Curso De Corte E Costura Para Iniciantes Em Campinas

Barnard College - A graça por Santo Agostinho, Bispo e Doutor da Igreja A NATUREZA E A GRAÇA INTRODUÇÃO 1 - Ocasião e motivação da obra Foi no Sermão 294, pronunciado em Cartago em junho de 413, durante a festa de São João Batista, que Agostinho rompeu o silêncio para criticar a doutrina de Pelágio. Até então, envolvido completamente com as questões donatistas, não tivera tempo para se dedicar à reflexão sobre as doutrinas de Pelágio. Somente dois anos mais tarde, a partir da leitura da obra pelagiana Sobre a natureza é que Agostinho se envolverá na luta contra as teses de Pelágio e seus discípulos. A ocasião e a motivação que provocaram a composição desta obra sobre A natureza e a graça estão bem explícitas nos primeiros parágrafos: "Caríssimos Timásio e Tiago, - entreguei-me a uma leitura rápida, mas cuidadosa, do livro que me enviastes (Sobre a natureza, de Pelágio). Deparei nele um homem deveras preocupado contra aqueles que, em lugar de imputar seus erros à vontade humana, inculpam a natureza do homem e nela se apóiam para se desculpar. No entanto, excedeu-se no ardor em combater essa epidemia que autores antigos censuravam com veemência...". Os monges de Adrumeto (Adrumento, hoje Susa, na Tunísia. Fundada pelos Fenícios, tornou-se cidade romana no século segundo e colonizada por Adriano. Situada a sudoeste de Cartago, foi destruída pelos Vândalos em 434) haviam recebido a obra de Pelágio Sobre a natureza. Estranhando certas afirmações aí contidas, enviaram-na, através dos monges Timásio e Tiago, a Agostinho solicitando-lhe um parecer sobre tais ensinamentos. Das respostas aos pontos errôneos ou suspeitos encontrados na obra de Pelágio, nasceu este livro sobre A natureza e a graça. Em vários outros de seus escritos, Agostinho menciona esta sua obra, o que nos ajuda a localizá-la e a compreendê-la. Na Carta 169,4 13, a seu discípulo, amigo e compatriota, bispo de Uzala, Evódio, que participou ativamente na luta contra os donatistas, Agostinho declara: "Escrevi também uma extensa obra contra a heresia de Pelágio, constrangido por alguns irmãos aos quais queria convencer de sua perniciosa doutrina a respeito da graça de Cristo". Pelo final de 415, Paulo Orósio, tendo viajado da África para a Palestina, dá a conhecer aos monges do mosteiro de Jerusalém, onde Pelágio estivera algum tempo, a obra de Agostinho: "O bem-aventurado Agostinho respondeu cabalmente ao livro de Pelágio, por indicação e pedido de seus discípulos". A obra a que se refere Orósio é A natureza e a graça. Na obra De gestis Pelagii, número 47, Agostinho registra a manifestação de profundo agradecimento por parte dos destinatários de A natureza e a graça que externavam admiração pelas respostas de Agostinho a todos os argumentos de Pelágio. Na Carta 179, a João, bispo de Jerusalém, Agostinho faz referências a esta obra. Agostinho enviara-lhe seu livro juntamente com o de Pelágio para que este pudesse ficar a par do pensamento de Pelágio. Enviou ambas as obras também ao papa Inocêncio, conforme se pode ler na Carta 177, em nome de cinco bispos africanos. A Carta 183 acusa o recebimento. Nestas duas últimas Cartas, há menção a Timásio e Tiago nos seguintes termos: "Timásio e Tiago, jovens religiosose honestos servos de Deus, os quais abandonaram o que tinham neste mundo e serviam a Deus em continência". Também nas Retratações, capítulo 62 do segundo livro, Agostinho se explica sobre a razão desta obra: "Chegou às minhas mãos um livro de Pelágio, no qual defendeu, com a mais vigorosa argumentação que lhe foi possível, a natureza humana em contraposição à graça de Deus, a qual justifica o ímpio e nos faz cristãos. Dei o título de A graça e a natureza à obra de que me servi como resposta, defendendo a graça, mas não me colocando contra a natureza, e sim mostrando que esta é libertada e se dirige por aquela". 2 - O que ensinava Pelágio? A questão de fundo à qual Agostinho tenta responder e que forma o material deste seu livro é a obra de Pelágio sobre a natureza (De natura). Escrita na Sicília, em 414, em forma de diálogo, chegou às mãos de Agostinho por intermédio dos jovens monges Timásio e Tiago. Nesta obra, Pelágio desenvolve um ensino fundando-se numa concepção de uma natureza humana sadia, vigorosa, íntegra, capaz de cumprir toda a lei, levando vida imaculada. O homem pelagiano goza de perfeito equilíbrio moral. O pecado não atinge sua natureza, mas seu mérito. Quando peca, torna-se culpável de sua má ação. Perdoado, volta à sua perfeição. Não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para o mal. Pelágio tem preocupações morais, ascéticas, não metafísicas. Considera o homem em suas possibilidades morais. Enaltece o vigor da natureza contra os cristãos indolentes, mórbidos, que queriam viver a seu modo, não seguindo os métodos necessários para alcançar as virtudes, alegando a fraqueza da natureza, a impossibilidade decumprir os mandamentos, de seguir o Evangelho. Pelágio era exigente com os que queriam seguir sua direção espiritual. Sua ética leva o germe de um idealismo moral rígido e seco. Exalta o primado e a eficácia do esforço voluntário na prática da virtude. Julga que está em poder do homem a eficácia na virtude. Basta para isso seguir o livre-arbítrio e a lei moral. Não se pode esquecer que Pelágio era monge que se escandalizou com o laxismo que, por esta época, invadia a igreja de Roma. Para ele o homem possui tudo o que é necessário para alcançar a justiça. Não há, portanto, necessidade da oração e de graças ulteriores além daquelas que Deus já pusera no homem no ato da criação. Por essa razão, sustenta a fundamental possibilidade do homem, inscrita na sua natureza, de poder orientar suas próprias escolhas segundo os mandamentos, vivendo sem pecado. Essa doutrina Pelágio a aprofundou ao tratar da criação no seu livro de 415 Sobre o livre-arbítrio. A liberdade é plantada no homem no momento da criação, como uma raiz. A graça de Deus se inscreve no ajudar as decisões do livre-arbítrio em seguir o exemplo de Cristo. A graça desempenha um papel coadjuvante, dado que a liberdade não sofreu com o pecado de Adão. Nesta perspectiva, os pelagianos davam o nome de graça de Deus à própria natureza, à liberdade, à doutrina, à lei antiga, ao Evangelho. A graça sobrenatural é desnecessária. Toda a Escritura é entendida como a revelação de uma Lei a ser observada e exemplo a imitar. Para os pelagianos, a graça é incompatível com o livre-arbítrio. 3 - O que ensinava Agostinho? Para Agostinho, a natureza merece elogios como obra saída das mãos criadoras de Deus, mas, no estado atual, acha-se enferma e debilitada devido ao pecado, necessitada de socorro divino, isto é, da graça. Esta aperfeiçoa, enobrece, cura e santifica o homem. Reconhece o valor da natureza, porém, deixada a si mesma, não tem nenhuma potencialidade, a não ser para o pecado. Deus criara, de fato, o homem com perfeição, equilíbrio e íntegro. Com a transgressão, perdeu a integridade e este despojamento foi transmitido às gerações sucessivas. Neste estado, o homem não teria salvação se não lhe fosse dada a graça de Deus. Esta é dom gratuito. Não é devida aos méritos humanos. "Gratia gratis data, unde et gratia nomiatur" (a graça é dada de graça, pelo que esse nome lhe é dado) Agostinho insiste em que a graça não é dada em recompensa a nossos méritos ou devido à nossa dignidade natural: "Trabalhei mais que todos, embora não eu, mas a graça de Deus que está comigo" (1Cor 15,10). O mérito não é fruto do ato humano, mas da ação amorosa de Deus. Do contrário, a graça não seria dom, mas soldo. "Coroando nossos méritos, o Senhor coroa seus próprios dons." Para Agostinho, a verdadeira graça é aquela obtida pelos méritos de Jesus Cristo, aquela que não é a natureza, mas a que salva a natureza. Contudo o homem não permanece meramente passivo sob a ação da graça. Há cooperação humana. A graça nos faz cooperadores de Deus, porque, além de perdoar os pecados, faz com que o espírito humano coopere na prática das boas obras: nós agimos, mas Deus opera em nós o agir. Natureza e graça não são forças que se opõem, que se destroem, mas que se irmanam, se ajudam. Assim como a medicina não vai contra a natureza, mas contra a enfermidade, a graça vai contra os vícios e defeitos da natureza. O livro sobre A natureza e a graça põe os fundamentos do adágio teológico: "a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa" (Gratia non tollit, sed perficit naturam) Contra aqueles que creem na inocência do homem, no seu poder de viver sem pecado graças a seus próprios esforços, Agostinho explora a miséria espiritual profunda do homem, tanto antes quanto depois do batismo. Antes, pelo fato da transmissão hereditária e da imputação do pecado de Adão. Depois do batismo, o homem se torna inevitavelmente pecador por força da concupiscência. Há uma espécie de necessidade de pecar. Por essa razão, o homem tem necessidade a cada instante e em cada um de seus atos de um socorro divino, da graça. A parte final do livro é dedicada à análise dos testemunhos e dos argumentos invocados por Pelágio na defesa de sua doutrina. Agostinho mostra como esses argumentos voltam-se contra o próprio Pelágio. Os três últimos capítulos revelam a preocupação pastoral de Agostinho traçando normas, dando orientação para a prática da vida na justiça de Deus. A fé se revela na prática das boas obras, na oração e no estudo das doutrinas. A melhoria do homem só advém com a ajuda da graça. Nossas obras não conseguem a graça de Deus, mas a manifestam. Assim diferem radicalmente as antropologias de Pelágio e de Agostinho e, consequentemente, suas éticas e doutrina da salvação. Agostinho não vai contra a natureza. Pelágio não vai contra a graça. Pelágio escrevera seu livro para defender a força, os dotes das condições naturais do homem. Agostinho para defender a graça, que não vai contra a natureza, mas a restaura, a salva, demonstrando que, para não tornar vã a cruz de Cristo, é preciso defender não só a natureza, mas também a graça, que cura e liberta a natureza. Pelágio e Agostinho refletem, de fato, as ideias de fundo sobre o modo de pensar o homem e, consequentemente, a graça e a liberdade do homem. Para Pelágio, que, negando o nascimento da humanidade no pecado original, negava a necessidade da redenção de Cristo, a graça era só uma ajuda externa à liberdade, ajuda no sentido dacriação, da revelação, da remissão dos pecados. A liberdade tem sua autonomia desde a criação, autonomia radical nas decisões referentes a seu destino. Para Agostinho, a graça de Deus é o bem mesmo da liberdade que, deixada a si mesma, sem o apoio da graça, deriva pelos erros e pecados. Pelágio passou para a história como "inimigo da graça", defensor da liberdade, de uma natureza humana cheia de forças e potencialidades capaz por si só de cumprir os mandamentos e atingir a perfeição: Jesus é o exemplo a ser imitado, com toda a radicalidade. Agostinho, mediante essa luta antipelagiana, conquistou o título de "doutor da graça". Foi o maior defensor da graça, mas suspeito de desvalorizar a natureza, criador de uma doutrina antropológica pessimista fundada na convicção de que, desde a queda de Adão, a natureza humana está profundamente corrompida, incapaz, por si só, de um ato bom. Fora da graça, só incertezas e misérias. A natureza é cega e corrupta. Desta polêmica nasceram as doutrinas católicas ocidentais do pecado original, da graça, da predestinação e da satisfação vicária. Capítulo 1 - Finalidade da obra: realçar o valor da graça sem desprezo à força da natureza - Caríssimos Timásio e Tiago, fazendo uma breve pausa nos trabalhos que tenho em mãos, entreguei-me a uma leitura rápida, mas cuidadosa, do livro que me enviastes. Deparei nele um homem deveras preocupado contra aqueles que, em lugar de imputar seus erros à vontade humana, inculpam a natureza do homem e nela se apóiam para se desculpar. No entanto, excedeu-se no ardor em combater essa epidemia que autores antigos censuravam com veemência, exclamando: "O gênero humano lamenta-se sem razão de sua natureza" (Salústio, no prólogo da Guerra jugurtina) (Agostinho reconhece a boa intenção de Pelágio e como é legítimo combater aqueles que se acomodam na sua tibieza, nos seus defeitos e pecados inculpando a fraqueza e a incapacidade da natureza para operar a virtude. A citação de Salústio é a prova de que este costume é antigo e se encontrava também entre os pagãos) O nosso autor, com todo o potencial de sua capacidade, tornou mais vigoroso o teor desta sentença. Temo, no entanto, que favoreça preferentemente os que zelam sem discrição pelas coisas de Deus e, ignorando a justiça de Deus e afirmando a sua própria, esquivam-se à justiça de Deus. Qual seja essa justiça, da qual fala o Apóstolo, declara-o a seguir, acrescentando: A finalidade da Lei é Cristo para justificação de todo o que crê (Rm 10,2-4) Encontra a razão de seu ser cristão quem entende que esta justiça de Deus não consiste no preceito da Lei, que infunde temor, mas na graça de Cristo, à qual o temorda Lei apenas serve de guia (Gl 3,24). Porque se é pela Lei que vem a justiça, então Cristo morreu em vão (Gl 2,21). E se Cristo não morreu em vão, é somente nele que o ímpio encontra justificação, pois em quem crê naquele que justifica o ímpio, é sua fé que é levada em conta de justiça (Rm 4,5) Sendo que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus - e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção pelo seu próprio sangue (Rm 3,23-24) Mas os que não são contados no número de todos estes que pecaram e estão privados da glória de Deus, conforme eles dizem, não precisam ser cristãos, pois não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes, visto que ele não veio chamar justos, mas pecadores (Mt 9,12-13) Capítulo 2 - A fé em Cristo é indispensável para a justificação - A natureza do gênero humano, originária da carne do único prevaricador (Visão unilateral, pois a natureza do gênero humano não é só originária da carne, mas também é obra de Deus criador, como será mostrado no capítulo 54), se tem por si capacidade de cumprir a Lei e alcançar a justiça, pode estar certa do prêmio, ou seja, da vida eterna, ainda que em algum povo e em alguma época estivesse-lhe encoberta a fé no sangue de Cristo. Com efeito, Deus não é injusto a ponto de enganar os justos com a recompensa da justiça, se não lhes foi anunciado o mistério da divindade e humanidade de Cristo, o qual se manifestou quando se revestiu da forma humana (1Tm 3,16) Pois, como haveriam de acreditar, se não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? Assim está escrito: Pois a fé vem da pregação, e a pregação é pela palavra de Cristo. Ora, acrescenta o autor do livro, será que eles não ouviram? Pela terra inteira correu sua voz; até os confins do mundo as suas palavras (Rm 10,14 17-18) Pode-se afirmar que esta profecia já se cumpriu, embora não faltem povos aos quais não chegou a pregação do Evangelho, mas estes são em pequeno número (Agostinho fala do número de nações que não conhecem o Evangelho: um pequeno número. Fala a partir do que se conhecia em seu tempo. Na verdade, deve-se inverter a afirmação: poucas nações existentes no mundo de então conheciam o Evangelho). Mas antes que isso começasse a acontecer ou antes que a pregação atinja os confins da terra, o que fará a natureza humana ou o que fez antes de ouvir o que aconteceria no futuro ou que ainda não viu cumprido o que hoje é realidade? Talvez pela fé em Deus, que fez o céu e a terra e que ela reconhece tê-la criado, ela possa cumprir sua vontade por uma vida reta, mesmo sem estar instruída pela fé na paixão e ressurreição de Cristo? Se isto foi ou é possível, eu também afirmo o que o Apóstolo disse a respeito da Lei: Então Cristo morreu em vão. Se o Apóstolo assim afirmou a respeito da Lei, a qual os judeus foram os únicos a receber, com muito mais razão se pode dizer com relação à lei natural, com a qual foi agraciado todo o gênero humano. Se a justiça vem da natureza, então Cristo morreu em vão? Porém, se Cristo não morreu em vão, ninguém pode alcançar a justificação e a redenção da ira justíssima de Deus, ou seja, do castigo, a não ser pela fé e pelo mistério do sangue de Cristo. Capítulo 3 - O pecado corrompeu a natureza humana, criada por Deus sem nenhum vício - A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício. Mas a atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentidos e inteligência (Aqui Agostinho reconhece e expressa que a "natureza do gênero humano" não é só fruto da carne, mas obra do sumo Deus criador, autor de todos os bens que esta natureza possui). O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu Criador, ao qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a condenação. Se agora somos nova criatura em Cristo, contudo éramos por natureza, como os demais, filhos da ira. Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos em nossos delitos, nos vivificou com Cristo - pela graça fostes salvos! (Ef 2,3-5) Capítulo 4 - A gratuidade da graça - Mas esta graça, sem a qual nem as crianças nem os adultos podem ser salvos, não é dada em consideração aos merecimentos (Agostinho tira conclusões do Novo Testamento, que apresenta a graça como o acontecimento da salvação. Deus salva o homem pecador por obra de Jesus Cristo. Este acontecimento é descrito de diversas formas: reabilitação do culpado, santificação do homem, vida, luz, participação na natureza divina. São Paulo insiste em que o homem é introduzido neste mistério sem méritos próprios, "sem as obras da lei", mas não mecanicamente. Deve haver um empenho do homem, embora esse empenho não seja "meritório"), mas gratuitamente, o que caracteriza a concessão como graça. Justificados gratuitamente pelo seu sangue. Assim, são dignos de justa condenação os que por ela não são libertados, seja porque não puderam ouvir, seja porque não quiseram obedecer, seja também quando pela idade não poderiam ouvir, e não receberam o banho da regeneração que poderiam receber, o qual lhes proporcionaria a salvação. Isso por que levam consigo o pecado, o qual ou contraíram pela origem ou avultaram pelos maus costumes. Sendo que todos pecaram, seja em Adão, seja em si mesmos, e todos estão privados da glória de Deus (Rm 3,23) Capítulo 5 - A condenação dos homens não é injusta - Assim, toda a raça humana merece castigo. E se todos recebessem a punição, a punição não seria injusta. Por isso os que são libertados pela graça não se denominam vasosde seus méritos, mas vasos de misericórdia (Rm 9,23). De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Cristo Jesus a este mundo para salvar os pecadores, os quais ele conheceu, predestinou, chamou, justificou e glorificou? (Rm 8,29-30) Portanto, quem é a tal ponto insensato que não renda graças inefáveis à misericórdia daquele que libertou os que quis e cuja justiça não se haveria de inculpar mesmo que condenasse todos os seres humanos. Capítulo 6 - Apresentação do pensamento de Pelágio - Se tomarmos conhecimento destas verdades pelas Escrituras, não há necessidade de disputar contra a fé cristã nem de dizer o que vamos dizer para nos empenharmos em demonstrar que a natureza humana, nas crianças, não necessita de médico, porque é íntegra, e nos adultos, que a mesma se basta para praticar a justiça, se quiser (Leia-se à frente o capítulo 51) Com muita habilidade, ao que parece, assim ensinam os pelagianos, mas também com um charlatanismo que anula a cruz de Cristo (1Cor 1,17). Esta sabedoria não vem do alto (Tg 3,15) Não quero continuar a citação, a fim de não sermos considerados injuriosos aos nossos amigos, cujos entendimentos deveras excepcionais e rápidos queremos conduzir por caminhos certos, e não por desvios. Capítulo 7 - Apresentação de algumas sentenças do livro de Pelágio - Com o mesmo zelo de que foi possuído o autor do livro, que me enviastes, contra os que se escudam na debilidade da natureza humana para se justificarem em seus pecados, pelo mesmo zelo ou até maior é mister que nos deixemos possuir para não anular a cruz de Cristo. Ficará anulada, se alguém afirmar que se pode alcançar a justiça e a vida eterna, prescindindo de algum modo do mistério da cruz. O que ensina no referido livro não digo alguém que tenha consciência do que diz, para evitar a pecha de não-cristão àquele que o escreveu; prefiro dizer ignorante, embora tenha empregado todas as duas forças. Faço votos que sejam forças próprias de uma pessoa normal, e não as que costumam demonstrar os possuídos de frenesi. - Em primeiro lugar, o autor afirma que há diferença entre "investigar se algo pode ser, o que fica somente no campo da possibilidade, e investigar se algo existe". Ninguém duvida de que é verdadeira esta distinção. Mas se é lógico que exista o que era possível, não se pode concluir que o que era possível exista. Assim, se o Senhor ressuscitou Lázaro, foi porque pôde ressuscitar. Mas se não ressuscitou Judas, poder-se-á dizer: "Não pôde?". Pôde, mas não quis. Se tivesse querido, poderia fazê-lo em virtude do mesmo poder, porque o Filho dá vida a quem quer (Jo 5,21) Prestai atenção, no entanto, aonde pretende chegar e o que pretende demonstrar mediante esta distinção lógica e clara. Diz ele: "Nós tratamos somente da possibilidade. Se não se constatar uma certeza sobre ela, ir mais adianteseria funesto e fora de propósito". E rebusca este pensamento com vários matizes, evitando que se considere como alvo de seu discurso tão-somente a possibilidade de pecar. Entre outros muitos arrazoados, diz o seguinte: "Torno a repeti-lo: Eu digo que o homem pode viver sem pecado. O que tu dizes? Que o homem não pode viver sem pecado? Eu não digo que o homem pode viver sem pecado nem tu o dizes. Discutimos sobre a possibilidade ou não-possibilidade; não discutimos sobre a realidade ou não-realidade". E na continuação lembra algumas passagens da Escritura que comumente se alegam contra ele e que considera não dizerem respeito ao assunto, no qual se discute apenas sobre a possibilidade ou não-possibilidade de o homem viver sem pecado. Cita, por exemplo: "Pois ninguém está limpo de pecado (Jó 14,4), e: Por que não há homem que não peque (1Rs 8,46), e: Por que não há homem justo sobre a terra (Ecl 7,21), e: Não há quem faça o bem (Sl 14,3). "Outras passagens semelhantes, diz ele, referem-se ao fato, não à possibilidade. Tais exemplos revelam que tipos de pessoas existiram em alguma época, e não o que puderam ser de outro modo; por isso, com razão, são considerados culpáveis. Mas se assim foram, é porque não puderam ser de outro modo, estão isentos de culpa." Capítulo 8 - A condenação atinge os que não puderam se purificar pelo batismo - Atenta para o que disse: "Eu, porém, digo que a criança nascida num lugar, onde não pôde ser socorrida pelo batismo de Cristo, surpreendida pela morte, deixou estemundo sem o banho da regeneração, porque não lhe foi possível recebê-lo". Que ele a absolva e abra-lhe o reino dos céus contra a sentença do Senhor (Jo 3,5). Mas não a absolve o Apóstolo, que diz: Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5,12) Portanto, com justiça, por esta condenação, que atinge todos os homens, não é admitido no reino dos céus aquele que não somente não é, mas também aquele que não pôde ser cristão (Afirmação dura e radical de Agostinho. Segundo esta interpretação da passagem de Paulo, vão para o inferno todas as criaturas mortas sem o batismo. Com certeza, as opiniões hoje tendem muito mais para a posição de Pelágio, mesmo entre os eclesiásticos. Para as crianças mortas sem batismo, propunha um castigo "mais suave", porém castigo. O concílio de Cartago ratificou sua opinião. Passou-se, então, à hipótese do "limbo" (limbum puerorum), hoje definitivamente descartada) Capítulo 9 - Negar a condenação é anular a cruz de Cristo - Afirmam eles: "Mas esse tal não é réu de condenação, visto que está escrito que todos pecaram em Adão não pelo pecado contraído pela origem do nascimento, mas pela imitação no pecado. Portanto, se Adão é considerado autor de todos os pecadores que lhe seguiram, porque foi entre os homens o primeiro pecador, por que não se considera Abel, em vez de Cristo, como cabeça de todos os jutos, visto que foi, entre os homens, o primeiro justo?". Mas, deixando de lado as crianças, pergunto: um jovem ou um idoso que faleceu numa região onde nãoteve a oportunidade de ouvir o nome de Cristo, pôde tornar-se justo pela capacidade da natureza ou por sua própria vontade, ou não pôde? Se dizem que lhe foi possível, eis o que é anular a cruz de Cristo, ou seja, afirmar que sem ela alguém pôde viver a justiça pela lei natural e o arbítrio da vontade. Diga-se também aqui: Portanto, Cristo morreu em vão, pois todos poderiam, mesmo que ele não tivesse morrido. E se eram injustos, foram por sua vontade, não porque não pudessem ser justos (O temor de Agostinho é que se esvazie a redenção de Cristo. Dá sempre primazia à redenção. Vê a cruz de Cristo em função da remissão dos pecados) Se, porém, não alcançou a justificação sem a graça de Cristo, absolva-o, se se atreve, conforme suas palavras: "por que se foi o que foi, não podendo ser outra coisa, estava isento de culpa". Capítulo 10 - Pelágio confessa a necessidade da graça em meio a astuciosas afirmações - Pelágio argumenta contra si mesmo, como se a objeção viesse de outro, e diz: "Pode ser certamente justo, mas pela graça de Deus, dirás". Em seguida, como que respondendo, acrescenta: "Agradeço tua delicadeza porque, não somente tiveste por bem não combater minha assertiva, que há pouco combatias, mas também recuas para não somente confessá-la, mas ainda aprová-la. Pois dizer: "Pode ser justo certamente, mas por este ou aquele meio", não significa consentir que pode ser e também mostrar como ou de que modo pode sê-lo? A melhor demonstraçãoda possibilidade de uma coisa é a formulação de suas condições, pois a qualidade exige um suporte real". Após esta afirmação, argumenta novamente para si mesmo: "Dirás: "Mas, não mencionando a graça de Deus nesta sentença, pareces rechaçá-la" ". Responde em seguida: "Eu rechaço? Eu, confessando a realidade, necessito confessar o meio pelo qual ela se realiza? Ou serás tu que, negando a realidade, negas o modo como se realiza seja o que for?". Esqueceu-se ele que responde ao que não nega a realidade e cuja objeção havia apresentado um pouco antes ao dizer: "Há possibilidade, mas pela graça de Deus". Como haveria de negar a possibilidade, pela qual tanto luta, aquele que já lhe disse: "Há possibilidade, mas pela graça de Deus"? Contudo, o que nos importa, se deixando de lado o que já confessa a realidade, enfrenta aqueles que negam ser possível ao homem viver sem pecado? Argumente contra quem quiser, contanto que confesse o que se nega com criminosa impiedade, ou seja, que o homem não pode viver sem pecado sem a graça de Deus. Pois ele diz: "Aquele que confessa a realidade, confessa também a possibilidade de o homem viver sem pecado, seja em virtude da graça, seja por uma grande ajuda, seja pela misericórdia, seja mediante qualquer outro meio adequado". Capítulo 11 - As astuciosas afirmações de Pelágio referem-se à natureza, e não à graça - Confesso-lhes, meus amigos, que, ao ler essas palavras, fui tomado repentinamente de alegria, pelo fato de ele não negar a graça, a única que pode justificar o homem. A negação da graça é o que mais me aborrece e horroriza na discussão com essas pessoas. Mas, ao ler as demais afirmações, comecei a ter suspeitas principalmente pelas comparações apresentadas. Pois ele diz: "Se eu disser: O ser humano pode disputar, a ave pode voar, a lebre pode correr, e não mencionar os meios pelos quais estes atos são possíveis, ou seja, a língua, as asas, os pés, acaso neguei a qualidade das ações, se confessei as próprias ações?". Parece que mencionou ações que podem ser realizadas por força da natureza; esses membros: língua, asas e pés, foram criados para tais naturezas. Nada, porém, citou do que queremos que se entenda com relação à graça, sem a qual o ser humano não alcança a justificação. Trata-se de curar naturezas, não de criá-las. Por isso, já preocupado, dei início à leitura do restante e percebi que não eram infundadas minhas suspeitas. Capítulo 12 - A Lei é apenas um guia. - O caminho da fé é o caminho dos que progridem - Antes de entrar no assunto, atentai para o que disse. Ao tratar da questão da distinção dos pecados, propôs a si mesmo a objeção de alguns que dizem: "Certos pecados leves não podem ser evitados, visto que caem em grande número sobre nós". E negou que sejam objeto mesmo da mais benigna correção, se não podem ser evitados. Mas ele não tem em conta as Escrituras do Novo Testamento, quando dizemos que a intenção da lei proibitiva é que se recorra à graça do Senhor misericordioso por aquilo que se comete com frequência. Pois a lei age como um guia que nos dirige na própria fé, a qual se revelou depois, e onde se perdoa o que se fez erradamente para não se fazer o mesmo com o auxílio da mesma graça. Trata-se do caminho dos que progridem, embora sejam denominados caminhantes perfeitos os que progridem como devem. A suma perfeição, a que não mais aceita acréscimos, consiste em começar a possuir o que se perseguiu como meta. Capítulo 13 - O esforço para evitar o pecado deve ser acompanhado da oração - A objeção que se apresenta a Pelágio: "Acaso vives sem pecado?", de fato não diz respeito ao assunto em que se desenvolve a questão. Mas o que ele afirma: "O fato de não se viver sem pecado, atribua-se antes à negligência de cada um", é certo realmente. Digne-se, porém, de pedir a Deus não ser vencido por esta negligência pecaminosa. A Deus rogava certa pessoa, quando dizia: "Orienta meus passos conforme tua palavra, e que maldade alguma me domine", evitando confiar no seu esforço como em suas próprias forças, o que o impediria de alcançar a verdadeira justiça tanto neste mundo como no outro, onde se deseja e se espera que seja perfeita. Capítulo 14 - Cristo foi o único isento de pecado - A objeção que lhe apresentam alguns ao dizer: "Em parte alguma está escrito com estas palavras que o homem pode viver sem pecado", ele facilmente a refuta, "pois a questão nesse caso não é saber com que palavras se expressa qualquer sentença". Contudo, talvez não sem motivo, se dê o fato de se en-contrarem nas Escrituras referências a pessoas irrepreensíveis, e não se encontrar alguém do qual se diga que não tem pecado, a não ser um único, do qual está escrito claramente: Aquele que não conhecera o pecado (2Cor 5,21). E em outra parte, ao falar dos sacerdotes, diz: Ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado (Hb 4,15), ou seja, na carne, semelhante à carne de pecado, embora não fosse carne de pecado. Não teria esta semelhança, se toda a restante não fosse carne de pecado. Nos livros que escrevi a Marcelino sobre este assunto, procurei explicar, conforme minha possibilidade, como se há de entender aquela passagem: Todo aquele que nasceu de Deus, não comete pecado, porque sua semente permanece nele (1Jo 3,9). E lá dizia eu que o mesmo João, como se não houvesse nascido de Deus, ou se dirigisse aos que ainda não tinham nascido de Deus, afirmou claramente: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós (1Jo 1,8) A afirmação "não pode pecar" tem o mesmo sentido que: "Não deve pecar"; não me parece improvável esta interpretação. Quem é insensato a ponto de dizer que se deve pecar, visto que o pecado é algo que não se deve praticar? Capítulo 15 - Interpretação pelagiana e do autor de um texto do apóstolo Tiago - As palavras do apóstolo Tiago: Mas a língua, nenhum homem consegue domá-la, na minha opinião não devem ser entendidas como Pelágio as entendeu, ou seja, "como ditas como censura", como se tivesse dito: "Portanto, nenhuma pessoa pode dominar a língua?". E como que repreendendo, dizendo: "Podeis dominar as feras, e não podeis dominar a língua? Como se fosse mais fácil domar a língua do que as feras". Não considero que seja este o sentido do texto. Se o apóstolo quisesse manifestar seu pensamento sobre a facilidade de domar a língua, o que segue àquele texto prosseguiria com semelhanças à domação das feras. Mas o que na realidade segue é: Ela é um mal irrequieto e está cheia de veneno (Tg 3,8). E de veneno mais nocivo que o das feras e serpentes, pois este é mortal para o corpo, aquele, para a alma: A boca que mente mata a alma (Sb 1,11) Portanto, São Tiago pronunciou essa sentença, ou quis com essas palavras significar, que não era mais fácil domar a língua do que domesticar as feras. Quis demonstrar que o mal da língua é tão grande no homem, que não pode ser vencido por nenhum homem, enquanto este é capaz de domar as feras. E não o disse para que permitamos o domínio do mal em nós por negligência, mas para que peçamos o auxílio da graça divina para domar a língua. Pois não disse: "Ninguém pode domar a língua", mas Nenhum homem, confessando que, ao domar a língua, reconheçamos tê-lo feito pela misericórdia de Deus, pela ajuda de Deus, pela graça de Deus. Portanto, empenhe-se a alma em domar a língua e, ao se esforçar, implore a ajuda e rogue com a língua para domar a língua, domando-a aquele que disse: Porque não sereis vós que falareis naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós (Mt 10,20). Recebemos o conselho mediante um preceito, a fim de que, se não conseguirmos cumpri-lo com nossos esforços e nossas forças, supliquemos a ajuda divina. Capítulo 16 - O domínio da língua é concessão da graça de Deus - Tendo isso em conta, o próprio apóstolo, depois de ressaltar o mal da língua, disse entre outras coisas: Ora, tal não deve acontecer. E depois de encerrar as considerações sobre a ajuda sem a qual não se poderia conseguir o que afirmou ser ilícito, advertiu na continuação: Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo bom comportamen-to e as suas obras repassadas de humildade e sabedoria. Mas, se tendes inveja amarga e preocupações egoísticas no vosso coração, não vos orgulheis nem mintais contra a verdade, porque esta sabedoria não vem do alto; antes, é terrena, animal e diabólica. Com efeito, onde há inveja e preocupações egoísticas, aí estão as desordens e toda a sorte de más ações. Por outra parte, a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, indulgente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, isenta de parcialidade e de hipocrisia (Tg 3,10 13-17) Esta é a sabedoria que doma a língua: a que desce do alto e não brota do coração humano. Alguém, levado por um acesso de soberba, ousará arrebatá-la à graça de Deus e pô-la na dependência do poder humano? Por quese há de implorar para recebê-la, se está no poder humano o possuí-la? Querer-se-á negar a necessidade da oração, como uma homenagem ao livre-arbítrio, o qual se bastaria a si mesmo para o cumprimento de todos os preceitos da justiça pela possibilidade natural do homem? Isso seria contradizer a admoestação e as palavras do próprio apóstolo Tiago: Se alguém dentre vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a concede gratuitamente a todos, sem impropérios, e ela ser-lhe-á dada, contanto que peça com fé, sem duvidar (Tg 1,5) Esta é a fé à qual os preceitos estimulam para que a Lei ordene e a fé suplique. Esta é a sabedoria que desce do alto, pois, pela língua que nenhum homem pode domar, todos nós tropeçamos frequentemente (Tg 3,2). O mesmo apóstolo expressou-se de modo idêntico, nas palavras anteriormente citadas: A língua, nenhum homem consegue domá-la (Tg 3,8) Capítulo 17 - Os pecados por ignorância - Não se argumente contra os pelagianos, para provar a impossibilidade de não pecar, com a sentença: Uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele não se submete à lei de Deus, nem o pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus (Rm 8,7-8) A sentença refere-se à sabedoria da carne, não à que desce do alto. Estão na carne não os que ainda não deixaram este mundo, mas os que vivem segundo a carne, pois é bem claro o sentido. Este argumento não se enquadra no assunto. O que espero ouvir do autor do livro é o seguinte: os que vivemsegundo o espírito, e por isso mesmo vivem neste mundo, de certo modo já não vivem na carne; vivem eles segundo o espírito pela graça de Deus, ou se bastam a si mesmos pela possibilidade natural que receberam na criação ou pela força de sua vontade? Pois assim está escrito: A caridade é a plenitude da Lei (Rm 13,10), e: O amor de Deus foi derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5) - O autor do livro trata também dos pecados por ignorância, e diz: "Não se ignore que o homem se deve precaver e que a ignorância é culpável, visto que ignora por negligência o que deveria saber, se fosse diligente". Como se vê, discorre sobre tudo, mas nada diz sobre a oração e não chega a dizer: Instrue-me para aprender os teus mandamentos (Sl 119,73). Uma coisa é não ter procurado saber, e estes pecados de negligência, ao que parece, eram expiados também por certos sacrifícios apontados pela Lei, outra coisa querer entender e não poder e proceder contra a Lei, ao não compreender o que se quer que se faça. Daí a admoestação do Senhor para se pedir a sabedoria, a qual ele dá a todos com generosidade, e a todos que assim imploram e somente imploram do modo e na medida com que se deve implorar dom tão excelente. Capítulo 18 - Pelágio não fala da necessidade da oração para evitar o pecado - Contudo, o autor confessa que "os pecados cometidos devem ser expiados com relação a Deus, e por eles se deve recorrer ao Senhor, "para merecer o perdão"; a exageradamente elogiada "força da natureza e da vontade humana" não pode, como ele confessa, "anular o que se cometeu". Resta, portanto, que nesta circunstância se peça para ser perdoado. Em parte alguma ele diz, e não vi nesta citação, o que diz respeito à ajuda para não pecar. Há um silêncio inexplicável. No entanto, a Oração do Senhor adverte que se devem implorar ambas as coisas: que se perdoem nossas ofensas e não caiamos na tentação. A primeira, para expiar os pecados passados, a segunda, para evitar os futuros. E ainda que isto não se consiga sem o concurso da vontade, contudo não basta a vontade para consegui-lo. Por isso, a oração oferecida a Deus nem é supérflua nem inconveniente. De fato, não seria um procedimento insensato implorar o que está em nosso poder realizar? Capítulo 19 - Digressão ardilosa de Pelágio sobre o pecado. - Resposta do Santo com palavras do salmista - Percebei agora - e se trata de assunto da máxima importância - como ele se empenha em apresentar a natureza humana isenta de qualquer vício, e luta contra a clareza das sentenças escriturísticas com a arma da sabedoria charlatã, que anula a cruz de Cristo (1Cor 1,17). Mas a cruz não será anulada, ao passo que a tal sabedoria perecerá. Depois de provarmos o que afirmamos, pela misericórdia divina talvez se arrependa de ter feito tais asserções. "Primeiramente, diz ele, deve-se discutir a razão pela qual se diz que a natureza foi enfraquecida e modificadapelo pecado. Daí que antes de mais nada creio ser preciso investigar o que seja o pecado: se é uma substância ou um nome totalmente sem conteúdo, mediante o qual se expressa não uma coisa, uma existência ou um corpo, mas um ato de uma má ação." Em seguida acrescenta: "Creio que tem este último significado. E se assim é, como pôde enfraquecer e modificar a natureza o que carece de substância?". Vede, eu vos peço, como sem querer se esforça por jogar por terra as vozes incontestes dos testemunhos de valor medicinal: Eu disse: Senhor, compadece-te de mim; sara-me, porque pequei contra ti (Sl 41,5) Para que é necessária a cura, se não há ferimento, lesão, debilidade ou vício? Se há algo a curar, como se viciou? Se estás ouvindo a confissão do salmista, por que procuras discussões? Ele diz: Sara-me. Pergunte-lhe como adquiriu o vício, do qual implora a cura, e ouvirás o que segue: Porque pequei contra ti. Pergunte-lhe, Pelágio, investigue junto a ele o que lhe interessa pesquisar e diga-lhe: "Tu que clamas: Sara-me, porque pequei contra ti, o que é o pecado? É uma substância ou um nome sem conteúdo, com o qual se expressa não uma coisa, uma existência, um corpo, mas o ato de uma má ação?" E ele te responderá: "É assim como tu dizes. O pecado não é uma substância, mas com esse nome se expressa o ato de uma má ação". E Pelágio retruca: "Por que clamas: Sara-me, porque pequei contra ti? Como pôde macular tua alma o que carece de substância?" E ele, envolto na tristeza de sua ferida, evitando privar-se de sua oração, se fosse discutir, não responderia com poucas palavras e diria: "Afasta-te de mim, é o que peço; se fores capaz, discute antes com aquele que disse: Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes; não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9,12-13), onde chamou justos os sãos, e doentes os pecadores?". Capítulo 20 - O pecado não é substância no mesmo sentido que o não comer não é substância - Percebeis o seu objetivo e aonde quer chegar com esta discussão? É claro que julga poder tornar sem efeito o que foi dito: E tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará seu povo dos seus pecados (Mt 1,21). Como há de salvar, se não há enfermidade? Os pecados, dos quais diz o Evangelho que se salvará o povo de Cristo, não são certamente substâncias e de acordo com sua opinião não podem macular a natureza. Ó irmão, é bom que te lembres de que és cristão. Talvez te fosse suficiente acreditar nessas verdades. Mas se queres discutir, o que não é mau, pelo contrário, é bom, quando preexiste uma fé deveras firme, investiguemos como pôde acontecer que a natureza humana se tenha viciado pelo pecado, conforme o testemunho das Escrituras, a fim de não julgares que tal não lhe tenha acontecido. Se dermos por certo que o pecado não é substância, não se diria também que o não comer, para não falar de outras coisas, não é substância? Dir-se-ia melhor que é o privar-se da substância, pois o alimento é substância. Mas o abster-se de alimento não é substância, mas a substância corporal, se se priva do alimento, de tal modo se enfraquece, deteriora-se pelo desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças, se extenua e se abate pela lassidão que, se de algum modo continua vivendo, mal poderá se acostumar novamente ao alimento, cuja abstenção foi causa de sua ruína. No mesmo sentido, o pecado não é substância. Mas Deus é substância e a suma substância e o único alimentode criatura racional. Afastando-se dele pela desobediência e não podendo tomar o que podia ser sua alegria devido à fraqueza, podes ouvir o que diz: Ressequido como a erva, o meu coração esmorece, esqueço-me até de comer o meu pão (Sl 102,5) Capítulo 21 - Argumento contra Pelágio sobre a necessidade da cura da alma pelo Médico divino - Atentai, porém, para o empenho com que avança contra a verdade da santa Escritura servindo-se de arrazoados de aparente verdade. Diz o Senhor Jesus, que por isso é chamado Jesus, que ele salva seu povo de seus pecados e o diz na seguinte passagem: Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes; não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9,12-13). Daí o dizer do Apóstolo: Fiel é esta palavra e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores (1Tm 1,15) E Pelágio, contrariando a palavra fiel e digna de toda aceitação, diz "que esta enfermidade não foi contraída pelo pecado, o que impede de se dizer que o castigo do pecado foi a comissão de muitos pecados". Também para as crianças solicita-se o socorro de tão grande Médico, e Pelágio diz: "Por que o solicitais? Esses para os quais solicitais o Médico gozam de boa saúde. Nem o primeiro homem foi condenado à morte, visto que depois não pecou". Diz isso como se tivesse ouvido algo novo sobre a perfeição da justiça do primeiro homem e não apenas o que a Igreja ensina, ou seja, que se salvou pela misericórdia de Cristo Senhor. Pelágio diz ainda: "Os seus descendentes não somente não são mais fracos do que ele, mas também cumpriram muitos preceitos, ao passo que ele negou o cumprimento de um só preceito". Mas estes descendentes ele os vê nascer do modo como Adão não foi criado, isto é, não apenas incapazes de receber preceitos, os quais absolutamente desconhecem, mas apenas capazes de sugar o seio materno ao sentir fome. Contudo, quando quer salvá-los pela sua graça, no seio da Igreja, aquele que salvou seu povo de seus pecados, esses homens o contradizem e, como se conhecessem melhor que ele a criatura que formou, asseveram com palavras insensatas que são dotados de boa saúde. Capítulo 22 - O castigo do pecado leva a outros pecados - Pelágio afirma: "O castigo do pecado constitui matéria de pecado, se o pecador se enfraqueceu a ponto de cometer muitos pecados". Não tem em conta que a luz da verdade abandonou com toda a justiça o transgressor da lei. Privado da luz, torna-se cego, e forçosamente comete mais ofensas; e, caindo, desequilibra-se, e, desequilibrado, não se levanta, a não ser que ouça a voz da lei que o estimula a implorar a graça do Salvador. Acaso não é castigo o daqueles dos quais diz o Apóstolo: Pois, tendo conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem lhe renderam graças; pelo contrário, eles se perderam em vãos arrazoados e seu coração insensato ficou nas trevas? Sem dúvida este obscurecimento já representou um castigo, e, mediante este castigo, ou seja, pela cegueira do coração que surge pelo afastamento da luz da sabedoria, caíram em muitos e graves pecados. Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se néscios. É pesado este castigo, para quem é capaz de entender, pois considerai agora onde os precipitou: E trocaram a glória de Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis. Caíram nestas abominações devido à pena do pecado, que obscureceu seu coração insensato. E devido a estes erros que, além de ser puníveis, constituem também pecados, acrescenta o Apóstolo e diz: Por isso Deus os entregou, segundo o desejo do coração deles, à impureza. Vede como Deus os condenou mais severamente, entregando-os aos desejos do coração deles e à impureza. E vede também as consequências deste castigo: Em que eles mesmos desonraram seu corpo. E demonstrando ser este um castigo da iniquidade, sendo ele próprio iniquidade, diz mais concretamente: Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram a criatura em lugar do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém. Por isso, diz ele, Deus os entregou a paixões aviltantes. Considerai agora quantas vezes Deus castiga e quão numerosos e graves pecados se originaram do castigo: Suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens. E demonstrando serem estes pecados também castigos dos pecados, acrescentou: Recebendo em si mesmos a paga de sua aberração. Eis quantas vezes Deus castiga e com o mesmo castigo que gera e multiplica pecados. Escutai ainda: E como não julgaram bom ter o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não presta: repletos de toda a sorte de injustiças, perversidade, avidez e malícia; cheios de inveja, assassínios, rixas, fraudes e malvadezas; detratores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes, fanfarrões, engenhosos no mal, rebeldes para com os pais, insensatos, desleais, gente sem dó nem piedade (Rm 1,21-31) E Pelágio diz a esse respeito: "O pecado não foi punido de modo que levasse o pecador a cometer mais pecados devido ao castigo". Capítulo 23 - A perda da graça é morte da alma. - Pelágio nada diz sobre a graça que dá a vida - Talvez ele responda: "Deus não obriga à prática dessas aberrações, mas somente abandona os que merecem ser abandonados". Se assim afirma, fala a verdade, pois, como disse eu, afastados da luz da justiça e por isso envoltos em trevas, o que hão de fazer, senão todas aquelas obras das trevas que mencionei, até ouvirem o chamado, se é que o acolherão: Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te dentre os mortos, que Cristo te iluminará? (Ef 5,14) A Verdade os chama mortos; daí suas palavras: Deixa que os mortos enterrem seus mortos (Mt 8,22). A Verdade chama mortos àqueles que no dizer de Pelágio não se arruinaram e se viciaram pelo pecado, porque descobriu que o pecado não é uma substância. Ninguém lhe disse "que o homem foi criado de modo que pudesse passar da justiça para o pecado e não pudesse passar do pecado para a justiça". Mas para passar ao pecado, bastou-lhe o livre-arbítrio e esta foi a origem de sua ruína. Contudo, a volta para a justiça exige um médico, porque não está sadio; necessita de quem lhe dê a vida, porque está morto. Ele nada diz sobre esta graça, como se o homempudesse recuperar a saúde unicamente pela força da vontade, a qual possibilitou sua ruína. Não lhe dizemos "que a morte corporal equivale ao pecado", pois é apenas o castigo do pecado. Ninguém peca pelo fato de o corpo morrer, mas equivale ao pecado a morte da alma, a qual foi abandonada pela sua vida, isto é, por seu Deus. A alma morta inclina-se à prática de obras mortas até que pela graça de Cristo receba a vida. Longe de nós dizer que "a fome, a sede e demais incômodos corporais implicam necessariamente pecado". Pois, a vida dos justos adquiriu maior brilho com esses incômodos, e, superando-os, eles alcançaram uma glória maior, mas ajudados pela graça de Deus, auxiliados pelo Espírito de Deus, amparados pela misericórdia de Deus, não se exaltando pela vontade soberba, e sim merecendo a fortaleza pela sua humilde confissão. Os justos sabiam dizer a Deus: Porque tu és minha esperança (Sl 71,5) Não percebo porque Pelágio nada diz sobre a graça, a ajuda e a misericórdia, cuja privação não nos permite viver retamente. Pelo contrário, defendendo a natureza como suficiente para a prática da justiça, contanto que não falte a vontade, contradiz abertamente a graça de Cristo que nos justifica. Contudo, já discorri, conforme minha possibilidade, nos livros que enviei a Marcelino, de santa memória, sobre a razão pela qual a morte corporal, embora venha do pecado, ainda subsiste, para exercício da fé, após a expiação do reato do pecado. Capítulo 24 - A morte do Senhor foi voluntária. - Há males dos quais Deus se serve para o bem - À afirmação de Pelágio segundo a qual o Senhor "pôde morrer apesar de não ter tido pecado", responde-se dizendo que o seu nascimento foi obra do poder da misericórdia, e não da condição natural, e que sua morte foi o preço de nossa redenção da morte. Suas discussões sobre este assunto têm a finalidade de anular a verdade que acabamos de expor, visto que toma a defesa da natureza humana de modo que liberta o livre-arbítrio da necessidade desse preço, para se passar do poder das trevas e do príncipe da morte para o reino do Cristo Senhor. Contudo, quando o Senhor caminhava para a paixão, disse: Porque vem o príncipe deste mundo, e ele não tem em mim coisa alguma, ou seja, nenhum pecado pelo qual o príncipe da morte pudesse agir usando de seu direito para dar-lhe a morte. Mas diz ainda: Mas para que o mundo conheça que amo o Pai e faço como ele me ordenou, levantai-vos e vamo-nos daqui (Jo 14,30-31), isto é, não morro pela força do pecado, mas em virtude da obediência. - Pelágio sustenta também que "mal algum é causa de algum bem". No entanto, como se o castigo fosse um bem, para muitos foi motivo de conversão. Isso quer dizer que há males que trazem proveito pela admirável misericórdia de Deus. Acaso passava por um bem aquele que disse: Mas apenas escondeste de mim o teu rosto, fiquei conturbado? Claro que não; mas esta conturbação serviu-lhe de remédio contra a soberba, pois dissera na prosperidade: Não terei jamais mudança. Atribuíra a si o que o Senhor lhe doara: que é que possuis que não tenhas recebido? (1Cor 4,7) Fora conveniente mostrar-lhe de quem recebera para que recebesse com humildade o que perdera pela soberba. E prossegue: Senhor, foi por teufavor que me concedeste honra e poderio. A prosperidade em que eu dizia: Não terei jamais mudança, vinha-me de ti, e não de mim. Finalmente, escondeste de mim o teu rosto e fiquei conturbado (Sl 30,7-8) Capítulo 25 - A oração pelos hereges é mais proveitosa do que as discussões - O espírito soberbo ignora tudo isso, mas grande é o Senhor, que o leva ao convencimento pelas vias que ele conhece. Pois somos mais inclinados a indagar o que responder ao que se argumenta contra nosso erro, do que procurar os meios adequados para evitar o erro. Por isso, com os pelagianos é melhor agir não discutindo com eles, e sim orando por eles e por nós. Não lhes objetamos o que Pelágio pôs contra si mesmo, ou seja, "que o pecado foi necessário para se manifestar a misericórdia de Deus". Oxalá não houvesse a desgraça para não se fazer necessária esta misericórdia. Um justo castigo seguiu à maldade do pecado que se revestiu de maior gravidade, considerando-se como seria fácil ao homem não pecar, visto que não se arruinou por debilidade. O castigo sobreveio para que experimentasse em si mesmo a paga correspondente a seu pecado, ao perder a obediência de seu próprio corpo por haver calcado aos pés a obediência principal devida a seu Senhor. E se agora nascemos sob a mesma lei do pecado, a qual contraria em nossos membros a lei da razão, não devemos murmurar contra Deus nem discutir sobre uma realidade tão clara, mas sim ir ao encontro da misericórdia divina e solicitá-la como remédio de nosso castigo. Capítulo 26 - Necessidade do Médico divino para o perdão dos pecados e para a perseverança no bem - Ponderai com toda atenção sobre o que ele disse: "Em caso de necessidade, Deus oferece sua misericórdia nesta situação, porque o homem precisou de socorro após o pecado, e não porque ele desejou a causa dessa necessidade". Não vedes como não diz ser necessária a misericórdia de Deus para evitarmos o pecado, mas apenas porque pecamos? Acrescenta em seguida: "E o médico deve estar pronto para curar o já ferido; não deve, porém, desejar que o são receba ferimento". Se esta comparação é adequada ao assunto em pauta, a natureza humana certamente não poderia ser vulnerada pelo pecado, não sendo ele uma substância. Portanto, assim como o que manqueia devido a um ferimento é de tal modo curado que, subsanado o mal passado, caminhe depois normalmente, assim o Médico não apenas cura nossos males de modo que deles nos libertamos, mas também que podemos fazer bem a caminhada restante, a qual, mesmo sãos, não pudemos fazer sem sua ajuda. O médico humano, após curar um cliente, entrega-o a Deus, a fim de que, fortificando-se doravante com os elementos e alimentos corporais, se processe a convalescença e se confirme a cura com os meios adequados. Pois, Deus, de quem procedem estes meios em favor dos seres viventes, oferecia os remédios também para se efetuar a cura. O médico não cura ninguém com meios criados por ele, mas se serve das riquezas daquele que cria o necessário para sãos e enfermos. O mesmo Deus, quando pelo Mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, devolve a saúde espirituala um doente ou dá vida a algum morto, isto é, justifica um ímpio, e quando o guia até se restabelecer completamente, ou seja, até uma vida de perfeita justiça, não o abandona, se não é abandonado, o que lhe possibilita uma vida piedosa e reta. Assim como o olho corporal, mesmo perfeitamente são, não pode enxergar faltando-lhe a claridade da luz, assim também o ser humano, mesmo plenamente justificado, não é capaz de uma vida reta sem a ajuda da luz eterna da justiça divina. Portanto, Deus cura não somente apagando os pecados, mas também agindo para evitarmos o pecado. Capítulo 27 - A dor se elimina com a dor, o pecado, com o pecado - O autor do livro dá voltas e voltas, maneja e remaneja as palavras e, na sua opinião, refuta e contesta a objeção que lhe propõem, ao dizerem: "Para tirar ao ser humano a ocasião de soberba e vaidade, foi necessário dissuadi-lo de que não é capaz de viver sem pecado". É absurdo e insensatez pensar "que o pecado existiu para não existir o pecado, já que a própria soberba constitui um pecado". Mas não tem em conta que a ferida consiste na dor e que a punição é dolorosa; assim a dor é aliviada pela dor. E se disso não tivesse experiência ou se tal ouvíssemos em alguma parte da terra onde isto nunca aconteceu, tomando ares zombeteiros, imitá-lo-íamos em suas palavras e diríamos que é um absurdo sem medida pensar que a dor seja necessária para eliminar a dor do ferimento. - "Mas Deus - dizem eles - tudo pode curar." A açãode Deus é certamente no sentido de tudo curar, mas age segundo seus desígnios e não recebe do enfermo a ordem de curar. Sem dúvida alguma Deus queria que fosse bem forte o Apóstolo, ao qual, porém disse: É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder. E apesar das vezes em que lhe suplicou, não afastou dele não sei que aguilhão da carne que lhe foi dado, a fim de que não se enchesse de soberba (2Cor 12,7-9) Os outros pecados são frutos de más obras, mas a soberba desenvolve-se também em meio às boas ações. Por esta razão, evitando que atribuam à sua capacidade os dons de Deus e pequem mais gravemente pelo orgulho, são admoestados pelo Apóstolo aqueles aos quais se dirige com estas palavras: Operai a vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo sua vontade (Fl 2,12-13) Por que com temor e tremor, e não com segurança, se é Deus que opera, a não ser devido ao concurso de nossa vontade, sem a qual não podemos fazer o bem e com facilidade pode-se insinuar no espírito a crença de que a boa ação se considere tão-somente obra própria e se diga no êxito: Não terei jamais mudança? Assim, aquele que por sua vontade outorgou a virtude para glória do espírito, afasta pouco a pouco sua face, e quem manifesta tanta confiança em si, fique conturbado. A estes tais deve ser extirpado com dores o tumor do orgulho. Capítulo 28 - A soberba, afastando o homem de Deus, causa o pecado - Não se deve dizer ao ser humano: "É necessário pecar para não pecar". Diga-se, no entanto: "Deus às vezes teabandona no que te provoca a soberba, para te convenceres de que não és autônomo, mas dele dependente, e assim aprenderes a vencer a soberba". Não se há de acreditar no que conta o Apóstolo a seu respeito, seja o que for, e não é admirável e não se acreditaria, se não no-lo referisse ele mesmo, o qual não é lícito contradizer, pois diz a verdade? Qual é o cristão ignorante de que a primeira sedução para o pecado veio de Satanás (Gn 3,1-6), e que ele é o primeiro causador de todos os pecados? No entanto, conforme diz o Apóstolo: Os quais (Himeneu e Alexandre) entreguei a Satanás, a fim de que aprendam a não mais blasfemar (1Tm 1,20). A obra de Satanás pode ser desfeita por obra de Satanás? Que Pelágio examine estas e outras passagens e considere demasiado engenhosas certas afirmações suas, tão-só aparentemente engenhosas, mas uma vez examinadas mostram que são infundadas. E por que quer ilustrar seu pensamento com comparações que mais nos facilitam a resposta? Ele assim discorre: "O que mais direi? Se se acredita que o fogo pode extinguir o fogo, então se há de acreditar que o pecado é remédio para o pecado". Se não se pode apagar o fogo com o fogo, pode-se - como provei - curar a dor com a dor. Com o veneno pode-se anular também a força do veneno, como ele pode averiguar e assim aprender. E se tiver em conta que às vezes o ardor da febre se atenua com o calor medicinal, talvez concorde que se pode apagar o fogo com o fogo. Capítulo 29 - Nem todo o pecado é soberba. - O sentido de "O princípio de todo o pecado é a soberba" - Pelágio pergunta: "Como se há de separar do pecado a própria soberba?". Por que esta preocupação, se está claro que a soberba é pecado? Mas ele continua: "O ato de pecar implica um ato de soberba, como o ato de soberba implica o de pecado. Examina o que é cada pecado e vê se deparas algum que não envolva o apelo da soberba". Ele desenvolve esta sentença e tenta prová-la com as seguintes palavras: "Todo pecado, se não me engano, é desprezo de Deus e todo desprezo de Deus é soberba. Que maior ato de soberba do que desprezar a Deus? Portanto, todo pecado é soberba e o confirma a Escritura, que diz: O início de todo o pecado é a soberba". Examine Pelágio com toda a atenção e encontrará na Lei profunda diferença entre o pecado de soberba e os outros pecados. Cometem-se, é verdade, muitos pecados por soberba, mas nem toda má ação é fruto da soberba, como os pecados por ignorância ou por fraqueza ou os que se cometem entre choros e gemidos. De fato, a soberba, sendo por si um grande pecado, de tal modo pode existir sem os outros, que, como antes disse, muitas vezes se imiscui e se introduz com mais rapidez não nas más, e sim nas boas ações. Por isso, está escrito com muita verdade o que Pelágio entendeu de modo diferente: O início de todo o pecado é a soberba. Ela lançou por terra o diabo, do qual se origina o pecado, e o qual, por inveja posterior, derrubou o homem, que estava em pé, da mesma posição de onde ele caiu. E a serpente procurou a porta do orgulho para entrar, quando disse: Sereis como deuses (Gn 3,5). Por esta razão está escrito: O início de todo o pecado é a soberba, e: O princípio da soberba do homem é afastar-se de Deus (Eclo 10,15 14) Capítulo 30 - O pecado é do homem e sua cura depende de Deus - O que querem dizer as palavras de Pelágio: "Como o homem pode se responsabilizar perante Deus pelo resto de pecado, que não reconhece como seu? Se é pecado necessário, não é seu. Ou se é seu, é voluntário; e se é voluntário, podia ser evitado". Respondemos: "É totalmente seu, mas a culpa com que é cometido ainda não foi sanada totalmente. O mau uso da saúde motivou seu enraizamento no homem, o qual, seja por fraqueza, seja por cegueira, se entregou a muitos pecados, uma vez debilitado. É necessária a súplica para se curar e viver depois com saúde perene. Não se dê lugar à soberba, como se ao homem devolvesse a saúde a mesma força que o levou ao pecado. Capítulo 31 - Deus cura a alma enferma e a acompanha após a cura - Na realidade, essas coisas eu disse como uma confissão de minha ignorância dos altos desígnios de Deus sobre a razão pela qual ele também não cura imediatamente a própria soberba, que penetra no espírito humano mesmo com relação às boas ações. As almas piedosas suplicam sua cura com lágrimas e grandes gemidos; imploram para que Deus estenda sua direita apoiando os esforços para superá-la e, de certo modo, calcá-la e esmagá-la. Pois, quando a alma se alegrar de ter vencido a soberba em alguma boa ação, ela da mesma alegria levanta a cabeça e diz: "Alto lá! Estou viva. Por que cantas vitória? E estou viva, porque obtiveste vitória". Talvez se compraza em cantar vitória sobre ela antes do tempo, visto que sua última sombra, conforme minha opinião, somente passará naquele meio-dia prometido no dizer da Escritura: E fará brilhar como lume a tua justiça, e o teu direito como o (sol do) meio-dia (Sl 37,6). Isto se verificará, se antes acontecer o que está escrito: Encomenda ao Senhor o teu caminho, espera nele, e ele procederá (Sl 37,5), e não como alguns pensam, ou seja, que eles mesmos o fazem. Ao que parece, as palavras: ele fará, dirigiam-se aos que dizem: "Nós mesmos o fazemos", isto é, "nós mesmos nos justificamos". É claro que nós também fazemos, mas cooperando com a obra daquele que nos antecede pela sua misericórdia. Ele nos antecede para que sejamos curados, e nos acompanha para continuarmos sãos; antecede-nos ao nos chamar e acompanha-nos até a glória; antecede-nos para que levemos a vida santamente e acompanha-nos para com ele sempre viver, porque, sem ele, nada podemos fazer (Jo 15,5). Ambas as coisas estão escritas: Venha Deus em meu auxílio (Sl 59,11) e Benignidade e graça me acompanharão todos os dias da minha vida (Sl 23,6) Descubramos-lhe, portanto, nosso caminho pela confissão, sem ter a pretensão de a louvar, defendendo-nos. Se o caminho não é dele, mas nosso, não será sem dúvida um caminho reto. Revelemo-lo pela confissão, já que não se lhe oculta, ainda que queiramos: Bom é louvar o Senhor (Sl 92,2) Capítulo 32 - O caminho da justiça exige o temor de Deus - O Senhor conceder-nos-á o que for do seu agrado, se o que em nós lhe desagrada também a nós desagrada. Ele desviará nossos passos de seu caminho, conforme está escrito (Sl 44,19), e fará com que seja nosso o seu caminho, pois todo auxílio dele procede em favor dos que nele creem e nele esperam. Esse é o caminho da justiça, ignorado por muitos que têm zelo de Deus, mas não é zelo esclarecido. Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque a finalidade da Lei é Cristo para justificação de todo o que crê (Rm 10,2-4), é Cristo, o qual disse: Eu sou o caminho (Jo 14,6) Contudo, a voz divina inspira o temor aos que andam por esse caminho de justiça, impedindo-os de se ufanarem de suas próprias forças. E o Apóstolo lhes dirige esta admoestação: Operai a vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus que opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade (Fl 2,12-13). Pela mesma razão lhes diz o salmo: Servi ao Senhor com temor e louvai-o com alegria; com tremor prestai-lhe vassalagem para que não se ire e não pereçais fora do caminho, quando daqui a pouco se incendiar a sua indignação. Não diz: Para que não se ire e não vos mostre o caminho da justiça, ou não vos introduza no caminho da justiça. Mas atemoriza os que por ele já transitam, e diz: Para que não pereçais fora do caminho. Qual é a razão desta advertência, senão a necessidade de se acautelar com relação à soberba, que, como já disse muitas vezes e hei de dizer ainda, se introduz mesmo nas boas ações, ou seja, mesmo no caminho da justiça? E a consequência não será que o homem, considerando como obra sua o que é de Deus, venha a perder a que é de Deus e seja entregue a si mesmo? Por isso orientemo-nos pela conclusão deste salmo: Bem-aventurados todos os que se acolhem a ele (Sl 2,11-13). Assim opere e em nós mostre seu caminho aquele ao qual se pede: Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia, e dê-nos a salvação para podermos caminhar aquele ao qual se suplica: E dá-nos a tua salvação (Sl 85,8). E nos conduza neste caminho aquele a quem se implora: Ensina-me, Senhor, o teu caminho, para que eu ande na tua verdade (Sl 86,11), e nos conduza às promessas aonde este caminho nos leva aquele a quem se diz: Ainda lá me guiará a tua mão, e me tomará a tua direita (Sl 139,10). Finalmente, alimente-nos sentados ao lado de Abraão, Isaac e Jacó aquele do qual se afirma: E os colocará à mesa e, passando de um a outro, os servirá (Lc 12,37) Não pretendemos suprimir a liberdade da vontade ao lembrar estas verdades, mas apenas proclamar a graça de Deus. Pois, a quem aproveitam senão ao que quer, mas quer com humildade, não se vangloriando das forças da vontade, como se elas se bastassem para alcançar a perfeição da justiça? Capítulo 33 - O próprio justo não se pode comparar a Deus. - Deus é o Criador e o Salvador da natureza humana - Longe de mim argumentar contra Pelágio com a objeção que alguns, conforme ele diz, o contradizem: "Afirmar que o homem vive sem pecado e igualá-lo a Deus". Isso porque o anjo é isento de pecado e não se pode igualar a Deus. O que digo é o seguinte: ainda que alcançássemos uma justiça tão perfeita, a ponto de não mais podermos progredir, a criatura não se igualaria ao Criador. Se alguns pensam que nossa promoção futura será tão sublime que seremos convertidos em substância de Deus, chegando a ser o que ele é, vejam como podem defender tal afirmação; de minha parte confesso que não se deve admiti-la. Capítulo 34 - Somos mentirosos, se dissermos que não temos pecado - Alguns, que combatem Pelágio, dizem: "Parece razoável o que afirmas, mas implica o pecado de soberba dizer que o homem pode viver sem pecado". Ele responde, e eu aplaudo sem restrições sua resposta, que se isso é verdade, nada envolve de soberba. Pois ele diz engenhosamente e com verdade: "A que se há de opor a humildade? Sem dúvida à falsidade, já que a soberba se opõe à verdade". Por isso, sustenta, no que está certo, que a humildade deve acompanhar a verdade, e não a mentira. Conclui-se daí que as palavras daquele que disse: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós (1Jo 1,8), refletem sem dúvida toda a verdade, a não ser que as tenha inventado sob pretexto de humildade. O apóstolo acrescentou à sua afirmação: E a verdade não está em nós, quando talvez fosse suficiente dizer: "Enganamo-nos a nós mesmos". É possível que tivesse em conta os que poderiam pensar apenas o que foi afirmado: enganamo-nos a nós mesmos, visto que também se ensoberbece quem se gloria de boas ações. Por isso acrescentou: E a verdade não está em nós, e revelou assim claramente - e Pelágio sustenta o mesmo - que não é absolutamente verdadeiro, se dissermos que não temos pecado. Não aconteça estabelecer-se a humildade ao lado da falsidade e venha a perder a recompensa da verdade. - Parece a Pelágio estar defendendo a causa de Deus, ao defender a natureza, mas não percebe que, ao afirmar a sanidade da mesma natureza, está rechaçando a misericórdia do Médico. É um só o seu Criador e o seu Salvador. Pelo que não devemos louvar o Criador a ponto de sermos constrangidos e mesmo nos convencermos a concluir sobre a inutilidade do Salvador. Exaltemos a natureza com dignos louvores e com eles celebremos a glória de Deus. Porém sejamos agradecidos pelo fato de nos criar, mas não sejamos ingratos pelo fato de nos ter curado. Com efeito, atribuamos nossos pecados, que ele cura, não à sua iniciativa, mas à vontade humana e ao justo castigo merecido. Confessemos que esteve em nosso poder não cometê-los, mas confessemos também que a sua cura depende mais da misericórdia do que de nossas forças. Pelágio faz consistir esta misericórdia e esta ajuda medicinal do Salvador somente no perdão dos pecados cometidos e nega a necessidade da ajuda para se evitar os futuros. Neste ponto se engana com funestas consequências e, embora sem perceber, proíbe-nos a oração e a vigilância para não cairmos na tentação, ao defender que o resistir-lhe está em nosso poder. Capítulo 35 - O pecado não deve levar ao desespero da salvação. - Os justos são perdoados antes de morrer - Diz Pelágio, que se considera são: "Os exemplos de certas pessoas, sobre as quais lemos que pecaram, não foram escritos para nos infundir o desespero de não pecar nem para nos dar, de certo modo, a garantia de pecar". Digo-lhe: Foram escritos para que aprendêssemos ou a humildade na penitência ou para não desesperarmos da salvação devido a tais quedas. Com efeito, alguns que caíram em pecados se perdem principalmente pelo desespero da salvação. Não somente desprezam os remédios da penitência, mas tornam-se escravos dos prazeres e de ambições criminosas como satisfação de seus desejos desonestos e abomináveis. Para eles representa uma perda, se não fizerem o que reclama a sensualidade, pois consideram garantida a condenação. Como remédio para esta doença deveras perigosa, é eficaz a lembrança dos pecados, mesmo os cometidos pelos justos e santos. - Mas o autor do livro parece fazer esta engenhosa pergunta: "O que se deve pensar? Estes santos deixaram esta vida em pecado ou sem pecado?". Se respondermos que partiram com pecado, ter-se-á por certo que foram condenados. Se dissermos que saíram deste mundo sem pecado, é preciso provar que, pelo menos na aproximação da morte, viveram sem pecado nesta vida. Mas, apesar de Pelágio ser tão vivo, não tem em conta que, não sem razão, os justos imploram na oração: E perdoa-nos as nossas dívidas, como também nós perdoamos aos nossos devedores, e que o Cristo Senhor, depois de explicar a mesma oração ao ensiná-la, acrescentou, e não se pode pôr em dúvida: Pois, se perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará (Mt 6,12 14) Com esta prece, eleva-se a cada dia até Deus um incenso espiritual no altar do coração, o qual deve estar sempre dirigido para o alto. Mesmo que não se viva aqui sem pecado, pode-se morrer sem pecado, ao ser destruído depois o que se comete por ignorância ou fragilidade. Capítulo 36 - Os santos varões e as santas mulheres do Antigo Testamento não foram isentos de pecado - Em seguida, o autor do livro menciona aqueles "que, conforme se conta, não somente não pecaram, mas viveram na justiça: Abel, Enoc, Melquisedeque, Abraão, Isaac, Jacó, Josué, Fineias, Samuel, Natan, Elias, José, Eliseu, Miqueias, Daniel, Ananias, Azarias, Misael, Ezequiel, Mardoqueu, Simeão, José, esposo de Maria, e João". Acrescenta as mulheres: Débora, Ana, mãe de Sanuel, Judite, Ester, outra Ana, filha de Fanuel, Isabel, a própria mãe de nosso Senhor e Salvador, a respeito da qual ele diz: "A piedade exige que a confessemos isenta de pecado". Excetuo a santa Virgem Maria, sobre a qual, devido à honra ao Senhor, não quero discutir, eis porque sabemos que lhe foi concedido um grau mais elevado de graça para vencer totalmente o pecado, pois mereceu conceber e dar à luz aquele a respeito do qual não consta que tivesse pecado. Mas, excetuando a Virgem Maria, se pudéssemos reunir aqueles santos e santas, como se aqui vivessem, e perguntar-lhes se estavam isentos de pecado, qual seria sua resposta no nosso modo de pensar? O que afirma Pelágio ou o que assevera o apóstolo João? Dizei-me: qualquer que tenha sido o grau de santidade, quando estavamrevestidos de corpo humano, se pudéssemos fazer-lhes essa pergunta, não bradariam a uma só voz: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós? (1Jo 1,8) Seria talvez uma resposta indicando mais humildade do que expressando a verdade? Mas Pelágio defende, e com toda a razão, "que o valor da humildade não se coaduna com a falsidade". Se aquela fosse a resposta, é porque tinham pecados. A confissão verdadeira indicaria que eram sinceros; se tivessem mentido, seriam pecadores do mesmo modo, pois não seriam sinceros. Capítulo 37 - Segundo Pelágio, o silêncio da Escritura comprova a existência de pessoas sem pecado - Afirma Pelágio: "Acaso a Escritura mencionou os pecados de todos?". Dir-lhe-ão a verdade todos os que disserem: "Não percebo que tenha dado uma resposta válida àquela objeção, embora veja que não quis ficar calado". Atentai, peço-vos, para o que afirmou: "Isto se pode dizer com verdade daqueles cujas obras más ou boas a Escritura não menciona. Daqueles, porém, cuja justiça ela lembra, lembraria também os pecados, se considerasse que os haviam cometido". Neste caso, diga-me se não era manifestação de justiça a fé dos que, em grande multidão e com aclamações, iam à frente e atrás do jumentinho do Senhor, e até no meio dos inimigos, enfurecidos por esse gesto, clamavam: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!? (Mt 21,9). Atreva-se a dizer, se for capaz, que não havia nenhuma pessoa daquela multidão da qual sepudesse dizer que não tinha pecado. E se isso seria o maior absurdo, por que a Escritura não fez menção de nenhum pecado, ao passo que se preocupou em exaltar a grande fé daqueles manifestantes? - Ele talvez tenha percebido este tipo de objeção e por isso acrescentou: "Mas, se a Escritura, em outros tempos, evitou falar dos pecados de todos devido ao seu grande número, contudo nos primórdios do mundo, quando existiam apenas quatro pessoas, por que não quis mencionar os seus pecados? Devido ao grande número? Mas não havia. Talvez tenha mencionado somente os pecados dos que os cometeram e não falou daquele que nenhum pecado cometera?". Acrescenta ainda palavras, desenvolvendo e clarificando essa sentença: "É certo que, no princípio, no tempo de Adão e Eva, dos quais nasceram Caim e Abel, havia somente quatro pessoas. Eva pecou, a Escritura o revelou; Adão também pecou, e a mesma Escritura não deixou de referir (Gn capítulo 3); a Escritura também testemunha que Caim tenha pecado (Gn 4). São mencionados não somente os pecados, mas também sua natureza. Portanto, se Abel tivesse pecado, a Escritura sem dúvida o teria dito, mas não disse. Conclui-se que ele não pecou, pelo contrário, declarou-o justo. Acreditamos por isso no que lemos; não nos é permitido admitir o que não lemos". Capítulo 38 - Os justos não foram isentos de pecado - Ao fazer estas afirmações, Pelágio não tem em conta o que dissera um pouco antes: "Uma vez propagado o gênero humano, a Escritura não pôde evitar a enumeração dos pecados de todos". Se ele houvesse refletido melhor neste assunto, perceberia que a Escritura ou não teve condições de se referir ao grande número de pecados leves mesmo de uma só pessoa, ou, se as teve, não considerou por bem fazê-lo. Pois, com relação aos que mencionou, manteve certo limite e teve como finalidade a instrução do leitor mesmo com poucos exemplos, mas necessários para os muitos objetivos. Com efeito, a Escritura não teve por bem mencionar todas as pessoas, embora ainda poucas, quantas e quais foram, ou seja, quantos filhos e filhas tiveram Adão e Eva e que nomes receberam. Por isso, alguns, não reparando nas lacunas da Escritura, julgaram que Caim teve relação sexual com a mãe, nascendo assim a prole ali mencionada. Pensaram que os filhos de Adão não tiveram irmãs, visto que a Escritura silencia aquela passagem, mas depois, recapitulando, apresenta o que omitira, dizendo que Adão gerou filhos e filhas (Gn 5,4). Mas não revela o tempo de seu nascimento nem o número nem seus nomes. Esta consideração leva-nos a concluir que não haveria de referir se Abel, embora com razão chamado justo, alguma vez riu imoderadamente, ou se se excedeu em gracejos, ou se viu algo seguindo-se maus desejos, ou se se deixou levar pela avidez em colher frutos da terra, ou se se deixou vencer pela gula, ou se na oração teve pensamentos que o distraíssem, e quantas vezes cometeu estes ou semelhantes deslizes. Não são estes os pecados dos quais nos devemos precaver e nos coibir, conforme a admoestação do Apóstolo, quando diz: Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões? (Rm 6,12). Para não nos sujeitarmos a elas com relação ao que não é lícito ou menos lícito, é necessário o combate cotidiano e constante. Mediante esses pecados, os olhos vão e vêm em direção ao que não convém. E se este pecado ganhar força e dominar, pode-se chegar ao adultério corporal, o qual se comete no coração com tanta rapidez quanto é rápido o pensamento, pois não se lhe opõe nenhum obstáculo. Mereceram também ser chamados justos, mas o deveram à ajuda da graça de Deus, aqueles que se reprimiram em grande parte com relação a este pecado, ou seja, a esta inclinação dos afetos pecaminosos a ponto de não obedecerem a seus desejos e não lhe oferecerem os membros como armas da iniquidade. Mas como o pecado se introduz muitas vezes por inadvertência em matéria leve, pode-se dizer que foram justos, mas não foram isentos de pecado. Finalmente, se o amor de Deus, o único que justifica todo aquele que é justo, apresentava-se no justo Abel como suscetível de crescimento, como possibilidade e obrigação, isso significava que procedia da inclinação pecaminosa o fato de o ter de menos. E em quem ele não é perfeito até chegar àquela fortaleza, onde se esvanece toda a fraqueza humana? Capítulo 39 - Contra seus próprios princípios, Pelágio não lê as provas da Escritura sobre o pecado do homem - Pelágio concluiu aquela passagem com uma pomposa sentença, ao dizer: "Portanto, acreditemos no que lemos, e não nos é permitido afirmar o que não lemos; é suficiente o que disse a respeito de tudo". Eu digo o contrário, ou seja, que não devemos crer em tudo o que lemos em razão do que diz o Apóstolo: Discerni tudo e ficai com que é bom (1Ts 5,21), e que não é crime afirmar algo que não lemos. Isso porque podemos afirmar de boa-fé algo de que tivemos experiência, ainda que não tenhamos lido. Pelágio, neste caso, talvez responda: "Ao falar assim, referia-me às santas Escrituras". Oxalá fosse assim, isto é, que não admitisse não digo o que não se encontra nesses livros, mas, pelo contrário, nada em contrário ao que se lê. Ouviria com fidelidade e obediência o que está escrito: Por meio de um homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5,12), e assim não rebaixaria a graça de tão excelente Médico ao não querer confessar que a natureza humana está corrompida. Oxalá lesse com olhos de cristão que, além de Jesus Cristo, não há sob o céu outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos (At 4,12), e não defendesse a eficácia da natureza humana a ponto de querer convencer que o homem pode alcançar a salvação pela força do livre-arbítrio. Capítulo 40 - Para a prática da justiça é necessário o auxílio da graça, e não apenas a doutrina evangélica - Talvez ele pense que a necessidade do nome de Cristo se restrinja à aprendizagem pelo Evangelho acerca de como devemos viver, e não signifique a necessidade do auxílio de sua graça para bem vivermos. Pelo menos chegue a confessar que o espírito humano está cercado de trevas deploráveis, e que o homem, embora saiba domar um leão, ignora como deve viver. E para alcançar este conhecimento bastam-lhe o livre-arbítrio e a lei natural? Tal é a sabedoria charlatã que anula a cruz de Cristo. Mas aquele que disse: Destruirei a sabedoria dos sábios, destrói também essa sabedoria pela loucura da pregação que cura os doentes, pois essa cruz não pode ser anulada. Se as forças do livre-arbítrio fossem suficientes para se saber como se deve viver e para bem viver, então Cristo morreu em vão (Gl 2,21), portanto, estaria eliminado o escândalo da cruz (Gl 5,11) Por que não gritarei eu também? Sim, gritarei e os exprobarei tomado de profunda dor cristã: Rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da graça (Gl 5,4); desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Para o que crê, e em ordem à justiça, Cristo Salvador é a finalidade da Lei e o é também da natureza humana corrompida (Rm 10,3-4) Capítulo 41 - O sentido do termo "todos" em sentença do Apóstolo - A passagem, de que Pelágio se serviu para argumentar contra si mesmo pela boca de seus adversários: Visto que todos pecaram (Rm 3,23), refere-se claramente aos que então existiam, isto é, aos judeus e pagãos. Mas as palavras do texto que antes citei: Como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5,12), atingem os mais antigos e os mais recentes, a nós e os que virão depois de nós. Ele aduz também um testemunho para provar que o termo "todos" nem sempre deve ser entendido como sem nenhuma exceção. O texto é este: Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra da justiça de um só, resultou para todos os homens a justificação que traz a vida (Rm 5,18). E argumenta assim: "Ora, é inegável que, pela justiça de Cristo, nem todos foram santificados, mas somente os que quiseram obedecer e foram purificados pela ablução do batismo". Este testemunho não prova o que pretende. Pois assim como se afirmou: Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, não havendo exceção, assim pelo que está escrito: da obra da justiça de um só resultou para todos a justificação que traz a vida, sem exclusão de ninguém. Isso não porque todos nele creem e são purificados pelo batismo, mas porque ninguém se justifica sem nele acreditar e sem o banho batismal. Assim, está escrito "todos", a fim de que não pense que alguém possa se salvar a não ser por ele. Assim como dizemos a respeito de um único professor existente numa cidade: "Ele a todos ensina as letras", não porque todos os cidadãos aprendem as letras, mas porque só aprende quem ele tiver ensinado. Do mesmo modo, ninguém é justificado, se Cristo não o justifica. Capítulo 42 - A possibilidade de uma vida sem pecado não é assunto de discussão - Pelágio assim se expressa: "Concordo em que a Escritura declara que todos foram pecadores. Porém diz o que foram, mas não que poderiam ser de outro modo. Pelo que, embora se possa provar que todos os homens foram pecadores, isto não contraria a nossa sentença, pois defendemos não tanto que os homens foram, e sim o que poderiam ser". A sentença revela que às vezes concorda em que nenhum vivente é justo na presença de Deus (Sl 143,2). Mas contrapõe dizendo que a questão não reside neste ponto, e sim na possibilidade de não pecar, a respeito da qual não é necessário disputar. Não me preocupo muito se existiram neste mundo ou se existem ou possam existir alguns que tiveram ou tenham ou hão de ter uma caridade tão perfeita que não admita crescimento (pois nela consiste a mais verdadeira, plena e perfeita justiça) Não devo estender-me muito sobre o quando, onde e em que pessoas se verifica o que confesso e defendo como possibilidade para a vontade humana ajudada pela graça de Deus. E não discuto também acerca da possibilidade, quando ela se mostra realizada nos santos após a cura da vontade humana e recebendo a ajuda, contanto que a caridade divina se difunda em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado (Rm 5,5), à medida que é capaz nossa natureza restabelecida e purificada. Portanto, melhor se abraça a causa de Deus (pela qual Pelágio afirma estar lutando, quando defende a natureza), quando ele é reconhecido tanto como Criador como Salvador, do quequando se declaram inúteis os socorros do Salvador, ao se defender a sanidade e a integridade das forças da criatura. Capítulo 43 - O homem, jogado à beira da estrada, necessita do remédio divino - Contudo é verdade o que afirma: "Deus, tão bom quanto justo, criou o homem com capacidade de viver sem o mal do pecado, mas se ele tivesse querido". Quem ignora que o homem foi criado são e sem culpa e dotado de livre-arbítrio e de capacidade para viver na justiça? Mas agora se trata do homem semivivo abandonado pelos ladrões à beira da estrada, incapacitado de alcançar o cume da justiça, maltratado e dilacerado que está pelos graves ferimentos. Se já se encontra recolhido na hospedaria, ainda há possibilidade de se curar (Lc 10,30-34) Portanto, Deus não manda o impossível, mas, ao impor o preceito, admoesta a fazeres o que está a teu alcance e a suplicares o que não te é possível. Mas vejamos agora o que pode e o que não pode. Pelágio diz: "Não será por força da vontade o que é inerente à natureza". Eu digo: O homem certamente não se justifica por força da vontade, mas com o remédio ser-lhe-á possível o que não o é devido à culpa. Capítulo 44 - Assentamento da questão entre pelagianos e católicos - Qual a necessidade de nos determos mais? Venhamosao cerne da questão, o único, ou quase único, objetivo da discussão que sustentamos com eles. Como Pelágio afirma que "não concerne ao assunto em pauta, se existiram ou existem pessoas que conseguiram ou conseguem viver sem pecado nesta vida", eu, de minha parte, concordaria que existiram ou existem, mas confirmo que foram ou são capazes, uma vez justificados pela graça de Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor e este crucificado. Pois, esta foi a fé que curou os antigos e também nos cura, isto é, a fé no Mediador de Deus e dos homens, o homem Jesus Cristo: fé no seu sangue, fé na cruz, fé na sua morte e na sua ressurreição. Por conseguinte, tendo o mesmo espírito de fé - cremos também nós, e por isso falamos (2Cor 4,13) - Atentemos para o que Pelágio responde à questão que propõe a si mesmo, a qual não é admissível para os corações cristãos. Ele diz: "Mas é isto que a muitos perturba, tu dirás, ou seja, que sustentas a possibilidade de o homem viver sem pecado não contando com a graça de Deus". De fato, é isso que perturba, é isso que reprovamos. Ele diz isso mesmo e nós absolutamente não defendemos essa doutrina. Por isso, pelo amor que alimentamos para com os outros e para com eles mesmos, não consentimos que entre cristãos se discuta sobre esses ensinamentos. Ouçamos, pois, como se desenreda da objeção que lhe apresentam no tocante a esta questão. Ele diz: "Ó cegueira da ignorância! Ó desídia da mente rude! Como pensar em defender sem a graça de Deus o que, conforme se sabe, deve-se atribuir somente a Deus?". Após ouvir estas palavras, se ignorássemos o que vem em seguida, poderíamos pensar que formamos deles uma falsa opinião, levados pelo murmúrio da fama e apoiados em depoimentos de alguns irmãos que se apresentaramcomo testemunhas idôneas. De fato, o que se pode dizer com maior brevidade e total verdade que a possibilidade de não pecar, por maior que exista e/ou existirá no homem, somente a Deus se deve atribuir? Isto é o que nós também ensinamos; demo-nos as mãos. Capítulo 45 - Discussão de sentenças e comparações de Pelágio sobre o poder da natureza - Devemos ouvir o restante? Claro que sim e também corrigi-lo ou dele nos precavermos. Pois ele prossegue: "Quando se diz que o homem é capaz, não o atribuímos ao livre-arbítrio, contudo ao autor da natureza, ou seja, Deus. Haverá alguém que entenda que se possa conseguir sem a graça de Deus o que se considera pertencer propriamente a Deus?". Já começa a deixar transparecer seu pensamento; mas, para não nos enganarmos, que ele o explicite de modo mais claro. E então dirá: "Mas para esclarecer o que afirmamos, é preciso alongar o discurso. E diremos que a possibilidade de qualquer coisa reside antes na força da natureza de que no poder do livre-arbítrio". E ilustra sua afirmação com exemplos e comparações, e diz: "Por exemplo, eu posso falar. Que eu possa falar, não depende de mim. O que eu falo, pertence a mim, isto é, à minha vontade. E como o que eu falo pertence a mim, posso fazer ambas as coisas, ou seja, falar e não falar. Mas como a faculdade de falar não depende de mim, isto é, do meu arbítrio e vontade, é necessário que eu sempre possa falar, e, se eu quiser, posso não falar, mas não posso menos de poder falar, a não ser que me prive do órgão que me permite falar". Eu digo que há outros modos que levam a pessoa, se quiser, a perder a possibilidade de falar, não sendo preciso perder o órgão da locução. Como, por exemplo, se a pessoa for acometida de afonia, não poderá falar, embora não perca os órgãos da fala, pois a voz humana não é órgão. Acontece o mesmo quando se lesa um órgão interior, sem que seja perdido. Porém, para que não se pense que me oculto em palavras e se diga a mim como réplica que lesar é o mesmo que amputar, adianto que se pode ficar sem fala, quando se fecha e obstrui a boca mediante qualquer ligadura, que impede o poder abri-la. E o abri-la não depende de nós, ao passo que esteve em nosso poder fechá-la sem nenhuma alteração dos órgãos. Capítulo 46 - A vontade não está em luta com a necessidade - Contudo, o que nos interessa esta questão? Vejamos o que invoca na continuação: "Priva-se do arbítrio da vontade e da deliberação tudo o que fica restringido por uma necessidade natural". Neste ponto há alguma coisa que discutir. Pois é absurdo dizer que não é próprio de nossa vontade o querer ser felizes, porque desconheço a tal força da natureza que nos leve a deixar de querer. E não teremos o atrevimento de dizer que em Deus a justiça não é um ato da vontade, e sim uma necessidade natural, porque não pode não pecar. Capítulo 47 - Apresentação das comparações de Pelágio e sua refutação pelo autor - Atentai para o que diz em seguida: "Pode-se pensar assim a respeito da audição, do olfato ou da visão, porque depende de nós ouvir, cheirar ou ver. Porém o poder ouvir, cheirar ou ver não está em nosso poder, mas é consequência de uma necessidade natural". Ou eu não entendo o que diz ou ele não sabe o que está dizendo. Como não depende de nós o poder ver, se está em nosso poder a necessidade de não ver, visto que depende da cegueira, que faz perder a capacidade da visão, se nós quisermos provocá-la em nós? Como dizer que está em nosso poder o enxergar, se o quisermos, quando, ainda que permanecendo íntegra a natureza de nosso corpo e de nossos olhos, não podemos fazê-lo, ainda que queiramos, ao se retirar, à noite, de nossa presença os focos de iluminação ou ao nos fecharem em lugar escuro? Da mesma forma, se o poder ouvir ou não ouvir não depende de nós, mas é imposição da natureza, e se o ato de ouvir ou de não ouvir depende de nossa vontade, porque ouvimos sem querer tantos ruídos que penetram em nosso sentido, ainda que tapados os ouvidos, como é o ruído de uma serra ou o grunhir dos suínos? Embora a obstrução dos ouvidos mostre que não está em nosso poder não ouvir com os órgãos abertos, a tal obstrução que afeta o próprio sentido da audição faz com que esteja ao nosso alvitre também o não poder ouvir. Sobre o que diz do olfato, porventura não refletiu superficialmente ao afirmar que "não depende de nós o poder ou não poder cheirar, mas depende de nós", ou seja, da livre vontade, "o cheirar ou não cheirar"? Pois, quando somos obrigados a permanecer em locais com odores intensos e molestos e com as mãos amarradas, mesmo estando com os órgãos em perfeito estado, se quisermos não aspirar o cheiro, não podemos, visto que somos obrigados a respirar e assim aspiramos o cheiro contra nossa vontade. Capítulo 48 - A natureza humana é impotente para garantir o não pecar e o poder não pecar - Assim como são falsas estas comparações, é falsa também a razão de seu emprego. Ele prossegue e diz: "De modo semelhante se há de entender sobre a possibilidade de não pecar, pois o não pecar depende de nós, ao passo que o poder não pecar não depende de nós". Se falasse do homem ainda dotado de natureza íntegra e pura, de que agora estamos privados (pois fomos salvos em esperança, e ver o que se espera, não é esperar... E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos - Rm 8,24-25), se falasse com essa ressalva, repito, mesmo assim não seria correto afirmar que não pecar depende somente de nós, embora o ato de pecado seja nosso. Pois, nesse caso teríamos a ajuda de Deus a se oferecer aos de boa vontade, como a luz se apresenta aos olhos sãos possibilitando a visão com sua ajuda. Mas como o autor se refere a esta vida, em que o corpo corruptível é um peso para a alma e esta morada terrestre abate o espírito que pensa muitas coisas (Sb 9,15), ficopasmado ao ver a audácia com que sustenta o não pecar como dependendo de nós sem o auxílio medicinal de nosso Salvador, e defenda a possibilidade de não pecar à eficácia da natureza. Esta natureza apresenta-se tão decaída, que não reconhecê-lo é o maior pecado. Capítulo 49 - A eficácia da natureza é ineficiente para a vida sem pecado - Pelágio afirma: "Pois, o não pecar depende de nós, visto que podemos pecar e não pecar". O que ele responderia, se alguém dissesse: "Pelo fato de estar em nosso poder não desejar a infelicidade, podemos não querê-la e querê-la?". No entanto, não a podemos desejar de modo algum. Quem pode querer ser infeliz, ainda que deseje algo ao qual vem anexa a infelicidade? Além disso, como é mais próprio de Deus não pecar, teremos a ousadia de dizer que ele pode pecar e não pecar? Longe de nós dizer que Deus pode pecar. Pelo fato de não poder morrer nem se contradizer, por isso Deus não deixará de ser onipotente, como pensam os néscios. O que ele quer dizer e que meios expositivos quer empregar para convencer o que ele não quer reparar atentamente? Pois acrescenta ainda e diz: "Porque o poder não pecar depende de nós, e se quisermos não poder não pecar, não podemos não poder não pecar". É uma afirmação cheia de embustes e, por isso, ininteligível. Poderia ter dito com mais clareza: "Porque poder não pecar, depende de nós; se quisermos ou não, podemos não pecar". Ele não diz: queiramos ou não, não pecamos; pois não há dúvida que pecamos, se queremos. Mas afirma que, queiramos ou não, temos a possibilidade de não pecar, a qual ele estabelece como inserida na natureza. Mas é de certo modo razoável dizer de uma pessoa com pernas perfeitas que, queira ou não, tem a possibilidade de andar. Tendo-as, porém, fraturadas, não tem a possibilidade, mesmo se quiser andar. De modo semelhante está prejudicada a natureza à qual ele se refere. Por que se ensoberbece a terra e a cinza? (Eclo 10,3) Porque está decaída, implora o socorro do Médico e exclama: Salva-nos, Senhor (Sl 12,2). E ainda: Sara-me (Sl 41,5). Por que Pelágio abafa estes clamores e, ao defender a possibilidade atual, impede a sanidade futura? Capítulo 50 - A possibilidade de não pecar não está entranhada na natureza - Vede agora o que ele acrescenta com a finalidade de confirmar o anterior. Diz ele: "Porque vontade alguma pode deixar perder o que está entranhado insepara-velmente na natureza". Então, por que se fez ouvir aquela voz: Não fazeis o que quereis? (Gl 5,17). E aquela outra: "Pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto? Onde está a possibilidade que se supõe entranhada na natureza de modo inseparável? Estas expressões falam de pessoas que fazem o que detestam, e se trata de não pecar, não, porém, de voar, pois não eram aves. Falam de um homem que não pratica o que quer, mas faz o mal que aborrece: O querer está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo (Rm 7,15-18) Onde está a possibilidade que se considera inerente à natureza de modo inseparável? Se o Apóstolo não fala de si mesmo, mas refira-se a quem quer que seja, certamente supõe uma pessoa. Pelágio, no entanto, defende, como inerente à natureza humana de modo inseparável a possibilidade de não pecar. Mas ignorando quem ali se expressa com tais palavras, não o ignora, no entanto, quando insinua essa doutrina aos incautos ainda que tementes a Deus. Seu objetivo é anular a graça de Cristo ao proclamar a natureza como autossuficiente para alcançar a justificação. Capítulo 51 - Pelágio prefere atribuir a Deus a possibilidade de não pecar de modo indireto, mediante a natureza - Para acalmar a animosidade com que os cristãos levantam a voz e objetam: "Por que afirmas que o homem pode não pecar sem a ajuda da graça de Deus?", ele responde: "A possibilidade de não pecar não reside tanto no poder da vontade, como na necessidade da natureza. Tudo o que faz parte da necessidade da natureza, não há dúvida que pertence ao autor da natureza, ou seja, Deus". E diz ainda: "Como se há de considerar alheio à graça de Deus o que se comprova pertencer a Deus?" (Pelágio compreende a graça de Deus incrustada na própria natureza uma vez que esta é obra de Deus. Concepção de uma natureza forte, que não foi abalada, debilitada pelo erro de Adão. Para Agostinho, ao contrário, após o pecado de Adão, a natureza está irremediavelmente enfraquecida, debilitada, incapaz por si mesma de qualquer ato bom) A sentença que ocultava sai agora à luz; não havia como poder escondê-la. Com aquelas sentenças atribui à graça de Deus a possibilidade de não pecar, porque Deus é o autor da natureza, à qual ele declara inserida de modo inseparável a possibilidade de não pecar. Portanto, quandoo homem quer, faz; porque não quer, não faz. Existindo esta possibilidade inseparável, não é possível pensar em debilidade da vontade, ou antes, em cooperação da vontade e em carência de perfeição. Se assim é, por que está escrito: O querer está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo? Se o autor do livro se referisse à natureza do homem criada no princípio sem culpa e pura, aceitar-se-ia de certa maneira o que afirmou (Agostinho reafirma sua concepção historicizada de uma existência humana pura, enriquecida de dons preternaturais no Éden. Contudo, os "dons preternaturais" nunca foram "de fé". O que Adão perdeu foi a orientação a uma meta, mais que uma realidade de origem). Mas não se pode dizer que tenha possibilidade inseparável, ou, por assim dizer, inamissível, uma natureza que podia manchar-se pela culpa e reclamar um Médico que curasse os olhos do cego e restituísse a visão perdida pela cegueira. Pois considero cego o que quer ver, mas não pode; mas se quer, e não pode, permanece a vontade, mas perdeu a possibilidade. Capítulo 52 - A carne é contrária ao espírito também nos batizados - Vede ainda que barreiras se esforça por derrubar na procura de um caminho por onde possa conduzir sua sentença. Opõe a si mesmo a questão, ao dizer: "Mas a carne, conforme o Apóstolo, tem aspirações contrárias a nós (Gl 5,17), tu dirás". E responde na continuação: "Como é possível que em qualquer batizado a carne tenha aspirações contrárias, se, conforme o mesmo Apóstolo, o cristão não está na carne? Pois, assim diz ele: Vós não estais na carne" (Rm 8,9) (No contexto deste versículo, Rm 8,1-11, Paulo salienta a qualidade de vida dos que estão em Cristo e dos que vivem na carne. Os que estão em Cristo não são governados pela lei, nem pela carne, nem pelo pecado, mas pelo Espírito. Carne não significa a substância física, mas aquilo a que estávamos sujeitos antes de Cristo. É a esfera na qual o poder do pecado reina Depois da ressurreição de Cristo, existem duas esferas nas quais se vive: a "carne" ou o "Espírito". É impossível morar nos dois lugares ao mesmo tempo. No próximo Capítulo desenvolve-se mais esta contradição) Ele diz de fato que nos batizados a carne não pode ser contrária, mas depois veremos em que sentido. Visto que não podia esquecer totalmente sua condição de cristão, mas como dela se lembrou embora sutilmente, recuou na defesa da natureza. Onde, porém, está a possibilidade entranhada? Acaso os não-ainda batizados não pertencem à natureza humana? Este é um ponto em que poderia despertar de seu erro; e poderá, se perceber. "Como é possível, diz ele, que em qualquer batizado a carne seja contrária ao espírito?" Portanto, isso pode acontecer com os não-batizados. Explique-nos ele, visto que os não-batizados possuem a natureza tão ardorosamente por ele defendida. Mas de qualquer forma ou concorda que ela seja decaída nos não-batizados, se após o batismo o ferido já saiu da hospedaria completamente são, ou está bem de saúde na hospedaria, para onde o levou, para se curar, o compassivo samaritano (Lc 10,30-35) Além disso, se concorda que nos batizados a carne tem aspirações contrárias ao espírito, diga o que aconteceu, pois ambos, ou seja, a carne e o espírito são criaturas do único e mesmo Criador, e, nesse caso, ambos são bons, já que são obra daquele que é bom por excelência. A explicação seria afirmar que essa contrariedade é um defeito causado pela própria vontade e que, para sua cura na natureza, necessita do Salvador, que é também Criador da mesma natureza. Chegará ao fim toda discussão entre nós, se confessarmos que tanto os grandes como os pequenos, ou seja, do vagido das crianças à canície dos idosos, necessitam do Salvador e de seu remédio, para o qual o Verbo se fez carne para habitar entre nós (Jo 1,14) Capítulo 53 - Argumentação em favor da tese anterior - Vejamos agora se há testemunhos em favor da contrariedade da carne nos batizados. Eu pergunto: A quem se dirigia o Apóstolo, ao dizer: A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne; eles se opõem reciprocamente, de sorte que não fazeis o que quereis? (Gl 5,17). Aos próprios gálatas, conforme penso, aos quais também disse: Aquele que vos concede o Espírito e opera milagres entre vós o faz pelas obras da Lei ou pela adesão à fé? (Gl 3,5) Como se vê, está claro que fala a cristãos, aos quais Deus outorgou o Espírito; portanto, também batizados. E fica claro também que neles a carne é contrária ao espírito e que não aparece aquela possibilidade, afirmada por Pelágio, entranhada na natureza. Onde está a prova do que diz: "Como pode acontecer que nos batizados a carne seja contrária?". Qualquer que seja o sentido que dê ao vocábulo "carne", pois não significa a natureza, a qual é boa, mas os vícios carnais, conclui-se que mesmo nos batizados a carne é contrária. E como é contrária? Não permitindo que façam o que querem. E aqui se revela a vontade do homem; mas onde está a possibilidade da natureza? Confessemos a necessidade da graça e brademos: Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? E receberemos esta resposta: Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso (Rm 7,24-25) - Quando lhes é perguntado: Por que afirmais no homem a possibilidade de viver sem pecado dispensando a graça de Deus?, não se trata da graça da criação, e sim da graça com que o salva Jesus Cristo Senhor nosso. Com efeito, os fiéis, na oração, dizem: E não nos exponhas à tentação, mas livra-nos do Maligno (Mt 6,13) Se existisse a possibilidade, por que rezam assim? Ou de que mal suplicam a libertação, senão, principalmente, do corpo desta morte, da qual nada nos liberta a não ser a graça de Deus por Jesus Cristo? Não se trata da substância corporal, a qual é boa, mas dos vícios carnais, dos quais o homem não se liberta sem a graça do Salvador, nem sequer quando, pela morte do corpo, se liberta do corpo. E para o Apóstolo chegar a fazer aquela afirmação, o que dissera no versículo anterior? Percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros (Rm 7,23) Eis a deformidade causada à natureza pela desobediência da vontade. Permita-se, portanto, a oração para a obtenção da cura. Por que presumir tanto a possibilidade da natureza? Ela foi ferida, ofendida, abalada e arruinada; por isso, necessita de sincero reconhecimento, e não de defesa distorcida. Procure-se a graça de Deus, não a da criação, mas a da redenção, considerada por Pelágio como desnecessária pelo fato de a ela não se referir. Se nada dissesse a respeito da graça de Deus e não se tivesse proposto aquela questão para resolver, evitando a animosidade a esse respeito, poder-se-ia considerar verdadeiro o seu pensamento. Mas não disse tudo, porque não se pode dizer tudo em todas as partes. E sim ele se propôs uma pergunta sobre a graça e deu-lhe a resposta ditada por seu coração. A questão foi proposta nos devidos termos, não como gostaríamos, e sim em termos que nos suscitam dúvidas sobre o seu modo de pensar. Capítulo 54 - A carne é contrária ao espírito devido ao pecado, e não à natureza. - O recurso ao Médico divino é o único meio de curar a natureza decaída - Em seguida, empenha-se em provar, mediante muitas citações do Apóstolo, o que não está em discussão, ou seja, "que Paulo muitas vezes denomina carne não a substância, mas as obras da carne". Qual a razão desta assertiva? As inclinações carnais são contrárias à vontade do homem; não se acusa a natureza, porém se procura um médico para os males. Qual a finalidade desta pergunta: "Quem criou o espírito humano?". Ele mesmo responde: "Deus, não há dúvida". E pergunta novamente: "Quem criou a carne?". E de novo responde: "O mesmo Deus, creio eu". Pergunta pela terceira vez: "Não é bom o Deus que criou o espírito e a carne?". Responde: "Ninguém duvida". Pergunta ainda: "E as duas realidades, que o bom Criador fez, não são boas?". E responde: "É o que devemos confessar". E conclui: "Se o espírito é bom, a carne é boa, feitos que foram pelo bom Criador, como podem duas realidades boas serem contrárias entre si?" (No Novo Testamento, há sempre um sentido pejorativo envolvendo o termo "carne": "A carne para nada serve". Em Paulo, é sinônimo de caducidade. É o homem deixado a si mesmo, afastado de Deus, fraco, indigno, fechado no seu egoísmo, fonte de todos os pecados. É o homem voltado para si mesmo, pondo tudo a serviço dos próprios desejos e interesses) Não quero afirmar que se abalaria toda a força desta argumentação, se alguém lhe perguntasse: "Quem fez o calor e o frio?". Responderia certamente: "Deus, não há dúvida". Mas não farei muitas perguntas. Ele mesmo tire a conclusão, se ambos ou não são bons ou que não são contrários entre si. Ele talvez retrucará: "São qualidades das substâncias, e não substâncias". De fato, é verdade; mas são qualidades naturais e certamente próprias da criatura de Deus, pois as substâncias não são contrárias entre si por si mesmas, e sim pelas suas qualidades, como a água e o fogo. E se o espírito e a carne fossem contrários neste sentido? Não afirmo que o sejam, mas o dizemos para demonstrar que sua argumentação carece de conclusão lógica. Pois, duas coisas contrárias podem não se combater mutuamente; podem até se aliarem e ser favoráveis à saúde. É o que acontece com a secura e a umidade no corpo, o frio e o calor, de cuja combinação resulta o bom estado de saúde. Mas que a carne seja contrária ao espírito, de modo que não fazemos o que queremos, é defeito, e não natureza. Procure-se a graça medicinal, e não haverá motivo para discussão. - Contrapondo-me ao raciocínio de Pelágio, pergunto: Como estes dois bens, criados por um Deus bom, podem ser contrários entre si nas pessoas batizadas? Arrepender-se-á de tê-lo dito, porque foi levado por algum sentimento de fé cristã? Pois, ao dizer: "Como pode acontecer que a carne seja contrária ao espírito no já batizado", deu a entender que a carne seja contrária ao espírito nos não-batizados. Por que acrescentou: "já batizado", poder-se-ia expressar o seu pensamento sem acrescentar tais palavras e dizer: "Como pode acontecer que em qualquer pessoa a carne é contrária ao espírito?". E, para provar sua afirmação, por que avançar no seu raciocínio e dizer que, se ambos são bons e criados por um Deus bom, não podem ser contrários entre si? Portanto, se os não-batizados, a respeito dos quais afirma que a carne é contrária, apertarem-no com perguntas e interrogarem: "Quem criou o espírito do homem?". Ele responderá: "Deus". Voltarão a perguntar-lhe: "Quem criou a carne?". Ele: "O mesmo Deus, creio eu". Pela terceira vez: "É bom o Deus que ambos criou?". E ele: "Ninguém duvida". E lhe farão a última pergunta: "E ambas as realidades criadas por Deus, que é bom, são boas?". Ele confessará que sim. Então eles o degolarão com sua própria espada, concluindo do mesmo modo que ele, dizendo: "Portanto, se o espírito é bom e a carne é boa, criados ambos por um bom Criador, como pode acontecer que os dois bens sejam contrários entre si?". Talvez ele responderá: "Desculpai, pois não quis dizer que no batizado a carne não pode ser contrária ao espírito e afirmar que existe essa oposição nos não-batizados. Mas quis dizer que em ninguém a carne é contrária ao espírito". Mas vede para onde se arrasta; vede como fala aquele que não quer clamar com o Apóstolo: Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor (Rm 7,25). Porém, ele dirá: "Por que haverei de clamar estando já batizado em Cristo? Lancem esse grito os que ainda não receberam esse benefício, em cujo nome apresenta-se o Apóstolo, se é que eles dizem isso também". Porém, sua defesa da eficácia da natureza não lhes permite bradar com esse gemido. Pois a natureza não é eficaz para os batizados nem para os não-batizados. Ou se aceita que a natureza dos não-batizados está decaída de modo que bradem com razão: Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?, ou se são atendidos pelo que segue: Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo Senhor nosso, concorde finalmente que a natureza humana necessita do Médico, que é Cristo. Capítulo 55 - Além da remissão dos pecados pelo batismo, o batizado deve implorar sempre a graça do Salvador - Pergunto agora: quando a natureza perdeu a liberdade pela qual o Apóstolo almeja: Quem me libertará?, ele não acusa a carne, como um ser substancial, ao dizer que deseja se libertar deste corpo de morte, visto que tanto a natureza do corpo como a da alma foram criadas por Deus, que é bom. Refere-se às inclinações pecaminosas do corpo. Pois a morte corporal liberta-o do corpo, mas levamos inerentes os vícios contraídos mediante o corpo, aos quais é devido o justo castigo que aquele rico recebeu no inferno (Lc 16,22-26) Conclui-se que não se podia libertar por si mesmo aquele que clama: Quem me libertará deste corpo de morte? Contudo, onde quer que tenha perdido a liberdade, aquela possibilidade é inseparável da natureza, tem a eficácia mediante uma ajuda natural e tem o querer mediante o livre-arbítrio? Por que então procura o sacramento do batismo? Talvez por causa dos pecados passados e assim sejam perdoados somente os que não podem ser anulados? Deixa o homem em paz e deixa que clame conforme clamava. Pois não somente deseja livrar-se do castigo ao ser perdoado com relação aos pecados passados, mas quer ser forte e eficaz para não mais pecar. Ele valoriza a lei do Senhor segundo o homem interior, mas percebe outra lei em seus membros que se rebela contra a lei da razão. Percebe que é, não se recorda do que foi; preocupa-se com o presente e não traz à memória o passado. Não percebe somente uma lei que se revolta contra a lei da razão, mas que o escraviza na lei do pecado, que está em seus membros, não que esteve. Por isso clama: Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de pecado? Deixa-o rezar, deixa-o implorar a ajuda do Médicotodo-poderoso. Porque contradizê-lo? Por que importuná-lo? Por que querem proibir ao miserável implorar a misericórdia de Cristo? E isso o fazem homens cristãos? Caminhavam também com Cristo os que proibiam ao cego que pedia a recuperação da vista com grandes gritos. Mas Jesus ouviu seu clamor em meio ao tumulto dos manifestantes. Por isso recebeu a resposta: Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo Senhor nosso. - Todavia, se conseguirmos dos pelagianos que concordem em que os não-batizados implorem o auxílio da graça do Salvador, algo teremos conseguido contra sua falsa defesa sobre a autossuficiência da natureza e o poder do livre-arbítrio. Pois não se basta a si mesmo aquele que diz: Infeliz de mim! Quem me libertará? Não é preciso dizer que goza de plena liberdade aquele que implora ser libertado. Capítulo 56 - Os batizados sentem também os desejos da carne contra o espírito Vejamos, no entanto, se os batizados fazem o bem que querem sem nenhuma oposição da concupiscência da carne. O que poderíamos dizer a este respeito, o próprio Pelágio o diz ao concluir este ponto e afirmar: "Como dissemos, a expressão: A carne tem aspirações contrárias ao espírito, não se aplica à substância, e sim às obras da carne". É que nós também dizemos, ou seja, não se trata da substância, e sim das obras da carne que procedem da concupiscência carnal, isto é, do pecado, sobre o qual o Apóstolo ordenou que não impere em nosso corpo mortal: sujeitando-se às suas paixões (Rm 6,12) Capítulo 57 - A lei de Deus é a lei da liberdade e do amor - Pelágio também considera que aos já batizados o Apóstolo disse: A carne tem aspirações contrárias ao espírito; e o espírito, contrárias à carne. Eles se opõem reciprocamente, de sorte que não fazeis o que quereis. E para não estimular a indolência nesta luta e não parecer que, por esta sentença, favorecia o relaxamento, o Apóstolo acrescenta: Mas se vos deixais guiar pelo Espírito, não estais debaixo da Lei (Gl 5,17-18) Sob a lei está aquele que, por temor do suplício, com que a lei ameaça, e não por amor, pensa que se abstém das obras do pecado, não estando ainda libertado nem isento da vontade de pecar. Torna-se réu na própria vontade que o faz desejar, se fosse possível, a não-existência do que ele teme, para praticar livremente o que no íntimo deseja. Portanto, como diz o Apóstolo, se vos deixais guiar pelo Espírito, não estais debaixo da Lei, ou seja, da Lei que incute temor e não outorga a caridade, a qual foi difundida em nosso coração não pela letra da Lei, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5) Esta é a lei da liberdade, não da escravidão, porque é a lei da caridade, não do temor. Dela falava o apóstolo Tiago: Mas aquele que se dedica ao estudo da Lei perfeita da liberdade (Tg 1,25) Desse modo, Paulo já não se enchia de temor na lei de Deus, como escravo, mas nela se comprazia conforme o homem interior. Entretanto percebe ainda em seus membros outra lei contrariando a lei da razão. Por isso diz: Mas se vos deixais guiar pelo Espírito, não estais debaixo da Lei. Se alguém se deixa conduzir pelo Espírito, não está sob a lei, porque, comprazendo-se na lei de Deus, não está sob a lei do temor. O temor gera a angústia e não é fonte de deleite. Capítulo 58 - A necessidade da prece nos momentos da tentação - Se pensarmos bem, assim como devemos dar graças a Deus pelos membros curados, devemos fazê-lo também pelos que necessitam de cura. Assim podemos gozar daquela saúde à qual nada se possa acrescentar, da própria benevolência de Deus e de plena liberdade. Não negamos à natureza humana a possibilidade de viver sem pecado nem podemos negar seu possível aperfeiçoamento. Não negamos que se possa aperfeiçoar pela graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso. Afirmamos que poderá ser santa e feliz com a ajuda de quem a criou para a existência. Desse modo, facilmente se refuta a objeção que lhe opõem alguns, conforme o próprio Pelágio afirma: "O demônio se opõe a nós". Respondemos com as mesmas palavras que lhe serviram de resposta: "Resistamos-lhe, e ele fugirá". É este o conselho do bem-aventurado apóstolo Tiago: Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós (Tg 4,7). Daí a necessidade de estar atento para o mal que o diabo poderá fazer àqueles que fogem dele e como se há de considerar o seu poder, que somente predomina sobre os que não lhe opõem resistência. Faço minhas estas palavras; nada se pode dizer com mais verdade. Mas existe entre nós e eles uma diferença: não somente não negamos, como também afirmamos, que, para resistir ao demônio, é necessário implorar a Deus o seu auxílio. Eles atribuem tão grande poder só à vontade e assim dispensam da oração as pessoas piedosas. Para resistir ao demônio e provocar sua fuga, dizemos na oração: E não nos exponhas à tentação (Mt 6,13). E somos advertidos como soldados pelo seu chefe: Vigiai e orai, para que não entreis na tentação (Mc 14,38) Capítulo 59 - Pelágio não reconhece a necessidade da graça para a cura da natureza decaída - E a sua resposta aos opositores que lhe dizem: "E quem não quer viver sem pecado, depende das forças humanas?". Discorre acertadamente ao dizer que, segundo eles mesmos, isso não é impossível, visto que muitos ou até todos o querem. Mas confesse de onde provém essa possibilidade, e não haverá discussão. Essa possibilidade vem da graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso, que ele nunca quis reconhecer como necessária, mediante a qual, pela oração, somos ajudados, a fim de evitar o pecado. Se por acaso concorda conosco no seu íntimo, perdoe os que suspeitam de outra coisa. Ele mesmo, no entanto, é causa desta suspeita, pois, apesar de sofrer tanta hostilidade por esse motivo, prefere pensar, mas não quer confessar ou professar o que pensa. Seria tão difícil fazer esta declaração, considerando principalmente que se propôs tratar e pôr a descoberto a oposição a suas ideias como se procedessem de seus adversários? Por que nestas oposições simuladas empenhou-se em defender apenas a natureza, ao afirmar que o ser humano foi criado de tal modo que não poderia pecar, se não quisesse pecar? E por ter sido criado nestas condições, por que afirmou que essa possibilidade procede da graça de Deus, possibilidade em virtude da qual o homem não peca, se não quiser pecar? E por que se recusou a dizer que a natureza decaída recobra a saúde pela graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso e que é ajudada porque não basta a si mesma? Capítulo 60 - A justiça plena não se alcança neste mundo - Poderá surgir entre os verdadeiros e piedosos cristãos esta outra questão: se, neste mundo, algum justo viveu ou vive ou pode viver sem nenhum pecado. Que seja possível depois desta vida, quem duvidar é porque perdeu o juízo. Mas eu não discutirirei sobre esta questão nem sequer tratando-se desta vida. Embora não me pareça que deve ter outra interpretação o que está escrito: Nenhum vivente é justo na tua presença (Sl 141,2) e outros textos semelhantes, contudo, se existirem, oxalá se pudesse mostrar que estes testemunhos devem ser entendidos de outra maneira ou que uma perfeita e plena justiça, a qual não mais necessite de progresso, existiu em alguém enquanto viveu neste mundo e existe hoje e existirá amanhã. Faço esta consideração lembrando que são muitíssimos os que não duvidam ser-lhes necessário suplicar com sinceridade até o último dia de sua vida: E perdoa-nos as nossas dívidas, como também nós perdoamos aos nossos devedores (Mt 6,12). Mas eles têm certeza de que sua esperança em Cristo e em suas promessas é verdadeira, garantida e firme. Duvido que se possa colocar no número de cristãos de qualquer nome os que negarem que, sem a ajuda da graça de Cristo Salvador crucificado, alguém consiga chegar à perfeição no sentido pleno ou consiga progredir na verdadeira e piedosa justiça. Capítulo 61 - Os testemunhos não bíblicos carecem de muita importância para o autor - Considero duvidosos os testemunhos aduzidos por Pelágio, mas não das Escrituras canônicas, e sim de alguns opúsculos de tratadistas católicos, pretendendo com eles responder àqueles que dizem ser ele o único a defender tal doutrina. Os testemunhos são duvidosos e nem provam nada contra a minha sentença nem contradizem a dele. Entre eles quis intercalar algumas afirmações de meus livros, considerando-me digno de ser lembrado ao lado dos outros. Por isso não lhe devo ser desagradecido, e, levado por uma afeição muito familiar, gostaria que se afastasse do erro quem me tributa essa honra. Não é preciso enfocar os primeiros testemunhos que aduziu, visto que não vi ali o nome do autor ou porque não o consignou ou porque o exemplar, que vós me enviastes, não o registra devido a alguma omissão na cópia. E pelo fato de aceitar sem restrição somente os livros canônicos, considero-me livre em acolher ou não os escritos de qualquer pessoa. Nada me diz, por exemplo, o que ele aduziu dos escritos de alguém cujo nome não deparei, e que diz: "Foi conveniente que o Mestre e Doutor da virtude se tornasse semelhante à criatura humana, para que, vencendo o pecado, ensine-lhe que pode vencer o pecado" (Lactâncio: Institutionum, 1,4, capítulos 24, 25). O autor desta sentença veja como pode interpretar o que disse. Por nossa parte, não duvidamos que em Cristo não houve pecado, o qual venceu ele que nasceu na semelhança da carne do pecado, e não na carne do pecado. Registrou também esta outra sentença do mesmo autor: "Em segundo lugar, dominados os desejos da carne, conforme os ensinamentos de Cristo, pecar nãoé uma necessidade, mas depende do propósito e da vontade". Se não se trata de concupiscências ilícitas, concordo com o relativo aos desejos da carne, isto é, a fome, a sede, o repouso e outros desejos naturais. Ao satisfazer estes desejos, embora em si inculpáveis, alguns caem no pecado, o que não se pode dizer do Salvador, embora, conforme os testemunhos evangélicos, sentisse também estas necessidades pela semelhança da carne do pecado. Capítulo 62 - Comentário a sentenças de Santo Hilário - Afirma o bem-aventurado Hilário em palavras transcritas por Pelágio: "Não contemplaremos a imortalidade de Deus a não ser quando formos perfeitos e formos revestidos de imortalidade". Ignoro em que estas palavras contradizem o que dizemos ou em que elas o apóiam na sua doutrina, a não ser pelo fato de ter atestado que o ser humano pode manter limpo o seu coração. E quem o nega? Mas, é claro, pela graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso, e não só pelas forças da vontade. Recorda também que Hilário afirmou: "Jó lera as Escrituras e aprendera a se abster de toda maldade, pois venerava a Deus com a mente pura, não corrompida pelos pecados. É próprio da justiça adorar a Deus". A citação revela o que Jó fez, e não o que conseguiu progredir neste mundo; nem revela se fez ou progrediu sem a graça de Deus, a qual também anunciou profeticamente. E mais. Pode-se abster de toda maldade mesmo quem possui a raiz do pecado. Esta raiz não cessa de reinar naquele que é assaltado por um mau pensamento, mas não permite que ele seja levado à prática. Mas uma coisa é não ter pecado e outra coisa é deixar-se levar pela sua sedução. Uma coisa é cumprir o preceito: Não cobiçarás (Ex 20,17), e outra coisa é pelo menos executar, mediante um esforço de abstinência, o que está escrito: Não te deixes ir atrás de tuas paixões (Eclo 18,30), mas saber que para isso é indispensável a graça do Salvador. Viver na justiça, num verdadeiro culto a Deus, é lutar interiormente com o mal interior da concupiscência; mas alcançar a perfeição é não sentir absolutamente os ataques do adversário. Pois aquele que está em luta e se encontra ainda em perigo, é ferido algumas vezes, ainda que não seja abatido. Mas aquele que não tem inimigo goza em perfeita paz. Diz-se com toda verdade que não está em pecado aquele no qual não habita o pecado, e não aquele que, mesmo abstendo-se de toda má obra, deixou escrito: Já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim (Rm 7,20) - O próprio Jó não silencia no tocante a seus pecadose a este vosso amigo (Pelágio) não lhe apraz, e com razão, pôr a humildade aliada à mentira. Por isso, o que Jó confessa, por ser verdadeiro adorador de Deus, ele o faz, sem dúvida, com sinceridade. E o próprio Hilário diz no comentário ao salmo onde está escrito: Desprezas todos os que se desviam dos teus estatutos: "Se Deus desprezasse os pecadores, todos seriam objeto de seu desprezo, porque ninguém está isento de pecado. Mas despreza os que dele se afastam, aqueles denominados apóstatas" (Com. ao salmo 119,118) Percebeis que não disse: porque ninguém esteve isento de pecado, como se se referisse aos do passado, mas "porque ninguém está isento de pecado". Não discuto, como disse, as razões desta assertiva. Pois, quem não se deixa convencer pelo apóstolo João, que não disse: Se dissermos que não tivemos pecado, mas sim que não temos, como há de acatar a opinião de Hilário? Proclamo a necessidade da graça de Deus, sem a qual ninguém alcança a justificação, e que não é suficiente o livre-arbítrio da natureza. Melhor, proclama esta necessidade aquele a quem todos se devem submeter e que diz: Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15,5) Capítulo 63 - Santo Ambrósio, citado por Pelágio, defende a tese do autor - Há também uma passagem de santo Ambrósio, citado por Pelágio, onde combate aqueles que dizem não ser possível ao homem viver sem pecado nesta vida. Para fundamentar sua tese, tirou partido da vida de Zacarias e Isabel. O Evangelho exalta sua caminhada irrepreensívelna observância da Lei. Mas, acaso o Evangelho exclui a ação da graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso? Não há dúvida de que os justos viveram da mesma fé antes da paixão daquele que comunica o Espírito Santo que nos foi dado e que derrama em nosso coração a caridade, da mesma fé, digo, pela qual são justos todos os que assim podem ser chamados. O mencionado bispo encarece também a necessidade de implorar o mesmo Espírito mediante a oração, o que implica a incapacidade da vontade privada da ajuda divina. Diz assim em seu hino: E aos que o desejam com sinceridade concede a graça de merecer o Espírito Santo. - Eu também citarei uma passagem dessa obra de santo Ambrósio, da qual Pelágio mencionou o que bem quis. Diz o Santo: "Aprouve a mim. Pode ser que não tenha sido do agrado dele o que declara ter-lhe agradado. Pois não foi somente do agrado da vontade humana, mas também daquele que fala em mim, ou seja, Cristo, o qual pode fazer com que o bom possa parecer bom também a nós. Ele se compadece de quem chama. Assim, o que segue a Cristo, ao ser interrogado por que deseja ser cristão, pode responder: Assim me aprouve. Ao se expressar assim, não nega que foi do agrado de Deus, pois é Deus quem dispõe a vontade humana. A honra prestada a Deus pelos santos é graça de Deus". Eis o que Pelágio pode saborear, se encontra prazer em palavras de Ambrósio: que a vontade humana é disposta por Deus, e que não existe a questão, ou é de somenos importância, acerca de quem ou quando isso se realiza. O importante é que não haja a menor dúvida sobre a ação da graça de Deus para que tal aconteça. Seria importante que Pelágio refletisse sobre um verso das palavras de Ambrósio citadas por ele. Disse primeiramente: "Dado que a Igreja é formada de pagãos, ou seja, de pecadores, como pode ser imaculada, constituída que é de quem se manchou, a não ser pela graça de Cristo, que a purifica primeiramente do delito e, em seguida, possibilita-lhe a abstenção de pecados pelo hábito de não pecar?". Depois acrescentou o que explica porque Pelágio não quis acrescentá-lo, pois diz: "Não foi imaculada desde o princípio, o que seria impossível à natureza humana, mas surge sem mácula pela graça de Deus e pelo hábito de não pecar, que a afasta do pecado". Quem não percebe a razão de Pelágio não ter acrescentado estas palavras? Ainda neste mundo, a santa Igreja caminha para a pureza totalmente imaculada, desejo este de todos os santos. Mas no mundo futuro, nada tendo em si de maldade humana e não encontrando em si nenhuma lei a contrariar a lei da razão, ela então viverá essa vida totalmente pura na eternidade. Contudo, Pelágio tenha em conta o que disse o bispo Ambrósio conforme as Escrituras: "Não foi imaculada desde o princípio, o que seria impossível à natureza humana". Afirma que desde o início, ou seja, desde que nascemos de Adão. O próprio Adão, sem dúvida, foi criado inocente, mas o santo esclareceu que, com relação aos filhos da ira por natureza que trazem consigo o pecado herdado, não são imaculados desde o princípio devido à impotência das forças naturais. Capítulo 64 - Citações de outros autores eclesiásticos, aduzidas por Pelágio, confirmam a doutrina católica - É citado também João, bispo de Constantinopla com sentenças onde diz: "O pecado não é substância, mas um ato de maldade". E quem nega? "E visto que o pecado não é natural e procede da liberdade da vontade, foi promulgada uma Lei contra ele". E quem o nega também? O assunto agora é a natureza humana que foi corrompida; trata-se da graça de Deus pela qual a natureza recebe a cura mediante o Médico, que é Cristo. Não necessitaria dele, se não estivesse enferma. Mas Pelágio, considerando-a sadia e como se bastando a si mesma pelo arbítrio da vontade, assevera que não pode pecar. - Qual o cristão ignorante das palavras do bem-aventurado Xisto, bispo da Igreja romana e mártir de Cristo, das quais ele faz menção? "Deus concedeu ao homem uma vontade livre, para que se assemelhasse a ele pela vida pura e sem pecado." Mas é próprio do arbítrio ouvir o que o chama e nele crer, assim como implorar àquele, no qual acredita, a ajuda necessária para evitar o pecado. Pois, ao dizer: "para que se assemelhasse a Deus", admite que hão de se assemelhar a Deus pela caridade divina, a qual foi derramada em nosso coração não pela capacidade natural nem pelo livre-arbítrio, mas pelo Espírito santo, que nos foi dado. Diz também o mesmo mártir: "A mente pura é um templo de Deus e o coração limpo e sem pecado é seu digno altar". Quem ignora que o coração limpo há de alcançar essa perfeição, enquanto o homem interior se renova de dia para dia, mas nunca sem a graça de Deus por Jesus Cristo Senhor nosso? Traz a mesma mensagem o que diz também: "O homem casto e sem pecado recebeu de Deus o poder de se tornar seu filho". Mas o santo mártir advertiu que ninguém, ao se tornar casto e sem pecado e por isso ser considerado entre os filhos de Deus, creia tê-lo alcançado pelo próprio poder, mas pelo poder de Deus, pela sua graça, visto que não possuía esta possibilidade a sua natureza decaída e depravada. Observe-se, porém, que não vem ao caso a questão do quando e do como alcançou a perfeição, mas cristãos piedosos discutem entre si o assunto e estão convencidos da possibilidade desta perfeição, mas não admitem esta possibilidade sem o Mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus. Confirma este ensinamento o testemunho evangélico, que diz: Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12). Não o eram, portanto, nem seriam, se não recebessem o poder pela graça daquele que acolheram. Este é o poder implorado pela fortaleza da caridade, a qual não está em nós, mas é dom do Espírito Santo, que nos foi dado. Capítulo 65 - Interpretação correta de sentença de São Jerônimo - Há também o testemunho do venerável presbítero Jerônimo, mencionado pelo próprio Pelágio, comentando esta passagem: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8): "Tais são os que a consciência não acusa de pecado algum". E acrescentou: "O Puro é contemplado pelo coração puro; o templo de Deus não pode ser profanado" (Cf ao capítulo 5 de Mt). A isso nós também somos estimulados e para isso devemos empenhar-nos, trabalhar, rezar e implorar, a fim de podermos atingir, pela força de sua graça por Jesus Cristo Senhor nosso, a perfeição que dê ensejo de contemplar a Deus com o coração limpo. O mesmo afirmo sobre outras palavras do mesmo presbítero por ele citadas: "Deus criou-os dotados de liberdade, de modo que não somos arrastados nem à virtude nem ao pecado contra nossa vontade; além disso, onde há violência, não há coroa" (Contra Joviniano, 1,2). Quem não está de acordo e não reconhece de bom grado que essas palavras expressam a verdade? Quem nega a criação da natureza humana de outro modo? Pois, no reto procedimento, não há vínculo de necessidade, porque é do domínio da liberdade do amor. Capítulo 66 - O pecado deixou no homem certa necessidade de pecar - Relembre Pelágio a sentença apostólica: O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). Por quem foi dado senão por aquele que, tendo subido às alturas, levou cativo o cativeiro, deu dons aos homens? (Ef 4,8) Há, porém, uma necessidade de pecar, não devido à condição humana em si, mas enraizada na deformidade da natureza. Por isso, ouça o homem e, para se libertar desta necessidade, aprenda a dizer a Deus: Livra-me das minhas aflições (Sl 25,17). Esta súplica revela uma luta contra o tentador que luta contra nós valendo-se dessa necessidade. Por isso, com o socorro da graça por Jesus Cristo nosso Senhor, a imperiosa necessidade desaparecerá e nos será concedida a plena liberdade. Capítulo 67 - Sentido das palavras do autor aduzidas por Pelágio (Um dos textos mais longos deste livro. Agostinho se esforça em combater a doutrina pelagiana para que não se frustrem a redenção e a graça de Deus, defendendo a eficácia perniciosa de uma natureza pervertida, sem a ajuda da graça) - Examinemos a sentença tomada de nossos livros. Ele diz: "O bispo Agostinho também escreve nos livros de O livre-arbítrio: Qualquer que seja o motivo que seduz a vontade, se não se lhe pode resistir, não há pecado quando se consente; se pode resistir, não se consente e não se pecará. Portanto, tenha cuidado para não se enganar. Será tão bem urdida a trama que impeça toda precaução? Se assim é, não pode haver pecado. Quem merece ser acusado de pecado naquilo que é inevitável? Mas peca-se; portanto, é preciso acautelar-se". Reconheço-as como palavras minhas. Mas digne ele reconhecer tudo o que foi dito antes. O assunto é a graça de Deus, que nos outorga o remédio por meio do Mediador; não se trata da impossibilidade de viver na justiça. Não há dúvida que é possível a resistência à esta situação de pecado. Pois para isso pedimos a ajuda quando dizemos: E não nos exponhas à tentação (Mt 6,13) E não pediríamos a ajuda, se não acreditássemos na possibilidade da resistência. Pode-se acautelar a respeito do pecado, mas com o auxílio daquele que não se engana. Pois, se dizemos com sinceridade: Perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores (Mt 6,12), esta súplica está relacionada com a cautela para não pecar. Há duas maneiras de se acautelar com relação às doenças corporais: empregar meios preventivos e, se acontecerem, utilizar meios curativos. No primeiro caso, acautelamo-nos, dizendo: E não nos exponhas à tentação; no segundo caso, a precaução revela-se no pedido: Perdoa-nos as nossas dívidas. Portanto, quer no caso de ameaça, quer no caso de estarmos doentes, é possível a cautela. - Dirijo-me agora não somente a Pelágio, mas também àqueles que não leram meus livros sobre O livre-arbítrio, os quais ele leu, e àqueles que não os leram, mas vão ler este tratado. A todos digo que, esclarecendo meu pensamento exposto nos referidos livros sobre a questão, se ele assim pensasse e incluísse em suas obras, não haveria mais discussão entre nós sobre este assunto. Na continuação das minhas palavras, que ele mencionou, acrescentei o que me veio à mente e, conforme me foi possível, nelas me aprofundei, dizendo: "Não obstante, há ações perpetradas por ignorância e são passíveis de correção, conforme lemos nas divinas Escrituras". E mediante outros testemunhos, falei sobre a fragilidade, dizendo: "Há contudo obras repreensíveis cometidas por fragilidade, quando a pessoa quer agir retamente, e não pode. Pois de onde vêm aquelas vozes: Não faço o bem que quero; e faço o mal que não quero?". E, após mencionar outros testemunhos da Palavra divina, continuo dizendo: "Mas todos estes clamores saem da boca dos que vêm da morte causada por aquela condenação. Pois se não fosse um castigo imposto ao homem e sua origem fosse a natureza, não se poderia imputar o pecado". E logo depois acrescentei: "Conclui-se que este justo castigo venha da condenação do ser humano. E não se há de admirar que ou não goze do livre-arbítrio da vontade devido à ignorância, ou perceba o que deva fazer e queira fazê-lo, mas não tem forças para executá-lo devido à oposição do costume carnal, que a violência da geração carnal enraizou na própria natureza. A consequência do muito justo castigo do pecado é que perca aquilo que não quis utilizar retamente, quando poderia tê-lo feito sem nenhuma dificuldade, se quisesse. Quero dizer: aqueleque, sabendo, não age retamente, é justo que seja privado do próprio conhecimento do bem; e que, podendo, não quis agir retamente, seja privado do poder de agir retamente, quando quiser fazê-lo". "São duas as sanções penais impostas a toda alma pecadora: a ignorância e a dificuldade. Da ignorância provém a degradação mediante o erro; da dificuldade, a angústia que aflige. Mas considerar como verdadeiro o que é falso a ponto de se errar contra a vontade e não poder se controlar por causa da resistência e tormento da dor do vínculo carnal, não é algo inerente à natureza do homem criado, mas é castigo do homem condenado. Mas quando falamos da livre vontade para agir retamente, referimo-nos àquela em que o homem foi criado." Os homens lamentam sua sorte, e de certo modo com razão, de terem herdado a ignorância e a dificuldade passadas e legadas à prole do primeiro ser humano. Dou-lhes esta resposta: "Responder-lhes-ei em poucas palavras, procurando tranquilizá-los e convencê-los a não murmurar contra Deus. Talvez pudessem se queixar com razão, se não houvesse nenhum homem vencedor do erro e da sensualidade. Mas como está em toda a parte aquele que de muitas maneiras chama através da criatura fiel o que dele se afasta, ensina o crente, consola o que espera, exorta o diligente, ajuda o que se empenha, ouve o que suplica, não te é imputada como culpa a ignorância involuntária, mas és culpado ao te descuidar da procura do que ignoras. Não pecas pelo fato de não dominar os membros feridos, mas porque desprezas o Médico que os quer curar". Com estas palavras exortei, conforme me foi possível, à retidão de vida. Não menosprezei a graça de Deus, sem a qual a natureza humana, já cega e viciada, não recebe a luz nem se cura. Toda a questão com os pelagianos gira em torno deste assunto, ou seja, não frustrar a graça de Deus, por Jesus Cristo, defendendo a eficácia da naturezapervertida. A este respeito afirmei um pouco depois: "Usamos o termo "natureza" no seu sentido próprio, quando nos referimos àquela em que o ser humano foi criado sem culpa em seu gênero; e, em outro sentido, quando tratamos da natureza na qual nascemos condenados em virtude do castigo, ignorantes e sujeitos aos atrativos da carne. Neste último sentido, diz o Apóstolo: E éramos por natureza, como os demais, filhos da ira" (Ef 2,3) Capítulo 68 - Como estimular os fracos à prática da justiça - Se quisermos estimular e abrasar os espíritos frios e indolentes em direção a uma vida reta, exortemo-los à vivência da fé, pela qual se tornam cristãos e se submetem ao nome daquele sem o qual não podem ser salvos. Se já são cristãos e se recusam às normas de uma vida reta, fustiguem-se com os látegos do terror e ergam-se com os estímulos dos prêmios. De tal modo o façamos que, não somente os exortemos às boas obras, mas também à prática da oração e à instrução na doutrina cristã, para que saibam dar graças a Deus pela vida santa começada, se tiverem feito algo sem dificuldade. E quando sentirem alguma dificuldade, sejam constantes em suplicar a Deus a facilidade mediante preces incessantes, impregnadas de piedade. Caminhando assim, não me preocupo a respeito de onde e quando consigam viver a plena justiça. Mas confirmo que, onde e quando for, se tornarem perfeitos, devê-lo-ão à graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor. E quando com toda a clareza perceberem que vivem sem pecado, não digam que têm pecados, para não se mostrarem mentirosos, assim como não falam a verdade os que, sendo culpáveis, digam que não o são. Capítulo 69 - O amor torna leves os preceitos divinos - Sabemos que os preceitos são bons, se forem usados segundo as regras (1Tm 1,8). E pelo fato de acreditarmos que o Deus justo e bom não nos impôs preceitos impossíveis, somos advertidos acerca do que devemos fazer, quando se trata de coisas fáceis, e o que pedir nas dificuldades. Tudo se torna fácil ao amor e somente para ele o fardo é leve (Mt 11,30). De acordo com o que afirmamos, está escrito: E os seus mandamentos não são pesados (1Jo 5,3). Os que pensam que são pesados considerem que, se não podem ser tidos como pesados pela palavra divina, é porque não são pesados. Isso porque despertam o amor no coração dos que consideram não serem pesados, e assim imploram que se remova a dificuldade para cumprir os preceitos. E tem o mesmo sentido o que foi dito ao povo de Israel no Deuteronômio para quem o interpretar com piedade, santidade e fé. O Apóstolo, depois de ter mencionado este testemunho, dizendo: Ao teu alcance está a palavra, em tua boca e em teu coração, diz: a saber, a palavra da fé que nós pregamos (Dt 30,14; Rm 10,8). O texto paulino registra "in manibus tuis" (em tuas mãos), pois no coração estão as mãos espirituais. Portanto, uma vez convertido, como diz o preceito, para o Senhor, seu Deus, de todo o coração e de toda a alma, não considerará pesado o seu mandamento. Como pode ser pesado, se é mandamento de amor? Ou alguémnão ama, e o preceito será pesado, ou ama, e, nesse caso, não pode ser pesado. E ama, se, como foi a advertência a Israel, se converter ao Senhor seu Deus de todo o seu coração e toda a sua alma. Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros (Jo 13,34) e: Quem ama o outro cumpriu a Lei; e: A caridade é a plenitude da Lei (Rm 13,8 10). De acordo com estas sentenças e esta outra: Se andassem por caminhos certos, considerariam transitáveis os caminhos da justiça (Pr 2,2). Por que está escrito: Segundo as palavras dos teus lábios, guardei os caminhos da Lei (Sl 17,4), senão porque as duas coisas são verdadeiras, ou seja, pesadas para o temor, leves, para o amor? Capítulo 70 - A vida da justiça caminha com a vida na caridade - O começo da vivência da caridade é o início da vida na justiça; o progresso na caridade leva ao progresso na justiça. A grandeza da justiça mede-se pela grandeza da caridade; a justiça perfeita é sinal de caridade perfeita. Mas trata-se da caridade que procede do coração puro, da consciência bem formada e da fé sincera. Esta caridade adquire perfeição maior nesta vida, quando pela outra vida se despreza a presente. Mas me admiraria, se não há de crescer, quando cessar esta vida. Onde e quando alcançará a plenitude de tal modo que não seja possível nenhum crescimento, não se creia que a caridade se difunde em nosso coração pela eficácia da natureza ou da vontade, que nos são próprias, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado. Ele socorre nossa fraqueza e colabora para nossa cura. Esta é a graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor, eterno e bom como o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém..

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Violetta Mann, 8th Avenue zip 10036. Cabo de Santo Agostinho: The Bronx (extension campus); 2011.

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