há de espalhar sobre eles os tesouros da Sua sabedoria incompreensível, catequizando-os com um paternal afeto; e que, apesar da Sua índole liberal, da candura da Sua vida inocente e da Sua ingênua simplicidade, há de ser mil vezes amaldiçoado pelos homens ingratos, sem que por causa disso deixe de lhes fazer bem. Assim devia de ser o Salvador do mundo; mas muito outro o imaginam os judeus. Se Ele nascesse revestido de régia pompa, não se atreveriam os pobres a aproximar-se dEle, nem sequer a erguer os olhos, e todos Lhe prestariam homenagem, em vez de o oprimirem com imprecações. Foi por isso que, tendo nascido para sofrer, tomou uma condição de escravo; e tendo nascido para os pobres, quis nascer pobre, a fim de poder familiarizar-Se com eles. É este o verdadeiro retrato do Messias, nosso único libertador, tal como nos é designado pelas profecias e como se nos apresenta no seu Evangelho. Consideremos minuciosamente, cristãos, este quadro adorável. Mas admiremos antes de mais nada o primeiro traço dessa pintura salutar que o nosso evangelista nos esboçou; e vejamos a omnipotência do Salvador a manifestar-se no remédio que Ele dá para as nossas enfermidades. É este o primeiro ponto do meu discurso. PRIMEIRO PONTO Poderia ao certo dizer-vos, fiéis, quantos doentes-pobres e quantas espécies de doenças curou o nosso misericordioso médico? Seria preciso que vísseis todos os dias a Seus pés os cegos, os surdos, os febricitantes, os paralíticos, os possessos, enfim, todos os outros enfermos, que, conhecendo a Sua grande bondade, viam que bastava mostrar-Lhe as suas misérias para dEle obterem alívio. Esse médico caritativo, poupando-lhes ainda muitas vezes o trabalho de O procurarem, percorria Ele próprio a judeia, e como diz o apóstolo São Pedro: "Andava fazendo bem e curando todos os oprimidos" - Pertransiit benefaciendo et sanando omnes oppressos a diabolo (Atos dos Apóstolos, 10, 38). Sempiterno Deus! Que belas palavras, e quão dignas são do meu Salvador! A insana eloquência do século, quando pretende elevar algum generoso conquistador, diz "que percorrem as províncias, não tanto pelos seus lances como pelas suas vitórias" - Non tam passibus quam victoriis peragravit. Nos panegíricos abundam estas espécies de exageros. E que quer dizer percorri as províncias pelas vitórias? Não é levar a toda a parte a carnificina, a calamidade e o saque? Tais são as consequências das nossas vitórias. Ah, como o Salvador percorreu a Judeia duma maneira bem mais admirável! Posso dizer verdadeiramente que a percorreu menos pelos seus lances que pelos seus benefícios: Pertransiit benefaciendo. A toda a parte ia visitar doentes e em toda a parte distribuía um balsamo celeste, isto é, uma milagrosa virtude que emanava do Seu divino corpo, perante a qual se viam desaparecer as febres mais mortíferas e as doenças mais incuráveis: Pertransiit benefaciendo. E não era somente os lugares onde se demorava algum tempo que se sentiam bem com a Sua presença. Ele tornava notáveis os sítios em que (Por onde) passava, pela profusão das Suas graças. Se numa aldeia já não havia cegos nem aleijados, diziam logo que tinha passado por lá o benéfico Jesus: Pertransiit. E com efeito, cristãos, qual foi a região da Palestina que não viu milhares de vezes quão eficaz era o remédio que os enfermos e os débeis achavam no socorro da Sua mão poderosa? É também o que o profeta Isaías, a quem os Padres chamaram o evangelista da lei antiga, pela exatidão dos seus vaticínios; é, digo eu, o que o profeta Isaías celebra com a sua elegância habitual no capítulo 35 da sua profecia: "Dizei aos aflitos, nos diz ele, aos que têm o coração abatido pelos seus longos infortúnios, dizei-lhes que se fortifiquem. Não tardará que Deus venha para os vingar; o próprio Deus há de vir e há de salvar-nos" - Deus ipse veniet et salvabit nos (Isaías 35, 4). Quem é esse Deus que nos vem salvar, a não ser o Jesus Salvador, de quem o mesmo Isaías escreveu que havia de chamar-se Manuel, Deus conosco? Um Deus que está conosco não é o mesmo que dizer um Deus-Homem? O próprio Deus, diz Isaías, virá então para nos salvar. Como vedes, quer referir-se ao Messias. "É então, continua ele (Isaías 5, 6) quando o Salvador vier, hão de ouvir os surdos e terão vista os cegos; o que estava paralítico há de saltar agilmente como um veado, e a fala será dada aos mudos" Não vedes, cristãos, que o discurso do nosso Salvador, no evangelho que expomos, é tirado do profeta? "Os surdos ouvem, diz o Filho de Deus, os cegos veem e os coxos andam" Apesar de lhe dizer, ainda que em poucas palavras, as profecias que se realizam na Sua pessoa, a fim de nos fazer compreender o que o apóstolo São Paulo tão evidentemente nos demonstrou, "que ele é o fim da lei" (Romanos 10, 4) e o único objeto de todos os oráculos divinos. Portanto, irmãos meus, é preciso reconhecermos o poder do nosso Salvador nos remédios que Ele nos dá, movido de compaixão pelos nossos males. Demais sei eu que, vindo o Filho de Deus ensinar à terra uma doutrina tão inacreditável como era a Sua, era preciso que Ele a confirmasse por meio de efeitos dum poder sobrenatural. Mas isso não impede que eu reconheça a bondade que Ele dispensa à nossa natureza no prazer singular que tem em curar as nossas doenças. Sim, eu posso afirmar que todos os milagres provêm dum sentimento de compaixão. Muitas vezes, considerando as misérias que agitam a vida humana, não nos pode recusar as Suas lágrimas. Nunca vi um miserável que se não compadecesse dEle; e eu inclino-me a crer que teria certamente ido procurar os infelizes até ao cabo do mundo se as ordens de Deus, seu pai, e a obra da nossa redenção o não tivesse detido na Judeia. "Eu tenho dó deste povo" (São Marcos, 8, 2) disse Ele antes de multiplicar os cinco pães. "Ficou movido de misericórdia, diz o evangelista, e entregou o filho à mãe" (São Lucas 7, 13-15). Em todas as grandes curas que faz não deixa nunca de dar provas de que lamenta as nossas calamidades: donde eu concluo com todos os visos de verdade que a Sua compaixão foi a origem de quase todos os Seus milagres. A primeira graça que Ele concedia aos enfermos era compadecer-se deles com o afeto de um bom pai. O seu coração escutava a Voz da miséria que o enternecia, ao mesmo tempo que lhe solicitava o braço para o aliviar. O seu amor não se ofende pelo mau acolhimento que lhe fazemos. Quereis ver um exemplo admirável? Um judeu pediu-lhe que curasse o filho, que sofria atrozmente, e Jesus respondeu-lhe: "Raça infiel e maldita, até quando terei de viver convosco e vos hei de suportar? Trazei cá o vosso filho. Raça infiel e maldita... trazei cá o vosso filho" (São Mateus 17, 16). Que sentido o destas palavras e como parecem terríveis de tragar! Porque havia de reunir na mesma fala uma justa indignação e um testemunho fiel de ternura? É que ele lembrou-se de que era homem, e homem extremamente miserável; e este único pensamento lhe fez perder toda a cólera, que cai desarmada, como vedes, e vencida por um objeto de piedade. Realmente a malícia dos judeus havia subido a grande excesso. O desprezo e a ingratidão deles molestavam-no grandemente; quase que já os não podia suportar; e não obstante disse: "trazei o vosso filho que eu o curarei". Bem vedes que a Sua natural bondade o obriga quase à força a recompensar-nos e chega a extorquir-Lhe benefícios para nos dar. Imaginai quão grande era a inclinação que tinha de fazer bem aos homens, visto que nem o ódio mais furioso, nem a inveja mais violenta podiam suspender-Lhe o curso das graças. É que Ele era sinceramente bom e compadecia-se dos nossos males. E, na verdade, visto que não havia outra coisa que o obrigasse a vir em nosso auxílio a não ser à nossa extrema miséria, devia Ele descer à terra, como diz o apóstolo São Paulo (Colossenses 3, 12) "revestido das entranhas da misericórdia". Pois que melhor ficava ao Salvador do que lamentar os que estavam perdidos; que melhor se conformava com o que devia curarmos do que compadecer-se das nossas enfermidades; que melhor se acomodava ao nosso libertador do que lastimar a nossa servidão. Cabe agora, cristãos, elevar mais alto o nosso entendimento, e depois de havermos considerado o Salvador curando as doenças da carne, é mister passar a uma reflexão mais espiritual e falar da cura dos espíritos, cuja imagem se achava representada na dos corpos. E se vedes que Ele de tal maneira se compadece dos sofrimentos do nosso corpo, com que gemidos julgais que pranteia as misérias da nossa alma? Imaginai-O por este raciocínio: não é muito de estranhar, na verdade, que o nosso corpo sofra, visto que é passível, nem que desfaleça, visto que é enfermo, nem que morra, visto que é mortal; é esta a Sua natural qualidade. Nós não costumamos lamentar os animais por serem desprovidos de razão, nem deplorar a condição dos seres inanimados por serem destituídos de vida, e de sensibilidade; e isto por sabermos que são coisas tão comuns e tão propensas à ordem natural que não merecem compaixão da nossa parte. Toda a compaixão supõe uma dor; e a dor excita-se singularmente pelos acidentes estabelecidos e imprevistos. E sabendo de que matéria os nossos corpos foram formados, com que não devemos nós contar? Mas que uma alma duma natureza imortal, animada de não sei de que coisa divina, composta, se assim me posso expressar, dessa chama puríssima e celestial de que foram formadas as inteligências; uma alma de que a razão é um facho da sabedoria eterna, e a essência uma imagem da própria essência de Deus; uma alma que, assim considerada, só pode ter nascido para a soberana felicidade; que essa alma seja precipitada num abismo de infinitos males; que fique sempre cega, sempre abatida e sempre condem nada a sofrer a última e eterna ruína, para isso, irmãos, é que a compaixão, por mais terna que fosse, não teria lamentos bastantemente lúgubres, nem lágrimas bastantemente amargas. Este homem parece-vos muito infeliz, porque, tendo perdido a vista corporal, já não pode gozar dessa luz que nasce e morre todos os dias; e achais pequeno infortúnio estar a alma envolvida em densas trevas que lhe ocultam as verdades eternas, que apenas deviam luzir à nossa razão! Causa-vos dó ver esse pobre corpo com os membros tolhidos; e não lastimais essa alma, que, por uma brutal estupidez, tem todas as suas funções paralisadas! Tendes compaixão desse miserável hidrópico, porque o vedes beber constantemente sem que consiga saciar a sede; e não vos comove ver esse avarento e esse ambicioso, um dos quais está sempre a fumar, e o outro emprega todo o seu tempo em acumular bens que num momento há de perder, sem que nenhum deles consiga jamais apagar a sede das suas paixões infinitas. Não significa isto falta de bom-senso? Por isso eu não duvido que o Filho de Deus tenha julgado as nossas almas tanto mais dignas da Sua. piedade e misericórdia (Compaixão) quanto maior for a dignidade delas e mais verdadeiras as suas misérias. E isto mesmo me leva a crer que, quando o seu coração se compadecesse das enfermidades que tão cruelmente oprimem esta carne mortal, não pensaria Ele somente no corpo; certamente ia muito mais longe, e então logo remontava à origem, que é o pecado. Se testemunha desgosto por ver as enfermidades da carne, e alegria por lhes dar remédio, é para nos mostrar que todo o homem lhe merece afeição, e que, se ama tão ternamente a parte mais abjeta, tem transportes inacreditáveis pela mais nobre e pela mais divina. Se vos apraz, observai ainda este raciocínio. É indubitável que Ele só se compadecia do corpo por causa da alma; e que, em todas as doenças corporais, considerava o pecado, que é a origem delas. Quando olhava para esta carne miserável, em toda a parte sujeita a dores e a inúmeras enfermidades, não imagineis que Ele pensava somente no corpo. Ó Deus omnipotente, dizia Ele; (e a mim, Senhor, permiti que neste lugar penetre em Vossos sentimentos; Vossos decretos, porque são das Vossas Escrituras) ó Deus, dizia Ele então, se os homens tivessem permanecido no feliz estado em que meu Pai os havia colocado desde a sua origem, não seriam miseráveis coma hoje o são. No paraíso, a felicidade ser-lhes-ia divina, e a vida ser-lhes-ia imortal. E com efeito, cristãos que me ouvis, em quanta durasse essa inocência, Deus, que interiormente se unia às nossas almas, teria nelas vertido o influxo vital com tão grande abundância que se espalharia por todo o corpo; de maneira que o homem, vivendo por influência divina, não teria tido perturbação alguma no espírito nem qualquer enfermidade corporal. Ora, como o pecado nos separou de Deus, foi necessário que reconhecêssemos quão grande era a perda que sofríamos; e então a alma, não bebendo já dessa fonte de vida eterna, tornou-se impotente e abandonou o corpo enfraquecido. É por isso que eu não me admiro de o cercar a mortalidade; e desde então essa carne que tende a morrer, ficou sujeita a toda a sorte de injúrias; e pendendo continuamente para o túmulo, ficou necessariamente propensa a grandes vicissitudes, e, por conseguinte, a mortais alterações. E em todos estes infortúnios, que outra coisa vemos nós, fiéis, pois, vos faça juízes nesta causa, a não ser uma justa punição da nosso pecado, visto que era justíssimo que a incorruptibilidade abandonasse o homem, já que ele não queria continuar a gozar dela na companhia de Deus? E nesta hipótese, é incontestável que o Filho de Deus, que desde o princípio tudo descobria, quando via as febres, as paralisias e as outras doenças corporais, descia até à origem do mal, quer dizer, a essa primeira desobediência. No castigo só considerava o crime, e era o que Ele mais deplorava. Bem sabia que os sofrimentos da carne, que não eram mais que uma punição, não podiam ser o maior mal; porque a omnipotência divina não admite que haja miséria maior que o pecado. Eu sei que esta verdade ofende os juízes humanos; mas, ó mortais ignorantes que somos, nós não compreendemos como é triste ofender a Deus! Dizei a um homem que está sofrendo o suplício da roda, se é que ele ainda tem vida bastante para vos ouvir, dizei-lhe que é infeliz, não tanto pelo castigo que sofre, senão pelo crime que praticou; que a sua maior miséria é o ser homicida, é não o ser supliciado; como poderá ele ouvir-vos? A sua alma, vivamente torturada, apenas sente e não pode pensar. As vossas palavras indigná-lo-iam e iriam aumentar-lhes o suplício. E todavia haverá coisa mais verdadeira? Porque é indubitável que a maior miséria provém do maior mal; e eu não receio afirmar que o castigo, em vez de ser um mal, é um bem, visto que o que produz o mal é a oposição ao soberano bem, que é Deus. Ora o castigo não é contra Deus; está pelo contrário, de harmonia com a Sua justiça. E então não é justo que o pecador sofra, e que o crime não fique impune? E não é a justiça um grande bem? Por consequência, se o castigo é um mal, apenas o é para o caso particular; porque, para o caso geral, é ele um grandíssimo bem. E de que maneira? É que o pecado estabelece a desordem no universo; e o não obedecer aos preceitos divinos é uma desordem manifesta; portanto, o pecado estabelece no mundo a desordem. E todavia o Senhor do universo não pode admitir desordem na Sua obra. E então que faz? Estabelece duas ordens: uma, dos Seus eternos preceitos, pelos quais se formam as vontades sinceras; a outra, é a ordem da justiça que regula as vontades desregrada. Estas duas ordens fundam-se ambas nesta lei imutável que obriga ao cumprimento da vontade divina, ou com a obediência dos bons, ou com o suplício dos criminosos. "O que não é realizado por aqueles que desobedecem à sua vontade é realizado por Ele próprio", diz Santo Agostinho: Cum faciunt quod non vult, hoc de eis facit quod ipse vult. Tu não quiseste submeter-te à ordem, hás de sofrer as consequências; isto é: Não quiseste cumprir, ó pecador, a ordem dos preceitos divinos que te haviam sido impostos, hás de ficar sujeito à ordem da sua justiça. E que é a ordem da justiça? É a justa punição das vontades rebeldes; é a severidade da rigorosa justiça divina que experimentam aqueles que desprezaram a bondade de Deus; é o penoso regresso do domínio de Deus daqueles que dEle se afastaram pela sua rebelião, para que assim tudo fique sujeito à Sua divina vontade, naturalmente ou por violência. Por consequência, o castigo está na ordem, porque reduz à ordem os que dela se tinham desviado; e então é ele muito conveniente para o proceder geral do universo, porque a ordem é o bem geral; e, ainda que o particular sofra com isso, existe um certo bem no mal que ele sofre, porque há regra e equidade. Ora, se formos mais longe, veremos que só o pecado é o mal propriamente dito e essencial, sem relação alguma com o bem. É necessário que ele seja o soberano mal, porque é soberanamente oposto ao soberano bem. Portanto, está provado o que eu disse, que a maior miséria é o maior mal. Ora se o pecado e o inferno fossem coisas distintas, teríamos necessariamente de concluir que o pecado seria exatamente como o inferno; e que os réprobos seriam mais miseráveis por serem pecadores do que por serem precitos. E, se bem que isto repugne à razão do homem, é necessário que as verdades eternas prevaleçam e que cativem o nosso entendimento. E agora, para tomar o fio do nosso discurso, devemos crer que muitos pecadores excitaram no coração de Jesus Cristo uma dor incompressível. E se Jesus Cristo teve uma dor tão sensível pelos menores de todos os males, que são os que atormentam este corpo sujeito à morte, não se compreende como Ele desejou ardentemente dar remédio aos pecados que arruinavam as almas que Ele viera resgatar, no estado de miséria extrema. É por isso que se Ele deu lágrimas para as doenças do corpo, deu a última gota do Seu divino sangue para as doenças das nossas almas. Se curou as enfermidades corporais, com uma incrível facilidade, só pela virtude da Sua palavra, quis purificar as nossas iniquidades com dons incompromissíveis; como diz o profeta Isaías (Isaías 53, 4-5) que "Deus o castigou por causa dos pecados do seu povo, que ele vergou ao peso dos nossos pecados e que nós ficamos curados com as suas dores". Foi com este sangue e com estes sofrimento que Ele abriu na casa de Davi essa bela e admirável fonte de que fala o profeta Zacarias no seu capitulo 13: "Nesses dias, diz ele, brotará uma fonte para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para purificação dos pecadores" (Zacarias, 13, 1). Ora foi para vós cristãos, que se abriu essa fonte. Vós sois os verdadeiros habitantes de Jerusalém, porque sois os filhos da Igreja e os herdeiros das promessas que foram feitas à sinagoga. Sois a casa de Davi, porque estais incorporados em Jesus, filho de Davi, e porque a Sua carne e o Seu sangue passaram para vós. Correi, pois, a essa fonte milagrosa, e lavai nela as vossas iniquidades. Todos correm muito solícitos a esses banhos que imaginam ser salutares para o corpo e desprezam-se essas águas divinas onde se faz a purificação das nossas almas. Que estupidez e que cegueira! Se compreendêsseis bem, cristãos, quão terrível e inimaginável é o mal de ofender a Deus, porque não buscais o remédio que Jesus misericordioso vos dá na penitência? Porque é por este canal, fiéis, que correm essas águas sagradas e purificadoras. Ó Deus! Quão feliz me julgaria, se pudesse fazer-vos compreender que as doenças mais cruéis nada valem, em comparação do veneno e da peste, inoculadas em nossas almas por um único pecado mortal! Roguemos, pois, ao médico misericordioso, que tanto se compadece de nossos males, que dê aos nossos corpos o destino que entender, contanto que salve as almas. Quando somos acometidos de dores violentas, abrimos-Lhe o nosso coração e dizemos com fé viva: Caritativo e misericordioso Médico, que baixastes do céu para me tratardes das minhas doenças que são inumeráveis, ou eu estou muito doente do corpo, a julgar pelas dores violentas que sinto; ou estou muito doente da alma, visto que tanto me oprimem os incômodos mais ligeiros; ou então estou doente do corpo e da alma, porque não só as dores que sinto são agudíssimas, mas também o meu espírito enfraquece demasiado com doenças que, além de serem cruéis, de forma alguma são suportáveis. Confesso-Vos, ó meu Deus, que a razão deveria dominar mais do que domina; mas que hei de fazer? A minha carne é fraca, e bem sabeis Senhor, quanto ela pesa ao espírito. Porque é que me não dais a saúde, Vós, que sois um bom médico? Os Vossos grandes milagres provam-me à evidência que Vos não falta o poder de me aliviardes. E eu não creio que fiqueis indiferente aos meus sofrimentos, Vós que sempre haveis tido uma tão grande compaixão dos miseráveis, e a quem só as nossas misérias atraíram a este mundo para remediar os nossos males, oh! É impossível, certamente me haveis de ouvir. Mas, se eu necessariamente devo sofrer em vez de me curar, seja feita a Vossa vontade. O que agora é travor para mim, ser-me-á dulcidão, quando for ministrado por uma mão tão preciosa e tão benfazeja. Na verdade, bem reconheço, Salvador meu, que ainda não é tempo de curar o meu corpo. Esse tempo há de vir, esse tempo extremamente feliz, em que haveis de estabelecer numa incorruptível saúde esta carne que amastes, visto que tomastes uma da mesma natureza. Então a minha carne ficará sacrificada, pois ficará semelhante à Vossa, de que eu participei aos Vossos sagrados mistérios. Entretanto, se Vos apraz, irei sofrendo. Mas, pelo menos, ó minha doce esperança, ó meu amável consolador, curai as doenças da minha alma. Moderai os ímpetos da minha avareza e o ardor dos meus loucos amores e a perigosa precipitação dos meus juízos temerários e o indiscreto calor da minha ambição mal ordenada. Não ignoro que as minhas doenças são justas punições dos meus crimes; mas, ó meu único libertador, que para mim tudo dispondes bem, fazei que as penas dos meus pecados sejam o sinete da Vossa misericórdia, o exercício da minha penitência e a prova da minha virtude (inda muita caridade). Estais satisfeitos com esta matéria, fiéis? Conhecestes Jesus Cristo como médico dos enfermos? Quereis que falemos finalmente de Jesus companheiro e evangelista dos pobres, a fim de considerarmos por mais algum tempo Jesus escândalo dos infiéis? Estai de novo atentos, se Vos apraz. SEGUNDO PONTO Como o profeta Isaías foi quem nos mostrou Jesus Cristo, curando as nossas doenças, há de ser também ele que nos há de dizer que foi enviado para ser o evangelista dos pobres; e, pela designação de pobres, deveis entender geralmente todos os contritos de coração a quem Jesus devia evangelizar, isto é, trazer-lhes boas-novas. Suposto isto, escutai agora Isaías no seu capitulo 61, em que ele fala assim do Messias: "O Espírito do Senhor, diz ele, repousou sobre mim, porque o Senhor me encheu da sua unção" (Isaías 61). Detenhamo-nos nestas palavras, cristãos, e penetremos no sentido delas. Primeiro que tudo, digo que o profeta fala em nome e como figura doutrem, segundo o estilo ordinário da expressão profética; porque nós não lemos nada nas Escrituras a respeito da unção do profeta Isaías. Mas quem seria aquele que, um pouco versado no cristianismo, não via por estas palavras que ele manifestamente designava o Salvador do mundo? O Espírito do Senhor repousou sobre mim, disse ele. E não foi ele próprio que disse "que nascerá uma flor da raiz de Jessé, e que sobre ela repousaria o Espírito do Senhor?" (Isaías 11, 1-2) Sabeis que Jessé é o pai do rei Davi. Que flor é essa da raiz de Jessé a não ser o Salvador que, por excelência, é chamado o filho de Davi? E não foi sobre Ele que se viu descer o Espírito Santo sob a forma duma pomba, quando Ele se fez batizar pelo Seu precursor? "Porque o Senhor me encheu da sua unção", continua Isaías. Não foi ainda ao Filho de Deus que Deus encheu dessa unção admirável, donde até lhe provém o nome? Na Sagrada Escritura é Ele chamado indiferentemente o Messias, o Cristo de Deus, o ungido de Deus; o que corresponde a dizer, a mesma coisa em diversos termos. Porque, como na lei antiga era pela unção que se estabeleciam os reis e os sacrificadores, o reparador da nossa natureza, devendo ser ao mesmo tempo o rei do verdadeiro povo e o único sacrificador do verdadeiro Deus, chamou-se ungido de Deus com um título de prerrogativa extraordinária, porque, pela dignidade da Sua unção, devia reunir num só a realeza e o sacerdócio, que estavam separados no primeiro povo. E não entendeis aqui, cristãos, qualquer espécie de unção corporal; unção do nosso pontífice é a divindade do Divino Verbo. Porque assim como a propriedade dos óleos e das unções é estenderem-se primeiramente às coisas a que são aplicados, e depois penetrarem nelas o mais possível, incorporarem-se nelas em certo modo e a elas ficarem tão intimamente ligados que constituam uma mesma substância; assim a divindade do Verbo, unindo-se à humanidade de Jesus, espalhou-se-lhe primeiramente no seu todo e nas suas partes, penetrou nela tão profundamente que nela efetivamente Se encarnou, de maneira que duma e doutra formou-se apenas um único todo, em consequência desta união inefável. Foi por isso que Jesus Salvador se chamou por excelência ungido de Cristo, por causa desta divina e miraculosa unção. Mas voltemos ao profeta Isaías: "O Espírito do Senhor repousou sobre mim, porque o Senhor me encheu da sua unção. Ele me enviou para evangelizar os mansos (adverti as próprias palavras do nosso evangelho) para curar os contritos de coração, para pregar a remissão dos cativos, para publicar o ano da reconciliação do Senhor, para consolar os que choram e transformar em alegria a tristeza dos que se lamentam em Sião" Até aqui fala o profeta Isaías. E haverá uma única palavra em todo este discurso, em que não vejais claramente Jesus, Senhor nosso, nos efeitos do seu Evangelho? Foi por isso que, tendo-se Ele próprio encontrado na sinagoga onde há esta profecia, mostrou evidentemente que ela se cumpriu em seus dias (São Lucas 4, 17). Mas quereis, irmãos, que eu vos prove, numa palavra, o seu cumprimento? Vamos todos a essa misteriosa montanha onde Jesus começa a falar, depois de se ter contentado até então como fazer falar os Seus profetas: Aperiens os suum dixit; (São Mateus 5, 2) vamos a essa misteriosa montanha, ouçamos lá a primeira prédica do Messias, vejamos-Lhe fazer a abertura do Seu Evangelho e lançar os fundamentos da nova lei; é lá que Ele começa de evangelizar. Foi por isso que, lembrando-se de que a Sua obra determinava muito expressamente evangelizar os pobres e os miseráveis, isto é, trazer-lhes boas-novas, como já expliquei, foi por isso que, neste admirável discurso, Ele dirigiu primeiro a palavra aos pobres: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porquê deles é o reino do céu" (São Mateus 5, 3). Que consolações aos pobres, que Jesus, tão rico por Sua natureza e tão pobre por Sua vontade, lhes promete com tão grandes riquezas! Que melhores novas lhes podia Ele dar? Evangelizar os pobres não era desempenhar-se do ofício a que estava destinado pelos profetas? Ah! Como neste passo reconheço claramente Aquele de quem o Salmista disse: Honorabile nomen eorum coram ilo (Salmo 71, 14). E assim continua com a mesma energia. Isaías, se ainda vos lembrais, disse que deve anunciar a consolação aos que choram (Isaías 61, 2). "Bem-aventurados os que choram, disse o Senhor Nosso, porque eles serão consolados" (São Mateus 5, 5). Isaías diz-nos que o Messias devia publicar o ano da reconciliação do Senhor; (Isaías 61, 2) é o que noutro lugar se chamou o tempo de indulgência, o tempo de misericórdia. E não é o que faz Jesus, Salvador, anunciando-nos a misericórdia nestes termos: "Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia?" (São Mateus 5, 7). Isaías afirma que deve anunciar aos que se lamentam em Sião, que a tristeza lhes será mudada em alegria (Isaías 61, 3) Sião, é o lugar do templo de Deus, é a figura da Sua Igreja. Os que se lamentam em Sião, são os que se queixam deste exílio, e que, afastados da sua terra natal, são ordinariamente perseguidos nesta triste peregrinação. Então Jesus, para lhes anunciar a mudança do seu estado miserável para uma condição sempre ditosa, fala assim no mesmo lugar: "Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus!" (São Mateus 5, 10). É assim que Nosso Senhor evangeliza os aflitos, executando pontualmente as profecias antigas. Porque não clamarei neste passo com o grave Tertuliano, de quem tirei quase todas as notas que acabo de apontar, no seu livro 4 Contra Marcião; porque, repito, não clamarei com ele: O Christum et in novis veterem! "Oh! Como Jesus Cristo é antigo na novidade do seu Evangelho!" O que Ele faz é novo, porque ninguém o tinha feito antes dEle; e o que Ele faz é antigo porque não faz mais do que realizar as coisas que a fiel antiguidade havia esperado. Quem jamais trouxe melhores novas aos pobres do que aquelas que o pobre Jesus lhes anunciou, quando lhes pregou a sua vinda? Ó pobres, regozijai-vos, que tendes um companheiro; mas um companheiro tão sublime e tão admirável que vale mais ser pobre na Sua companhia do que ser o senhor omnipotente nas assembleias dos mundanos. Não vos admireis de serdes a escória do mundo, porque assim era Jesus Cristo quando apareceu na terra e falou no meio dos homens. Os pobres, que eram os Seus bons amigos, foram os primeiros a saber da Sua vinda, porque para eles é que Ele vinha ao mundo; e apenas como pobre quis ser reconhecido. A continuação da Sua vida não desmentiu o Seu nascimento. Quanto mais avançou em idade, tanto mais utilizou os pobres nos Seus interesses, que outros não eram senão a glória de Deus. É a eles quem Ele admite às suas confidências, a eles é que descobre todos os Seus mistérios, são eles os escolhidos para ministros do Seu reino e colaboradores da Sua obra épica. Coragem, pois, ó pobres de Jesus Cristo! Que importa que todo o mundo vos despreze? Basta que tenhais Jesus Cristo por vosso lado. Não tendes entrada na corte dos reis, mas lembrai-vos de que é lá que reinam a confusão e a desordem. Correi para Jesus Cristo, ó enfermos, miseráveis, em geral, quem quer que sejais, ó oprimidos da sorte; nele encontrareis a paz para as vossas almas. Escutai a voz carinhosa que chama por vós. Lançai-vos confiadamente em Seus braços, porque Ele tem-nos sempre abertos para vos receber. Suportai sempre com paciência a vossa pobreza; não murmureis contra Deus nem contra os homens. Esperai toleradamente o tempo da vossa consolação; e lembrai-vos de que, se o mundo vos oprime, vós servis um Senhor que o venceu, que não pode agradar ao mundo e a quem o mundo também não pode agradar. É o que Jesus Salvador anuncia aos pobres. Dizei-me, na verdade, cristãos, podia Ele dar-lhes melhores novas? E não temos nós razão em afirmar que é Ele o verdadeiro emissário para a evangelização dos pobres? TERCEIRO PONTO O que me assombra, fiéis, é que sendo o Salvador do mundo tal como o acabamos de descrever, haja quem, durante a Sua vida, o tenha ultrajado. Permiti que recordemos em poucas palavras tudo o que dissemos já, e admiremo-nos perante Deus de haver quem tenha podido ser escandalizado no nosso Salvador. Em primeiro lugar, deviam os Seus milagres fazer calar as bocas mais maldizentes? Uma missão tão bem atestada devia ser alguma vez controvertida? Ainda se Ele tivesse operado milagres, cujo fim fosse unicamente pôr em destaque o seu poder, talvez se dissesse que havia ambição nestas grandes obras. Mas eu demonstrei-vos que todos os Seus milagres tiveram origem numa terna compaixão pelos nossos males, e que nunca Ele deu um passo que não fosse para bem deste povo ingrato. Suponhamos, porém, que um negro desejo tenha ainda podido convencer de que Ele se servia do dom de Deus para criar reputação; que havia a dizer contra a Sua simplicidade. Viram-no à porta dos grandes a mendigar a sua proteção? Entreteve-se nos negócios do mundo? Lisonjeou a ambição e a arrogância dos príncipes? Não levou, pelo contrário, uma vida não só modesta e simples, mas muito miserável e muito humilde, andando com toda a simplicidade, vivendo e, conversando com os pobres, sofrendo sempre injustiças sem nunca se queixar? É certo que era desprezado, mas não aspirava a honras; era pobre, mas não pedia riquezas, embora nem sequer tivesse uma pedra para descansar a cabeça. Podia desempenhar-se mais dignamente do Seu encargo de pregador? Ele ia ensinando a palavra de vida eterna de que Deus o tinha incumbido. Não enriquecia o Seu discurso com soberbos pensamentos ou com o fausto duma eloquência mundana; mas tornava-o cheio duma doutrina celeste, de verdades divinas, que davam às almas um alimento sólido e desciam até à raiz das nossas fraquezas. Umas vezes atraía os povos com suavidade, outras vezes atacava-os energicamente, até lhes chamar filhos do demônio, pregando-lhes os oráculos divinos não com as covardes condescendências dos escribas e dos fariseus, mas com império e autoridade (São João 8, 44) com uma liberdade e uma segurança digna das verdades eternas que Ele nos vinha anunciar. Que se podia censurar numa vida tão ordenada? Não se devia admirar essa coragem igualmente inflexível nos bens e nos males; essa igualdade de costumes que fazia com que vivesse com toda a gente sem rigor e sem lisonja, sem covardia e sem arrogância; essa pureza de intenção que o obrigava sempre a cuidar dos interesses de seu Pai? E contudo, diz Ele, é necessário que eu dê escândalo; e, para mostrar a dificuldade que há em não ser ofendido durante e vida, diz: "Bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar" - Beatas qui non fuerit scandalisatus in me (São Mateus 11, 6). Ó Deus quem não ficaria assombrado com os segredos terríveis da Providência? Mas é neste passo que, com o maior sentimento da minha alma, eu digo como o grave Tertuliano: Mihi vindico Christum, mihi defendo Jesum..., quodcumque illud corpusculum sit. Esse inocente combatido em todo o mundo, é o Jesus Cristo que eu procuro; afirmo que esse Jesus é meu, protesto que me pertence. "Se é vil, se é abjeto, se é miserável, direi mais, se é o escândalo dos infiéis, é Ele o meu Jesus Cristo" - Si inglorius, si ignobilis, si honorabilis, meus erit Christus Pois que, continua o mesmo Tertuliano, assim me foi prometido nas profecias: Eu reconheço Aquele de quem Isaías escreve no capitulo 28, que é "uma pedra eleita, uma pedra de salvação" (Isaías 28, 15) para o seu povo; e no capitulo 8, que "é uma pedra de escândalo, em virtude da qual todos os que nela chocarem ficarão despedaçados" (Isaías 8, 14) Reconheço Aquele de quem o Salmista cantou: "A pedra que eles lançaram, quando andaram construindo, ficou sendo a pedra angular" (Salmo 117, 22) que sustenta todo o corpo do edifício. Finalmente reconheço Aquele de quem Simeão disse no templo, tomando-o nos braços: "Este é posto para queda e elevação de muitos, e para sinal que será contradito" (São Lucas 2, 34). Aquele, enfim, que disse ao cego que tinha feito muito mais luz no seu espírito do que no seu corpo: "Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem comecem a ver, e os que veem sejam cegos" (São João 9, 39). Cristãos, não tremeis ao ouvirdes estas palavras do nosso Salvador? Espero, contudo, da misericórdia divina que elas não sejam dirigidas a vós. Tremei, infiéis, tremei, insensíveis; a vós unicamente é que Jesus cega. E vós, verdadeiros fiéis de Jesus Cristo, que tendes o seu temor em vossos corações, abri os olhos a essa luz que só fascina os orgulhosos, e compreendei com fé e submissão os profundos conselhos do Pai eterno, ao enviar seu Filho Jesus Cristo. Não demoremos aqui os nossos raciocínios, para deixar tempo a uma breve reflexão sobre os nossos costumes. Primeiramente, poderia dizer-vos, para suspender uma curiosidade pouco respeitosa, que Deus, moderando como lhe apraz a obra da nossa salvação e sabendo o que nos é útil, não julgou conveniente que soubéssemos todas as razões do mistério. Quando o sábio arquiteto começa de reconstruir um velho edifício, o espectador ignorante imagina que ele tudo destrói, e a sua fraca imaginação só vê desordem, porque não pode suportar um plano arrojado demais; mas, quando a obra está concluída, vê-se então brilhar por todos os lados a arte e a orientação do artista. Ah! Não sabeis, cristãos, que na Sagrada Escritura toda a obra da nossa salvação é muitas vezes comparada a um edifício sustentado "no alicerce dos Apóstolos e na pedra angular que é Jesus Cristo?" (Efésios 2, 20) - Por isso Deus, no decurso dos séculos, se propôs restabelecer o homem, como um edifício que ameaça ruína. Assentou o alicerce desta nova estrutura na vida do Criador. Os sentidos humanos nada compreendem disto; tudo os contraria, tudo os embaraça: donde o escândalo e a perturbação. Mas nesse grande julgamento, em que Deus há de coroar o edifício da gloriosa imortalidade dos nossos corpos, em que, depois de tudo consumado, "Ele há de ser tudo em todos", como diz o Apóstolo (1 Coríntios 15, 28) e quando a luz eterna se manifestar aos nossos corações, que ordem, que sabedoria, que beleza não veremos nós no que parecia aos nossos sentidos tão confuso e tão mal compreendido! Por consequência, ó homem, crê enquanto não vês. Fica sabendo que a cura das tuas doenças depende absolutamente da confiança que tiveres no teu médico: Crê, e serás salvo, nos diz ele; (São Lucas 8, 50) toma, sem examinar, o infalível remédio que Ele te oferece. Se Ele guardar indefinidamente o segredo desse remédio, desde já te faculta o uso dele; e a Sua misericordiosa bondade dispôs tudo de uma tal maneira que acreditar na Sua eficácia constituí a tua saúde, como conhecê-lO será a tua felicidade. Haverá coisa mais conveniente, tanto mais que esse grande médico que se obriga a tratar das tuas chagas, conhecendo perfeitamente a malignidade delas e o vício da tua natureza, claramente viu que nada havia que te fosse mais próprio nem mais necessário do que a humildade? Ó homem, se bem o compreenderes, o orgulho é a tua doença mais perigosa. Foi pelo orgulho que, sacudindo o jugo da autoridade soberana, pela qual a tua alma deve ser dirigida, tu próprio vieste a ser a tua lei. A conduta da tua razão foram as suas próprias luzes; a regra da tua vontade foram as suas disposições. É essa a tua chaga mortal. É preciso que se humilhem estas duas faculdades, para então poderes receber a cura. Assim como a tua vontade se inclina pela obediência, assim o teu entendimento se submete pela fé. Tu submetes a tua vontade ao teu Deus, quando abraças as coisas porque Ele as quer; e submetes-lhe o teu entendimento, quando acreditas nelas porque Ele as diz. Mui grande te parece esta submissão. Mas um Deus, feito homem por amor de nós, um Deus que, por amor de nós, morreu, exige um sacrifício mais completo com uma humilhação mais profunda. Pois um Deus feito homem e um Deus que morreu, não é um Deus humilhado, como diz o Apóstolo? (Filipenses, 2, 7) e qual deve ser o sacrifício de um Deus humilhado por amor do homem, senão o homem humilhado perante Deus? Ora não seria muito em sua honra praticar as coisas fáceis e acreditar nas que são plausíveis; de maneira que, para a perfeição deste sacrifício que devemos oferecer ao Deus encarnado, era necessário fazer as coisas difíceis e acreditar nas incríveis. Deste modo, destruímos perante Ele tudo o que somos, a fim de que tudo seja reparado por Sua mão (A fim de que Ele se digne reparar-nos por Sua mão) É por isso que era conveniente, para restabelecer a razão humana pela humildade, que as verdades de Jesus fossem inacreditáveis. Ora tudo o que é inacreditável é relutante, e tudo o que é relutante causa perturbação: daqui o escândalo dos infiéis. Além disso, a verdade mais importante que era preciso conhecermos, dada a nossa fraqueza e a nossa impotência, e mostrando nós claramente quanto somos impotentes por natureza, era o meio único de recorrermos confiadamente ao mérito do libertador Jesus Cristo. Ora, quando vejo a Sua doutrina e a Sua vida tão cruelmente combatidas, faço esta reflexão: Porque é que se opõe esta resistência tão furiosa à obra da nossa salvação? Não é verdade o que diz São Paulo: "O homem animal não compreende os segredos de Deus?" (1 Coríntios 2, 14). Não é verdade o que diz Jesus Cristo: "Porque não atendeis aos meus discursos? Porque não podeis entender a minha linguagem?" (São João 8, 43). Porque não podiam eles entender essa linguagem? É porque queriam entender sem reflexão, e isso era-lhes impossível. Não entendendo essa linguagem, mostravam-se necessariamente abstratos à voz de Deus; e essa abstração animava-os à resistência. Quanto mais sublimes eram as verdades, mais abstrata ficava a sua razão orgulhosa, e mais inflamada se mostrava a sua resistência. É por isso que eu não me admiro da resistência subir ao maior auge e atingir o último grau de furor, quando o Filho de Deus lhes anunciou o que tinha visto junto de seu Pai. E por isso Ele lhes diz no seu Evangelho: "Vós quereis-me matar, porque a minha palavra não cabe em vós" (São João 37). Soberbos ignorantes, porque não recorreis à graça pela humildade cristã? E vós não reconheceis, cristãos, que, sem o auxílio dessa graça, resistiríeis sempre ao vosso salvador? Esses pérfidos ouviram as Suas palavras, e desprezaram-nas; viram os Seus milagres, e não acreditaram neles; viram a Sua vida, e ela foi para eles um escândalo. Portanto, é verdade, ó meu Jesus Salvador, que, se não me falardes poderosamente ao coração, se não me arrastardes para Vós pelos Vossos doces encantos, nem a Vossa vida, se bem que muito inocente, nem a Vossa doutrina, se bem que muito sagrada, nem os Vossos milagres, se bem que muito sublimes, conseguirão dominar a minha obstinada rebelião. Uns dizem que Sois um grande profeta, outros que Sois um sedutor; uns edificam-se em Vós, outros escandalizam-se conVosco. Porque é isto, ó meu Mestre, a não ser porque uns são humildes e outros orgulhosos, uns seguem a natureza e outros a graça? Deste modo, as Vossas verdades cegam uns, para iluminar outros tanto mais. Sois uma pedra de escândalo para os soberbos, a fim de que os humildes conheçam melhor o que fazeis misericordiosamente em seus corações, e louvem os Vossos benefícios com uma admiração profunda pelos Vossos juízos. É aqui que os bons cristãos ficam inacreditavelmente consolados. Se as verdades evangélicas entrassem nas nossas almas com uma aparência plausível, atribuiríamos a sua vitória à força do nossa razão; e, tornando-nos mais soberbos, ficaríamos, por consequência, mais doentes. Mas, quando o verdadeiro fiel compreende a loucura e a extravagância do cristianismo, é então que a graça se manifesta na repugnância da natureza, porque reconhece que não é a carne que o vence, nem os interesses mundanos que o induzem, nem a filosofia humana que o convence, senão o poder divino que o cativa. Foi por isso que, na doutrina do Evangelho, aprouve ao nosso Deus que houvesse tantas coisas singulares, violentas, inacreditáveis, extravagantes, segundo a sabedoria do mundo, a fim de que, confundindo-se a razão humana, triunfasse dos corações a única graça de Jesus Cristo, por meio da humildade cristã. Mas digamos ainda uma razão, que será a última, e que fechará este discurso, dando-nos uma instrução importante para a conduta da nossa vida. É realmente verdade, ó Deus omnipotente, o que o bom Simeão disse do Vosso amado Filho; "que seria posto como sinal, por meio do qual seria contradito" (São Lucas 2, 34) Todas as Suas ações e todas as Suas palavras foram maliciosamente contraditas. Ele cura os paralíticos, os cegos de nascença e outras doenças incuráveis; e, porque escolheu o dia de sábado para fazer essa boa obra, dizem que viola a lei de Deus. Expulsa os demônios, e dizem que é em nome de Belzebu, príncipe dos demônios. Chamam-lhe louco, sedutor, ímpio e possesso. Nunca os doutores da lei se aproximavam dele que não fosse para o injuriar ou para o surpreender. Finalmente penduraram-no na cruz, e o Redentor de Israel veio a ser o escândalo desses infiéis. Os gentios contradisseram a Sua palavra por meio de todas as espécies de crueldades que exerceram nos seus servos. Tomaram as Suas verdades e o Seu Evangelho pela maior loucura que jamais apareceu na terra. Além disso, dentre os que se submeterem à Sua disciplina, quantos o não contradisseram? Ah! Meus irmãos, que indignidade! Todos os fundamentos da nossa salvação foram atacados pelos povos que professavam o cristianismo. O pérfido Ariano negou a divindade de Jesus, o insensato Marcião negou a Sua humanidade, o Nestoriano semeou a discórdia entre os homens, o Eutiquiano confundiu as naturezas; e na pessoa de Jesus Cristo empregaram-se de tal maneira todas as invenções diabólicas que é impossível imaginar-se um erro que não só tenha sido sustentado, mas até tenha constituído uma seita com o nome do Cristianismo. Quantas heresias se elevaram contra as verdades de Jesus! Todas chocaram com essa pedra: e, sem descer a minudencias, depois de romperem, sem motivo algum, a paz e a unidade cristã, não se escandalizaram com Jesus, autor da paz e da caridade fraternal? Mas vamos ainda mais adiante. Que os gentios, que os judeus, que os hereges se escandalizassem com Jesus, Senhor nosso, admite-se; facilmente se sofrem as injúrias dos seus inimigos. Mas, ó dor! Que os católicos, que os filhos da sua santa Igreja, que os verdadeiros sectários da sua fé vivam assim neste mundo, porque é inegável que Jesus Cristo os ofenda e que o seu Evangelho seja para eles um escândalo, isto, irmãos, é que é muito mais deplorável do que o podem exprimir as minhas palavras. Quando a humildade, quando a intensidade, quando o desprezo pelas honras da terra, enfim, quando a inocência te ofende, cristão, ousarias dizer que não és ofendido pelo Salvador? Ignoras que a Sua doutrina não é apenas a luz dos nossos espíritos, mas que é o modelo da nossa vida? Se Jesus é o escândalo dos que vagueiam na doutrina, porque não consideram Jesus Cristo como nosso médico infalível, não o é também dos que são depravados nos seus costumes, visto que não querem reconhecê-lO como o exemplar da nossa vida? E que encontrarei no mundo que não se escandalize no nosso Salvador? Nós amamos as riquezas, e Jesus desprezou-as; nós corremos atrás dos prazeres, e Jesus condenou-os; nós somos joguetes do mundo, e Jesus dominou-o. E como podemos dizer que amamos a Jesus, nós, que nada amamos do que vemos na pessoa d'Ele, e que amamos tudo o que n'Ele não vemos? Vivendo assim, podes negar que não sejas ofendido por Jesus? Tu não odeias o seu nome, mas isso é para ti um escândalo. Sim, Jesus é para ti um escândalo, ó vingativo, porque perdoou as injúrias; Jesus é para ti um escândalo, ó usurário, porque é o pai e o protetor dos pobres a quem a tua impiedosa avareza arranca todos os dias as entranhas. Jesus é para ti um escândalo, hipócrita, porque te serves da Sua doutrina para acobertares os teus costumes corruptos. Jesus é para ti um escândalo, ó miserável supersticioso, que, por caprichos particulares, abandonas toda a piedade sólida e a devoção essencial da Cristianismo, que é a cruz de Jesus, Senhor nosso. Jesus é um escândalo para ti, que consideras a simplicidade como tolice e a devoção sincera como hipocrisia, para ti, enfim, que pela tua vida desregrada, obrigas os seus inimigos a blasfemarem o seu santo Nome. Posto isto, cristãos, para quem é que Jesus não é um escândalo? "Todos procuram os seus interesses e não os do nosso Salvador", dizia outrora o apóstolo São Pedro (Filipenses, 2, 4). Ó Deus, que diria Ele, se voltasse agora à terra? Vendo a licença que reina no meio de nós, vendo nela triunfar o vício, tomar-nos-ia por cristãos, ou não nos colocaria antes no número dos infiéis? Oh! Porque é, ó Deus omnipotente, porque é que permitis que vosso Filho tenha tantos adversários e tão poucos servos verdadeiros? Eu compreendo o Vosso desígnio, ó Deus! Quereis que, nessa confusão infinita dos que contradizem o nosso Salvador, conservem mais preciosa a graça de o honrarem aqueles que sinceramente o fazem; quereis que a sua fé seja mais firme e a sua caridade mais ardente, no meio das oposições de tantos inimigos, e que Jesus encontre no zelo do pequeno número o que parece perder na multidão inumerável dos ingratos e dos transviados. Por consequência, irmãos, aumentemos os nosso zelo para o servir, tanto mais quanto mais vemos aumentar todos os dias o número dos que blasfemam o seu Evangelho com as suas culpas ou com a sua vida desregrada; esforcemo-nos tanto mais por lhe agradar e por aumentar a glória do seu santo Nome; tratemos de lhe prestar a honra que os Seus inimigos lhe roubam. Digamos-Lhe com todo o afeto dos nossos corações: Embora o judeu se encolerize, e o gentio escarneça, e o herege se transvie e o mau católico se junte ao partido dos Vossos inimigos, nós confessamos, ó Jesus, que Sois aquele que deve vir; Sois esse grande Salvador que nos foi prometido desde o princípio do mundo; Sois o médico dos doentes; Sois o evangelista dos pobres; e naquilo que pareceis como que o escândalo dos orgulhosos, Sois o amor dos simples e a consolação dos fiéis. Sois aquele que deveis vir; não conhecemos nem esperamos outro senão a vós: "Debaixo do céu não há nenhum outro nome em que devamos ser salvos" (Atos dos Apóstolos, 4, 12). Por consequência, fiéis, visto que não esperamos outro senão a Ele, ponhamos a nossa esperança nEle só. Se é certo que já não esperamos outro mestre senão a Ele para nos ensinar, observemos fielmente os Seus preceitos. Se não esperamos nenhum outro pontífice que venha purificar as nossas iniquidades, conservemos cuidadosamente a inocência. E, visto que o mesmo Jesus, que veio na enfermidade da carne, há de vir mais uma vez glorioso para julgar os vivos e os mortos, "vivamos justamente e sobriamente neste mundo, aguardando a feliz esperança e a triunfante chegada do nosso Deus e redentor Jesus Cristo" (São Tito, 2, 12-13) que, destruindo a morte para sempre, nos fará companheiros do Seu reino e da Sua feliz imortalidade. Assim seja. 2º Domingo do Advento - 2º Sermão para o 2º Domingo do Advento Divindade da Religião - Este magnífico sermão deve ser estudado de muito perto sob todos os pontos de vista; haveria grande proveito em o comparar com os Pensamentos de Pascal; é, por assim dizer, o resumo eloquentíssimo dessa Apologia do cristianismo. O discurso da Divindade da Religião seria talvez, se o discurso da Unidade da Igreja não existisse, a obra prima de Bossuet, como autor de Sermões Pregado no Louvre no dia 6 de dezembro de 1665. SUMÁRIO Exordio. - O Salvador passou, fazendo bem e curando todas as enfermidades. Os milagres eram os sinais sagrados dos prodígios sobrenaturais que a sua religião devia realizar. Proposição e divisão. - Jesus Cristo quis na fé "que as verdades fossem sublimes; na regra dos costumes que o caminho fosse estreito; na remissão dos pecados que o meio fosse fácil". 1º Ponto. - "A doutrina do Salvador estabeleceu-se no mundo e mantem-se nele como uma rainha no seu império; ora a sublimidade das verdades cristãs" leva-nos a sublevar-nos "contra a autoridade de Jesus Cristo". 2º Ponto. - A moral do Salvador disciplinou maravilhosamente o indivíduo, a família, as amizades e a sociedade; ora, a exatidão da regra cristã leva-nos a queixar-nos do rigor da Igreja. 3º Ponto. - As portas da penitência estão sempre abertas, o que nos arrasta a abusar da paciência da Igreja. Peroração. - Nós devemos viver de tal maneira que as instituições da clemência divina não venham a ser para nós uma causa de condenação. Caeci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur, etc., e quase em seguida: Beatus qui non fuerit scandalizatus in me! Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, e bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar! (São Mateus 11, 5 e 6). Jesus Cristo, interrogado no nosso evangelho pelos discípulos de São João Batista se Ele é o Messias que se esperava e o Deus que devia vir pessoalmente para salvar a natureza humana: Tu es qui venturas es? "Sois aquele que deveis vir?" respondeu-lhes unicamente que faz bens infinitos no mundo, e que não não obstante o mundo se subleva unanimemente contra Ele. Conta-lhes em seguida os benefícios que espalha e as contradições que sofre, depois os milagres que faz e os escândalos que causa a um povo ingrato; isto é, que dá aos homens, como sinal de divindade em Sua pessoa sagrada, em primeiro lugar os Seus benefícios, em segundo lugar a ingratidão deles. Com efeito, é certo que Deus nunca deixou de ser benfazejo, e que os homens, pela sua parte, nunca deixaram de ser ingratos, a tal ponto, que poderia parecer, tal é o cúmulo da nossa ingratidão, que é como que um apanagio da natureza divina q ser infinitamente liberal para os homens, e não encontrar todavia no gênero humano senão uma perpétua oposição às Suas vontades e um desprezo injurioso por todas as Suas graças. São Pedro igualou (Latinismo puro: aequavit honores) em duas palavras os elogios dos mais famosos panegíricos, quando disse do salvador "que ele passava, fazendo bem e curando todos os oprimidos" - Pertransiit benefaciendo et sanando omnes oppressos (Atos dos Apóstolos, 10, 38). E, na verdade, nada há mais magnífico e mais digno de um Deus do que deixar por toda a parte onde passa efeitos da Sua bondade; assinalar todos os seus passos com benefícios; e percorrer as províncias, não pelas suas vitórias, como se diz dos conquistadores, porque isso é devastar e destruir tudo, mas pelas suas liberalidades. Deste modo, Jesus Cristo mostrou aos homens a Sua divindade como ela costuma manifestar-se, que foi pelas Suas graças e pelos Seus cuidados paternais; e os homens trataram-no do mesmo modo que tratam a divindade, quando lhe pagaram, segundo o seu costume, com impiedade e ingratidão - Et beatus est qui non fuerit scandalizatus in me! Eis, em poucas palavras, o que nos é proposto no nosso evangelho; mas, para tirar daqui os ensinamentos, é preciso um discurso mais longo, no qual eu não posso entrar senão depois de ter implorado o socorro do céu. Ave-Maria. Já não é dando luz aos cegos, nem fazendo andar os aleijados, nem purificando os leprosos, nem ressuscitando os mortos, que Jesus Cristo autoriza (Autoriza, isto é, dá autoridade á) a Sua missão e dá a conhecer aos homens a Sua divindade. Estas coisas foram feitas durante os dias da Sua vida mortal, e continuadas na Sua santa Igreja, enquanto foi necessário para estabelecer os fundamentos da nova fé. Mas estes milagres sensíveis, que foram operados pelo Filho de Deus em pessoas particulares e durante um tempo limitado, eram os sinais sagrados de outros milagres espirituais que não têm limites semelhantes, visto que dizem respeito igualmente a todos os homens e a todos os séculos. Com efeito, não são apenas particulares, cegos, aleijados e leprosos que pedem ao Filho de Deus o auxílio da Sua mão poderosa; mas, para melhor dizer, todo o gênero humano, se o soubermos compreender, consiste nesse surdo e nesse cego que perdeu a ideia de Deus e já não pode ouvir a Sua voz. O gênero humano é esse coxo que, não tendo regra alguma dos costumes, já não pode andar direito nem ter-se de pé. Enfim, o gênero humano é ao mesmo tempo esse leproso e esse morto que, por não ter encontrado alguém que o afaste do pecado, não pode purificar-se das suas culpas, nem evitar a sua corrupção. Jesus Cristo restituiu o ouvido a esse surdo e a vista a esse cego, quando estabeleceu a fé; Jesus Cristo endireitou esse coxo, quando regulou os costumes; Jesus Cristo limpou esse leproso e ressuscitou esse morto, quando estabeleceu na Sua santa Igreja a remissão dos pecados. São estes os três grandes milagres pelos quais Jesus Cristo nos mostra a Sua divindade, e é este o meio que emprega. Todo aquele que mostra aos homens uma verdade soberana e omnipotente, uma retidão infalível e uma bondade ilimitada, mostra ao mesmo templo a divindade. Ora, o Filho de Deus mostra-nos em Si uma verdade soberana pelo estabelecimento da fé, uma equidade infalível pela direção dos costumes e uma bondade ilimitada pela remissão dos pecados; logo, mostra-nos a Sua divindade. Mas, se vos apraz, acrescentaremos, para acabar a explicação do nosso evangelho, que tudo o que prova a Sua divindade prova também a nossa ingratidão: Beatus qui non fuerit scandalizatus in me! Todos os seus milagres são para nós um escândalo; todas as Suas graças constituem para nós um obstáculo. Ele quis que, na fé, as verdades fossem sublimes; que, na remissão dos pecados, o meio fosse fácil. Tudo isto era operado para nossa salvação: essa sublimidade, para nos elevar; essa retidão, para nos guiar, e essa facilidade, para nos convidar à penitência. Mas nós somos tão depravados que tudo para nós se transforma em escândalo, visto como a sublimidade das verdades da fé faz com que nos sublevemos contra a autoridade de Jesus Cristo, com que a exatidão da regra que Ele nos dá nos leve a queixar-nos do seu rigor, e com que a facilidade do perdão seja para nós um motivo de abusar da Sua paciência. PRIMEIRO PONTO A verdade é uma rainha que habita em si mesma e na sua própria luz, a qual, por consequência, é o seu próprio trono, a sua própria grandeza e a sua própria felicidade! Todavia, para bem dos homens, quis ela reinar sobre eles, e Jesus Cristo veio ao mundo para estabelecer esse império pela fé que nos pregou. Eu prometi, senhores meus, mostrar-vos que a verdade dessa fé se estabeleceu como soberana e como soberana omnipotente; e o testemunho seguro que disto vos dou, é que, sem se supor obrigada a alegar qualquer razão, e sem nunca se ver forçada a pedir qualquer auxílio, pela Sua própria autoridade, pela Sua própria força fez ela o que quis e reinou no mundo. Se não me engano, isto é operar com verdadeira soberania; mas é necessário sustentar o que apresento. Eu disse que a verdade cristã não procurou o seu apoio nos raciocínios humanos; mas que, confiada em si mesma, na sua autoridade suprema e na sua origem celeste, disse, e quis ser acreditada; pronunciou os seus oráculos, e exigiu a sujeição. Pregou uma Trindade, mistério inacessível pela sua preeminência; anunciou um Deus, feito Homem, um Deus aniquilado até à cruz, abismo impenetrável pela sua baixeza. Como provou ela? Disse por única razão que é preciso que a razão se lhe submeta, visto que lhe está sujeita desde principio. É esta a sua linguagem: Haec dixit Dominus - "O Senhor disse" E noutro lugar: É assim, "porque eu preguei-a sua palavra" - quia verbum ego locutus sum, dixit Dominus (Jeremias 34, 6) E com efeito, cristãos, que pode aqui opor a razão humana? Deus tem o meio de se fazer ouvir; mas também tem o direito de se fazer acreditar. Pode, pela Sua luz infinita, e quando Lhe aprouver, mostrar-nos claramente a verdade; pode, pela Sua autoridade soberana, obrigar-nos a submetermo-nos a ela, sem disso nos dar a intuição. E é digno da grandeza, da dignidade, da majestade desse primeiro Ser, de reinar sobre todos os espíritos, quer cativando-os pela fé, quer contentando-os pela clarividência. Jesus Cristo usou deste direito no estabelecimento do seu Evangelho; e, como a Sua santa doutrina se não fundou nos raciocínios humanos, para não degenerar de si própria, também desprezou o apoio da eloquência. É verdade que os santos Apóstolos. que foram os Seus pregadores, abateram aos pés de Jesus a majestade dos fasces romanos e fizeram tremer nos seus tribunais os juízes perante os quais eram citados; derrubaram os ídolos e converteram os povos. "Enfim, diz Santo Agostinho, tendo consolidado a sua salutar doutrina, deixaram aos seus sucessores a terra iluminada por uma luz celeste" - Confirmata saluberrima disciplina, illuminatas terras posteris reliquerunt. Mas não foi pela disposição das palavras e por figuras artificiais que eles operaram todos estes grandes efeitos. Tudo se faz por uma secreta virtude que persuade contra as regras, ou, pelo contrário que não persuade em quanto ela cativa os entendimentos; virtude que, vindo do céu, sabe conservar-se integralmente na baixeza das suas expressões e na simplicidade dum estilo vulgar, tal como se vê uma rápida torrente que retem, derivando na planície, essa força violenta e impetuosa que adquiriu nas montanhas donde procede. Concluamos, pois, cristãos, que Jesus Cristo fundou o seu sagrado Evangelho duma maneira soberana e digna dum Deus; e acrescentemos, se vos apraz, que era a mais conveniente para as necessidades da nossa natureza. Nós precisamos, no meio dos nossos erros, não dum filósofo que discuta. mas dum Deus que nos resolva a procurar a verdade. O caminho do raciocínio é demasiado lento e demasiado incerto; o que é necessário procurar está longínquo, e o que é preciso provar é indeciso. Trata-se, contudo, do próprio princípio e do fundamento da conduta, em que, primeiro, é preciso ter firmeza; e, portanto, é necessário que alguém creia nela. O cristão nada tem a procurar, porque tudo encontra na fé. O cristão nada tem a provar, porque a fé tudo lhe resolve, e Jesus Cristo expôs-lhe de tal maneira as verdades necessárias que se ele não é capaz de as compreender, não está menos disposto a acreditá-las: Talia populis persuaderet, credenda saltem, si percipere non valerent. Deste modo, foi Deus honrado pelo mesmo meio, porque se acreditou, como é justo, na Sua palavra; e o homem foi guiado por um caminho curto, porque, sem circuito algum de raciocínio, a autoridade da fé conduziu-o à certeza, logo ao primeiro passo que deu. Mas continuemos a admirar a augusta soberania da verdade cristã. Ela veio à terra como uma coisa ignorada, e, não obstante, odiada e perseguida por inimigos preconceitos. Todavia, no meio destes furores do mundo inteiro, conspirado contra ela, não mendigou socorro algum humano. Conseguiu defensores intrépidos e dignos da sua grandeza, que, na paixão que tinham pelos seus interesses, e, não tendo outro desejo que não fosse proclamá-la e morrer por ela, acudiram à morte com tal violência que amedrontaram os seus perseguidores, os quais, finalmente, pela sua paciência, foram um objeto de opróbrios para as leis que os condenavam ao último suplício, e obrigaram os príncipes a revogá-las. Orando, patiendo, cum pia securitate moriendo, leges quibus damnabatur christiana religio erubescere compulerunt, mutarique fecerunt, diz eloquentemente Santo Agostinho. Era, pois, por conselho de Deus e pelo destino da verdade, se assim me posso exprimir, que ela seria inteiramente estabelecida, a despeito dos reis da terra, e que, na série dos tempos, os teria primeiramente por discípulos, e depois por defensores. Et nunc reges (intelligite: erudimini qui judicatis terram) - E agora (ó reis, aprendei, instrui-vos, juízes da terra). Ele não os chamou quando edificou a Sua Igreja. Quando fundou imutavelmente e elevou até final esse grande edifício, aprouve-lhe então chamá-los. Chamou-os, pois, não por necessidade, senão por mercê. O estabelecimento, portanto, da verdade não depende do auxílio deles, nem o império da verdade depende do seu cetro; e, se Jesus Cristo os instituiu defensores do seu Evangelho, fê-lo por deferência, e não por necessidade; foi para honrar a autoridade deles e para consagrar o poder. Todavia a Sua santíssima verdade continua a manter-se e conserva a sua independência. Assim, quando os príncipes defendem a fé, é pelo contrário, a fé que os defende; quando eles protegem a religião, é a religião, pelo contrário, que os protege e que lhes serve de apoio ao trono. Por onde vedes claramente que a verdade se serve dos homens, mas que não depende deles; e é o que se nos manifesta em todo o curso da sua história. Eu chamo a isto a história da Igreja; é a história do reino da verdade. O mundo oscilou, e a verdade ficou de pé; usou de rodeios sutis e de lisonjas, e a verdade conservou-se firme. Os hereges semearam a discórdia, e a verdade conservou-se pura. Os cismas dilaceraram o corpo da Igreja, e a verdade conservou-se inteira. Muitos foram seduzidos, os fracos ficaram perturbados, e até os fortes ficaram comovidos; um Osio, um Orígenes, um Tertuliano, tantos outros que pareciam ser o sustentáculo da Igreja caíram com grande escândalo; e a verdade conservou-se sempre imutável. Que coisa haverá que seja mais soberana e mais independente do que a verdade, que persiste sempre imutável, a despeito das ameaças e dos afagos, a despeito dos dons e das proscrições, a despeito das tentações e dos escândalos, no meio da defecção dos seus filhos infiéis e até na queda funesta dos que pareciam ser as suas colunas? Depois disto, cristãos, qual é o espírito que não cede a uma autoridade tão bem estabelecida? E quão grande é o meu pasmo quando ouço homens profanos a elevarem-se abertamente contra o Evangelho, na nação mais florescente da cristandade! Haverei sempre de os ouvir e terei sempre de encontrá-los no mundo, a esses libertinos declarados, escravos das suas paixões e temerários censores dos conselhos de Deus, que, por muito engolfados que se vejam nas coisas inferiores, se entremetem a decidir ousadamente das mais elevadas? Profanos e corruptos, os quais, como diz, São Judas, "blasfemam o que ignoram, e se corrompem no que conhecem" - Quaecumque quidem ignorant, blasphemant, quaecumque autem naturaliter tanquam muta animantia norunt, in his corrumpuntur (São Judas, 10 e 12). Homens duas vezes mortos, diz o mesmo apóstolo; em primeiro lugar, mortos porque perderam a caridade, em segundo lugar, mortos porque até roubaram a fé: Arbores infructuosae, eradicatae, bis mortuae: "Árvores infrutíferas e ermas de raízes que já se não prendem à Igreja por laço algum" Ó Deus! haverei sempre de vê-los triunfar nas reuniões e envenenar os espíritos com os seus motejos sacrílegos? Mas, homens doutos e curiosos, se quiserdes discutir a religião, trazei aqui, pelo menos, a gravidade e o peso que a matéria exige. Não ridicularizeis, despropositadamente coisas tão sérias e tão veneráveis. Estas importantes questões não se resolvem pelas vossas meias palavras e pelos vossos tresvarios, por esses finos motejos que ostentais, e por esse desdenhoso sorriso. Por amor de Deus! Como dizia esse pobre Jó (Jó, 12, 4) não imagineis que sois os únicos homens, e que toda a sabedoria está no vosso espírito, cuja delicadeza nos elogiais. Vós, que quereis penetrar nos segredos de Deus, eia! Aparecei, apresentai-vos, e desenvolvei-nos os enigmas da natureza; escolhei o que está afastado ou o que está próximo, o que está a vossos pés ou o que está suspenso por cima das vossas cabeças! E que vedes? Em toda a parte a vossa razão vacila! Em toda a parte é falível, ou se perturba, ou sucumbe! E, não obstante, não quereis que a fé vos prescreva o que é preciso crer. Cegos infelizes e abjetos, que não quereis que vos norteiem e que vos deem a mão. Pobre romeiro extraviado e presumido, que nos recusais o leme, que quereis que vos façam? Dizei, quereis que vos deixem vaguear? Mas é que podeis introduzir-vos nalgum caminho errado, e cairdes nalgum precipício. Quereis que vos digam claramente todas as verdades divinas? Mas considerai onde estais e para que baixa região do mundo fostes desterrado. Vede esta noite profunda, estas trevas espessas que vos envolvem, a fraqueza, a imbecilidade, e a ignorância da vossa razão. Lembrai-vos de que não é aqui a região da inteligência. Porque não quereis enquanto Deus claramente se apresenta tal qual é, que a fé venha socorrer-vos e ensinar-vos o que é preciso crer? Mas, senhores meus, já combati suficientemente esses espíritos profanos e temerariamente curiosos. Não é este o vício mais comum, que outro infortúnio muito, mais universal vejo eu que existe na côrte; não é esse ardor inconsiderado de querer avançar demais, é uma extrema negligência por todos os mistérios. Se existem ou não, é isso indiferente para os homens demasiado abjetos, que nem neles querem pensar; não sabem se creem se não creem dispostos como estão a confessar-vos o que vos aprouver, contanto que os deixeis obrar à vontade e passar a vida a seu bel-prazer: "Cristãos frívolos, diz Tertuliano, e fiéis, se o quiserdes" - Plerosque in ventum, et si placuerit, christianos. Por isso eu prevejo que os libertinos e os incrédulos poderão perder a reputação, não por qualquer horror dos seus sentimentos, mas porque ficarão indiferentes por tudo, exceto pelos prazeres e pelas ocupações. Vejamos se poderei acordar os homens desse profundo adormecimento, representando-lhes no meu segundo ponto a beleza incorruptível da moral cristã. SEGUNDO PONTO Graças à misericórdia divina, os que disputam todos os dias temerariamente sobre a verdade da fé não contestam no Cristianismo a regra dos costumes, e ficam de harmonia sobre a pureza e a perfeição da nossa moral. Mas estas duas graças são certamente inseparáveis. Basta que a religião tenha dois sóis como a natureza; e todo aquele que nos é enviado para nos orientar nos costumes, esse mesmo nos dará o conhecimento certo das coisas divinas, que são o fundamento necessário da vida honesta. Digamos, portanto, que o Filho de Deus nos mostra muito melhor a Sua divindade, dirigindo sem erro a vida humana, do que endireitando os coxos e fazendo andar os aleijados. Aquele que, no meio de tantos costumes e de tantos erros, de tantas paixões complicadas e de tantos caprichos extravagantes, soube distinguir ao certo e fixar precisamente a regra dos costumes, deve ser mais que homem. Reformar assim o gênero humano, é dar ao homem a vida racional; é uma segunda criação, mais nobre, em certo modo, do que a primeira. Todo aquele que for o chefe desta reforma salutar do gênero humano deve ter para seu auxílio a mesma sabedoria que formou o homem pela primeira vez. Enfim, é uma obra tão sublime que se Deus a não tivesse feito, Ele próprio invejaria o seu autor. Por isso, em vão o tem tentado a filosofia. Eu sei que ela conservou belos preceitos e salvou belos vestígios das ruínas dos conhecimentos humanos; mas eu perderia um tempo infinito se quisesse contar todos os seus erros. Vamos, pois, prestar as nossas homenagens a essa equidade infalível que nos guia no Evangelho. Eu para lá corro, segui-me irmãos; e, para que vos possa apresentar o objeto duma adoração tão legítima permiti que vos dê uma ideia da moral cristã. Começa pelo principio. Ela remonta a Deus, a quem liga integralmente o homem, por um amor casto, na sua raiz, nos seus ramos e nos seus frutos; isto é, na sua natureza, nas suas faculdades e em todas as suas operações. E, como ela sabe que o nome de Deus é um nome de pai, pede-nos o amor; mas, para se ajustar com a nossa fraqueza, dispõe-nos a ele pelo recebo. Tendo, pois, assim resolvido ligar-nos a Deus por todos os caminhos possíveis, ensina-nos que devemos em todo o tempo e em todas as coisas reverenciar a Sua autoridade, crer na Sua palavra, depender do Seu poder, confiar na Sua bondade, temer a Sua justiça, entregar-nos à Sua sabedoria e ter esperança na Sua eternidade. Para Lhe prestar o culto conveniente, que Lhe devemos, diz-nos, cristãos, que nós próprios é que somos as Suas vítimas; e é por isso que nos obriga a dominar as nossas paixões arrebatadas e a modificar os nossos sentidos, sutilíssimos sedutores da nossa razão. A este respeito tem ela precauções inauditas. Vai apagar até ao imo do coração a centelha da cólera que poderia causar um incêndio. Não deixa penetrar no coração o menor ciume despertado pela vista. Não espera por tirar a espada à criança, depois dela ter dado um golpe mortal; arranca-lh'a das mãos logo à primeira picada. Enfim, nada esquece para submeter o corpo ao espírito e o espírito inteiramente a Deus; e nisto consiste, senhores, o nosso sacrifício. Nós temos de considerar sob quem vivemos e com quem vivemos. Vivemos sob o império de Deus e em sociedade com os homens. E depois desta primeira obrigação de amar a Deus como nosso soberano, mais do que a nós mesmos, segue-se o segundo dever de amar o homem, que é o nosso próximo, em espírito de sociedade, como a nós próprios. Assim se vê muito santamente estabelecida, sob o proteção divina, a caridade fraternal, sempre sagrada e inviolável, apesar das injúrias e dos interesses; assim, a esmola, tesouro de graças; assim, o perdão das injúrias, que nos alcança o de Deus; assim, finalmente, a misericórdia preferida ao sacrifício, e a reconciliação fraternal, preparação necessária para o caminho da religião. Assim, numa santa distribuição dos ofícios da caridade, aprende-se a quem se deve o respeito, a quem a obediência, a quem o favor, a quem a proteção, a quem o auxílio, a quem a condescendência, a quem caritativos conselhos; e vê-se que se deve a justiça a todos, e que se não deve injuriar alguém, do mesmo modo que alguém se não injuria a si mesmo. Quereis que passemos ao que Jesus Cristo instituiu para ordenar as famílias? Ele não se contentou com sustentar no casamento a sua primeira honra; fez Ele um Sacramento da religião e um rival místico da Sua casta e imutável união com a Sua Igreja. Desta maneira, consagrou a origem do nosso nascimento. Suprimiu a poligamia, que havia permitido numa época, para favorecer o aumento do Seu povo. Já não permite que o amor se corrompa na multidão; restituiu-o ao seu estado normal, fazendo-o reinar em dois corações unidos, para, dessa união, fazer derivar uma concórdia inviolável das famílias e entre os irmãos. Depois de ter reduzido as coisas ao primeiro estado, quis doravante que a mais santa aliança do gênero humano fosse também a mais perdurável e a mais firme, e que o laço conjugal fosse indissolúvel, tanto pela primeira força da fé consagrada como pela obrigação natural de educar os filhos comuns, penhores preciosos duma eterna correlação. Por isso, deu ao casamento uma forma augusta e venerável, que honra a natureza, que suporta a fraqueza, que preserva da temperança e que sofreia a sensualidade. Que direi das leis sagradas que tornam os filhos obedientes e os pais caritativos, poderosos instigadores da virtude, amáveis censores dos vícios, que reprimem a licença "sem fazer perder o animo?" Ut non pusillo animo fiant (Colossenses 3, 21) Que direi dessas belas instituições pelas quais os anos são equitativos e os servos afeiçoados, encarregando-se o próprio Deus, que é bom porque é pai, de os recompensar dos seus serviços. "Vós, senhores, tendes um Senhor no céu. Servos, servi como a Deus, porque a vossa recompensa está certa. Domini, quod justum est et aequum, servis praestate, scientes quod et vos Dominum habetis in caelo. - Servi, obedite, per omnia dominis carnalibus... scientes quod a Domino accipietis retributionem haereditatis (Colossenses 4, 1; 3, 22 e 24). Quem melhor do que Jesus Cristo estabeleceu a autoridade dos príncipes e dos poderes legítimos? Ele faz um dever de religião da obediência que lhes é devida. Eles reinam sobre os corpos pela força, e, quando muito, sobre os corações pela afeição. Ele erige-lhes um trono nas consciências, e protege-lhes a autoridade e a personalidade sagrada. É por isso que Tertuliano dizia outrora aos ministros dos imperadores: A vossa função expõe-vos a muito ódio e a muita inveja; "agora tendes menos inimigos por causa do grande número dos cristãos" - Nunc enim pauciores hostes habetis prae multitudine christianom. Reciprocamente ensina aos príncipes que lhes é dado o gládio para ser aplicado aos maus, que devem ter as mãos pesadas unicamente para eles, e que a sua autoridade deve ser o alívio do fardo dos outros. É este, senhores, o quadro que vos prometi; e esta a imortal beleza da moral cristã, representada fielmente e como que em síntese. Não me surpreende o ser uma beleza severa, com tanto que seja pura. E é preciso que seja fiel, porque é religiosa. Mas, afinal, qual é a moral mais santa? Qual mais econômica e bela! A qual política a mais justa? É inimigo do gênero humano aquele que contradiz tão santas leis. Mas quem contradiz, a não ser homens apaixonados, que preferem corromper a lei a dignificarem a sua consciência; e, como diz Salviano, "que preferem vociferar contra o preceito a fazerem guerra ao vício?" - Mavult quilibet improbus exsecrari legem, quam emendare mentem, mavult praecepta odisse quam vitia. Pela minha parte, entrego-me de todo o meu coração a estas sagradas instituições. Só os costumes me fariam receber a fé. Em tudo creio nAquele que tão bem me ensinou a viver. A fé prova-me os costumes, e os costumes provam-me a fé. As verdades da fé e a doutrina dos costumes são coisas de tal modo conexas e tão santamente aliadas, que não há meio de as separar. Jesus Cristo fundou os costumes na fé; e depois de ter elevado tão nobremente esse admirável edifício, terei eu audácia bastante para dizer a um tão sábio arquiteto que lançou mal o fundamento oculto? Pelo contrário, não avaliarei, pela beleza manifesta do que Ele me mostra, que a mesma sabedoria dispôs o que Ele me oculta? E vós, que direis, ó pecadores! Em que estais ofendidos, e que parte quereis suprimir dessa moral? Vós tendes grandes dificuldades: é a razão que as dita, ou a paixão que as sugere? Ah! Eu bem compreendo os vossos pensamentos; bem vejo para que lado se inclina o vosso coração. Pedis a liberdade. - Oh! Não acabeis, demais vos compreendo. Essa liberdade que pedis é um miserável cativeiro. Permiti que vos libertem e que entreguem o vosso coração a um Deus a quem ele pertence, e que tão instantemente o reclama. Não é justo, irmãos, que se prejudique a lei em benefício das vossas paixões, mas, pelo contrário, que se suprima das vossas paixões o que é contrario à lei. Aliás, que sucederia? Cada um violaria o preceito: Lacerata est lex? (Habacuque, 1, 4) Não há homem tão corrupto a quem não desagrade um pecado. Aquele é naturalmente liberal? Protestai, insurgi-vos, quanto quiserdes, contra as rapinas, porque ele aprovará a vossa doutrina. Mas se é altivo e ambicioso, é preciso deixa-lo vingar essa injuria e envolver os seus inimigos e os seus rivais nessa intriga perigosa. Deste modo, toda a lei será mutilada; e nós veremos, como dizia o grande Santo Hilário num outro assunto, "uma tão grande variedade na doutrina como vemos nos costumes, e tantas espécies de fé como de inclinações diferentes há" - Tot nunc fides exsistere quot voluntates, et tot nobis doctrinas esse quot mores. Deixai-vos, pois, guiar por essas leis tão sagradas, e tomai-as como norma vossa. E não me digais que ela é perfeita demais e que se não pode seguir. Isto dizem os covardes e os preguiçosos. Encontram obstáculo em tudo, tudo lhes parece impossível; e quando nada há que temer, deixam-se inspirar por inúteis receios e por terrores imaginários. Dicit piger: Leo est in via et leaena in itineribus. Dixit piger: Leo est foris, in medio platearum occidendus sum - "O preguiçoso diz: Eu não posso partir, porque encontro um leão no caminho; e a leoa devorar-me-á nas estradas" (Provérbios 26, 13; 22, 13). Encontra sempre dificuldades, e nunca se esforça por vencer nenhuma. Com efeito, vós, que nos objetais que a lei do Evangelho é perfeita demais e excede as forças humanas, já alguma vez diligenciastes praticá-la? Contai-nos os vossos esforços, mostrai-nos as tentativas que fizestes. Em vez de vos queixardes da vossa impotência, porque não começais a trabalhar em qualquer coisa? Não podeis dar o segundo passo, dizeis vós, mas se nunca destes o primeiro... Começai, pois, a caminhar, e avançai gradualmente. Vereis as coisas facilitarem-se, e o caminho aplanar-se manifestamente à vossa vista. Mas que, em vez de terdes tentado, nos digais que é tudo impossível; que vos acheis excessivamente cansado do caminho sem vos terdes movido do vosso lugar, e que fiqueis fatigado com um trabalho que ainda não empreendestes, é que é uma covardia não somente ridícula, senão insuportável. Além de quê, como se pode dizer que Jesus Cristo não tenha dado encargos superiores às nossas forças, se Ele tem tanto respeito pela nossa fraqueza, se nos oferece tanto auxílio, se nos proporciona tantos recursos; Ele, que, não satisfeito de nos suster no declive, com o preceito, ainda nos estende a mão no precipício com a remissão dos pecados que nos apresenta? TERCEIRO PONTO Confesso-vos, senhores, que a minha perturbação é extrema nesta terceira parte, e não é por ter dificuldade em provar o que prometi no princípio, isto é, a infinita bondade do Salvador. Qual é a eloquência bastantemente estéril que poderia carecer de palavras? E que há de mais fácil? Que há de mais infinito e de mais imenso, se assim me posso exprimir, do que essa divina bondade, que não só recebe os que a procuram e se entrega inteiramente aos que à desejam, mas também chama os que dela se afastam e abre sempre vias de regresso aos que a abandonam? Mas os homens bem o sabem, demais o sabem eles, por desfortuna sua. Não era preciso publicar tão altamente uma verdade, da qual tanta gente abusa. Bastava dizê-la em voz baixa aos pecadores contritos pelos seus crimes, às consciências humilhadas e aflitas. Bastava separar da multidão alguma alma angustiada, e dizer-lhe ao ouvido, secretamente: "Deus! Deus perdoa eternamente e sem limites (e os seus perdões são inumeráveis"). Mas apresentar à vista dos pecadores soberbos essa bondade que não tem limites é o mesmo que dar largas à licença; publicar esses perdões que são inumeráveis é o mesmo que multiplicar os crimes: Misericordiae ejus non est numerus. Orat Missae pro gratiar act. E todavia, cristãos, não é justo que a dureza e a ingratidão dos homens roubem à bondade do Salvador os louvores que Lhe são devidos. Elevemos, pois, a nossa voz e declaremos bem alto que a Sua misericórdia é imensa. O homem devia morrer pelo seu crime; pois Jesus Cristo morreu no seu posto. Está escrito que o sangue do pecador deve cair sobre Ele; mas o sangue de Jesus Cristo cobre-o e protege-o. Ó homens, não procureis a expiação dos vossos crimes no sangue dos animais degolados. Embora tivésseis de imolar todos os vossos rebanhos, não podia a vida dos animais ser expiada pela vida dos homens. Vede como Jesus Cristo se oferece, homem para os homens, homem inocente para os criminosos, Homem feito Deus para homens puros e para simples mortais. Pensadores, nunca percais a esperança. Jesus Cristo morreu uma vez, mas o fruto da Sua morte é eterno; Jesus Cristo morreu uma vez, mas "está sempre vivo para interceder por nós", como diz o divino Apóstolo: Semper vivens ad interpellandum pro nobis (Hebreus 7, 25). Há, pois, para nós uma misericórdia infinita no céu mas, para nos ser aplicada na terra, acha-se inteiramente comunicada à Santa Igreja no Sacramento da Penitência. "E, senão, escutai as palavras da instituição: "Tudo o que perdoardes será perdoado, tudo o que absolverdes será absolvido" - Quodcumpre ligaveris super terram erit ligatum et in caelis: et quodcumque solveris super terram erit solutum in caelis (São Mateus 16, 19). Nisto vedes uma bondade que não tem limites. Difere, porém, do batismo. "Não há senão um batismo", diz o santo Apóstolo, o qual se não repete mais: Unus Dominus, una fides, unum baptisma (Efésios 4, 5) As portas da penitência estão sempre abertas. Vinde dez vezes, vinde cem vezes, vinde mil vezes, porque esta palavra será sempre verdadeira: Tudo o que perdoardes será perdoado - Quorum remiseritis peccata, remittuntur eis; et quorum retinueritis retenta sunt (São João 20, 23) Eu não vejo aqui termo prescrito, um número fixo, nem medida determinada. É, pois, necessário reconhecer nisto uma bondade infinita). Que direi neste passo, cristãos, e com que termos assaz poderosos deplorarei tantos sacrílegos que infectam as águas da penitência? "Água do batismo, como és feliz, dizia outrora Tertuliano; como és feliz, água mística, que só purificas uma vez! E que não serves de joguete aos pecadores!" Felix aqua quae semel abluit, quae ludibrio peccatoribus non est! É o banho da penitência sempre aberto aos pecadores, sempre pronto a receber os que se regeneram; é esse banho de misericórdia que está sujeito ao desprezo pela sua propriedade benéfica e cujas águas servem, contra a sua natureza, para manchar os homens, pois que o desejo de se purificarem faz com que eles não receiem macular a consciência. Quem não lamentaria, cristãos, ver essa água salutar tão estranhamente manchada, só porque é benéfica? Que hei de inventar, para onde me hei de voltar, a fim de suspender as profanações dos homens perversos que, infelizmente, vão fazer do porto o seu escolho? Respondem-nos os pecadores que basta o arrependimento para se poderem aproximar dessa, fonte de graça. Em vão dizemos aos que confiam tão cegamente nesse arrependimento futuro: Não vedes que Deus prometeu o perdão do arrependimento, mas não prometeu dar tempo para esse sentimento indispensável? Esta razão convincente já não produz efeito, porque já é repetida demais. Mas vede, irmãos, que cegueira é a vossa: tornais a bondade divina cúmplice da vossa insensibilidade, e assim pecais contra o Espírito Santo e contra a graça da remissão dos pecados. Deus já nada tem a fazer para vos retirar do crime, porque vós exasperais a Sua misericórdia. Que mais pode Ele fazer do que chamar-vos, esperar por vós, estender-vos os braços e oferecer-vos o perdão? É isto que vos faz arrojados nas vossas empresas criminosas. Que tem Ele, pois, a fazer? Estando exausta a Sua bondade e como que dominada pela vossa malícia, resta-Lhe outra coisa além de vos entregar à Sua vingança? Pois bem! Irritai a bondade divina; mostrai-vos constantes e intrépidos em perderdes a alma, ou antes loucos e insensíveis, audaciosos e temerários; fazei dum arrependimento duvidoso o motivo dum crime certo; mas não quereis compreender quão estranha, quão insensata, quão monstruosa é essa ideia de pecar para ter depois arrependimento? Obstupescite, caeli, super hoc: (Jeremias 2, 12) "Ó céus, ó terra, pasmai dum tão prodigioso desvario!" Os cegos filhos de Adão não receiam pecar, porque esperam um dia arrepender-se! Tenho lido muitas vezes nas Escrituras que Deus envia aos pecadores o espírito de vertigem, e de alucinação; mas eu vejo-o claramente nos vossos excessos. Quereis converter-vos um dia, ou morrer miseravelmente na impenitência? Escolhei, tomai uma resolução. A última resolução que se toma é diabólica. Se vos resta, pois, qualquer sentimento pelo Cristianismo, qualquer cuidado pela vossa salvação, qualquer piedade por vós mesmo, tendes esperança em vos converterdes; e se imaginásseis que essa porta se vos fecharia, não iríeis para o crime com a indiferença em que vos vejo. Conversão é arrependimento. Quereis então satisfazer essa paixão porque tendes esperança em vos arrependerdes? Quem jamais ouviu falar dum prodígio semelhante? Sou eu que estou perturbado, ou é a vossa paixão que vos cativa? É o meu pensamento que se engana, ou é o vosso que está alucinado e confuso? Quando é que alguém se lembrou de fazer uma coisa, porque imagina arrepender-se dela um dia? À razão compete certamente abster-se de a fazer. Tenho ouvido dizer muitas vezes: Não façais isto, porque haveis de arrepender-vos. O arrependimento que se prevê não é naturalmente um freio para o desejo e um decreto para a vontade? Certamente. Mas que um homem diga consigo mesmo: Eu pratico esta ação, porque espero arrepender-me dela, e, se não fosse este pensamento não a praticava; que, deste modo o arrependimento previsto se mostre contrariamente às inclinações da sua natureza, ao objeto da nossa esperança e ao motivo da nossa escolha, é que é duma cegueira inaudita, é confundir o que se opõe, e alterar a essência das coisas. Oh! Não, o que imaginais nem é arrependimento nem é dor; apenas lhes ouvis o nome, tão afastados estais do objeto. Essa dor que se deseja, esse arrependimento que se espera ter um dia, não é mais que uma dor fingida e um arrependimento imaginado! Não vos enganeis, cristãos, que não é tão fácil a gente arrepender-se. Para produzir um arrependimento sincero, é necessário derruir o coração até aos alicerces, extirpar-lhe violentamente as inclinações, coordenar-lhe implacavelmente as fraquezas e purificar-se cada um completamente a si próprio. Se prevísseis um tal arrependimento, seria ele para vós um freio salutar. Mas o arrependimento que esperais não é mais que uma dissimulação, a dor, em que tendes esperança, uma ilusão e uma quimera; e razão tendes para recear que, por uma justa punição de haverdes tão estranhamente destruído a natureza da penitência, um Deus desprezado e vingador dos Seus Sacramentos profanados vos envie na Sua ira, não o peccavi dum Davi, não os lamentações dum São Pedro, não a dor amarga duma Madalena, mas o pesar artificioso dum Saul, mas a dor desesperada dum Judas, mas o arrependimento estéril dum Antíoco; assim como deveis ter receio de morrerdes infelizmente na vossa falsa contrição e na vossa penitência impenitente! Vivamos, pois, irmãos, de maneira que a remissão dos pecados não seja para nós um escândalo. Restituamos as coisas ao seu estado normal. Que a penitência seja penitência, um remédio e não um veneno; que a esperança seja esperança, um recurso para a fraqueza e não um apoio para a audácia; que a dor seja uma dor; que o arrependimento seja um arrependimento, isto é, a expiação dos pecados passados e não o alicerce dos pecados futuros. E assim chegaremos pela penitencia ao lugar onde já não há arrependimento nem dor, mas uma calma perpétua e uma paz imutável. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. 3º Domingo do Advento - 1º Sermão para o 3º Domingo do Advento Necessidade da Penitência Pregado na capela real de Saint-Germain-en-Laye, em 1669. SUMÁRIO ESCRITO POR BOSSUET Os pecadores adormecem, porque imaginam estar muito longínquo o seu infortúnio, mas Jesus Cristo prova que está disposto a ferir dois golpes: um tira a vida, o outro a esperança. O pecado sai da vontade humana contra a vontade divina. Duplamente contrário: a Deus, porque é ofensivo, ao homem, porque é prejudicial. Porque é prejudicial? Inimigos impotentes provam a sua inimizade: Deo resistendi voluntate, non potestate Iaedendi (O pecado não caiu em Deus, a quem ataca; deixa todo o seu veneno em quem o comete. Comparação com a terra e as nuvens: Arcus eorum confringatur (Salmo 36, 15) A empresa contra Deus é inútil. Gladius eorum intret in corda ipsorum; (Salmo 36, 15) ele próprio se manifesta... O pecado é o próprio indivíduo: Ne putemus illam tranquillitatem et ineffabile lumen Dei de se proferre unde peccata punientur. Provas pela Escritura (Ezequiel 7). A separação, a pena do sentimento. A primeira, pelo pecado; a segunda, perducam ignem de medio tui qui comedat te (Ezequiel 28, 18). Os pecadores insensatos na sua certeza, tendo neles o principiam desse fogo. Contrariedade entre a lei e o pecador. Moisés e as Tábuas. Acerca da lei de justiça: Quod faceris patieris. Vós destruís a lei; a lei aufert eam de hominum vita; a justiça divina sempre armada contra o pecador. Jam enim securis. Jam enim securis ad radicem arborum posita est: omnis ego arbor non faciens fructum bonum, excidetur et in ignem mittetur. O machado já chegou à raiz da árvore; portanto, toda a árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo (São Lucas 3, 9). Por maior que seja o esforço que empreguemos todos os dias para dar a conhecer aos pecadores o estado funesto da sua consciência, não nos é possível comovê-los, nem pela vista do mal presente que eles fazem a si próprios, nem pela terrível aproximação do juízo futuro com que Deus os ameaça. O mal presente do pecado não os comove, porque não lhes impressiona os sentidos, a que eles entregam toda a norma das suas ações. E, se para os acordar daquele sono letárgico, lhes fizermos ressoar aos ouvidos essa trombeta temerosa do juízo final que os há de lançar em penas tão sensíveis e tão cruciantes, eles não se rendem a esta ameaça, por não ser de efeito imediato, e respondem: "Essa visão do profeta Ezequiel não se há de efetuar tão depressa" - In dies multos et in tempora longa iste prophetat (Ezequiel 12, 27). Deste modo, a sua malícia obstinada resiste às mais instantes considerações que lhes possamos alegar; e nada é capaz de os comover, porque o mal do pecado, que é tão evidente, não é sensível; e, pelo contrário, o mal do inferno, que é tão sensível, não é evidente. É por isso que a bondade divina, que não quer a morte do pecador, mas que deseja que ele se converta e que viva, para amedrontar essas consciências infelizmente intrépidas, faz elevar hoje do fundo do deserto uma voz que comove o próprio deserto: Vox Domini concutientis desertum, et commovebit Dominus desertum Cades (Salmo 27, 8). É a voz de São João Batista que, não satisfeito de ameaçar os pecadores "com a cólera futura", a ventura ira, e sabendo que o que não se realiza imediatamente não os impressiona, mostra-lhes nas palavras do meu texto a mão de Deus já apoiada sobre eles e declara-lhes nitidamente a sua vingança provada: Jam enim securis ad radicem arborum posita est. Mas, irmãos meus, como essa voz do grande precursor em vão há de ressoar nos ouvidos, se o Espírito Santo não falar nas consciências, roguemos à Virgem de Deus que nos obtenha a graça de nos comovermos com a palavra de João Batista, assim como o próprio João Batista se comoveu nas entranhas de sua mãe com a palavra dessa Virgem, quando ela foi visitar Santa Isabel, e lhe comunicou nessa visita (E lhe deu, por meio dessa visita) uma parte da graça que ela havia recebido com plenitude por meio das palavras do anjo que nós vamos rezar: Ave-Maria. Chamemos à corte o Pregador do deserto, e apresentemos hoje um São João Batista com toda a sua austeridade. A corte não é desconhecida para esse ilustre eremita; e se ele não se dedignou de pregar outrora na corte de Herodes, da melhor vontade pregará numa corte cristã e religiosa, que necessita contudo das suas exortações e da sua autoridade para se comover. Aparecei, pois, divino Precursor, falai com esse vigor mais que profético, e fazei tremer os pecadores soberbos sob esse terrível machado que já descarregou o seu golpe, não nos ramos, mas no tronco e na raiz da árvore, isto é, na própria origem da vida: Jam enim securis ad radicem arborum posita est. Para compreendermos exatamente as palavras desse grande profeta, permiti, senhores, que observemos que ele não nos representa apenas uma mão armada contra nós, nem um braço erguido para nos ferir; o golpe, como vedes, já foi dado, visto que ele diz que o machado já chegou à raiz. Mas, sabendo que o gume tinha já penetrado fundo, São João, todavia, ameaça-nos ainda com um segundo golpe que há de seguir-se imediatamente ao primeiro para derrubar por completo a árvore infrutífera; e depois disso só resta lançá-la às chamas: Omnis ergo arbor non faciens fructum bonum, excidetur et in ignem mittetur (São Lucas 3, 9). Com efeito, é certo que antes da justiça divina descarregar sobre as nossas cabeças criminosas o último golpe da Sua vingança, já nós nos sentimos feridos pelo próprio pecado. E já o pecado produziu uma chaga profunda que nos tem penetrado até ao coração de tal forma, que temos a recear dois golpes infinitamente perigosos: o primeiro, da nossa própria mão pelo crime que praticamos; o segundo, da mão de Deus pela Sua vingança pura; e estes dois golpes resultam necessariamente da própria natureza do pecado. E para que a verdade seja explicada por princípios, sou obrigado, senhores, a estabelecer antes de mais nada uma doutrina que extrai de Santo Agostinho, a qual se há de tornar mais clara na continuação deste discurso: é que se pode considerar o pecado de duas maneiras diferentes e com duas relações diversas; em primeiro lugar, com relação à vontade humana, em segundo lugar, com relação à vontade divina. Ele é o miserável produto da vontade humana, e insolentemente se submete a ela contra as ordens sagradas e invioláveis da vontade divina: procede, portanto, duma e resiste à outra. Finalmente, para o definir, ele não é mais do que um movimento da vontade humana contra as regras invariáveis da vontade divina. Estas duas relações diferentes produzem dois efeitos prejudiciais. O pecado formou-se no nosso coração pela vontade depravada; não é, pois, de admirar se ele corromper, se atacar diretamente o princípio da vida e da graça, abrindo assim a primeira chaga. Mas assim como ele se forma em nós, elevando-se contra Deus e contra as Suas sagradas leis, também arma infalivelmente contra nós esse poder temível, produzindo-nos o segundo golpe que mortalmente nos fere. Deste modo, para dar ao pecador o conhecimento de todo o seu mal, é preciso fazer-lhe sentir, sendo possível: em primeiro lugar, cristãos, que o machado já o feriu, que penetrou bem fundo e que ele, pelo seu próprio pecado, abriu em si uma profunda chaga: Jam enim securis ad radicem arborum posita est. Depois será preciso mostrar-lhe que, se ele demorar a cura dessa primeira chaga, Deus está resolvido a decepá-lo por completo, a fim de que, se ele não receia o golpe que abriu em si com o seu crime, tema, pelo menos, aquele que Deus não há de tardar em abrir com à sua justiça: Omnis ergo arbor non faciens fractum bonum, excidetur et in ignem mittetur. E são estas duas poderosas considerações" que hão de fazer parte deste discurso. PRIMEIRO PONTO Se nos fosse tão fácil, inspirar aos homens o ódio pelo seu pecado, como nos é fácil provar-lhes que o pecado é o maior de todos os males, não nos lamentaríamos tantas vezes por resistirem à nossa palavra, e teríamos a consolação de ver os nossos discursos seguidos de conversões assinaladas. Sim, irmãos meus, seja qual for o prazer com que se lisonjeiam os homens mundanos, contentando os seus desejos, é-nos fácil provar que se afligem, que se atormentam, que dão em si um golpe mortal pelos seus caprichos desordenados; e, para esclarecer esta verdade nas formas e pelos princípios, é preciso aqui recordar a definição do pecado que já estabelecemos. Dissemos, cristãos, que o pecado é um movimento da vontade do homem contra as ordens supremas da santa vontade de Deus. Sobre esta base principal é-nos fácil apoiar uma bela doutrina de Santo Agostinho, que nos explica admiravelmente em que consiste a malignidade do pecado. Diz ele que se contem numa dupla contrariedade, porque o pecado é contrário a Deus e também é contrário ao homem. Contrário a Deus é manifesto, porque combate as Suas leis sagradas; contrário ao homem, é uma consequência, porque ligando-o às suas próprias inclinações como as leis particulares que ele próprio estabelece para si, separa-o das leis primitivas e da primeira razão a que está ligado pela sua origem celeste, isto é, pela honra, que tem de nascer à imagem de Deus e de ter na alma os traços da sua face e tira-lhe a felicidade que consiste na sua semelhança com o seu autor. Parece pois, cristãos, que o pecado é igualmente contrário a Deus e ao homem; mas com a importante diferença de que é contrário a Deus por ser oposto à Sua justiça, e é contrário ao homem por ser prejudicial à Sua felicidade; isto é, contrário a Deus, como ao preceito que ele combate, e além disso funestamente contrário ao homem, como ao objeto que corrompe. E foi o que obrigou a dizer ao divino Salmista que "aquele que ama a iniquidade odeia-se a si próprio" ou, para traduzir à letra, odeia a sua alma, porque corrompe nela com a graça (Com a retidão) os princípios da sua saúde, da sua felicidade e da sua vida: Qui autem diligit iniquitatem, odit animam suam (Salmo 10, 6). E realmente não pode deixar de ser que os homens se corrompam, ofendendo a Deus. Pois que outra coisa são esses homens rebeldes; que são eles, diz Santo Agostinho, mais do que inimigos impotentes: "Inimigos de Deus, diz o mesmo santo, pela vontade de lhe resistirem e não pelo poder de o menoscabarem" - Inimici Deo resistendi volantate, non potestate Iaedendi. E não se segue daí que, não podendo a malícia do pecado cair sobre Deus a quem ataca, deixa necessariamente todo o seu veneno no coração de quem o comete? Assim como a terra, que erguendo nuvens contra o sol que a ilumina, nada lhe tira da sua luz e apenas se cobre com as trevas, assim o pecador temerário, resistindo loucamente a Deus, por um justo e equitativo juízo, só tem força contra si próprio e apenas consegue aniquilar-se pela sua audácia insensata. Foi por isso que o Rei-Profeta pronunciou esta maldição contra os pecadores: Gladius eorum intret in corda ipsorum, et arcus eorum confringatur - "Que o seu gladio lhes penetre o coração e que o seu arco se quebre" (Salmo 36, 15). Vedes, portanto, duas espécies de armas nas mãos do pecador: um arco para atirai de longe e um gladio para ferir de perto. O arco quebra-se e é inútil; o gladio dá o golpe, mas nele próprio. Compreendamos o sentido destas palavras: o pecador atira de longe, atira contra o céu e contra Deus: e não só as setas lá não chegam, mas também o arco se quebra ao primeiro esforço. Ímpio, que te elevas contra Deus, zombas das verdades do seu Evangelho e fazes um jogo sacrílego dos mistérios da Sua bondade e da Sua justiça. E tu, blasfemador imprudente, profanador do santo nome de Deus, que, não contente com jurares em vão esse nome venerável que nunca se deve pronunciar sem abalo, proferes maldições que fazem tremer toda a natureza, e orgulhas-te de ser ser instrumento de novos ultrajes contra essa bondade suprema, tão fecunda para ti em novos benefícios, e lanças-te furiosamente contra Deus e contra a Sua providência, com todos os caprichos de um jogo excessivo que te arruína, e em que não receias arriscar em cada golpe mais que a tua fortuna, porque arriscas a tua salvação e a tua consciência. Ou então, exasperado com os teus inimigos que te não podem servir de presa, diriges contra Deus só a tua raiva impotente, como se ele fosse do número dos teus inimigos, apesar de ser o mais fraco e o menos para recear porque nem sempre clama, e sendo tanto melhor e mais paciente quanto és ingrato e injurioso, reserva ele ainda para a penitência essa cabeça que tu, por tantos atentados, entregas à Sua justiça. Tu pegas no arco, alvejas a Deus audaciosamente, e as setas não o atingem, porque a sua santidade o torna inacessível a todos os ultrajes, dos homens; portanto; nada podes contra ele, e o teu arco quebra-se-te nas mãos, diz o santo Profeta. Mas, irmãos meus, não basta que o arco se lhe quebre e que fique frustrada a empresa; é necessário que o gladio lhe penetre o coração e que, por ter alvejado de longe a Deus, ele dê em si de perto um golpe mortal, se o próprio Deus o não curar por milagre. É este o destino comum de todos os pecadores. O pecado, que perturba a ordem do mundo, estabelece primeiro a desordem em que o comete. A vingança que sai do coração para destruir tudo, leva sempre o seu primeiro golpe e o mais mortal ao coração que a produz e a alimenta. A injustiça, que deseja aproveitar-se do bem de outrem, começa primeiro no seu autor a quem despoja do seu maior bem, que é a retidão, antes de ter conseguido arrebatar e usurpar o bem dos outros. O maldizente só deslustra nos outros a reputação, mas em si deslustra a própria virtude. A impudicícia, que tudo quer corromper, começa o seu efeito pela sua própria origem, porque ninguém pode atentar contra a integridade de outrem senão pela perda da sua. Desta maneira, todo o pecador é inimigo de si mesmo, corruptor na sua própria consciência do maior bem da natureza racional, isto é, da inocência. De onde resulta que o pecado, já não digo nas suas consequências, mas o pecado em si, é o maior e mais extremo de todos os males: maior sem comparação do que todos os que nos ameaçam externamente, porque é o desregramento e a completa depravação do interior; maior e mais perigoso do que as doenças corporais mais pestilentas, porque é um veneno fatal para a vida da alma; maior do que todos os males que atacam o nosso espírito, porque é um mal que corrompe a nossa consciência; maior, por consequência, do que a perda da razão, porque maior perda do que a da razão é a do bom uso dela, sem o qual a própria razão não é mais do que uma loucura criminosa. Finalmente, para concluir este raciocínio, o pecado é um mal superior a todos os males, uma desgraça que excede todas as desgraças, porque é ao mesmo tempo uma desgraça e um crime; uma perda infinita com uma falta imperdoável, a ruína total da nossa natureza no objeto da nossa escolha, isto é, num mesmo mal o naufrágio e a vergonhá da liberdade do homem. Depois disto, cristãos, não nos devemos admirar se frequentes vezes nos disserem que o nosso crime se converte em castigo para nós. E não foi sem razão que eu disse que o machado que nos fere é o próprio pecado, visto que há de ser na eternidade o principal instrumento do nosso suplício. Complebo furorem meum in te: "Eu hei de cevar em vós toda a minha cólera" Et ponam contra te omnes abominationes tuas..., et abominationes tuae in medio tai erunt..., et imponam tibi omnia scelera tua (Ezequiel 7, 3-4, 8). E com efeito, diz Santo Agostinho, não nos devemos convencer de que essa luz infinita e essa soberana bondade de Deus tire de si própria e do seu próprio seio com que punir os pecadores. Deus é o soberano bem, e, como tal, só faz bem aos homens. Por isso, para encontrar as armas com que há de destruir os seus inimigos, servir-se-á dos seus próprios pecados, que disporá de tal sorte que o que deu prazer ao homem criminoso se há de converter no instrumento dum Deus vingador. Ne putemus illam tranquillitatem et ineffabile lumen Dei de se proferre, unde peccata puniantur; sed ipsa peccata sic ordinare, ut quae fuerunt delectamenta homini peccanti sint instrumenta Domino punienti. E não me pergunteis, cristãos, de que maneira se há de operar essa grande mudança dos nossos prazeres em suplícios, porque isso está provado nas Escrituras. É a Verdade que o diz e o Omnipotente que o executa. E não obstante, se examinardes a natureza das paixões a que entregais o vosso coração, compreendereis facilmente que elas podem converter-se num suplício intolerável. Têm todas em si penas cruéis, e em número tão infinito que não podem ser de todo cevadas, o que provoca nelas todos arrebatamentos que degeneram numa espécie de furor tão penoso quanto desarrazoado. O amor impuro, se me é licito mencioná-lo nesta tribuna, tem as suas inconstâncias, as suas agitações violentas, e as suas resoluções irresolutas, e o inferno dos seus ciúmes: Dura sicut infernus aemulatio, e o mais que eu não digo. A ambição tem os seus cativeiros, os seus ardores, as suas desconfianças e os seus receios, dentro da sua própria altivez que marca muitas vezes o limite do seu principio. A avareza, paixão vil, paixão odiosa no mundo, reúne não só as injustiças, mas também as inquietações com os tesouros. Oh! Que há pois de mais fácil do que fazer das nossas paixões um castigo insuportável para os nossos pecados, tirando-lhes, como é justíssimo, essa pouca tranquilidade com que elas nos seduzem, e deixando-lhes apenas as inquietações cruéis e a amargura em que abundam?. Por isso, não nos lisonjeemos com a esperança da impunidade, em quanto tivermos em nossos corações o instrumento do nosso suplicio. Producam ignem de medio tui qui comedat te: (Ezequiel 28, 18) "Eu farei sair do meio de ti o fogo que há de devorar as tuas entranhas" Não o enviarei de longe contra ti, por que ele entrará na tua consciência, e as suas chamas sairão impetuosamente do teu interior, e quem o há de produzir hão de ser os teus pecados. Por consequência, irmãos, ai de nós que pecamos e não fizemos penitência! O golpe está dado; o inferno não está longe; esses ardores eternos atingem-nos de perto, visto que temos em nós mesmos e nos nossos próprios pecados a sua origem fecunda. "O machado já chegou à raiz" Ah! Que golpe ele te deu, visto que já alimentas em teu coração o que há de um dia constituir o teu ultimo suplício! Tantos pecados mortais, tantos golpes redobrados. Por isso a árvore já não pode segurar-se; oscila, pende para a ruína pelos seus hábitos viciosos, e em breve há de cair pelo seu próprio peso. E se ainda for preciso um ultimo golpe, Deus há de descarregá-lo sem misericórdia sobre essa raiz estéril e maldita. O pecador já se não sustenta; as menores tentações fazem-no oscilar; os mais leves movimentos imprimem-lhe um declive perigoso. Mas finalmente seguiu o seu declive funesto pelas suas más inclinações, já não pode erguer-se, e ei-lo que vai cair. É verdade que Deus lhe dá ainda alguma esperança; mas já que ele abusa delia diz o Senhor, eu vivo eternamente, e não posso suportar tal dureza: Finis venit, venit finis..., fac conclusionem (Ezequiel 7, 2, 23). "Chegou o fim, e é preciso concluir" Eu destruirei todos os fundamentos dessa esperança temerária, e descarregarei o último golpe; e cortando até às maiores fibras que ainda sustentam essa arvore infeliz, precipitá-la-ei da sua altura e arremessá-la-ei às chamas: Omnis arbor non faciens fructum, excidetur et in ignem mittetur. SEGUNDO PONTO Tal como sucederia com um inimigo implacável, que, tendo-nos despojado de todo o nosso bem, nos arremessa ainda aos braços um adversário poderoso, a quem não podemos resistir, tal e ainda mais nocivo é o pecado a respeito do homem; visto que o pecado, cristãos, como já disse, depois de nos ter feito perder o bom uso da razão, o emprego legítimo da liberdade, a pureza da consciência, isto é, todo o bem e todo o ornamento da criatura racional, para maior cumulo dos nossos males, excita Deus a tomar armas contra nós, tornando-nos seus inimigos declarados, contrários à sua retidão, injuriosos para a sua santidade, ingratos para com a sua misericórdia, odiosos para a sua justiça e, por consequência, sujeitos à lei das suas vinganças. Daqui podemos compreender a cólera de que Deus está animado, se posso assim exprimir-me, para com os pecadores impenitentes; e dir-vos-ei numa palavra, porque não posso alongar-me em provar verdades manifestas, que Deus é tanto mais santo e tanto mais justo, quanto mais adverso é para eles; de maneira que lhes vota um ódio infinito. Os pecadores não compreendem esta verdade: enquanto à sombra da sua boa fortuna e por meio das longas dilações que Deus lhes concede, adormecem à sua vontade, imaginam que Deus também dorme; julgam que Ele não pensa mais em os castigos do que que eles pensam em se converter; e, como se esqueceram dos seus preceitos, dizem no seu íntimo: "Deus esqueceu-se de mim e não toma sentido nos meus crimes" Dixit enim in corde suo: Oblitus est Deus (Salmo 9, 34). E pelo contrário, devem saber que a justiça divina, que parece dormir e esquecer-se dos pecadores, tendo até grande repugnância por eles, está sempre contra eles armada e sempre pronta para dar o golpe de que hão de morrer imediatamente, e não devem eles lisonjear-se da bondade infinita de Deus, cuja propriedade não conhecem; mas fiquem antes compreendendo hoje que Deus é bom duma maneira diferente da que eles imaginam. É bom, diz Tertuliano, porque é inimigo do mal; e é infinitamente bom, porque é infinitamente inimigo: Non plene bonus nisi mali aemulus. Não se deve conceber em Deus uma bondade frouxa e que tudo sofre, uma bondade insensível e ilógica, mas uma bondade vigorosa, que exerce o amor que tem pelo bem, pelo ódio que tem pelo mal, e mostra-se eficazmente bondade verdadeira, combatendo a malícia do pecado que lhe é oposto: Ut boni amorem odio mali exerceat, et boni tutelam expugnatione mali impleat. Por consequência, cristãos, Deus está sempre exercendo um justo ódio contra os pecadores. Os seus raios estão sempre preparados, e a sua cólera sempre inflamada, e é por isso que a Escritura no-lo representa na atitude de quem está disposto a ferir: "Todas as suas flechas estão aguçadas, diz o santo Profeta, e todos os seus arcos armados e prontos para disparar": Sagittae ejus acutae, et omnes arcus ejus extenti; (Isaías 5, 28) Ele aponta e designa o sitio onde quer ferir. A Sua mão vingadora, porém, retrai-se às vezes com a esperança no arrependimento, mas nunca se desarma, e muito menos adormece; e isso bem o vedes no nosso evangelho. Não só empunhá sempre esse terrível machado, mas aplica sempre o gume funesto à raiz da árvore, e nada há que se oponha a que ele corte; e é por isso que não é possível que a árvore subsista por muito tempo. "Ela há de ser cortada" diz São João Batista, excidetur, ou melhor, como lemos no original, exciditur, no tempo presente: é cortada e desarreigada, a fim de concebermos a ação mais pronta e mais eficaz. Nós iludimo-nos, cristãos, se imaginamos que podemos subsistir por muito tempo neste estado miserável. É verdade que até aqui a misericórdia divina suspendeu a vingança e susteve o último golpe da mão de Deus; mas nem sempre havemos de ter um socorro semelhante. Porque, enfim, como diz o nosso grande profeta, é chegado o reino de Deus; e no reino de Deus tão santo, tão poderoso e tão justo, é impossível que a iniquidade fique por muito tempo impune. "O Senhor reinou, diz o Rei-Profeta; que a terra se regozije e que as ilhas mais longínquas triunfem de alegria": Dominus regnavit, exultet terra, Iaetentur insulae maltae (Salmo 96, 1). Que reino de doçura e de paz que é este! Mas, ó Deus, que é o que eu leio noutro Salmo? "O Senhor reinou, diz o mesmo profeta; que os povos tremam e se encolerizem, e que a terra seja abalada até aos fundamentos" Dominus regnavit, irascantur populi; qui sedet super cherubim, moveatur terra (Salmo 98, 1). É este um reinado terrível, um reinado de ferro e de rigor que outro profeta descreve nestas palavras: In manu forti, et in brachio extento et in furore effuso regnabo super vos: (Ezequiel 20, 33) "Eu reinarei sobre vós, diz o Senhor, ferindo-vos com mão poderosa e esgotando em vós toda a minha cólera" Deus reina sobre os homens de duas maneiras apenas: reina sobre os pecadores convertidos, porque eles se Lhe submetem voluntariamente; e reina sobre os pecadores condenados, porque Ele os subjuga a seu pesar. Ali há um reinado de paz e de graça, aqui um reinado de rigor e de justiça; mas por toda a parte um reinado soberano de Deus, porque ali pratica-se o que Deus ordena, aqui sofre-se o suplício que Deus impõe; e Deus recebe as homenagens daqueles e é justiceiro para com estes. Pecador, a quem Deus chama à penitência e que resistis à Sua voz, estais entre uns e outros: nem fazeis nem suportais pacientemente o que Deus quer, desprezais a lei e não experimentais o suplício, pondes de parte o atrativo e não sois oprimido pela cólera. Ultrajais a bondade que vos atrai, e a paciência que vos aguarda; viveis como senhor absoluto dos vossos caprichos, independente de Deus, sem nada evitardes da vossa parte, mas sem nada tolerardes da sua; e Ele nem reina sobre nós pela vossa obediência voluntária, nem pela vossa sujeição forçada. Mais uma vez vos digo, cristãos, que é esse um estado violento, que não pode por muito tempo subsistir. Deus tem pressa de reinar sobre vós; pois bem vedes realmente quanto Ele vos apressa. Que de suaves atrações! Que de ameaças terríveis! Que de secretos avisos! Que de nuvens longínquas! Que de tempestades tão próximas! Vede como Ele deixa de atender a todas as vossas desculpas; e nem consente àquele que conclua os seus negócios, nem a este outro que vá fechar os olhos ao pai; (São Lucas 9, 59 e 61) qualquer demora o importuna, tal é a pressa que tem de reinar sobre vós. Se não reinar pela sua bondade, em breve, e mais cedo do que pensais, há de reinar pela sua justiça. Porque a Ele pertence o império, e para si mesmo e para a sua própria grandeza deve de estabelecer prontamente o seu reino. É por isso que o nosso grande Batista brada no deserto, e não só as praias e as montanhas vizinhas, mas até todo o universo ressoa com esta voz: Fazei penitência, fazei penitência, ricos e pobres, grandes e pequenos, príncipes e vassalos; e cada um se afaste dos seus maus caminhos. "Porque é chegado o reino dos ceus" Appropinquat enim regnum caeloriim (São Mateus 3, 2). Por isso vos peço, irmãos, que não vos prendais com o tempo, que vos engana; é um perigoso impostor que vos rouba tão subtilmente que não dais pelo seu latrocínio. Nem sempre vos prendais com o futuro; considerai o vosso estado presente; o que o tempo vos parece dar, tira-vo-lo; e ao mesmo tempo que acrescenta os vossos dias diminui-os. Essa fuga e essa carreira insensível do tempo não é mais do que uma sutil impostura para vos conduzir insensivelmente ao dia final. Todos os dias estamos a ver que a juventude chega lá precipitadamente. Por consequência, não espereis de Deus tudo o que pretendeis; não penseis em todos os dias que Ele vos pode dar, senão nos que pode tirar-vos; nem vos lembreis apenas de que Ele pode perdoar, mas também de que pode castigar. Não fundeis a vossa esperança nem apoieis o vosso juízo numa coisa que está oculta para vós. Eu bem sei, cristãos, que Deus, "não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e que viva"; (Ezequiel 33, 11) não raro prolonga o tempo da penitência. Mas é preciso ajuizar desse tempo como das ocasiões no curso do mundo. Cada um espera os momentos felizes, as ocasiões favoráveis para concluir os seus negócios. Mas se esperais sem vos moverdes, se não sabeis aproveitar o tempo, ele passa inutilmente para vós, e na passagem só vos traz anos que vos incomodam. Por isso, nessa importante questão da penitência, aquele que sabe empregar o tempo e aproveitá-lo pode esperar muito dele; mas aquele que sempre espera e nunca começa vê correr inutilmente e desaparecer-lhe todos esses momentos preciosos nos quais tinha posto a sua esperança. É por isso que São João Batista não nos dá repouso algum: "O machado, diz ele, já chegou à raiz; toda a arvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo; fazei pois, fazei já frutos dignos de penitência" Facite ergo fructus dignos paenitentiae (São Lucas 3, 8). Haveis transposto audaciosamente as mais poderosas considerações. E como insensibilizastes essa primeira ternura duma consciência inocente! Soubestes profanar a penitência e a comunhão, que já vos não impressionam. Os terríveis juízos de Deus que outrora tinham tanta força para vos com mover, a apreensão que tinhais desse trovão, tudo dissipastes como um vão terror, e costumastes-vos a dormir tranquilamente a esse estrondo. Estamos reduzidos aos milagres. Experiência dos pecadores... In peccato vestro moriemini (São João 8, 21). Devemos dar mais atenção às coisas que se dizem do que aos pregadores. As coisas que dizemos são tão pouco sólidas que só mereçam reflexão pela maneira como se dizem? Tantas horas de grande prazer! Porque se perdem elas todas? Porque não aproveita Jesus Cristo algumas delas, em vez de as considerar como um passatempo inútil? Pois oxalá que Jesus Cristo vos encha de graças! Oxalá que recebêsseis n'Ele um Salvador e não um juiz! Oxalá que aprendêsseis no seu presépio a desprezar "os bens efêmeros e a alcançar as inestimáveis riquezas que a sua gloriosa pobreza nos granjeou! 4º Domingo do Advento - 1º Sermão para o 4º Domingo do Advento A Verdadeira Conversão Pregado em 22 de dezembro de 1669. SUMÁRIO Exordio. - Assim como sucedeu aos judeus, informados por São João Batista cerca do verdadeiro Messias, assim sucede que a paixão não nos deixa conhecer a verdade quando ela nos confunde. Proposição e divisão. - Tal como São João Batista, assim é o pregador: Vox clamantis in deserto: parate viam Domini. Resta compreendermos: 1º O que é o deserto onde ela clama; 2º Que preparação nos exige; 3º Que equidade nos prescreve. 1º Ponto. - O deserto em que deve achar-se o pecador que se quis converter é o retiro do mundo, ao menos pelo espírito, e um positivo regresso à própria individualidade, visto que o mundo nos conduz ao mal: Ipsumque aerem... scelestis vocibus constupratum. Foi para chorar os nossos pecados que Deus nos concedeu a faculdade do arrependimento e o dom das lágrimas. 2º Ponto. - É preciso sofrermos provações, porque a conversão é coisa difícil, o bem custa mais do que o mal e certas afeções viciosas nas quais se envelheceu, não desaparecem com um único esforço. 3º Ponto. - A pureza de coração que Deus exige ao pecador é a caridade: Diligere incipiunt... ac propter a moventur adversus peccata per odium aliquod ac detestationem. O temor não faz desaparecer o mal, porque é o efeito do amor. Peroração. - Despertemos nos nossos corações um princípio de amor, e cultivemo-lo, a fim de que ele estenda os seus ramos para toda a parte, e receemos a tentação. Ego vox clamantis in deserto. Eu sou a voz daquele que clama no deserto (São João 1, 23). Os homens, cuja paixão corrompeu o juízo, não sabem seguir os sinais da verdade, e a própria luz os confunde e os perturba. A vida maravilhosa de São João Batista causa uma tal admiração no concílio dos judeus que se celebrava em Jerusalém, que eles enviam ao nosso evangelista uma solene deputação para lhe perguntar se ele não é Elias, se não é esse grande profeta prometido por Moisés, se, enfim, não é o Cristo. João, esse pobre amigo do Esposo, que só cuida em se humilhar assim que Jesus Cristo pretende aparecer, para lhe dar a glória que lhe é devida, aproveita essa ocasião para apresentar aos judeus esse divino Salvador que estava no meio deles sem que eles o quisessem conhecer. Mas de que erro não são capazes homens preocupados e de juízo corrupto! Eles dirigem-se a São João Batista para saber dele próprio quem ele é, e consultam-no sobre o que lhe diz respeito, tal é a confiança que ele lhes merece; e ao mesmo tempo julgam-no tão pouco digno de crédito, que recusam o testemunho sincero que ele dá a respeito doutro. Têm em tão alto preço a sua pessoa que o tomam por um profeta e até imaginam que é o Cristo; e ao mesmo tempo têm em tão pouca conta a sua opinião que não querem reconhecer o Cristo que ele lhes apresenta; tal é a certeza, cristãos, de não haver contradição nem extravagância onde não caiam aqueles a quem cega o orgulho e que se atrevem a confundir os seus próprios pensamentos com as verdades que Deus lhes apresenta. Entreguemo-nos, irmãos, a São João Batista com um espírito oposto ao dos judeus, visto que a Igreja nos comunica as suas divinas prédicas para preparar os desígnios do novo Salvador, e o obriga mais uma vez a desempenhar por este meio o seu ofício de precursor. Escutemos atentos essa voz que nos deve conduzir à Palavra eterna. Mas, para podermos aproveitar os seus ensinamentos, roguemos à Virgem Santíssima que nos obtenha a graça de nos comovermos com a voz de São João Batista, assim como o próprio João Batista se comoveu com a voz dessa Virgem bendita, quando ela comunicou, até às entranhas de sua mãe, uma parte da graça que havia recebido com plenitude. Ave-Maria. Vindes hoje ouvir um grande e excelente pregador: é o celebre João Batista, facho perante a Luz, voz perante a Palavra, anjo perante o Anjo do grande conselho, medianeiro perante o Medianeiro, isto é, medianeiro entre a lei e o Evangelho, precursor do que o antecede; aquele, cuja mão, julgando-se indigna de se aproximar sequer dos pés de Jesus, se elevou até acima da sua cabeça; que batiza exteriormente O que interiormente o batiza, e espalha água sobre a cabeça do que espalhá o fogo e o Espírito Santo nos corações. É este, irmãos meus, o pregador que vos pede audiência. Razão tem ele em dizer, definindo-se a si próprio, que é uma voz, porque tudo fala nele a sua vida, os seus jejuns, as suas austeridades, aquela palidez, aquela magreza do rosto, o horror daquele cilício de pelo de camelo que lhe cobre o corpo e daquele cinto de couro que lhe aperta os rins, o seu recolhimento, a sua solidão, o deserto terrível que ele habita; tudo fala, tudo clama, tudo tem vida. Assim deveriam de ser os pregadores: "Era preciso que tudo neles falasse e retumbasse" - Totum se vocalem debet verbi nuntius exhibere, como dizia aquele antigo Padre. Ao ver-se aquele pregador tão extenuado, aquele esqueleto, aquele homem que não tem corpo, e cujo clamor contudo é tão penetrante (E que, todavia, troveja com tanta força)... poderia imaginar-se, com efeito, que era apenas uma voz, mas uma voz que Deus faz ouvir aos mortais para lhes inspirar um temor salutar. Ao som daquela voz, não só o deserto se comove, mas perturbam-se as cidades, tremem os povos e assustam-se as províncias. Vê-se acudir aos pés de São João Batista toda a Judeia apavorada, tal é o anúncio constante que ele dá aos homens dos severos juízos de Deus que os estimulam e os perseguem. "Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da justiça futura?" (São Mateus 3, 7). Razão tem ele, pois, em dizer que não é o que os judeus imaginaram. Não é o Profeta, não é o Cristo, nem é Elias. É uma voz, é um clamor que avisa os pecadores da sua ruína próxima e inevitável, se em breve não fizerem penitência. Escutemos, atentamente, irmãos, esse divino pregador, profeta e mais que profeta. Sim, visto que todo ele é voz para nos falar, sejamos todo ouvidos para o ouvir. "Eu sou, diz ele, a voz daquele que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, e abri bem, na solidão as veredas do nosso Deus" - Vox clamantis in deserto: Parate viam Domini; rectas facite in solitudine semitas Dei nostri (São Mateus 3, 3) Tal é a voz que nos fala; resta sabermos o que é o deserto onde ela clama, que preparação nos exige e que equidade nos prescreve. É esta a divisão, sem rodeios, do meu discurso, e este o assunto sobre que deve recair a vossa atenção. PRIMEIRO PONTO A voz que nos convida à penitência compraz-se em se fazer ouvir no deserto. É preciso abandonar a vida mundana e as reuniões; é preciso amar o recolhimento, o silêncio e a solidão, para ouvir essa voz que não quer ser abafada pelo ruído e pelo tumulto dos homens. A primeira coisa que Deus faz quando quer comover um homem dado aos prazeres do mundo, é chamá-lo de parte, para lhe falar em segredo: "Encontrei, diz Ele, essa alma mundana com todos os ornamentos da sua vaidade" - Ornabatar in aure sua et monili suo Ela só pensava em agradar ao mundo, em ver e em ser vista; "corria como uma insensata atrás dos seus amantes, atrás dos que lisonjeavam os seus maus desejos, e esquecia-se de mim, diz o "Senhor" - Et ibat post amatores suos, et obliviscebatur mei, dicit Dominus (Oséias, 2, 13). "E eu começarei de criá-la"; e hei de fazer-lhe sentir uma gota, dos prazeres celestes: "Hei de atraí-la à sociedade, e hei de falar-lhe ao coração" - Propter hoc ego lactabo eam et ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus (Oséias, 2, 14). Dir-lhe-ei palavras de consolação e de instrução divina. E, na verdade, nós erramos desde o princípio, se imaginarmos que o espírito de arrependimento e de penitência pode subsistir neste comércio eterno do mundo, a que entregamos toda a nossa vida. Um penitente é um homem pensativo e atento à sua alma, Um penitente é um homem desgostoso de si mesmo e do mundo: Dormitavit anima mea prae taedio - "A minha alma desfalece de aborrecimento" (Salmo 138, 28). Um penitente é um homem que quer chorar, entristecer-se, que quer gemer: Laboravi in gemitu meo - "Fiquei sufocado com os meus soluços" (Salmo 6, 7). Um homem assim quer viver só, quer ter horas de dor íntima; o mundo incomoda-o e custa-lhe a suportar. Causar-vos-ia admiração, irmãos, se vos contasse as leis da antiga penitência. Tirava-se o soldado da milícia, o negociante do negócio e todo o cristão penitente dos empregos do mundo. Eles oravam, meditavam noite e dia; e lamentavam continuamente o bem que tinham perdido. Não havia festas, nem jogos, nem coisas mundanas. Alimentavam-se nas suas casas com o pão de lágrimas. Só saiam publicamente para irem confundir-se à face da Igreja e implorar aos pés dos seus irmãos o socorro das suas preces caritativas; tal era o gosto que tinham pelo recolhimento e pela indispensável solidão. Que foi então que nos levou a estes prodigiosos tresvarios? Que foi que nos fez esquecer Deus e nós mesmos, senão o tumultuar do mundo que nos distrai por forma a não termos sequer conhecimento dos nossos excessos? A nossa consciência, testemunho verdadeiro, amigo fiel e incorruptível, nunca tem ocasião de nos falar; e temos todas as nossas horas tão ocupadas que nem tempo há para essa audiência. Ora há uma diferença entre a razão e os sentidos, e é que a impressão dos sentidos é muito viva, a sua operação rápida, o seu ataque brusco e inopinado; pelo contrário, a razão carece de tempo para reunir as suas forças, para consolidar as suas resoluções, e de tal maneira que é arrastada pelos objetos que aparecem e arrebatada, por assim dizer, pelo primeiro vento, se ela não der a si própria, pela sua atenção, um certo peso, uma certa estabilidade e um certo refreamento. Se, portanto, lhe tirarem a reflexão, tiram-lhe toda a sua força, deixam-na a descoberto e ao abandono para servir de presa ao primeiro adventício. É isto, irmãos meus, o que faz o mundo; sabe agitar tão poderosamente não sei que coisa turbulenta e impaciente que temos no fundo do coração, que nos conserva em constante movimento. Todas as horas decorrem com grande velocidade, todos os dias acabam cedo demais, de maneira que nunca há um momento livre; e quem não é senhor de si, de quem se torna cativo? Homens errantes, homens vagabundos, que fugis de vós mesmos, já é tempo de escutardes a voz que lá de dentro vos chama. Se vos perdestes com essa prodigiosa dissipação, é preciso que vos cure um recolhimento salutar. Uma parte do vosso mal consiste num certo atordoamento que o bulício do mundo causou, e de que se abalou de todo a vossa mente; é necessário alheardes de tudo e tomardes repouso. É o próprio médico que vos diz pela boca do seu profeta. Si revertamini et quiescatis salvi eritis; in silentio et in spe erit fortitudo vestra - "Se abandonardes esse grande tumulto e repousardes, sereis salvos; e, no meio do silêncio, as vossas forças começarão de restabelecer-se" (Isaías 30, 15). O douto São João Crisóstomo - condensou numa ligeira palavra uma sentença notável, quando disse que para formar os costumes, e talvez possamos dizer outro tanto do espírito, é necessário desaprender todos os dias. Efetivamente, mil falsos preconceitos corromperam-nos o espírito e o juízo; e a origem desta desordem é que, logo que começamos a ter uma pequena noção das coisas, o mundo tentou ensinar-nos, e juntou às ilusões dos nossos sentidos as da opinião e do costume. Foi daí que tiramos estas belas lições: que é indispensável proporcionar tudo ao nosso interesse, que a verdadeira habilidade consiste em empregar todos os meios para a nossa fortuna, e que é necessário vingar as afrontas. Sofrer, é provocar novos insultos; essa grande moderação é a virtude dos espíritos vulgares; a paciência é o penhor dos fracos e a triste consolação dos que nada podem; numa vida tão curta e tão infeliz como a nossa, é loucura recusar o pouco prazer que a natureza nos dá. São estas as lições mestras que aprendemos todos os dias nas reuniões, de maneira que todos os preceitos de Deus e da razão ficam sepultados sob as máximas do mundo. Depois disto, irmãos, compreendeis facilmente a necessidade de desaprender; mas certamente, para esquecer semelhantes lições, é preciso abandonar a escola e o mestre. E senão, considerai, por quem sois, de que maneira vos persuade o mundo. Esse mestre perigoso não é como os outros mestres: ensina sem dogmatizar; tem o seu método particular de não provar as suas máximas, mas de as imprimir no coração sem que se de por isso, E assim, todos esses homens que nos falam, são outros tantos órgãos que no-las inspiram. Os nossos inimigos pelas suas ameaças, e os nossos amigos pelos seus bons serviços, concorrem igualmente para nos dar falsas ideias dos bens e dos males. Tudo o que se diz nas reuniões, e até o ar que nelas se respira, só deixa prazer e vaidade. Deste modo, nada adiantamos em engolir de repente o veneno da libertinagem, se entre tanto o absorvermos pouco a pouco, se deixarmos chegar até ao coração esse sutil contágio que se respira com o ar da vida mundana nas suas conversações e nos seus costumes. Tudo nos corrompe, tudo nos seduz; e se perguntarmos a Tertuliano o que ele teme por nós no mundo, responder-nos-á esse grande homem: Tudo, até ao ar que se acha infectado por tantos discursos prejudiciais, por tantas máximas anti-cristãs: Ipsumque aerem..., scelestis vocibus constupratum. Não vos admireis, portanto, se eu disser que o primeiro instinto que se revela num homem tocado por Deus, é o de se afastar do trato mundano. A mesma voz que nos chama à penitência chama-nos também ao deserto, isto é, ao silêncio, à solidão e ao recolhimento. Escutai este santo Penitente: Similis factus sum pellicano solitudinis, factus sum sicut nycticorax in domicilio; vigilavi et factus sum sicut passer solitarius in tecto - "Eu tornei-me, diz Ele, semelhante ao pelicano dos desertos e ao mocho dos lugares solitários e arruinados; tenho passado a noite a velar, e ando sozinho, como um pardal sobre o telhado duma casa" (Salmo 101, 7-8). Em vez desse ar sempre agradável que o mundo nos inspira, o espírito de penitência põe-nos no coração qualquer coisa de insuportável e de selvagem. Esse homem afável e cortês, que tomava parte em tudo, desapareceu; essa mulher tratável e atenciosa, muito hábil medianeira e amiga muito oficiosa, que facilitava secretas correspondências, já não existe; desapareceram esses expedientes, essas franquezas, essas atenções; agora aprende-se outra linguagem, aprende-se a dizer: Não; a dizer: Não posso mais; a pagar ao mundo com negativas bruscas e vigorosas. Já cada um não quer viver como os outros nem com os outros; já não quer aproximar-se, nem quer agradar, desgosta-se de si mesmo. Um pecador, que começa a compreender o mal que praticou, odeia ao mesmo tempo o mundo que o iludiu e odeia-se a si próprio, porque se deixou dominar por um engodo tão grosseiro. É que ele recorda-se de quantos crimes cometeu, devido aos seus infortunados obséquios. Agora só cuida em separar-se desse sutil contágio que se respira com o ar da vida mundana nas suas conversações e nos seus costumes. Até um rei, penitente dentro da sua corte e dos seus negócios, entra nesse espírito de solidão. Retira-se-muitas vezes para o seu gabinete. Se os negócios do dia não o deixam estar só, passa a noite a velar; e, durante esse tempo de silêncio e de liberdade, entrega-se ao secreto desejo que o leva a suspirar e a gemer. Longe do mundo, longe das reuniões, apenas tem Deus à sua vista para se angustiar na Sua presença, e para Lhe dizer do fundo do seu coração: "Pequei contra vós e só perante vós", e quero também angustiar-me só na Vossa presença; única e invisível testemunha dos meus soluços e dos meus lamentos, ah! Escutai a voz dos meus prantos: Tibi soli peccavi (Salmo 6). E na verdade, se examinarmos com atenção o motivo porque Deus e a natureza entornaram nos nossos corações esse manancial amargo de prantos, ser-nos-á fácil compreender que foi para nos angustiar, não tanto pelos nossos infortúnios como pelos erros nossos. Os males que necessariamente nos acontecem trazem sempre consigo uma espécie de consolação; e nós rendemo-nos a eles, visto que são uma necessidade. Mas nada há que exaspere tanto as nossas dores como quando o nosso infortúnio provém da nossa culpa. Desta maneira são os nossos pecados que constituem o verdadeiro motivo das nossas lágrimas; e não é com o prazer, senão com as lágrimas, que se reparam tantas faltas cometidas, e é esta uma segunda razão pela qual os santos penitentes se entregam à dor. Em todas as nossas outras perdas, as lágrimas e os lamentos são-nos inúteis. A morte arrebatou-vos uma pessoa que vos era querida: podeis chorar até ao fim do mundo e empregar os maiores esforços para a chamar à vida, que a vossa dor impotente não a fará sair do túmulo; e por muito vivas que sejam as vossas dores, não conseguirão reanimar as suas cinzas apagadas. Mas, deplorando os vossos pecados, apagai-los com as vossas lágrimas, dizendo com o Profeta: "Caiu-nos a coroa da fronte; ai de nós, porque pecamos!" (Lamentações 15). Tornamos a colocar sobre essa fronte, despojada do seu ornamento, a mesma coroa de glória. Deplorando a audácia insensata que vos fez violar a santidade do vosso batismo, outro batismo vós preparais. É o que leva um penitente a prantear eternamente e a procurar o segredo e a solidão para de todo se entregar a uma dor tão justa e tão salutar. Além de que, não imagineis que vos estou aqui a fazer discursos sem fundamento, ou que vos aconselho lamentos e solidões imaginários. Todas as histórias eclesiásticas estão cheias de santos penitentes que, não podendo já suportar o mundo, a cujos atrativos enganadores se entregavam, foram afinal encher os desertos com os seus piedosos gemidos. Não podiam quebrantar a dor de terem violado o seu batismo, e profanado o corpo de Jesus Cristo, e ultrajado o espírito da Sua graça, e calcado aos pés o Seu sangue precioso com que haviam sido resgatados, e crucificado ainda uma vez o seu Salvador. Censuravam a sua alma, esposa infiel, purificada com o sangue do Cordeiro, porque no meio dos benefícios do seu Esposo, no próprio leito do seu Esposo, se havia entregado ao seu inimigo. Vertiam torrentes de lágrimas. Não podiam já suportar o mundo que os tinha iludido, nem os seus prazeres, nem as suas vaidades, nem o seu triunfo que destrói o reino de Deus. Iam procurar os lugares solitários para darem mais livre curso à sua dor; e então ouviam-se, não gemer, mas uivar e rugir nos desertos: Rugiebam (Salmo 37, 9) Eu nada acrescento à historia. Parecia que aqueles penitentes só tinham prazer em ver objetos que tivessem qualquer coisa de medonho e de selvagem, e que lhes fossem como que uma imagem da terrível angústia a que os seus pecados os tinham reduzido. Não se deve esperar efeitos semelhantes da penitência nos nossos dias. Se São João Batista viesse de novo pregar pessoalmente, não nos convenceria a deixar o mundo para irmos chorar os nossos pecados para qualquer lugar desconhecido ou para qualquer vale deserto. A nossa salvação não nos é preciosa, porque não temos a nossa alma em tão alto preço. Devo dizer, porém, que estes extremos sagrados não nos são precisamente impostos, nem talvez absolutamente necessários; mas, ao menos, não nos entreguemos de todo à vida mundana, tenhamos horas de recolhimento; tanto mais que um coração contrito, um coração angustiado deixa de ser sensível a esses prazeres frívolos. Não exponhais ao mundo o espírito da graça, nem frequenteis tanto as reuniões. Introduzi na terra a boa semente; pois foi por a terdes deixado muito ao abandono que ela não pôde criar raízes. Os que passavam calcaram-na aos pés, as aves do céu comeram-na, ou então os cuidados do mundo abafaram-na; e a vossa colheita é antecipadamente destruída no próprio tempo da cultura e da lavoura. Se a vossa penitência não é gemebundo, seja ao menos sincera, e que ao menos não seja extinta. Nem todos podem gemer e derramar lágrimas constantes; a dor pode subsistir sem todos estes indícios, mas o coração deve ficar despedaçado cá dentro. E, pelo menos, é preciso ter como certo que esses ímpetos de alegria sensual são incompatíveis com a dor da penitência. Etiam a licitis. Atendamos à nossa salvação: Sibi ipsa mentis intentio solitudinem gignit, diz Santo Agostinho. Procuremos a solidão pela nossa atenção e pelo nosso recolhimento. Estamos no deserto, para onde a voz de João Batista nos conduziu: já lá aprendemos a chorar os nossos crimes; é preciso alguma outra aparição para abrir a Deus o caminho e fazê-lo entrar na nossa alma? Eis o objetivo da segunda parte. SEGUNDO PONTO Não duvideis, irmãos meus, que, a penitência exija mais intimas preparações do que as que eu já referi: o recolhimento e a solidão afastam mais o mal do que fazem adiantar o bem. As dores que a minha alma traduziu em lágrimas seriam suficientes, contanto que nascessem sinceramente do fundo do coração; mas, como já sabemos que há falsas dores e falsos pesares, por isso nos vemos obrigados a sofrer provações, às quais eu chamo preparar os caminhos com atenção e exatidão. Lavamini, mundi estote, auferte malum cogitationum vestrarum ab oculis meis, quiescite agere perverse, discite benefacere, quaerite judicium, subvenite oppresso, judicate pupillo, defendite viduam, et venite et arguite me, dicit Dominus. Si fuerint peccata vestra ul coccinum, quasi nix alba erunt; et si fuerint rubra ut vermiculus, sicut lana alba erunt. Facilius autem inverti qui innocentiam servaverint, quam qui congrue egerint paenitentiam. An quisquam illam paenitentiam putat, ubi adquirendae ambitio dignitatis, ubi vini effusio, ubi ipsius copulae conjugalis usos? - Renuntiandum saeculo est, somno ipsi minus indulgendum quam natura postulat, interpellandus est gemitibus, interrumpendus est suspiriis, sequestrandus orationibus. Vivendum ita ut vitali huic moriamur usui, seipsum sibi homo abneget, et totus mutetur. Eo quod ipse hujus vitae usus, corruptela sit integritatis. Adam post culpam statim de paradiso Deus ejecit, non distulit: sed statim separavit a deliciis, ut ageret paenitentiam. Statim tunicam vestivit pelliceam, non sericam. Ne in ipsa fiat paenitentia, quod postea indigeat paenitentia. Os que indiferentemente fazem penitência, qui negligenter se gesserunt, - devem ter compreendido que na fraqueza natural do homem, é mais fácil cairmos do que levantarmo-nos, darmos o golpe mortal do que revivermos, propendermos sempre para o mal do que violentarmo-nos a fugir dele. Devemo-nos convencer de que não obtemos de Deus o perdão tão facilmente como o ofendemos a Ele, e que o homem não verga à Sua bondade com a mesma facilidade que a despreza. Porque é máxima estabelecida que o bem custa-nos mais do que o mal, e que é obra mais custosa de recuperar do que de perder. Mas aqueles de quem estamos falando não o entendem assim; aferem pela mesma medida a penitência e a culpa. Se lhes é fácil pecar, não lhes é menos fácil converterem-se, umas vezes justos e outras vezes pecadores, conforme lhes apraz. Eles julgam que podem alterar os seus maus desejos com tanta facilidade como têm em se deixar vencer, e corrigir-se das suas más inclinações como dum hábito que se adquire e que se abandona quando se quer: erro manifesto. Na verdade, cristãos, enquanto a doença suprime por algum tempo os ataques mais vivos da cobiça, confesso que nos é fácil representar no rosto, e até para melhor nos iludir, na nossa imaginação assustada, a imagem dum penitente. O coração tem movimentos superficiais que se operam e se anulam num momento; mas não recebe tão facilmente as impressões fortes e profundas. Não, nem um novo homem se forma de repente, nem essas afeições, viciosas, nas quais, temos envelhecido, desaparecem com um único esforço. São paliativos que só curam a fantasia sem tocarem na chaga. TERCEIRO PONTO Por estas santas preparações, a alma, que a si mesma dá a provação e que duvida das ilusões do seu amor-próprio, há de retificar as suas intenções e há de dar ao seu coração a verdadeira pureza. Em toda a Escritura abundam bênçãos sagradas para os que têm o coração puro. Mas que pureza é essa, senhores meus? Digamo-lo numa palavra: é a caridade, é o amor santo, é o amor casto; é o puro e íntimo laço da esposa com o Esposo sagrado; é esse deleite dum coração que se compraz na lei de Deus, e que a ela se submete com plena e inteira vontade, "não pelo receio do castigo, mas pelo amor da justiça; não atemorizado pelas suas ameaças, mas encantado com a sua beleza e com a sua retidão". Purificai, meus caros irmãos, as veredas do nosso Deus. Amai puramente, amai santamente, amai constantemente, e sereis puros. Se apenas receardes as ameaças da lei, sem amardes a sua verdade e a sua justiça, ainda que a não quebranteis abertamente, não estais intimamente de harmonia com ela! Ela ameaça, logo é temível; e às suas ameaças correspondeis vós com o temor. Que fazeis relativamente à sua equidade? Amai-la, ou não? Vede-la com aprazimento, ou com um ódio secreto, com frieza e indiferença? Onde estão os vossos primeiros desejos e as vossas primeiras inclinações? O temor não destrói um desejo, impede o seu efeito, não o deixa manifestar-se, erguer a cabeça; corta-lhe os ramos, mas não a raiz, A origem do desejo permanece. Eu não sei que coisa preferiria; que a lei não existisse, ou que não fosse tão reta, nem tão dura, nem tão rigorosa, ou que aquele que a estabeleceu fosse menos forte ou menos clarividente. Eu sei que há diferença entre o temor dos homens e o temor dum Deus vingador; e que, quando se consegue iludir os homens e roubar-lhes, pelo menos, o coração, é o temor mais penetrante à vista de Deus. Mas, porque é sempre temor, não pode agir contra a sua natureza; não pode desvanecer, nem expungir, nem, por consequência, desentranhar completamente as inclinações depravadas. Purificai, pois, irmãos, as vossas veredas. Um princípio de amor: Diligere incipiunt..., ac propterea moventur adversus peccata per odium aliquod ac detestationem. É este o motivo do vosso ódio, é deste princípio de amor que deve nascer a vossa aversão. Uma aversão, a despeito duma inclinação contrária. É preciso que essa planta divina não seja simplesmente semeada, mas que tenha começado a criar raízes na alma antes de receber a graça justificante; aliás, seria incapaz de a obter. É necessário um princípio de equidade e de justiça no coração; mas é necessário depois cultivá-lo, de maneira que ele estenda os seus ramos para toda a parte, e que ocupe todo o coração, a fim de poderdes colher frutos de justiça. Daí deve nascer um outro temor; não o temor da adultera que teme o regresso do marido, senão o temor duma esposa casta que teme perdê-lo. E daí também se deriva outra equidade: caminhar dentro da lei de Deus com uma nova circunspecção, recear uma fraqueza experimentada, prender-se mais estreitamente à justiça que uma vez se perdeu, honrar a bondade divina pelo receio das tentações e dos perigos infinitos que nos cercam, etc.. Dia de Natal - 1º Sermão para o Dia de Natal Os Divinos Caracteres do Salvador Bossuet pregou duas vezes este sermão; perante a côrte em 1665 e nas Carmelitas do subúrbio Saint-Jacques, em Paris, em 1668, com variantes e aperfeiçoamentos. É a segunda redação que publicamos. SUMÁRIO Exordio. - O Verbo, que no princípio estava no seio de Deus... criou três degraus, por meio dos quais a soberana grandeza desceu até à última baixeza. Proposição e divisão. - Ele apenas desceu até nós para nos indicar esses degraus, por meio dos quais nós podemos subir até Ele: 1º Se Ele acode à nossa natureza caída, é com intenção de a levantar; 2º Se se apodera das nossas enfermidades, é com o fim de as curar; 3º Se se expõe às misérias e aos ultrajes da sorte, é para triunfar de todos ps atrativos do mundo. 1º Ponto. - Só Deus é grande em tudo: Nostra suscipiendo provehit et sua communicando non perdit. O homem pelo seu orgulho quis fazer-se Deus, e para combater esse orgulho quis Deus fazer-se homem. Não é a independência de Deus que devemos imitar, senão a Sua bondade e as Suas humilhações. Sejamos deuses com Jesus Cristo e tomemos sentimentos inteiramente divinos. 2º Ponto. - Visto que o Salvador era Deus, devia fazer milagres; e visto que era homem, não devia vexar-se de mostrar imperfeição: Ut solita sublimaret in solitis, et insolita solitis temperaret. Nós não temos um pontífice que seja insensível aos nossos males. "Porque ele passou, como nós, por todas as espécies de provação, à excepção do pecado". 3º Ponto - Deus vem à terra para confundir com a Sua pobreza o fausto ridículo dos filhos de Adão, e desenganá-los dos vãos prazeres que os encantam. Diz-lhes: Confidite ego vici mundum. Peroração. - Não imitemos os judeus, reconheçamos o nosso verdadeiro Salvador: Si ignobilis, si inglorius, si inhonorabilis meus, erit Christus. O presépio de Jesus Cristo tornou ridículas todas as nossas vaidades. Aspiremos às riquezas inestimáveis que a gloriosa pobreza do Salvador nos preparou para a felicidade eterna. Natus est nobis hodie Salvator mundi, et hoc vobis signum: Invenietis infantem pannis involutum, positum in praesepio. O Salvador do mundo nasceu hoje para nós, e haveis de reconhecê-lO por este sinal: Achareis um menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura (São Lucas 2, 11-12). O Verbo, que no princípio estava no seio de Deus, por quem foram feitas todas as coisas e que tudo sustenta pela Sua força omnipotente, criou três graus, por meio dos quais a soberana grandeza desceu até à última baixeza. Em primeiro lugar fez-Se homem, em segundo lugar fez-Se passível, em terceiro lugar fez-Se pobre e sofreu todos os opróbrios da sorte mais desprezível. O texto do meu Evangelho encerra em três palavras essa tríplice humilhação do Deus-Homem: "Achareis um menino", é o principio duma vida humana; "envolto em faixas", é para preservar a fragilidade das injúrias do tempo; "deitado numa manjedoura", é o último extremo da indigência, e por aqui vedes, irmãs, qual é a ordem da sua descensão. O Seu primeiro passo é fazer-Se homem, e por este meio coloca-Se abaixo dos anjos, visto que toma uma natureza menos nobre: Minuisti eum pauo minus ab angelis (Salmo 7, 6) Continuemos atentamente, e detenhamo-nos em todos os graus dessa descensão misteriosa. Se o Salvador desceu pelo Seu primeiro passo abaixo da natureza angélica, dá um segundo passo que o equipara aos pecadores, porque não toma a natureza humana tal como ela era na sua inocência, sã, incorruptível, imortal; mas toma-a no estado deplorável a que o pecado a reduziu, exposta de todos os lados às dores, à enfermidade e à morte. Mas o meu Salvador ainda não fica bastantemente humilhado. Já o vedes, irmãs, abaixo dos anjos pela nossa natureza, e equiparado aos pecadores pela enfermidade, isto é, pela fragilidade; agora, ao dar o terceiro passo, vai, por assim dizer, sobpor-se-lhes aos pés, entregando-Se ao desprezo, pela condição miserável da Sua vida e do Seu nascimento. São estes, irmãs, os degraus, por meio dos quais o Deus encarnado desce do Seu trono, e que vós haveis observado por ordem nas partes do meu Evangelho. Mas não é isto o que há de mais importante, nem o que mais me assombra. Conquanto eu não possa pasmar das humilhações do meu Deus, pasmo muito mais de que nos apresente essas humilhações como prova evidente para reconhecermos o Salvador do mundo: Et hoc vobis signum. Que novo prodígio é esse? De que pode servir à nossa fraqueza tornar-se enfermo o nosso médico, e despojar-se o nosso libertador do seu poder? Será um recurso para os infelizes vir um Deus aumentar-lhes o número? Não parece, pelo contrário, que o jugo que oprime os filhos de Adão é tanto mais duro e inevitável quanto mais sujeito a suportá-lo está o próprio Deus? Isto seria verdade, irmãs, se esse estado de humilhação fosse forçado, se Ele tivesse caído nele por necessidade, e não houvesse descido por misericórdia. Mas como a Sua humilhação não é uma queda, senão uma indulgência, e como Ele não desceu até nós senão para nos indicar os degraus por onde podemos subir até Ele, toda a ordem do Seu descimento constituí a da nossa gloriosa elevação; e nós podemos apoiar a nossa esperança morta nessas três humilhações do Deus-Homem, visto que, se Ele acode à nossa natureza caída, é com a intenção de a levantar; se Se apodera das nossas enfermidades, é com o fim de as curar; e se Se expõe às misérias e aos ultrajes da sorte, é para os vencer e triunfar gloriosamente de todos os atrativos do mundo e de todas as ilusões e de todos os terrores. Atributos divinos, sagrados caracteres pelos quais reconheço o meu Salvador; não poder eu explicar-vos neste auditório com os sentimentos que mereceis! Ao menos, esforcemo-nos por consegui-lo, e comecemos a mostrar neste primeiro ponto que, se Deus toma a nossa natureza, é com o fim de a exaltar. PRIMEIRO PONTO Assim como Deus é único na Sua essência, assim é impenetrável na Sua glória. É inacessível na Sua altura e incomparável na Sua majestade. É por isso que a Escritura nos diz tantas, vezes que Ele é mais alto do que os céus e mais profundo do que os abismos; que se acha oculto em Si mesmo pela Sua própria luz, e que "todas as criaturas são como que um nada à sua vista" - Omnes gentes quasi non sint, sic sunt coram eo, et quasi nihilum et inane reputatæ sunt ei? (Isaías 40, 17). O douto Tertuliano, escrevendo contra Marcião, explica-nos esta verdade por estas magníficas palavras: Summum magnum ipsa sua magnitudine solitudinem possidens, unicum est. Às expressões da nossa língua não traduzem as daquele grande homem; mas, depois dele, digamos como pudermos, que sendo Deus soberanamente grande, é por consequência único e constitui pela sua unidade uma augusta solidão, porque nada pode igualá-lo, nem atingi-lo, nem aproximar-se-lhe, visto que é de todos os pontos inacessível. Ou melhor. Não há grandeza alguma nem criatura que se mantenha em todos os sentidos, porque tudo o que se eleva dum lado inclina-se do outro. Aquele é nobre no poder, mas medíocre na sabedoria; este outro terá uma grande coragem, mas será mal favorecido pela força do espírito ou pela do corpo. Nem sempre a probidade está com a ciência, como nem sempre, a ciência está com as ações. Finalmente, nada há que, por muito forte que seja, não tenha o seu fraco; como nada há que, embora muito alto, não tenha algures uma parte inferior. Só Deus é grande em tudo, porque tudo possui na Sua unidade, porque é inteiramente perfeito, e porque enfim tudo Ele próprio é, e eis o que quer dizer Tertuliano com essa elevada solidão, em que Ele faz consistir a perfeição do Seu ser. O mistério deste dia diz-nos que Deus saiu dessa augusta e impenetrável solidão. Quando Deus se encarnou, ficou sendo o Único dentre os companheiros, mostrou-se o Incomparável dentre os iguais, tornou-se o Inacessível palpável aos nossos sentidos; "Ele habitou entre nós", e como um de nós sobre a terra: Et habitavit in nobis (São João 1, 1-4) Ainda que esteja distanciado por todos os Seus divinos atributos, desce pela Sua bondade quando Lhe apraz, ou, para melhor dizer eleva-nos. Faz o que quer das Suas obras; e, assim como quando é de Sua vontade, as repele de Si até ao infinito e até ao nada, assim também sabe o meio de as associar a Si mesmo duma maneira incomparável, para além do que podemos crer e pensar. Porque, sendo infinitamente bom, é infinitamente comunicativo e infinitamente unitivo; de maneira que não é de admirar que Ele possa unir a natureza humana à Sua pessoa divina. Pode elevar o homem tanto quanto Lhe apraz, e até identificar-Se com ele. E nesta união nada há que seja indigno da Sua pessoa, porque, como diz o grande São Leão, "tomando a natureza humana, eleva o que toma e não perde o que comunica": Et nostra suscipiendo provehit, et sua communicando non perdit. Com isto testemunha o Seu amor, exerce a Sua munificência e conserva a Sua dignidade: Et nostra suscipiendo provehit, et sua communicando non perdit. Ainda mais profundamente, o homem pelo seu orgulho quis fazer-se Deus, e para combater esse orgulho quis Deus fazer-Se homem. Santo Agostinho, definindo o orgulho, diz que é uma perversa imitação da natureza divina. Há coisas em que é permitido imitar Deus. É certo que Ele mostra-Se cioso, quando o homem quer fazer-se Deus e procura semelhar-se-Lhe; mas não Se ofende com toda a espécie de semelhança; pelo contrário há atributos Seus em que Ele nos ordena que O imitemos. Considerai a Sua misericórdia, de que o Salmista escreveu "que excede as Suas outras obras" (Salmo 144, 9). É-nos ordenado que nos conformemos com este admirável modelo: Estote misericordes, sicut et Pater vester misericors est (São Lucas 6, 36). Deus é paciente para com os pecadores; é convidando-os a converterem-se, faz, no entanto, brilhar neles o Seu sol e prolonga o tempo da Sua penitência. Quer que nos mostremos Seus filhos, imitando essa paciência para com os nossos inimigos: Ut sitis filii Patris, vestri (São Mateus 5, 45). Ele é santo; e ainda que a Sua santidade pareça ser inteiramente incomunicável, não se molesta contudo da audácia de levarmos as nossas pretensões até à honra de O imitar nesse maravilhoso atributo; pelo contrário, no-lo exige: Sancti estote quia Ego sanctus sum (Levítico, 11, 44) Portanto, podeis segui-lO na Sua verdade, na Sua fidelidade e na Sua justiça. Que semelhança é então essa que lhe causa ciume? É que nós queremos imitá-lO na honra da independência, tomando a nossa vontade como lei soberana, como Ele próprio não tem outra lei que não seja a Sua vontade absoluta. Este é que é o ponto delicado; é aqui que Ele se mostra cioso dos Seus direitos e repele violentamente todos os que querem assim atentar contra a majestade do Seu império. Permite-nos que sejamos deuses pela imitação da Sua santidade, da Sua justiça, da Sua verdade da Sua paciência e da Sua misericórdia sempre benéfica. Quando se tratar do Seu poder, conservemo-nos nos limites duma criatura, e não levemos os nossos desejos até uma semelhança tão prejudicial. É esta, irmãs, a regra imutável que devemos seguir para imitar Deus. Mas, ó caminhos corruptos dos filhos de Adão! Ó corrupção estranha do coração humano! Nós destruímos toda a Ordem de Deus. Não queremos imitá-lO nas coisas em que Ele se propôs para modelo, procuramos remedá-lo naquelas em que Ele quer ser único e inimitável, e que nós não podemos pretender sem rebelião. É contra esta soberana independência que ousamos atentar; é este direito sagrado e inviolável que nos arrogamos com uma audácia insensata. Porque assim como Deus nada tem acima de Si que O norteie e que O governe, assim também nós queremos ser os árbitros soberanos das nossas ações, a fim de que, sacudindo o jugo, despedaçando as rédeas e arremessando o freio da lei que reprime a nossa liberdade desgarrada, não dependamos doutro poder e vivamos na terra como deuses. E não é isto o que o próprio Deus repreende aos soberbos sob a imagem do rei de Tiro? "O teu coração, diz Ele, elevou-se, e tu disseste: eu sou um Deus, e "consideraste o teu coração como o coração dum Deus". Dedisti cor tuum quasi cor Dei (Ezequiel 28, 2). Não quiseste a ordem nem a dependência. Caminhaste sem regra, e entregaste o coração arrebatado às tuas indômitas paixões. Amaste e odiaste, conforme te concitavam os teus desejos injustos, e hás feito um funesto uso da tua liberdade por uma soberba transgressão de todas as leis. Deste modo o nosso orgulho apaixonado, inflando-nos grandemente, consagra-nos como semi-deuses. Pois bem, ó soberbo, ó semi-deus, eis aqui o Deus sublime e vivo que Se humilha para te confundir. O homem faz-se Deus por orgulho e Deus faz-Se homem por clemência. O homem atribui-se falsamente a grandeza de Deus, e Deus toma verdadeiramente o nada do homem. Mas ainda há outro segredo da misericórdia divina. Ela não quer somente confundir o orgulho, tem bondade bastante para querer em certo modo satisfazê-lo. Consente em dar qualquer coisa a essa paixão indócil que nunca se sujeita de todo. O homem tivera a audácia de aspirar à independência divina; neste ponto, porém, não é possível contentá-lo, porque o trono não se divide e a majestade soberana não pode permitir igualdade nem união. Mas há um conselho de misericórdia que será capaz de o satisfazer. O homem não pode tornar-se independente? Deus consente em tornar-Se submisso. A sua soberana grandeza não permite que ele se humilhe, em quanto residir em si próprio; essa natureza infinitamente abundante não recusa ir pedir socorro para se enriquecer em certo modo pela humildade, "a fim de que, diz Santo Agostinho, o homem que despreza a virtude, que Ele chama simplicidade e baixeza quando a vê nos outros homens, não se dedignasse de a praticar quando a vê num Deus". Et hoc vobis signum. Ó homem, tu apenas fizeste vãos esforços para te elevares e engrandecer; vem buscar a este Deus-Homem, a este Deus-Menino, a este Salvador que hoje nasce, a sólida elevação e a verdadeira grandeza. Examinemos... Para que é que um Deus se faz homem? Para que nos aproximemos dEle e O tratemos como igual. É por isso que Santo Agostinho atribui a causa do mistério da Encarnação "a uma bondade popular" - Populari quadam clementia. Assim como um grande orador cheio de altas concepções, para se tornar popular e inteligível, desce, por meio dum discurso simples, à inteligência dos espíritos medíocres; assim como um nobre, cercado dum esplendor soberbo que fascina o povo simples e não lhe permite aproximar-se dele, se torna popular e familiar com maneiras obsequiosas, que sem enfraquecerem a autoridade tornam a bondade acessível: assim também a sabedoria incriada e a majestade soberana se despem do Seu esplendor, da Sua imensidade e do Seu poder para se comunicarem com os mortais e fortalecerem a coragem e as esperanças da nossa natureza decadente. Aproximai-vos, pois, ó fiéis, desse Deus-Menino. Tudo se Vos franqueia, tudo Vos está patente. Que vemos nesse Deus muito menino, que viemos adorar? Apparuit gratia et benignitas Salvatoris nostri Dei (São Tito, 3, 4). A Sua glória tempera-se, a Sua majestade obscurece-se, a Sua grandeza humilha-se e a Sua justiça rigorosa não se manifesta; apenas a bondade se distingue, para que nos aproximemos dEle confiadamente e com mais amor. E não me tornem a alegar as minhas fraquezas, as minhas imperfeições e o meu nada. Por muito nada que seja, sou homem, e o meu Deus, que é tudo, fez-Se homem. Eu caminho audaciosamente para esse Deus em nome de Jesus; e afirmo que Deus me pertence em honra de Jesus Cristo. Porque "esse Filho é para nós, logo foi para nós que nasceu esse menino" (Isaías 9, 6). Eu ligo-me a Jesus no que Ele tem comigo de comum, e por consequência apodero-me do que Ele tem de semelhante a seu Pai, e nada menos pretendo do que possuir a Divindade. Sejamos deuses com Jesus Cristo; e tomemos sentimentos inteiramente divinos. SEGUNDO PONTO Desde que, pelo infortúnio do nosso pecado, fomos aguilhoados com a morte, imprimiu-se o seu carácter em todas as passagens da nossa vida. Ela começa a manifestar-se logo na ocasião do nascimento. Há uma certa relação entre as faixas e os panos mortuários: deitamos e envolvemos pouco mais ou menos da mesma maneira os que nascem e os que morrem. Um berço dá uma ideia dum sepulcro, e a prova da nossa mortalidade é enfaixarem-nos ao nascer. O que fez dizer a Tertuliano que o Salvador começou nas faixas o mistério da sepultura: Pannis jam sepultarae involucrum initiatus. Ele estabelece no Seu nascimento o princípio da Sua morte; e, considerando-O enfaixado, já O imagina como que sepultado. Respeitamos o sentimento desse grande homem; e depois de termos visto no nosso Salvador a natureza humana pela palavra do menino, vejamos a mortalidade nas Suas faixas, e com a mortalidade todas as enfermidades que a acompanham. A este respeito, cristãos, intenta comunicar-vos, não os meus sentimentos e as minhas palavras, senão os raciocínios inteiramente divinos do incomparável Santo Agostinho, nessa admirável epístola que ele escreveu a Volusiano. É este, pois, o raciocínio e são estas quase as mesmas palavras desse sublime doutor. Visto que Deus consentira em Se fazer homem, era justo que nada esquecesse para nos fazer sentir essa graça e para isso, diz Santo Agostinho, era preciso que Ele tomasse as enfermidades, pelas quais a verdade da Sua carne é tão claramente confirmada. Efetivamente, continua ele, ainda que as Escrituras instantemente nos afirmem que o Filho de Deus não desprezou a fome, nem a sede, nem as fadigas, nem os trabalhos pesados, nem todos os outros incômodos duma carne mortal, houve muitos hereges que não quiseram reconhecer nele a verdade da nossa natureza. Uns diziam que o Seu corpo era um fantasma; outros, que era composto duma matéria celeste, e todos eram unânimes em negar que Ele tivesse realmente a natureza humana. Esses espíritos soberbos e depravados, que interiormente se vexavam da baixeza do Evangelho e das humilhações de Jesus Cristo, não queriam acreditar que um Deus se fizesse homem; e em vez de verem na atitude do Salvador uma grande humilhação do Altíssimo, preferiam dizer que Ele apenas tomara as aparências da nossa natureza material. Que faria, diz Santo Agostinho, se Ele de repente tivesse descido dos céus, se não tivesse acompanhado os progressos da idade, se tivesse desprezado o sono e o alimento, e de Si tivesse afastado essas sensações? Não teria Ele próprio confirmado o erro? Não se teria em certo modo vexado por Se ter feito homem, visto que apenas o parecia em parte? Não teria apagado em todos os espíritos a crença da Sua bem-aventurada encarnação, que constituti toda nossa a esperança? E assim, diz Santo Agostinho, "fazendo tudo milagrosamente, teria destruído o que misericordiosamente fez": Et dum omnia mirabiliter facit, auferret quod misericorditer fecit. E realmente, visto que o meu Salvador era Deus, era necessário que fizesse milagres; e visto que era homem, não devia vexar-Se de mostrar imperfeições, e a obra do poder não devia destruir o testemunho da Sua grande misericórdia. É por isso, diz Santo Agostinho, que se Ele opera coisas muito sublimes, também as suporta muito inferiores; mas modera de tal maneira todas as Suas ações que substitui as coisas inferiores pelas extraordinárias, e harmoniza as extraordinárias, com as medíocres: Ut solita sublimaret insolitis, et insolita solitis temperaret. Ele nasce, mas nasce duma virgem; come, mas, quando Lhe apraz, ordena aos anjos que o sirvam; (São Mateus 4, 11) dorme, mas, enquanto dorme, não deixa que se afunde a barca onde Ele voga; caminha, mas, quando quer, a água firma-se-Lhe debaixo dos pés; morre, mas, ao expirar, assombra e apavora toda a natureza. Em toda a parte ocupa um meio tão justo que, onde aparece como homem, sabe perfeitamente mostrar que é Deus; onde se declara Deus, também testemunha que é homem; e é por isso que esse mistério se chama uma economia e uma sábia distribuição, para nos fazer compreender, irmãos, que tudo nEle se conserva indivisível, uno, e de tal maneira regulado, que a Divindade e a humanidade (A enfermidade) se manifestam nEle integralmente. O grande papa Santo Hormisdas, extasiado com essa celeste economia, do alto da tribuna de São Pedro, donde simultaneamente educava e regia toda a Igreja, convida todos os fiéis a contemplarem com Ele esse adorável conjunto, esse misterioso equilíbrio de poder e de enfermidade. "Eis ali, diz ele aos fiéis. O que é Deus e homem, isto é, a força e a fraqueza, a baixeza e a majestade; O que foi vendido, e que nos resgata; que, preso à cruz, distribui as coroas e dá o reino eterno; enfermo que cede à morte, poderoso a quem a morte não pode segurar; coberto de chagas, e médico infalível das nossas doenças; que está no meio dos mortos, e que aos mortos dá a vida; que nasce para morrer, e que morre para ressuscitar; que desce aos infernos, e não se retira do seio de seu Pai". Juntemo-nos a esse grande papa para adorarmos humildemente as fraquezas que um Deus encarnado tomou voluntariamente por amor de nós; são elas o fundamento de toda a nossa esperança. É senão, escutai o que diz o divino Apóstolo: Non habemus pontificem: (Hebreus 4, 15) "Nós não temos um pontífice" que seja insensível aos nossos males. Porque Ele passou como nós por todas as espécies de provas, à excepção do pecado. Ainda que esta sociedade de dores não aumente o conhecimento que Ele tem dos nossos males, aumenta muito a ternura, porque Ele não se esqueceu dos longos trabalhos, nem das outras dificuldades da Sua difícil peregrinação. E que males não quis Ele suportar? O meu Salvador não evitou ao Seu corpo a fome, nem a sede, nem as fadigas, nem os trabalhos pesados, nem as enfermidades, nem a morte. Não evitou à Sua alma a tristeza, nem a inquietação, nem os longos tédios, nem as mais cruéis apreensões. Et hoc vobis signum. Ó Deus! Como Ele há de ter desejo de nos aliviar, a nós, a quem Ele vê da maior altura dos céus, açoitados pelos mesmos temporais que o flagelaram na terra! E por isso que o Apóstolo se glorifica das enfermidades do seu Mestre. Não temos um pontífice que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, etc. TERCEIRO PONTO Não há nada mais fútil do que os meios que o homem procura para se engrandecer. Está de tal maneira circunscrito e encerrado em si mesmo, que o seu orgulho sofre o vexame de se ver reduzido a limites tão estreitos. Mas como não pode aumentar a sua estatura nem a sua substância, como diz o Filho de Deus (São Mateus 6, 21) procura alimentar-se com uma vã imaginação de grandeza, acumulando à roda de si tudo o que pode. Julga que incorpora, por assim dizer, em si mesmo todas as riquezas que adquire; imagina que se engrandece, ampliando os seus aposentos magníficos (Que se enobrece com os seus aposentos magníficos) que se exalta, alargando o seu domínio, que se multiplica com os seus títulos, e finalmente que se enobrece em certo modo com esse séquito pomposo de criados que conduz atrás de si para surpreender (Para perturbar o vulgo) os olhos do vulgo. Essa mulher frívola e ambiciosa, que traz consigo o alimento de tantos pobres e o patrimônio de tantas famílias, não se pode considerar como uma pessoa particular. Esse homem que tem tantos cargos, tantas honras, senhor de tantas terras, possuidor de tantos bens, amo de tantos criados, nunca pode ser contado como um único homem; e não vê que apenas emprega esforços inúteis, visto que enfim, por muito, grandes que sejam os cuidados que ele tenha para se engrandecer e para se multiplicar de tantas maneiras e por tantos títulos soberbos, basta uma única morte para tudo destruir e um único túmulo para tudo encerrar. E todavia, cristãos, o júbilo é tão intenso e o encanto tão poderoso, que o homem não pode desprender-se destas vaidades. Ainda mais, e é este um excesso maior. Imagina ele que, se um Deus se resolve a aparecer na terra, só deve aparecer com esse aparato soberbo, como se a nossa pompa nem a nossa grandeza artificial pudessem causar algum desprazer ao que tudo possui na imensa simplicidade da Sua essência. E foi por isso que os poderosos e os soberbos do mundo acharam o nosso Salvador excessivamente demudado; o Seu presépio causou-lhes admiração, a Sua pobreza meteu-lhes medo; (Envergonhou-os) e foi este mesmo erro que deu aos judeus a impressão dessa Jerusalém fulgurante de ouro e de pedrarias, e toda essa magnificência que eles ainda hoje esperam na pessoa do seu Messias. Mas pelo contrário, senhores, se quisermos raciocinar pelos verdadeiros princípios, veremos que nada é mais digno dum Deus que vem à terra do que confundir com a Sua pobreza o fausto ridículo dos filhos de Adão, desenganá-los dos vãos prazeres que os encantam, e finalmente destruir com o Seu exemplo todas as falsas opiniões que exercem sobre o gênero humano uma tão grande e injusta tirania. Eis mais completamente a ordem que Deus nele estabelece. O mundo tem dois meios para nos cativar: tem primeiramente falsos requebros que surpreendem a nossa fraqueza; e tem também armas e terrores que fazem perder o nosso ânimo. Há homens caprichosos que só podem viver nos prazeres, no luxo e na abundância. E há outros que nos dirão: Eu não peço essas grandes riquezas, mas a pobreza não a posso suportar; eu saberei perfeitamente abster-me dos prazeres, mas as dores são para mim incomportáveis; eu não cobiço a reputação dos que vivem nos grandes artifícios do mundo, mas é duro viver na obscuridade. O mundo conquista uns, e assusta outros. Todos se afastam do caminho reto; e todos afinal chegam ao ponto em que uns, para alcançarem os prazeres sem os quais imaginam que não podem viver, e outros, para evitarem os infortúnios que lhes parecem insuportáveis, se entregam inteiramente ao amor mundano! Foi por isso, cristãos, que Jesus Cristo veio como reformador do gênero humano, como médico verdadeiro que nos vem ensinar a ciência dos bens e dos males, e remover por este meio os obstáculos que não nos deixam aproximar de Deus e contentar-nos só com Ele: Et hoc vobis signum - "E eis o vosso sinal" Ide ao estábulo, ao presépio, à miséria, à pobreza desse Deus-Menino. Não são as Suas palavras, é a Sua condição que vos aconselha e vos prescreve. Se os prazeres que procurais, se a glória que admirais fosse verdadeira, quem melhor a terá merecido do que um Deus? Ou quem mais facilmente a terá alcançado? Que multidão de guardas o haviam de rodear! Como devia de ser bela e magnífica a Sua côrte! Que purpura havia de realçar nos Seus ombros! Que ouro havia de reluzir na Sua fronte! Que delícias lhe havia de preparar toda a natureza, que tão pontualmente obedece às Suas ordens! Não foi a pobreza e a indigência que o privaram das delícias; foi Ele que voluntariamente as desprezou. Não foi a fraqueza, nem a impotência, nem qualquer assalto imprevisto da sorte inimiga que O lançou na pobreza, no sofrimento e no opróbrio; foi Ele que escolheu esta condição. Entendeu, pois, que esses bens, esses contentamentos e essa glória, eram indignos dEle e dos seus. Entendeu que essa grandeza, falsa e imaginária, depreciaria a Sua verdadeira excelência. Viu, da maior altura dos céus, que os homens apenas se deixavam dominar pelos bens sensíveis e pelas pompas exteriores. Lembrou-Se misericordiosamente de que os tinha criado no princípio para gozarem duma felicidade mais perdurável. Movido de compaixão, vem pessoalmente desenganá-los dessas opiniões não menos falsas e perigosas! Do que estabelecidas e inveteradas; e vendo que lançaram raízes tão profundas no coração humano, acode ao reverso das opiniões, para as destruir de todo, e mostra assim o pouco caso que faz delas. Tem dificuldade em achar um lugar bastantemente inferior, por onde possa dar os primeiros passos no mundo; mas encontra um estábulo abandonado e é ali que desce. Colhe tudo o que os homens evitam, tudo o que receiam, tudo o que desprezam, tudo o que lhes causa horror aos sentidos; de maneira que eu imagino o seu presépio, não como um berço indigno dum Deus, não, mas como um carro de triunfo, que conduz atrás de si o mundo vencido. Ali, estão os terrores dominados e os prazeres rejeitados, e aqui, os tormentos sofridos; e parece-me que no meio dum tão belo triunfo Ele nos diz com grande firmeza: "Tende ânimo, que já venci o mundo" - Confidite, ego vici mundum (São João 16, 33) porque pela humildade do Seu nascimento, pela obscuridade da Sua vida, e pela crueldade e ignomínia da Sua morte, baniu tudo o que os homens prezam, e aplacou tudo o que eles temem: Et hoc vobis signum - "Eis o vosso sinal para reconhecerdes o nosso Salvador" Os judeus esperam outro Messias que os há de encher de prosperidades, que lhes há de dar o império do mundo e os há de contentar na terra. Ah! Quantos judeus haverá entre nós! Quantos cristãos há que desejariam um Salvador que os enriquecesse, um Salvador que lhes satisfizesse a ambição, que lhes quisesse lisonjear as paixões ou cevar-lhes a vingança! Mas não é esse o nosso Cristo e o nosso Messias. Por que sinal O podemos reconhecer? Escutai; eu vo-lo direi pelas belas palavras de Tertuliano: Si ignobilis, si inglorius, si inhonorabilis, meus erit Christus - "Se Ele é digno de desprezo, se é humilde, se é vil aos olhos dos mortais, é esse o Jesus Christo que eu procuro". Quero um Salvador que confunda os soberbos, que amedronte os caprichosos, que o mundo deteste, que a sabedoria humana não possa compreender, que não possa ser conhecido senão pelos humildes de coração. Quero um Salvador que afronte, por assim dizer, pela Sua generosa pobreza, as nossas vaidades ridículas e extravagantes, e que, enfim, me ensine pelo Seu exemplo que nada há mais sublime do que andar com Deus e desprezar tudo o mais, E este, encontrei-O, reconheço-O por estes belos indícios. E vós também já O conhecestes, minhas queridas irmãs, visto que amastes a sua miséria, visto que a sua pobreza vos aprouve, visto que o desposastes com todos os seus cravos com todos os seus espinhos, com toda a humildade do seu presépio e todos os rigores da sua cruz. Mas nós, irmãos, que recolheremos? Há dois partidos formados: o mundo dum lado, Jesus Cristo do outro. Naquele há delícias, o regozijo, o aplauso, o favor; podereis vingar-vos dos vossos inimigos, podereis possuir, o que quiserdes, em toda a parte encontrareis um rosto jovial e um acolhimento agradável. Como os homens Vos amariam, ó meu Salvador, se lhes quisésseis dar estes bens! Como sereis um grande e admirável Salvador, se quisésseis salvar-nos da pobreza! Mas não é preciso tanto. - Permiti apenas que eu satisfaça esta paixão ou que possa vingar esta injúria. - Não, basta, que ele castigue um olhar petulante demais, uma palavra inflamada e os secretos movimentos do ódio, e da cólera. O bem doutrem, O Jubileu. Quem podia suportar um senhor tão severo? Meu Salvador, sois incompatível demais, ninguém pode conformar-se conVosco, a multidão não estará do Vosso lado. É por isso, irmãos, que Ele a despreza. Foi a multidão que Ele afogou nas águas do dilúvio; foi a multidão que Ele consumiu com o fogo do céu; foi a multidão que Ele precipitou nas ondas do mar Vermelho; foi a multidão que Ele condenou às penas eternas tantas vezes quantas vezes amaldiçoou no seu Evangelho o mundo e as Suas vaidades. Foi para devorar essa infeliz e abominável multidão nos cárceres eternos que "o inferno, diz p profeta Isaías, se dilatou desmesuradamente; e os fortes e os poderosos e os grandes do mundo precipitam-se nele de tropel" (Isaías 5, 14) Ó mundo! Ó multidão! Ó bando inumerável! Eu temo a tua sociedade funesta! O número não me defenderá do meu juiz; o grupo numeroso das testemunhas não me justificará; a minha consciência... eu receio que o meu Salvador se arvore em juiz implacável: Sicut Iaetatus est Dominus super vos bene vobis faciens atque multiplicans, sic Iaetabitur disperdens vos atque sabvertens (Deuteronômio 28, 63) Quando Deus tentar equiparar a Sua justiça com a Sua misericórdia e vingar as Suas graças tão indignamente desprezadas, eu não me sinto forte bastante para suportar o esforço temível, nem os golpes incessantemente redobrados duma mão tão áspera e tão pesada. Rio-me dos juízos dos homens mundanos e dos seus loucos pensamentos. Aspiro a ser do pequeno número daqueles que Deus há de chamar nesse dia final: Vós que vos não envergonhastes com a minha pobreza, e que não recusastes sustentar a minha cruz, pequeno número de predestinados, sociedade de escol, vinde compartilhar da minha glória, entrai no meu eterno banquete. Amai, pois, a pobreza de Jesus. Quem é que não é pobre neste mundo, um na saúde, outro na riqueza; este nas honras e aquele no espírito? Não é, portanto, neste mundo que abundam os bens. E é por isso que o mundo, pobre em efeitos, só é generoso em esperanças; é por isso que todo o mundo quer, e todos os que querem são pobres e miseráveis. Amemos essa parte da pobreza que nos coube em dote, para ficarmos semelhantes a Jesus Cristo. Cristãos, em nome de Aquele "que sendo tão rico por sua natureza, se fez pobre para vos enriquecer com a sua pobreza" (Segunda Epístola aos Coríntios, 8, 9) desenganemo-nos dos falsos bens do mundo; compreendamos que o presépio do nosso Salvador tornou para sempre ridículas todas as nossas vaidades. Sim, na verdade, ó meu Jesus Cristo Salvador, enquanto eu compreender bem o Vosso presépio e as Vossas santas humilhações, não me hão de surpreender nunca as exterioridades do mundo com os seus encantos, não me hão de fascinar com o seu ouropel; e o meu coração só se comoverá com essas riquezas inestimáveis que a Vossa gloriosa pobreza nos preparou para a felicidade eterna. Dia de Natal - 2º Sermão para o Dia de Natal Jesus Cristo estabelecido para Ruína e Ressurreição de Muitos Pregado em Meaux, no dia 25 de dezembro de 1667. Não existe manuscrito. - Foi por uma cópia do abade Ledieu, a quem Bossuet o tinha ditado para uma religiosa de Jouarre, que Déforis publicou este sermão. Como Sermão da Paixão, tem ele a vantagem de manifestar na sua forma definitiva o pensamento de Bossuet. SUMÁRIO Exordio. - Desenvolvimento do texto: Positus est hic... Proposição e divisão. - Um dos caracteres do Messias prometido a nossos pais era ser ao mesmo tempo um motivo de consolação e um motivo de contradição; uma pedra angular e uma pedra de escândalo. O que nos desagrada é: 1º a profunda humilhação da sua pessoa; 2º a verdade inexorável da sua doutrina e a grandeza da sua misericórdia. 1º Ponto. - Os filósofos da antiguidade tanto se aproximavam de Deus pela sua inteligência, como se afastavam dEle pelo seu orgulho... É o que hoje fazem muitos cristãos. A exemplo de Jesus, aniquilemos tudo o que somos, pois isso não nos causará ruína, mas dá-nos a ressurreição. 2º Ponto. - Jesus Cristo apresentando aos homens a verdade que os condenava, e apresentando-a de mais perto do que nenhum dos profetas, fizera-o com mais vivo esplendor, sublevava necessariamente contra si todos os espíritos, até aos últimos excessos. "Amado irmão, é Jesus Cristo que te ilumina ainda... caminha, pois, com o auxílio dessa luz" 3º Ponto. - Como na instituição dos Seus Sacramentos, sobretudo na instituição do Batismo e da Penitência, Jesus Cristo não quis limitar a Sua bondade, também os cristãos não quiseram limitar os seus crimes; não receiam pecar porque esperam arrepender-se um dia. "Tremei... e temei... de cometer... esse pecado contra o Espírito Santo, que não se perdoa neste mundo nem no outro" Peroração. - "Vinde contemplar os mistérios do Salvador; olhai para o lugar por onde eles vos podem causar ruína e para aqueles por onde vos podem dar consolação" Ecce positus est hic in ruinam et in resurrectionem multorum in Israel. Eis que este é enviado para queda e ressurreição de muitos em Israel (São Lucas 2, 34). Este menino que acaba de nascer, e de quem os Anjos celebram o nascimento, a quem os pastores veem adorar ao seu presépio, a quem os Magos virão em breve procurar dos extremos do Oriente, a quem vós haveis de ver dentro de quarenta dias no templo, entre as mãos do velho Simeão: "Este menino, digo eu, é enviado para queda e ressurreição de muitos em Israel", não só entre os gentios, mas também no povo de Deus e na Igreja, que é o verdadeiro Israel, "para sinal que será contradito; e uma espada trespassará a tua própria alma", e tudo isto se fará, "para que se manifestem os pensamentos ocultos, de muitos corações". A religião é um sentimento composto de temor e de alegria: inspira terror ao homem, porque ele é pecador; e inspira-lhe alegria, porque espera a remissão dos seus pecados; inspira-lhe terror, porque Deus é justo; e alegria porque é bom. É preciso que o homem trema e fique dominado de terror quando sente em si mesmo tantas inclinações perversas; mas é preciso que se regozije e que se console quando vê chegar um salvador e um médico para o curar. É por isso que o Salmista cantava: "Regozijai-vos com temor perante Deus": regozijai-vos a respeito dEle, mas temei a respeito de vós, porque ainda que Ele por si só vos dê o bem, os vossos crimes e a vossa malícia poderão talvez obrigado a fazer-vos mal. É, pois, por esta razão que Jesus Cristo é enviado não só para elevação, mas para queda de muitos em Israel. E vós não haveis de reprovar que eu antecipe este discurso profético do santo velho Simeão, para vos dar uma ideia perfeita do mistério de Jesus Cristo que hoje nasce. Um dos caracteres do Messias prometido a nossos pais era ser ao mesmo tempo um motivo de consolação e um objeto de contradição, uma pedra angular em que nós devemos firmar, e uma pedra de escândalo na qual tropeçamos e nos fazemos em pedaços. Os dois príncipes dos Apóstolos ensinaram-nos unanimemente esta verdade. São Paulo, na Epístola aos Romanos, diz: "Esta pedra será para vós; uma pedra de escândalo, e todo aquele que nele acreditar não será confundido". Ei-lo, pois, que é ao mesmo tempo o fundamento da esperança e o motivo das contradições do governo humano. Mas escutemos também o príncipe dos Apóstolos: "Eis aqui, diz ele, a pedra angular, a pedra que sustenta e que une todo o edifício; e todo aquele que acreditar no que é representado por esta pedra, não será confundido". Mas também esta é uma pedra de escândalo que faz cair ou que despedaça tudo o que nela tropeça. Mas calem-se os discípulos quando fala o mestre. É Jesus Cristo que responde aos discípulos de São João Batista: "Bem-aventurados são aqueles, diz Ele, que em mim se não escandalizarem!". Embora eu opere tantos milagres, que mostram ao gênero humano que sou o fundamento da sua esperança, muito felizes são, porém, aqueles que em mim não acharem motivo de escândalo; tal é a corrupção do gênero humano, tal é a fraqueza do órgão da vista para suportar a luz, e tal é a rebeldia dos corações à verdade! E para encaminhar esta verdade até ao primeiro princípio, é o próprio Deus que se institui para queda e ressurreição do gênero humano; porque se Ele é o objeto dos maiores louvores, também está exposto às maiores blasfêmias. E isto é como que um efeito natural da Sua grandeza, porque é absolutamente indispensável que a luz que ilumina os olhos sãos deslumbre e confunda os olhos enfermos. E Deus permite que o gênero humano compartilhe do que lhe é objeto, para que os que O servem, vendo os que O blasfemam, reconheçam a graça que os distingue e se obriguem a ser-Lhe submissos. Era, pois, em Jesus Cristo um caráter de divindade estar exposto às contradições dos homens, e servir de queda a uns e de elevação a outros. E para entrar mais profundamente num tão grande mistério, acho que Jesus Cristo é um motivo de contradição e de escândalo nas três principais situações pelas quais se declarou nosso Salvador: no estado da sua individualidade, na prédica da Sua doutrina e na instituição dos Seus Sacramentos. Que é que desagrada no estado da Sua individualidade? A Sua profunda humilhação. Que é que desagrada na Sua prédica e na Sua doutrina? A Sua severa e inexorável verdade. Que é que desagrada na instituição dos Seus Sacramentes? Di-lo-ei para confusão nossa - é a Sua bondade e a Sua própria misericórdia. PRIMEIRO PONTO "No princípio era o Verbo; e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele". Não é isto o que escandaliza os sábios do mundo; porque eles convencem-se de que Deus tudo faz pelo seu Verbo, pela sua palavra e pela sua razão. Os filósofos platônicos, diz Santo Agostinho, admiravam essa palavra e achavam-lhe grandeza, admiravam que o Verbo fosse a luz que iluminava todos os homens que vinham ao mundo; que a vida fosse nele como que um manancial que se espalhava sobre todo o universo, e principalmente sobre todas as criaturas racionais. Estava disposto a escrever em caracteres de ouro esses belos princípios do Evangelho de São João. Se o Cristianismo só tivesse de pregar essas grandes e augustas verdades, esses espíritos que se jactavam de ser sublimes teriam tido a honra de acreditar nelas e de as estabelecer, por mais inacessível que fosse a sua elevação; mas o que os escandalizou foi a continuação desse Evangelho: "O Verbo se fez homem"; e, o que parece ainda mais frágil: "O Verbo encarnou"; não puderam eles admitir que esse Verbo, de quem lhes davam uma tão sublime ideia, tivesse descido tão baixo. A palavra da cruz foi para eles loucura ainda maior. O Verbo nascido de uma mulher, o Verbo nascido num presépio, para enfim chegar à última humilhação do Verbo a expirar numa cruz, foi o que revoltou esses espíritos soberbos. Porque eles não queriam compreender que a primeira verdade a ensinar ao homem, a quem o orgulho perdera, era a humilhação. Era preciso, pois, que um Deus que viesse para ser o doutor do gênero humano, nos ensinasse a abater-nos, e que o primeiro passo a dar para ser cristão era ser humilde. Mas os homens cheios da sua vã ciência, não eram capazes de dar um passo tão indispensável. "Tantos e aproximavam de Deus pela sua inteligência, como dele se afastavam pelo seu orgulho" - Quantum propinquaverunt intelligentia, tantum superbia recesserunt, diz excelentemente Santo Agostinho. Mas, direis vós, se lhes pregavam a ressurreição de Jesus Cristo e a Sua ascensão triunfante aos céus, deviam eles compreender que esse Verbo, que essa Palavra, que essa Sabedoria encarnada era qualquer coisa de sublime. É certo; mas todo o fundo desses grandes mistérios era sempre um Deus feito homem, era um Deus que se elevava muito alto, era uma carne humana, e um corpo humano que se colocava na maior altura dos céus. Era o que lhes parecia indigno de Deus; e por muito alto que Ele subisse depois de tanto se haver humilhado, não achavam que isto fosse um remédio para a degradação que eles imaginavam na pessoa do Verbo encarnado. Foi por isso que essa pessoa adorável se lhes tornou desprezível e odiosa, desprezível porque era humilde, odiosa porque, a Seu exemplo, os obrigava à humilhação. Foi assim que Ele nasceu para queda de muitos: Positus in ruinam. Mas ao mesmo tempo é também a elevação de muitos, pois, contanto que queiramos imitar as Suas humilhações, Ele ensinar-nos-á a erguermo-nos do pó (A sair do pó. É deste modo que se diz erguemo-nos do chão) Humilhai-vos, pois, Almas cristãs, se quiserdes elevar-vos com Jesus Cristo. Mas, que infortúnio! Os cristãos tem tanta dificuldade em aprender, esta humilde lição como tiveram os sábios e os grandes do mundo. Em vez de imitar Jesus Cristo, cujo nascimento foi tão humilde, cada um se esquece da humildade do seu. Este homem que se elevou industriosamente (Pela sua astúcia, sentido do latim industria) e talvez criminosamente, pretende esquecer-se da pobreza em que nasceu. Mas os que nasceram um pouco na ordem do mundo, pensam na origem do seu nascimento, sabem quão humilde foi, quão impotente e destituído (Latim destitutus, privado, desprovido de) de qualquer auxílio é Ele propriamente? Lembram-se do que dizia, na pessoa dum rei, o divino autor do livro da Sapientia? "Eu vim ao mundo gemendo como os outros" - Primam vocem similem omnibus emisi plorans (Sabedoria 7, 3). De que pode então gabar-se o homem que vem ao mundo, visto que nasce chorando, e visto que a natureza não lhe inspira outros pressentimentos nesse estado do que o que ele tem das suas misérias? Entremos, pois, em profundos sentimentos da nossa humildade, e desçamos com Jesus Cristo, se com Ele quisermos subir. "Ele subiu, diz São Paulo, ao mais alto dos céus, porque primeiro desceu ao mais profundo dos abismos" - Quod ascendit, quid est, nisi quia et descendit primum in inferiores partes terrae? (Efésios 4, 9). Não desçamos apenas com Ele a um humilde reconhecimento das imperfeições e das humilhações da nossa natureza; desçamos até aos infernos, confessando que foi de lá que Ele nos tirou; e não somente dos infernos onde estavam as almas piedosas antes da sua vinda, ou das prisões subterrâneas onde estavam as almas imperfeitas que outrora foram incrédulas; mas das próprias profundas dos infernos onde os impios, onde Caim, onde o rico perverso eram atormentados juntamente com os demônios. É até aí que devemos descer, até a esses braseiros ardentes, até a esse caos horrível e a essas trevas eternas, visto que só lá perderíamos a Sua graça. Aniquilemos, a exemplo Seu, tudo o que somos, porque devemos considerar, meus amados irmãos, o que foi que Ele aniquilou em Si próprio. "Como estava na forma e na natureza de Deus, diz São Paulo, não imaginou o que fosse para Ele um atentado ombrear com Deus; mas Ele próprio se aniquilou tomando a forma de escravo, depois de ter sido à semelhança dos homens" - Qui quum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo; sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus (Filipenses, 2, 6-7). Não foi, pois, somente a forma de escravo que Ele como que aniquilou em si mesmo; mas aniquilou tanto quanto pôde a forma de Deus, ocultando-a sob a forma de escravo e suspendendo, portanto, a Sua ação omnipotente e a efusão da Sua glória, levando a obediência até à morte, e até à morte da cruz; (Humiliavit semetipsum factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis - Filipenses, 2, 8) levando-a até ao túmulo, e só começando a erguer-se quando chegou ao último extremo da humildade. Não pensemos, pois, em exaltar-nos mais do que Ele, senão quando tivermos experimentado a sua completa ignomínia, e quando houvermos bebido todo o cálice das suas humilhações. Então não nos servirá Ele para queda, mas para elevação, para consolação e para alegria. SEGUNDO PONTO Mas, para nos lançarmos nestas ideias profundas, deixemo-nos confundir pela verdade da Sua doutrina. Foi a segunda fonte de contradições que Ele teve de exaurir na terra. Nela só encontrou pecadores, e parecia que não deviam esses pecadores resistir a um Salvador como os doentes a um médico. Mas é que eles, sobre serem pecadores, não eram humildes. E, contudo, que havia de mais conveniente a um pecador do que a humildade e a humilde confissão das suas culpas? Foi o que Jesus Cristo não conseguiu achar entre os homens. Encontrou fariseus cheios de rapinas, de de impureza e de comoção; encontrou doutores da lei, que a pretexto de observarem os mais pequenos preceitos com uma exatidão surpreendente, violavam os maiores. E o que os sublevou contra o Filho de Deus foi o que Ele próprio disse nestas palavras: "Eu vim ao mundo como a luz; e os homens preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más, Foi por isso que Jesus Cristo foi mais do que Moisés, mais do que Jeremias, mais do que todos os outros profetas, um objeto de contradição, de murmúrio e de escândalo para todo o povo. Este é profeta ou não? Este é o Cristo? Virá o Cristo de Nazaré? Virá qualquer coisa de aproveitável da Galileia?, Quando o Cristo vier, ninguém saberá donde vem; mas nós sabemos donde vem este. É um blasfemador e um ímpio que quer equiparar-se a Deus, que aconselha a que se não respeite o sábado; É um samaritano e um cismático, é um rebelde e um sedicioso, que não deixa pagar o tributo a Cesar; é um folgazão, e um glutão, que é amigo dos lautos banquetes dos publicanos e dos pecadores; tem espírito maligno, e é em seu nome que liberta os energúmenos". Em suma, é um intrujão, um impostor; o que encerrava o cúmulo de todos os ultrajes, e o que faz também que a Ele prefiram um ladrão de estrada e um assassino. Qual dos profetas esteve exposto a mais estranhas contradições? Assim era preciso, visto que apresentando aos homens a verdade que os condenava e apresentando-a de mais perto do que nenhum dos profetas fizera e com mais vivo esplendor, sublevava necessariamente contra Si todos os espíritos, até aos últimos excessos; e foi por isso que a rebelião nunca atingiu grau superior. Ele opera milagres que nunca pessoa alguma havia operado, e não desculpava de forma alguma a infidelidade dos homens. Mas quanto mais manifesta era a convicção, mais brutal e insensata devia ser a revolta. Ora vede até onde eles levam o seu furor: havia ressuscitado um morto de quatro dias em presença de todo o povo; e não só é isto que os determina a fazê-lo morrer, mas pretendem fazer morrer com Ele o que Ele havia ressuscitado, a fim de sepultarem num mesmo esquecimento o milagre, o que o havia operado e o que era objeto dele; porque ainda que eles soubessem perfeitamente que Deus, tendo operado tão grande milagre, podia reiterá-lo quando Lhe aprouvesse, atreviam-se a confiar em que não o fazia, nem alteraria tantas vezes as leis da natureza. Eis até onde eles levam as suas maquinações; e nunca a verdade estivera mais exposta às contradições, porque nunca ela fora mais clara, nem mais convincente, nem, por assim dizer, mais soberana. Foi então que se descobriram os pensamentos que muitos haviam ocultado nos seus corações. E qual foi o negro pensamento que então se descobriu? Que o homem não pode admitir a verdade; que prefere não ver o seu pecado para ter ocasião de persistir nele, a vê-lo e reconhecê-lo para ser curado; e finalmente, que ó maior inimigo do homem é o próprio homem. É este secreto e profundo pensamento do gênero humano que devia ser revelado na presença de Jesus Cristo e à Sua luz: Ut revelentur ex multis cordibus cogitationes. Olhai, irmãos, não imiteis esses arrebatados. Tu entranhas-te no crime, pecador infeliz; e à medida que nele te entranhas, apagam-se-te as luzes da consciência; e mais uma vez se cumpre esta palavra de Jesus Cristo: "Procurais matar-me, porque a minha palavra não cabe em vós". As luzes da tua consciência e essa secreta perseguição que no teu coração ela te faz não te comovem; por isso as queres apagar. As verdades do Evangelho são para ti um escândalo; começas a combatê-las, não com razão porque a não tens, e porque "os testemunhos de Deus são muito verossímeis", mas por indiferença, por cegueira e por furor. Nos teus olhos e no fundo do teu coração só há uma luz frouxa; e a sua tibieza mostra que ela apenas brilha em ti por algum tempo: Adhuc modicum lumen in vobis est - "A luz ainda vos brilhá por algum tempo" (São João 12, 35). Além de que, meu amado irmão, é Jesus Cristo que te ilumina ainda e que ainda te fala com esse fraco sentimento; caminha, pois, com o auxílio dessa luz, para que as trevas não te envolvam. E quem anda nas trevas não sabe para onde vai; tropeça a cada passo, a cada passo topa numa pedra, e todos os caminhos são para ele precipícios. TERCEIRO PONTO Mas o que há aqui de mais extraordinário é que o último motivo do escândalo que sublevou o mundo contra Jesus Cristo, foi a Sua bondade. Se no tempo da sua paixão e em todo o curso da Sua vida foi vilmente ultrajado, foi porque "Ele se entregava à injustiça", como diz o apóstolo São Pedro - Tradebat autem judicanti se injuste; (1, Pedro, 2, 23) e deixava-Se ferir impunemente, como um cordeiro inocente se deixa tosquiar e até se deixa conduzir ao altar para nele ser degolado como uma vítima. E, se opera milagres, é para fazer bem aos Seus inimigos, e não para impedir o mal que eles Lhe queriam fazer. Foi daí que proveio o grande escândalo que o mundo viu chegar a Israel, na ocasião em que apareceu Jesus Cristo. Mas eis que o verdadeiro escândalo cai no verdadeiro Israel e na Igreja de Deus. Na instituição dos Seus Sacramentos, Jesus Cristo não quis limitar a Sua bondade, e os cristãos também não quiseram limitar os seus crimes. Arguiram o Salvador da eficácia omnipotente do seu batismo, onde todos os crimes eram igualmente expiados; e Julião o Apóstata atreveu-se a dizer que isso era o mesmo que induzir a praticar o mal. Mas a clemência do Salvador não para aqui. Novaciano e os seus sectários envergonharam-se disto, e procuraram encerrar a misericórdia do Salvador no batismo tirando todo o remédio aos que não se tinham aproveitado dele. A Igreja condenou-os, e a misericórdia que ela prega é tão sublime que ainda dá entrada para a salvação dos que violaram a santidade do batismo e mancharam o templo de Deus em si próprios. Refreemo-nos ao menos, e façamos penitência apenas uma única vez, como se fazia nos primeiros tempos. Mas a misericórdia de Jesus Cristo, irmãos, ainda vai mais longe, porque Ele não pôs limites à remissão dos pecados. Foi sem restrição que Ele disse: "Tudo o que perdoardes será perdoado, e tudo o que absolverdes será absolvido" - Quaecumque solveritis.. (São Mateus 18, 18). E a todos os seus ministros disse na pessoa de São Pedro: "Perdoareis não só sete vezes, mas até setenta vezes sete" - Domine quoties peccabit in me frater meus, et dimittam ei... usque septuagies septies (São Mateus 18, 22). É que o preço do Seu sangue é infinito; é que a eficácia da Sua morte não tem limites. E é também este o grande escândalo que aparece todos os dias em Israel. Há quem diga: Eu continuo a pecar, porque espero fazer penitência. Quão insensato é este dizer! Certamente que fazer penitência não é mais do que ter arrependimento. Ora se nós nos havemos de arrepender de ter praticado uma ação, o melhor é não a praticar. Se a praticardes, ouvimos dizer todos os dias, haveis de arrepender-vos dela. Mas para com Deus, o arrependimento é o objeto da nossa esperança; e como esperamos arrependermo-nos um dia, por isso não receamos pecar. Este absurdo pensamento devia, porém, ser igualmente revelado quando Jesus Cristo voltasse: Ut revelentur cogitationes. Mas, cristão, tu não pensas nisto quando dizes que hás de fazer penitência e que te hás de arrepender do teu desregramento e de todos os teus pecados, porque, aliás, alteras a natureza e introduzes um prodígio no mundo. Ora efetivamente o teu arrependimento não há de ser verdadeiro, pois não passará dum erro com que te hás de lisonjear no teu crime. Tremei, pois, tremei, irmãos, e temei de abusardes do espírito da penitência que vos autoriza a pecar, para depois cometerdes esse pecado contra o Espírito Santo, que não se perdoa neste mundo nem no outro. Porque enfim, se é certo que não há pecado que o sangue de Jesus Cristo não possa apagar e que a Sua misericórdia não possa perdoar, não é menos certo que haverá um que nunca será perdoado; e como não sabeis se será esse o primeiro que haveis de cometer, e que há, pelo contrário, grande motivo para recear que Deus se canse de vos perdoar visto que sempre abusais do seu perdão, receai tudo o que ofender uma bondade e que mudar em suplícios todas as graças que ela vos concedeu. Vinde contemplar todos os mistérios do Salvador; olhai para o lugar por onde eles vos podem causar ruína e para aquele por onde vos podem dar consolação e alegria; e em vez de considerardes a sua bondade como um titulo para mais facilmente o ofender, considerai-a como um motivo mais urgente para inflamar o vosso amor, a fim de que passando os vossos dias nas consolações que acompanham a remissão dos pecados, chegueis à bem-aventurada mansão donde o pecado e as lágrimas serão eternamente banidos. E esta a graça que vos desejo com a benção do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim seja..

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