Curso Psicologia Puc Barueri

Jesuit - Contra as Heresias - Santo Irineu Denúncia e refutação da falsa gnose QUINTO LIVRO -- ESCATOLOGIA CRISTÃ (O quinto Livro também foi composto num plano de 3 partes, além do prefácio e conclusão: 1º - a ressurreição da carne: discussão e refutação da exegese gnóstica; 2º - a existência de um só Deus Criador e Pai, comprovada por três fatos da vida de Jesus; 3º - Deus Criador e Pai é um só: comprovação pelos ensinamentos das Escrituras sobre o fim dos tempos). PREFÁCIO - Nos quatro livros que te enviamos antes deste, caro amigo, apresentamos-te todos os hereges e expusemos as suas doutrinas; refutamos os que inventaram opiniões ímpias, quer a partir do ensinamento próprio de cada um deles, como se encontra nos seus escritos, quer pela exposição baseada em provas diversas. Demos a conhecer a verdade e pusemos em evidência a mensagem da Igreja, prenunciada, como dissemos, pelos profetas, levada à perfeição pelo Cristo, transmitida pelos apóstolos, dos quais a Igreja a recebeu e que ela somente guarda intacta em todo o mundo e apresenta a seus filhos. Eliminamos as dificuldades que os hereges nos apresentam, explicamos a doutrina dos apóstolos e expusemos em grande parte o que o Senhor disse em parábolas e o que fez. Neste quinto livro da nossa obra, que é exposição e refutação da pseudognose, procuraremos trazer argumentos tirados da restante doutrina do Senhor e das cartas do Apóstolo, como nos pediste. Anuímos ao teu pedido, porque somos encarregados do ministério da palavra e nos esforçamos de todas as formas, segundo a nossa capacidade, por apresentar-te o maior número possível de subsídios para contrabater os hereges, converter os que se afastaram e reconduzi-los à Igreja de Deus e, ao mesmo tempo, confirmar os neófitos para que se mantenham firmes na fé que receberam intacta da Igreja, para que de forma nenhuma se deixem corromper pelos que tentam ensinar-lhes o erro e afastá-los da verdade. Necessário será que tu e todos os que lerão este escrito o façam com grande aplicação, lendo o que foi escrito precedentemente, a fim de conhecer as teses às quais nos contrapomos; somente assim te poderás opor devidamente a elas e serás capaz de refutar todos os hereges, rejeitando como imundície as suas doutrinas, com a ajuda da fé celeste e seguindo o único Mestre, seguro e verídico, o Verbo de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, que na sua imensa caridade se fez o que nós somos para nos elevar ao que ele é. RESSURREIÇÃO DA CARNE A carne de Cristo -- Não teríamos absolutamente podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo Verbo, não se tivesse feito homem. Com efeito, nenhum outro nos podia revelar os segredos do Pai a não ser o seu próprio Verbo. "Quem mais conheceu os pensamentos do Senhor?” Ou "quem mais foi o seu conselheiro?" (Cf Jo 1,18; Rm 11,34). Por outro lado, não era possível aprender a não ser vendo o nosso Mestre e percebendo com nossos ouvidos a sua voz, para que imitando as suas ações e praticando as suas palavras tivéssemos comunhão com ele e dele, que é perfeito desde antes da criação, recebêssemos nós, criados há pouco, o crescimento; dele que é o único bom e excelente, recebêssemos a semelhança com ele; daquele que possui a incorruptibilidade, recebêssemos este dom, depois de sermos predestinados a ter a semelhança com ele; os que ainda não existíamos, fôssemos criados, segundo a presciência do Pai e no tempo determinado, pelo ministério do Verbo. Ele que é perfeito em tudo, Verbo onipotente e homem verdadeiro, que nos resgatou ao preço de seu sangue, como era conveniente ao Verbo, entregando-se como resgate em favor dos que se tornaram escravos. Sendo injustamente dominados, quando pertencíamos, por natureza, ao Deus onipotente, pela Apostasia (“Apostasia” ou “Rebelião”, termo abstrato que designa uma realidade concreta, pensada talvez por Ireneu como um significado etimológico. Aqui é usada para designar o demônio) que, contra a natureza, nos alienara e tornara seus discípulos, o Verbo onipotente e fiel, na sua justiça, voltou-se contra a própria Apostasia, resgatando o que era seu, não pela violência, como a que fizera no início, dominando sobre nós e apoderando-se insaciavelmente do que não era dela, mas pela persuasão, como era conveniente a Deus, e sem violência, tomou o que queria, para que, ao mesmo tempo, fosse salvaguardada a justiça e não perecesse a antiga obra modelada por Deus. Se, portanto, é pelo seu próprio sangue que o Senhor nos resgatou, se deu a sua alma pela nossa alma e sua carne pela nossa carne, se efundiu o Espírito do Pai para operar a união e a comunhão de Deus e dos homens, fazendo descer Deus até os homens pelo Espírito e elevando os homens até Deus pela sua encarnação, se nos concedeu, na sua vinda, com toda certeza e verdade, a incorruptibilidade pela comunhão que temos com ele, perdem todo o seu valor os ensinamentos dos hereges. -- Estultos são os que dizem que ele se manifestou somente de maneira aparente, pois não foi na aparência, e sim na realidade e verdade que se realizaram todas estas coisas. Se ele tivesse aparecido como homem sem o ser verdadeiramente, não teria permanecido o que realmente era, o Espírito de Deus, porque o Espírito é invisível, nem haveria nenhuma verdade nele, pois não teria sido o que aparecia. Dissemos precedentemente que Abraão e os outros profetas o viam de modo profético, profetizando em visões o futuro: se, portanto, também agora apareceu deste modo, sem ser realmente o que parecia, foi uma espécie de aparição profética que foi apresentada aos homens e devemos esperar por outra vinda do Senhor na qual se cumpra o que foi visto profeticamente. Como também dissemos que é a mesma coisa afirmar que se mostrou de maneira aparente e que não recebeu nada de Maria, porque não teria nem o sangue, nem a carne reais com os quais nos resgatou, se não recapitulasse em si mesmo a antiga obra modelada, isto é, Adão. Estultos são os discípulos de Valentim que afirmam isso para excluir a salvação vinda da carne e rejeitar a obra de Deus. -- Estultos também os ebionitas que se recusam a admitir nas suas almas, pela fé, a união de Deus com o homem e permanecem no velho fermento de seu nascimento. Eles não querem entender que o Espírito Santo sobreveio em Maria e que o poder do Altíssimo a cobriu com sua sombra e que, por isso, quem nasceu dela é o Filho de Deus altíssimo, o Pai de todas as coisas, que operou a encarnação de seu Filho, fazendo aparecer um novo nascimento, a fim de que, tendo nós herdado a morte pelo nascimento anterior, por este, herdássemos a vida. Eles recusam a mistura do vinho celeste e querem somente ser a água deste mundo, não aceitando que Deus se misture com eles e querendo permanecer neste Adão, vencido e afastado do paraíso. Eles não consideram que, como no início da nossa formação em Adão o sopro de vida vindo de Deus, unindo-se à obra modelada, vivificou o homem e o tornou animal racional, assim, no fim, o Verbo do Pai e o Espírito de Deus, unindo-se à antiga substância da obra modelada, isto é, Adão, tornaram o homem vivente e perfeito, capaz de entender o Pai perfeito, a fim de que, como todos nós morremos no homem animal assim todos sejamos vivificados no homem espiritual. Adão nunca fugiu das mãos de Deus às quais o Pai dizia: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". E eis por que no fim, "não pela vontade da carne nem pela vontade do homem, mas pela vontade do Pai" (Gn 1,26; Jo 1,13), as suas mãos tornaram o homem vivente, de forma que Adão se tornasse à imagem e semelhança de Deus. -- Estultos os que afirmam que Deus veio a mundo não seu, como se desejasse as coisas alheias, para apresentar o homem feito por outro a um deus que nem o fez, nem o criou, nem participou de alguma forma na sua produção. Sua vinda não seria justa, se como eles pretendem, veio a mundo não seu; nem nos resgatou verdadeiramente com seu sangue, se não se fez verdadeiramente homem. Mas, de fato, restaurou na obra por ele modelada o privilégio original do homem de ter sido feito à imagem e semelhança de Deus; por isso, ele não se apossou fraudulentamente das coisas dos outros, mas retomou o que era seu com toda justiça e bondade. Com justiça em relação à Apostasia, porque nos resgatou dela ao preço de seu sangue; com bondade em relação a nós, os resgatados, porque não lhe demos nada antecipadamente, nem ele nos pede nada, como se precisasse, mas somos nós que precisamos da comunhão com ele: por isso, entregou-se a si mesmo por pura bondade, para nos reunir no seio do Pai. A carne eucarística -- Estultos, completamente, os que rejeitam toda a economia de Deus, negam a salvação da carne, desprezam a sua regeneração, declarando ser ela incapaz de receber a incorruptibilidade. Mas se esta não se salva, então nem o Senhor nos resgatou no seu sangue, nem o cálice eucarístico é comunhão de seu sangue, nem o pão que partimos é a comunhão com seu corpo. Pois o sangue não pode brotar a não ser das veias, da carne e do resto da substância humana e é justamente por se ter tornado tudo isso que o Verbo de Deus nos remiu com seu sangue, como diz o seu Apóstolo: "Nele temos a redenção por seu sangue e a remissão dos pecados" (Cl 1,14). É por sermos seus membros que somos nutridos por meio das coisas criadas: ele próprio põe à nossa disposição as criaturas, fazendo o sol levantar-se e chover, como quer; ele ainda reconheceu como seu próprio sangue o cálice tirado da natureza criada, com o qual fortifica o nosso sangue, e proclamou ser seu próprio corpo o pão tirado da natureza criada com o qual se fortificam os nossos corpos. -- Se, portanto, o cálice que foi misturado e o pão que foi produzido recebem a palavra de Deus e se tornam a Eucaristia, isto é, o sangue e o corpo de Cristo, e se por eles cresce e se fortifica a substância da nossa carne, como podem pretender que a carne seja incapaz de receber o dom de Deus, que consiste na vida eterna, quando ela é alimentada pelo sangue e pelo corpo de Cristo, e é membro deste corpo? Como diz o bem-aventurado Apóstolo na carta aos Efésios: "Somos membros de seu corpo, formados pela sua carne e pelos seus ossos"; e não fala de algum homem pneumático e invisível - "porque o espírito não tem ossos nem carne" (Ef 5,30; Lc 24,39) Pause=0,35 mas da estrutura do homem verdadeiro, feito de carne, nervos e ossos, alimentado pelo cálice que é o sangue de Cristo e é fortificado pelo pão que é o seu corpo. Como a cepa de videira plantada na terra frutifica no seu tempo e o grão de trigo caindo na terra, decompondo-se, ressurge multiplicado pelo Espírito de Deus que sustenta todas as coisas e que, pela inteligência, são postas ao serviço dos homens e, recebendo a palavra de Deus, se tornam eucaristia, isto é, o corpo e o sangue de Cristo, da mesma forma os nossos corpos, alimentados por esta eucaristia, depois de ser depostos na terra e se terem decomposto, ressuscitarão, no seu tempo, quando o Verbo de Deus os fará ressuscitar para a glória de Deus Pai, porque ele dará a imortalidade ao que é mortal e a incorruptibilidade ao que é corruptível, pois o poder de Deus se manifesta na fraqueza (Tanto firme quanto impressionante é a teologia de Ireneu sobre a Eucaristia - que por sua vez está ligada à teologia da ressurreição. Cristo recapitula todo o cosmos no pão e no vinho, e estes elementos se transformam em Eucaristia e, portanto, em alimento dos homens; ela os capacita para receber a imortalidade e a incorruptibilidade de Cristo. A carne acostumada a receber o “Pão da Vida” será ressuscitada e verá a Deus. “É da grandeza de Deus e não de nossa natureza que temos a capacidade da vida eterna”). Não é pois de nós mesmos que temos a vida e, por isso, não nos podemos orgulhar nem nos elevar contra Deus, cultivando pensamentos de ingratidão, e, sabendo por experiência que é da sua grandeza e não da nossa natureza que temos a capacidade da vida eterna, não nos afastemos daquela glória de Deus como é em si mesmo, nem ignoremos a nossa natureza; para que aprendamos qual o poder de Deus e quais benefícios o homem recebe e não nos enganemos na compreensão do ser e do como as coisas existem, isto é, de Deus e do homem. Ademais, como dizíamos anteriormente, não permitiu Deus que acontecesse a nossa dissolução, a fim de que instruídos por todas as coisas estejamos bem atentos a tudo, sem ignorar nem a Deus nem a nós mesmos? O poder de Deus na fraqueza da carne -- O Apóstolo mostra com toda clareza que o homem foi deixado na sua fraqueza para que, enchendo-se de soberba, não se afastasse da verdade. Com efeito, ele diz na segunda carta aos Coríntios: "Para que não me enchesse de soberba pela sublimidade das revelações, foi-me dado um aguilhão na carne, um anjo de Satanás, para me esbofetear. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim; e me disse: Basta-te a minha graça, porque a força manifesta todo o seu poder na fraqueza. Por conseguinte, com todo ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas para que pouse sobre mim a força de Cristo" (2Cor 12,7-9). Pois bem, dirá alguém, o Senhor quis que seu Apóstolo fosse assim esbofeteado e suportasse tal fraqueza? Sim, responde o Verbo, a força manifesta todo o seu poder na fraqueza, tornando melhor aquele que, pela fraqueza, conhece o poder de Deus. Como o homem poderia saber que é fraco e mortal por natureza, ao passo que Deus é imortal e poderoso se não tivesse experimentado o que está em ambos? Aprender na paciência a própria fraqueza não é mal, mas, antes, é bem para ele o não se equivocar a respeito da própria natureza. Encher-se de soberba contra Deus e presumir possuir sua glória, com grande ingratidão do homem, seria grande mal, que o privaria do amor e da verdade e do amor para com o seu Criador. Porém, com a experiência dos dois produziu nele o verdadeiro conhecimento de Deus e do homem e aumentou o seu amor por Deus. E onde há aumento de amor, será conferida também pelo poder de Deus glória mais abundante aos que o amam. -- Desprezam o poder de Deus e não prestam atenção à verdade os que olham para a fraqueza da carne e não consideram o poder daquele que a ressuscita da morte. Com efeito, se ele não vivificasse o que é mortal e não levasse à incorruptibilidade o que é corruptível deixaria de ser poderoso. Mas devemos constatar que ele é poderoso em todas estas coisas e a nossa origem no-lo deve dar a compreender: pois foi tomando um pouco de lodo da terra que Deus modelou o homem. Ora, é muito mais difícil e incrível que tenha feito existir do nada ossos, nervos e veias, e todos os elementos que constituem o organismo humano, dando-lhe o ser, criando-o animal vivo e racional do que reconstituí-lo, quando, depois de criado, se tenha decomposto na terra, pelos motivos apresentados acima, se bem que tenha acabado naqueles elementos dos quais foi feito no princípio, quando nada era feito. De fato, aquele que no princípio e quando quis fez o que não existia, com maior razão, querendo, pode ressuscitar os que já tiveram a vida concedida por ele. Por outro lado, a carne se encontrará capaz de receber e conter o poder de Deus como no princípio recebeu a sua arte. Uma coisa se tornou olho para ver; outra, ouvido para escutar; outra, mão para tocar e trabalhar; outra, nervos esticados para conter os membros; outra, artéria e veias caminho do sangue e do respiro; outra, as diferentes vísceras; outra, o sangue, ponto de ligação da alma e do corpo. E que mais? É impossível enumerar os elementos deste corpo criado que somente podiam ser feitos pela profunda sabedoria de Deus. O que participa da arte e da sabedoria de Deus, participa também do seu poder. -- A carne não é, portanto, estranha à sabedoria e ao poder de Deus, mas o poder daquele que dá a vida se manifesta na fraqueza, isto é, na carne. Digam-nos, os que afirmam que a carne é incapaz de receber a vida que Deus dá: fazem esta afirmação estando atualmente vivos e participando da vida ou reconhecem que estão completamente privados de vida e presentemente mortos? Se estiverem mortos, como podem movimentar-se, falar e fazer tudo o que os vivos fazem, mas não os mortos? Se, presentemente, estão vivos, se todo o seu corpo participa da vida, como podem dizer que a carne é incapaz de participar da vida, visto que reconhecem ter a vida neste momento? É como se segurassem entre as mãos uma esponja embebida em água ou uma tocha acesa e depois dissessem que a esponja não pode reter a água ou a tocha a chama. Da mesma forma, enquanto asseguram estar vivos e se gloriam de trazer a vida em seus membros, contradizendo-se a si mesmos, dizem que seus membros são incapazes de receber a vida. Se esta vida temporal, muito menos vigorosa do que a vida eterna é bastante forte para vivificar os nossos membros mortais, por que a vida eterna, que é muito mais eficaz, não vivificaria a carne que já se exercitou e acostumou a viver? Que a carne é capaz de receber a vida mostra-se pelo fato de ela viver: de fato, vive enquanto Deus quer que viva. E que Deus seja capaz de dar a vida é evidente: nós vivemos porque ele nos dá a vida. Posto que Deus pode dar a vida à obra modelada por ele e a carne é capaz de receber esta vida, o que ainda lhe impossibilita receber a incorruptibilidade que é a vida sem término nem fim que Deus lhe comunica? -- Ora, até sem se darem conta, os que imaginam um Pai além do Demiurgo e lhe atribuem o título de bom, fazem deste Pai um ser fraco, inoperante e negligente, para não dizer ciumento e invejoso, dizendo que ele não vivifica os nossos corpos. Afirmando que algumas coisas conhecidas por todos são imortais, como o espírito, a alma e coisas desta espécie, e que abandona as outras que não podem ser vivificadas a não ser que Deus lhe dê a vida, apresentam a prova de que o seu Pai é fraco, ocioso, negligente e invejoso. Ora, se o Demiurgo vivifica desde agora os nossos corpos mortais e lhes promete a ressurreição por meio dos profetas, como o mostraremos, qual deles se mostra mais poderoso, forte e bom? O Demiurgo que vivifica todo o homem ou o seu pretenso Pai que finge vivificar as coisas imortais e que possuem a vida por sua própria natureza e negligentemente abandona à morte, antes de vivificá-las com bondade, as que precisam de seu socorro para viver? O Pai deles não dá a vida porque não quer ou porque não pode? Se não pode, é porque não é mais poderoso nem mais perfeito do que o Demiurgo, pois o Demiurgo dá, como é fácil ver, o que aquele é incapaz de oferecer. Se, pelo contrário, recusa-se a dar a vida quando o poderia, está demonstrado que não é Pai bom, mas Pai invejoso e negligente. -- Se, por acaso, dizem que há um motivo pelo qual o seu Pai não vivifica os corpos, necessariamente este motivo é mais forte que o Pai, pois limita a sua bondade e então esta parece enfraquecida por este pretenso motivo. Que os corpos são capazes de receber a vida, todos estão cansados de saber; com efeito, vivem pelo tempo que Deus quer que vivam e por isso não podem dizer que são incapazes de receber a vida. Se, portanto, não são vivificados, por alguma necessidade ou motivo, os que têm a possibilidade de receber a vida o seu Pai estará submetido a esta necessidade e a este motivo e não será mais livre e autônomo nas suas decisões. Os corpos podem viver por muito tempo -- Além disso, os corpos podem viver por muito tempo, quanto Deus quiser; leiam as Escrituras e verão que os antepassados passaram dos setecentos, oitocentos e novecentos anos e seus corpos atingiam a longevidade dos dias e viviam o tempo todo que Deus queria. Mas, por que havemos de falar deles, quando Enoc, que agradou a Deus, foi transferido naquele mesmo corpo com que agradou a Deus, prefigurando a transladação dos justos, e Elias foi levado, assim como se encontrava na substância da sua carne, prenunciando profeticamente a assunção dos homens espirituais. O seu corpo não impediu em nada a sua transladação e assunção; por aquelas mãos que no princípio os plasmou foram assuntos e transferidos (Cf Sl 23,6; 91,16; Gn 5,24; Sb 4,10; 2Rs 2,11). As mãos de Deus estavam acostumadas com Adão a unir, sustentar e levar a obra plasmada por elas, a transportá-la e situá-la onde queriam. Onde foi posto o primeiro homem? No paraíso, sem dúvida, como diz a Escritura: "Deus plantou um paraíso no Éden, do lado do oriente, e aí pôs o homem que tinha plasmado" (Gn 2,8). E foi de lá que foi expulso para este mundo, por ter desobedecido. E os presbíteros, discípulos dos apóstolos, dizem que foi para lá que foram levados os que foram transferidos - com efeito, é para os justos que possuem o Espírito que foi preparado o paraíso, aonde também foi levado o apóstolo Paulo e onde ouviu aquelas palavras que para nós agora são indizíveis - e é aí que ficarão até a consumação final, estreando assim a incorruptibilidade. -- Se alguém julga impossível que homens possam viver por tanto tempo, e que Elias não foi levado na sua carne, porque esta teria sido queimada pelo carro de fogo, observe que Jonas, lançado no fundo do mar e absorvido no interior do cetáceo, foi cuspido de volta por ordem de Deus; e Ananias, Azarias e Misael, lançados na fornalha de fogo, aquecida sete vezes mais, não sofreram nenhum dano, nem ficaram com nenhum cheiro de queimado. Ora, se a mão de Deus esteve presente operando coisas impensadas e impossíveis à natureza humana, o que há de admirar se naqueles que foram assuntos operou alguma coisa de extraordinário, executando a vontade do Pai? Esta mão é o Filho de Deus, conforme a palavra que a Escritura põe na boca do rei Nabucodonosor: "Não foram três os homens que lançamos na fornalha? E agora eu vejo quatro andando no meio do fogo e o quarto é semelhante a filho de Deus" (Dn 3,91-92). Não há, portanto, nenhuma natureza criada, nenhuma fraqueza da carne que sejam mais fortes do que a vontade de Deus, pois Deus não está sujeito às criaturas, mas estas estão submetidas a Deus e todas as coisas estão à serviço da sua vontade. Por isso o Senhor diz: "O que é impossível aos homens é possível a Deus". Como, portanto, aos homens de hoje, que ignoram a economia de Deus, parece impossível e incrível que um homem possa viver tantos anos - contudo os antepassados viveram tanto e vivem os que foram transferidos, para prefigurar a duração futura dos dias - e que se possa sair incólume do ventre de cetáceo e da fornalha de fogo, - contudo eles saíram como que conduzidos pela mão de Deus, para mostrar o seu poder - assim agora há os que, ignorando o poder e a promessa de Deus, negam a própria salvação, julgando impossível possa Deus ressuscitar os seus corpos e dar-lhes duração eterna; contudo, a incredulidade desses não anulará a fidelidade de Deus. O homem é alma, corpo e espírito -- Deus será glorificado na sua criatura, conformada e modelada ao seu próprio Filho, pois, pelas mãos do Pai, isto é, por meio do Filho e do Espírito, o homem, e não uma sua parte, torna-se semelhante a Deus. A alma e o Espírito podem ser uma parte do homem, não o homem todo; o homem perfeito é composição e união da alma que recebe o Espírito do Pai e está unida à carne, plasmada segundo a imagem do Pai. Por isso o Apóstolo diz: Falamos de sabedoria entre os perfeitos, chamando perfeitos os que receberam o Espírito de Deus e que falam todas as línguas graças a este Espírito, como ele fazia e como ainda ouvimos muitos irmãos na Igreja, que possuem o carisma profético e que, pelo Espírito, falam em todas as línguas, revelam as coisas escondidas dos homens, para sua utilidade e expõem os mistérios de Deus. São estes que o Apóstolo chama de espirituais, porque são espirituais pela participação do Espírito, mas não por uma expulsão e supressão da carne. Com efeito, se é eliminada a substância da carne, isto é, da obra plasmada, e só se considera o que é propriamente espírito, isso já não é o homem espiritual, e sim o espírito do homem ou o Espírito de Deus. Quando, porém, este Espírito mistura-se com a alma e se une à obra modelada, pela efusão deste Espírito, realiza-se o homem espiritual e perfeito, e é este mesmo que foi feito à imagem e semelhança de Deus. Se, porém, falta o Espírito à alma, este homem será verdadeiramente psíquico e carnal, mas imperfeito, porque possuiria a imagem de Deus enquanto criatura modelada, mas não teria recebido a semelhança por meio do Espírito. Se este é imperfeito, ainda mais o será, pois tirando-lhe a imagem e rejeitando a obra modelada, já não se pode reconhecer o homem, mas, como dissemos, somente uma sua parte ou uma coisa diferente dele. Tampouco a carne modelada é de per si o homem perfeito, mas é o corpo do homem e uma parte dele; nem a alma, sozinha, é o homem, mas uma parte do homem; como nem o Espírito é homem, de fato, dá-se-lhe o nome de Espírito e não de homem, mas é a composição e a união destes elementos que constitui o homem perfeito (O homem é alma, corpo e espírito. A caracterização do homem como corpo, alma e espírito não é uma definição em Ireneu. Igualmente não se pode entender estes elementos desde uma concepção helenística. Importa, isto sim, ter presente o sentido semita de homem e a própria descrição do autor na qual o Espírito de Deus entra na realidade do homem perfeito. Desse modo, não há aí nem o dualismo nem a tricotomia dos helênicos). Por isso o Apóstolo, explicando o seu pensamento, definiu claramente o homem perfeito e espiritual, partícipe da salvação, quando diz na sua primeira carta aos Tessalonicenses: "O Deus da paz santifique a vós, os perfeitos, e o vosso espírito, a alma e o corpo se jam guardados plenamente acabados e sem repreensão para a vinda do Senhor Jesus" (1Ts 5,23). Qual motivo poderia ter de pedir a perfeita conservação para a vinda do Senhor destas três coisas, a alma, o corpo e o Espírito, se não soubesse que as três devem ser restauradas e reunidas e que para elas há uma só e idêntica salvação? É por isso que diz plenamente acabados os que apresentam, sem repreensão, ao Senhor estas três coisas. São perfeitos, portanto, os que possuem sempre o Espírito de Deus, guardarão sem repreensão as almas e os corpos, conservando a fé em Deus e cumprindo a justiça para com o próximo. -- Por isso diz que a criatura é o templo de Deus: "Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Quem profana o templo de Deus será destruído por Deus: o templo de Deus, que sois vós, é santo" (1Cor 3,16-17), evidentemente chamando o corpo de templo em que habita o Espírito. Também o Senhor, falando de seu corpo, dizia: "Destruí este templo e em três dias eu o reedificarei" (Jo 2,19 21). E isto dizia de seu corpo, comenta a Escritura. E não somente sabe que os nossos corpos são templos, mas são membros de Cristo, quando diz aos coríntios: "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei então os membros de Cristo para torná-los membros de meretriz?” Não é de nenhum homem pneumático que diz isto, pois este não se poderia unir a meretriz, mas chama o nosso corpo, isto é, a carne, que persevera na santidade e pureza, membro de Cristo, porém, quando abraça uma meretriz, se torna membro dela. Por isso disse: "Quem profana o templo de Deus será destruído por Deus" (1Cor 6,15; 3,17). Não é, portanto, a maior ofensa dizer que o templo de Deus, no qual habita o Espírito do Pai e os membros de Cristo não participam da salvação, mas vão para a perdição? O Apóstolo diz aos coríntios que os nossos corpos ressuscitarão, não pela sua natureza, mas pelo poder de Deus: "O corpo não é para a fornicação, mas para o Senhor e o Senhor para o corpo; e Deus que ressuscitou o Senhor ressuscitará também a nós, pelo seu poder" (1Cor 6,13-14). O penhor da ressurreição -- Como Cristo ressuscitou na substância da sua carne e mostrou aos discípulos os sinais dos pregos e a abertura do lado - estes são os sinais da sua carne ressuscitada dos mortos, - assim ele diz: Deus ressuscitará também a nós pelo seu poder. E aos romanos diz: "Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, aquele que ressuscitou o Cristo dos mortos vivificará os vossos corpos mortais" (Rm 8,11). O que são os corpos mortais? Serão as almas? Mas as almas são incorporais em comparação aos corpos mortais. Com efeito, Deus soprou no rosto do homem "o sopro de vida e o homem se tornou alma vivente": o sopro de vida é incorporal. Assim como não podem dizer que a alma é mortal porque o sopro de vida permanece - com efeito, Davi diz: "E a minha alma viverá para ele " (Gn 2,7; Sl 22,31), visto ser a sua substância imortal, - assim não podem dizer que o Espírito é corpo mortal. O que fica então para ser denominado corpo mortal a não ser a obra modelada por Deus, isto é, a carne, aquilo que o Apóstolo declara que Deus vivificará? É esta que morre e se decompõe e não a alma ou o Espírito. Morrer é perder a capacidade vital, ficar em seguida sem o sopro, sem a vida, sem os movimentos e decompor-se nos elementos dos quais teve início a existência. Ora, isso não pode acontecer com a alma, porque é sopro de vida, nem com o espírito por ser simples e não composto e por ser ele a vida dos que o recebem. Resta que a morte se manifeste na carne a qual, com a saída da alma, fica sem respiração e sem vida e lentamente se decompõe na terra de onde foi tirada. É esta, pois, que é mortal. E é dela que o Apóstolo diz: "Ele vivificará os vossos corpos mortais". Por isso afirma na primeira carta aos Coríntios: "Assim acontecerá na ressurreição dos mortos: semeia-se na corrupção, ressuscitará na incorrupção". Com efeito, ele diz: "O que tu semeias não é vivificado se primeiro não morre" (Rm 8,11; 1Cor 15,42 36. A carne humana - que se tornou carne de Deus, no Verbo - ressuscitará pelo poder de Deus; isto é: o homem na sua totalidade será ressuscitado por Deus, pois preparado pelo Espírito, progressivamente vai se habituando para participar da vida de Deus, da glória de Deus. A carne ressuscitará incorruptível, espiritual e gloriosa, isto é: transformada pelo Espírito). -- O que é semeado como o grão de trigo e se desfaz na terra? Não são os corpos que são depositados na terra onde se lança a semente? Por isso diz: "Semeia-se no aviltamento, ressuscitará na glória". O que há de mais aviltado do que a carne morta? Ao contrário, o que é mais glorioso do que ela quando ressuscita e recebe o dom da incorruptibilidade? "Semeia-se na fraqueza, ressuscitará no poder". A fraqueza da carne, sendo terra acaba na terra; o poder de Deus, porém, a ressuscita da morte. "Semeia-se um corpo psíquico, ressuscitará corpo espiritual". Sem dúvida, nos ensina que não fala da alma, nem do espírito, mas de corpos submetidos à morte; estes corpos são psíquicos, isto é, têm a alma, mas se a perdem, morrem; em seguida, pelo Espírito ressurgem, tornando-se corpos espirituais e perseverando, sempre por obra do Espírito, possuem uma vida que dura para sempre. Porque, agora, diz, "conhecemos em parte, e profetizamos parcialmente, então será face a face". A mesma coisa diz Pedro: "O amais sem tê-lo visto, e nele credes agora sem tê-lo visto, mas crendo exultareis com alegria inexprimível" (1Cor 15,43 44; 13,9 12; 1Pd 1,8). O nosso rosto verá o rosto de Deus e se alegrará de alegria inexprimível, pois ele verá a sua alegria. O penhor é o Espírito -- Agora recebemos uma parte de seu Espírito para nos predispor e preparar à incorruptibilidade, habituando-nos paulatinamente a compreender e a trazer Deus. É a isto que o Apóstolo chama penhor, isto é, parte daquela glória prometida por Deus, quando na carta aos Efésios diz: "É nele que também vós, depois de ter ouvido a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, é nele que, depois de ter crido, fostes marcados com o selo do Espírito Santo da promessa, que é o penhor de nossa herança" (Ef 1,13-14). Se, portanto, esse penhor que habita em nós nos torna espirituais e se o que é mortal é absorvido pela imortalidade - "Pois vós, diz, não estais na carne, mas no Espírito, se o Espírito de Deus habita em vós" - e se, por outro lado, isto se realiza, não pela rejeição da carne, e sim pela comunhão do Espírito - pois aqueles aos quais escrevia não eram seres desencarnados, mas pessoas que tinha recebido o Espírito de Deus "no qual gritamos: `Abba', Pai!” (Rm 8,9 15) Pause=0,35 se portanto, já agora, por ter recebido este penhor, "gritamos: Abba, Pai!” o que acontecerá quando, ressuscitados, o veremos face a face? Quando de todos os membros brotará copiosamente o hino de exultação, glorificando aquele que os ressuscitou da morte, dando-lhes a vida eterna? Se este penhor, envolvendo o homem em si, já lhe faz dizer: "Abba, Pai!” o que não fará toda a graça do Espírito que Deus dará aos homens? Ela nos tornará semelhantes a ele e cumprirá a vontade do Pai, pois, fará o homem à imagem e semelhança de Deus. -- Os que possuem, pois, o penhor do Espírito, não servem mais às concupiscências da carne, submetem-se ao Espírito e vivem em tudo conforme à razão, são justamente chamados espirituais pelo Apóstolo, porque o Espírito de Deus habita neles. Ora, espíritos desprovidos de corpo não são homens espirituais, mas a nossa natureza, isto é, a união da alma e do corpo que recebe o Espírito de Deus constitui o homem espiritual. Aqueles, porém, que recusam os conselhos do Espírito e se submetem aos prazeres da carne e vivem de modo contrário à razão e se abandonam sem freios às suas paixões, como os que não recebem nenhuma inspiração do Espírito e vivem como porcos ou cães, justamente são chamados carnais pelo Apóstolo, porque só têm sensibilidade para as coisas carnais. Já os profetas, por estes mesmos motivos, equipararam-nos aos animais irracionais. Assim, por causa de sua conduta contrária à razão, diziam: "Tornaram-se como garanhões no cio, cada um relinchando para a mulher de seu próximo"; e ainda: "O homem que fora cumulado de honra, se tornou semelhante aos jumentos" (Jr 5,8; Sl 49,13 21); é por sua culpa que o homem se torna semelhante aos jumentos emulando sua vida irracional. Também nós costumamos chamar essas pessoas jumentos e brutos. -- Tudo isso foi prefigurado pela Lei que descreve os homens por meio de animais: declarando puros os animais com o casco partido em duas unhas e que ruminam e impuros aqueles aos quais faltavam as duas coisas ou uma delas. Então, quais são os homens puros? Os que caminham firmemente, na fé, para o Pai e o Filho - essa é a estabilidade dos que têm unha dupla - e que meditam as palavras do Senhor, dia e noite, para se adornar de boas obras - esta é a virtude dos ruminantes. - Impuros, ao contrário, são os que não têm duas unhas e não ruminam, isto é, os que não têm fé em Deus e não meditam as suas palavras: essa é a abominação dos pagãos. Os animais que ruminam, mas não têm duas unhas, também são impuros: esta é a imagem dos judeus, os quais têm as palavras de Deus em sua boca, mas não afundam a estabilidade de suas raízes no Pai e no Filho: por isso a sua raça é instável. Com efeito, os animais com uma unha só escorregam facilmente e os que têm duas unhas são mais estáveis, porque elas se sucedem uma à outra conforme a marcha e uma sustenta a outra. Também são impuros os animais com duas unhas, mas não ruminam: é o símbolo de quase todos os hereges, de todos os que não meditam as palavras de Deus e não se adornam com as obras da justiça. O Senhor diz a eles: "Por que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos digo?" (Lc 6,46). Estes dizem que crêem no Pai e no Filho, mas não meditam as palavras de Deus como convém e não se adornam com as obras de justiça, mas, como dissemos, abraçaram a maneira de viver dos porcos e dos cães, abandonando-se à impureza, à gula e a todas as paixões. Os que não têm o Espírito divino por causa da sua incredulidade e luxúria e de várias maneiras recusam o Verbo que lhes dá a vida e, sem refletir, vivem nas suas paixões, o Apóstolo os chama justamente carnais e psíquicos, os profetas chamam-nos jumentos e feras e, na linguagem corrente, animais e irracionais, e a Lei os declara impuros. Carne sem respiração -- Este pensamento é expresso pelo Apóstolo em outro lugar, no qual diz: "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus" (1Cor 15,50). Estas palavras são interpretadas pelos hereges, segundo a sua demência, para demonstrar que a criatura de Deus não se pode salvar. Eles não vêem que são três os elementos, como dissemos, que constituem o homem perfeito: a carne, a alma e o Espírito; um que salva e plasma, isto é, o Espírito; outro, que é unido e formado, isto é, a carne; e o terceiro, que se encontra entre estes dois, isto é, a alma, que ora segue o Espírito e é elevada por ele, ora se deixa convencer pela carne e cai nas concupiscências terrenas (Apegam-se os gnósticos à citação paulina enunciada acima para concluir a impossibilidade de salvação da obra modelada por Deus, e, portanto, da ressurreição da carne. Ireneu precisa e completa o pensamento do Apóstolo descrevendo o homem em movimento e evidenciando a dinâmica do progresso rumo à perfeição, graças à sinergia das Duas Mãos divinas. O Espírito assimila, o corpo é assimilado, a alma é o órgão pelo qual o Espírito assimila. Os três elementos cooperam e interferem em proporções diferentes). Os que não possuem o elemento que salva e forma para a vida são carne e sangue e serão chamados justamente assim, porque não têm neles o Espírito de Deus. Por isso ainda o Senhor os chama mortos: "Deixai, diz ele, que os mortos enterrem seus mortos" (Lc 9,60), porque não possuem o Espírito que vivifica o homem. -- Os, porém, que temem a Deus e crêem na vinda de seu Filho e, mediante a fé, põem o Espírito de Deus no seu coração, serão justamente chamados homens puros, espirituais, viventes para Deus, porque possuem o Espírito do Pai que purifica o homem e o eleva à vida de Deus. O Senhor afirma que a carne é fraca e o espírito está pronto, isto é, é capaz de cumprir o que deseja. Portanto, se alguém misturar, como aguilhão, a prontidão do Espírito à fraqueza da carne, aquilo que é forte necessariamente superará o fraco, a fraqueza da carne será absorvida pela força do Espírito e quem era carnal será doravante espiritual, graças à comunhão do Espírito. Assim os mártires testemunham e desprezam a morte não segundo a fraqueza da carne, e sim conforme à prontidão do Espírito. A fraqueza da carne desapareceu para manifestar o poder do Espírito; o Espírito, absorvendo a fraqueza, possui em si a carne e estes dois elementos constituem o homem vivo: vivo pela participação do Espírito, homem, pela substância da carne. -- Por isso a carne sem o Espírito de Deus está morta, privada da vida, incapaz de possuir o reino de Deus; o sangue, irracional, é como água derramada na terra. Eis por que o Apóstolo diz: "Qual foi o homem terrestre, tais são os terrestres" (1Cor 15,48). Mas onde há o Espírito do Pai há o homem vivo, um sangue racional sobre o qual Deus vigia para vingá-lo, uma carne possuída pelo Espírito, a qual, esquecendo o que é, adquire a qualidade do Espírito e se torna conforme ao Verbo de Deus. Por isso o Apóstolo diz: "Como trazemos a imagem do homem terreno assim possamos trazer a imagem do homem celeste" (1Cor 15,49). O que é este terreno? A obra plasmada. O que é este celeste? O Espírito. Por isso, como outrora vivemos sem o Espírito celeste na vetustez da carne, não obedecendo a Deus, assim agora que recebemos o Espírito andemos em novidade de vida, obedecendo a Deus. Desde que não nos podemos salvar sem o Espírito de Deus, o Apóstolo exorta-nos a conservar este Espírito de Deus, pela fé e por vida casta, para que não percamos o reino dos céus, pela falta deste Espírito divino. E afirma solenemente que a carne só e o sangue não podem obter o reino de Deus. -- Na realidade, ela não o possui, mas é possuída, de acordo com o que o Senhor diz: "Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra" (Mt 5,4), no sentido de que no reino será possuída em herança a terra da qual deriva a substância da nossa carne. Por isso quer que o templo seja puro para que o Espírito se deleite nele como o esposo na esposa. Como a esposa não pode unir-se por casamento, mas é casada quando o esposo vier e a tomar, assim a carne, por si só, não pode herdar o reino de Deus, mas pode ser recebida em herança, no reino, pelo Espírito. É o vivo que recebe em herança os bens do morto; uma coisa é possuir em herança e outra ser possuído; o herdeiro é dono, manda e dispõe como quer da herança; o que é herdado, ao contrário, está submetido ao herdeiro, lhe obedece e está sob o seu domínio. Qual é, portanto, o que vive? É o Espírito de Deus. E quais são os bens do morto? São os membros do homem que se decompõem na terra. São eles que são recebidos pelo Espírito e transferidos ao reino dos céus. Foi por isso que o Cristo morreu, para que o testamento do Evangelho, aberto e lido ao mundo inteiro, primeiramente libertasse seus escravos e depois os fizesse herdeiros dos seus bens, na herança possuída pelo Espírito, como dissemos acima: é o vivo que é o herdeiro e é a carne que é recebida em herança. Para que não percamos a vida ao perder o Espírito que nos possui como herança e para nos exortar à comunhão do Espírito tem razão ao dizer o Apóstolo as palavras já citadas: "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus"; como se dissesse: "Tomai cuidado, se o Verbo de Deus não habita em vós e se não tendes em vós o Espírito do Pai; se viveis vida vã e sem finalidade, como se não fôsseis senão carne e sangue, não podereis herdar o reino de Deus" (1Cor 15,50; Cf 1Cor 6,9; 15,33). O enxerto do Espírito -- Isso ele o diz para que não rejeitemos o enxerto do Espírito, por amor da carne. Com efeito, diz, "tu, que eras oliveira silvestre, foste enxertado na oliveira mansa e te beneficiaste da sua abundante seiva" (Rm 11,17 24). Se uma oliveira silvestre, depois de enxertada continua silvestre como era antes, será cortada e lançada ao fogo. Se, porém, conserva o enxerto e se transforma em oliveira mansa e se torna frutífera, é como se fosse plantada no jardim do rei. Sucede o mesmo com os homens: se pela fé progridem para o melhor, recebem o Espírito de Deus e produzem os seus frutos, serão espirituais e como que plantados no jardim de Deus; se, porém, rejeitam o Espírito e continuam a ser os de antes, querendo ser antes carne do que Espírito, justamente poder-se-á dizer de-les: "que a carne e o sangue não herdarão o reino de Deus", como a dizer que uma oliveira silvestre não será admitida no jardim de Deus. O Apóstolo, portanto, mostra admiravelmente a nossa natureza e toda a economia de Deus, quando fala de carne, de sangue e de oliveira silvestre. Como a oliveira abandonada por muito tempo no deserto começa a dar frutos silvestres e se torna brava, e se esta oliveira brava é tratada e enxertada numa oliveira mansa voltará à fertilidade primitiva, assim os homens, tornados negligentes e produzindo estes frutos silvestres que são as paixões carnais, tornam-se, por sua culpa, estéreis em frutos de justiça - pois é quando os homens dormem que o inimigo semeia o joio e por isso o Senhor ordena aos seus discípulos que estejam vigilantes; - mas se estes homens, estéreis em frutos de justiça e como cultura invadida pelo mato, são rodeados de cuidados e recebem, como enxerto, a palavra de Deus, voltam à natureza primitiva do homem, a que foi criada à imagem e semelhança de Deus. -- Como a oliveira silvestre quando enxertada não perde a substância da sua matéria, e sim muda a qualidade de seus frutos e recebe outro nome, porque não é mais oliveira silvestre, mas oliveira fértil e é chamada assim, o mesmo se verifica no homem que é enxertado pela fé e recebe o Espírito de Deus; não perde a natureza da carne, e sim muda a qualidade dos frutos que são as suas obras e recebe outro nome que indica a sua transformação para melhor, porque não é, nem mais é chamado carne e sangue, e sim homem espiritual. E como a oliveira silvestre, que não foi enxertada, continua sem utilidade para o seu proprietário por causa da sua qualidade silvestre, é cortada e lançada ao fogo, como árvore estéril; assim o homem que não recebe pela fé o enxerto do Espírito, continua sendo o que era antes, isto é, "carne e sangue e não pode receber a herança do reino de Deus". Por isso, com razão o Apóstolo diz: "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus"; e: "Os que estão na carne não podem agradar a Deus"; não renegando a natureza da carne, mas exigindo a infusão do Espírito. É por isso que diz: É necessário que este ser mortal revista a imortalidade e este ser corruptível revista a incorruptibilidade. Ele diz ainda: "Vós não permaneceis na carne, mas no Espírito, pois o Espírito de Deus habita em vós". E o mostra ainda mais claramente quando diz: "O corpo é morto por causa do pecado, mas o Espírito é vida por força da justiça. Ora, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus da morte habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo vivificará também os vossos corpos mortais por causa do seu Espírito que habita em vós". Ele diz ainda na carta aos Romanos: "Se viveis segundo a carne começareis a morrer". Com isso ele não quer negar a vida deles na carne - ele próprio estava na carne quando lhes escrevia - mas exortava-os a afastar as concupiscências carnais que matam o homem. Por isso acrescentou: "Mas se pelo Espírito mortificareis as obras da carne, vivereis; porque os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (1Cor 15,50; Rm 8,8; 1Cor 15,53; Rm 8,9-11 13 14). As obras da carne e os frutos do Espírito -- Depois explica quais são as obras que chama carnais, prevendo as calúnias dos infiéis e dá a explicação das suas palavras para não deixar dúvidas aos que as perscrutariam com incredulidade. Ele diz na carta aos Gálatas: "As obras da carne são manifestas; elas são: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdias, divisões, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni; os que tais coisas praticam não herdarão o reino de Deus" (Gl 5,19-21), explicando assim, claramente, para quem escuta, o que significa "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus". Com efeito, os que praticam estas obras, procedendo verdadeiramente segundo a carne não podem viver para Deus. Por outro lado, acrescenta atos espirituais que vivificam o homem, isto é, a enxertia do Espírito e enumera-os: "Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio; contra estas coisas não existe lei" (Gl 5,22-23). Assim como quem progride para melhor e produz o fruto do Espírito, de qualquer forma será salvo por causa da comunhão do Espírito, assim também quem permanece nas obras da carne, de que falamos, será julgado verdadeiramente carnal, porque não recebe o Espírito de Deus e, por conseguinte, não poderá herdar o reino dos céus. O próprio Apóstolo afirma aos coríntios: "Então não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos iludais, diz, nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o reino de Deus. E alguns de vós, diz, foram isso; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e do Espírito de nosso Deus" (1Cor 6,9-11). Com estas palavras indica de maneira evidente o que arruína o homem, se continua a viver segundo a carne, e o que o salva. O que o salva, diz, é "o nome do Senhor nosso Jesus Cristo e o Espírito do nosso Deus". -- Depois de ter enumerado as obras funestas da carne, privada do Espírito, e em conseqüência do que acaba de dizer, conclui a carta, resumindo assim a sua doutrina: "E, assim, como trouxemos a imagem do homem terrestre, também traremos a imagem do homem celeste. Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus" (1Cor 15,49-50). A frase: "como trouxemos a imagem do homem terrestre" tem o mesmo sentido da outra: "E alguns de vós foram isso; mas vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e do Espírito de nosso Deus". Quando trouxemos a ima gem do que é terrestre? Quando se cumpriam em nós as obras da carne de que falamos. E quando trouxemos a imagem do homem celeste? Quando, ele diz, vos lavastes, crendo em nome do Senhor e recebendo o seu Espírito. Fomos lavados não da natureza corporal, nem da imagem da criação, mas da vã conduta anterior. Por isso nos mesmos membros com os quais nos perdemos, cumprindo as obras da corrupção, somos agora vivificados, cumprindo as obras do Espírito. A obra do Espírito -- Como a carne é capaz de corrupção assim o é de incorrupção; como é capaz de morte o é também de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e não ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem, afasta-lhe a mor-te e o restituirá vivo a Deus. Se a morte fez morrer o homem, por que a vida, ao sobrevir, não o vivificaria? Como diz o profeta Isaías: "No seu poder a morte devorou"; e ainda: "Deus enxugará todas as lágrimas de todos os rostos" (Is 25,8). Ora a primeira vida foi expulsa porque foi conferida por meio de um sopro e não pelo Espírito. -- Uma coisa é o sopro de vida que faz o homem psíquico e outra coisa é o Espírito vivificante que o torna espiritual. Por isso Isaías diz: "Assim fala o Senhor, que fez o céu e o firmou, que consolidou a terra e o que ela encerra, que deu o sopro ao povo que a habita e o Espírito aos que a pisam" (Is 42,5): ele afirma que o sopro foi dado indistintamente a todos os que vivem na terra, ao passo que o Espírito foi dado exclusivamente aos que calcam aos pés as concupiscências terrenas. Eis por que Isaías, retomando a distinção feita, acrescenta: "De mim sai o Espírito e eu sou o Autor de todo sopro" (Is 57,16), atribuindo ao Espírito lugar junto a Deus, o qual, nos últimos tempos, o efundiu sobre o gênero humano pela adoção, mas situa o sopro indiferentemente sobre todas as criaturas e o mostra como coisa feita. Ora, o que foi feito é distinto daquele que o fez; o sopro é coisa situada no tempo, enquanto o Espírito é eterno. O sopro tem momento de força, demora um pouco de tempo e depois desaparece, deixando sem respiração o ser em que antes se encontrava. O Espírito, ao contrário, depois de ter envolvido o homem por fora e por dentro, durará para sempre e nunca o abandonará. "Mas, diz o Apóstolo, referindo-se somente a nós, homens, não precede o que é espiritual, mas, antes, o que é psíquico e depois o espiritual" (1Cor 15,46). Nada de mais certo, porque era necessário que o homem fosse primeiramente modelado e só depois recebesse a alma e somente depois dela recebesse a comunhão do Espírito. Eis por que também "o primeiro Adão foi feito alma vivente pelo Senhor, e o segundo Adão foi feito Espírito vivificante" (1Cor 15,45). Por isso, como o homem, feito pessoa animada, voltan-do-se ao mal, perdeu a vida, assim, ele, convertendo-se ao bem e recebendo o Espírito vivificante, reencontrará a vida. A mesma carne ressuscita -- O que morreu não é diferente do que é vivificado, como não é diferente o que se perdeu do que é encontrado, e o Senhor veio procurar aquela ovelha que se perdera. O que morreu? Evidentemente a substância da carne que perdera o sopro de vida e se tornou sem sopro e morta. O Senhor veio para vivificá-la, a fim de que, como em Adão todos morremos, porque psíquicos, todos vivamos no Cristo, porque espirituais, após ter rejeitado não a obra plasmada por Deus, mas as concupiscências da carne e recebido o Espírito Santo. Como diz o Apóstolo na sua carta aos Colossenses: "Fazei morrer os vossos membros terrestres" -- e ele mesmo expõe o que são esses membros: - "fornicação, impureza, paixão, desejos maus e a cupidez, que é idolatria" (Cl 3,5). O Apóstolo fala da rejeição destas coisas e afirma que os que as fazem, como se fossem compostos somente de carne e sangue, não poderão possuir o reino dos céus. Com efeito, a alma, por se ter inclinado para o pior e rebaixado para as concupiscências terrenas, recebeu o mesmo nome deles. E o Apóstolo nos manda rejeitar todas essas coisas na mesma carta, quando diz: Despojando o homem velho com as suas ações... Ao dizer isso, não rejeitava a antiga obra plasmada, pois se assim fosse nos deveríamos matar todos para cortar toda ligação com a nossa vida atual. -- Mas o próprio Apóstolo, a mesma pessoa que foi formada no seio materno e dele saiu, escrevia na carta aos Filipenses: "Viver na carne é fruto de uma obra". O fru to da obra do Espírito é a salvação da carne. Qual o fruto mais visível do Espírito invisível do que tornar perfeita a carne e capaz da incorrupção? Se, portanto, "para mim, agora, viver na carne é fruto de uma obra", com certeza não desprezava a substância da carne, quando diz: "Despojando o homem velho com as suas ações", mas queria indicar a rejeição da nossa antiga maneira de viver, envelhecida e corrompida. Por isso acrescenta: "E revestindo o homem novo, que se renova no conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou" (Fl 1,22; Cl 3,9-10). Ao dizer: Que se renova no conhecimento, indica que o homem que anteriormente se encontrava na ignorância, isto é, que ignorava a Deus, se renova pelo conhecimento dele; porque é o conhecimento de Deus que renova o homem. Ao dizer: "Segundo a imagem daquele que o criou", indica a recapitulação deste homem que no início foi feito à imagem de Deus. -- Que o Apóstolo seja a mesma pessoa que foi gerada no seio da mãe, isto é, a antiga substância da carne, ele próprio o diz na carta aos Gálatas: "Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho, para que eu o evangelizasse entre os gentios" (Gl 1,15-16). Era o mesmo que tinha nascido do seio materno, como dissemos, e anunciava a boa nova do Filho de Deus; era o mesmo que, antes, por ignorância, perseguia a Igreja de Deus e depois, recebida a revelação no colóquio com o Senhor, como dissemos no terceiro livro, pregava o Filho de Deus, Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, quando o novo conhecimento eliminou a precedente ignorância. Do mesmo modo os cegos curados pelo Senhor perderam a cegueira recebendo o perfeito funcionamento dos seus olhos pelo qual viam com os mesmos olhos que antes não conseguiam ver, tendo desaparecido somente a obscuridade da vista sem que mudasse a sua natureza, a fim de que agradecessem com os mesmos olhos que antes não viam, àquele que lhes concedera a visão; igualmente se verificou na cura da mão ressequida e em todas as outras curas, em que não eram mudados os membros recebidos no nascimento, mas os mesmos recobravam a saúde. -- Com efeito, o Verbo de Deus, criador de todas as coi sas, que desde o princípio criara o homem, encontrando estragada pela malícia a sua obra, sarou-a de todas as maneiras possíveis, quer cada membro em particular da forma com que fora feito no princípio, quer conferindo de uma só vez ao homem a saúde perfeita e a integridade, preparando-o perfeito para si em vista da ressurreição. Por qual motivo sararia os membros do corpo e os restabeleceria na sua forma primeira se o que curava não se salvasse? Se tivesse procurado vantagem somente temporária, os que foram curados por ele não teriam recebido grande benefício. Ora, como ainda podem dizer que a carne não pode receber dele a vida quando recebeu dele a cura? A vida adquire-se pela cura e a incorruptibilidade pela vida. Portanto, quem dá a cura dá também a vida, e quem dá a vida concede também a incorruptibilidade à sua criatura. -- Que nos digam os nossos adversários, ou melhor, os adversários da sua salvação, com quais corpos ressuscitaram a filha defunta do sumo sacerdote, o filho da viúva que, morto, era levado para a sepultura, perto da porta da cidade, e Lázaro que já se encontrava há quatro dias no sepulcro? Certamente com os mesmos em que morreram, do contrário não seriam as mesmas, as pessoas mortas e as que ressuscitaram. Com efeito, diz a Escritura: "O Senhor pegou a mão do morto e lhe disse: Jovem, eu te digo, levanta-te; e o morto sentou-se; e ordenou que lhe dessem de comer, e o entregou à sua mãe". E: "Chamou Lázaro com voz forte, dizendo: Lázaro, sai para fora. E o morto saiu, diz a Escritura, tinha os braços e as pernas amarrados com panos". É o símbolo do homem enredado nos pecados. Por isso o Senhor diz: "Desamarrem-no e deixem-no ir" (Mt 9,25; Jo 12,17; 11,43-44). Como os que foram curados o foram nos membros que foram doentes e os mortos ressuscitaram nos seus próprios corpos, recebendo a cura e a vida dadas pelo Senhor - prefigurando assim as coisas eternas pelas temporais e mostrando que era ele que tinha o poder de dar a cura e a vida à obra que modelara, para que se acreditasse na palavra relativa à sua ressurreição - assim no fim, ao som da última trombeta, à voz do Senhor, ressuscitarão os mortos, como ele mesmo diz: "Virá a hora em que todos os mortos que estão nos sepulcros ouvirão a voz do Filho do homem e sairão, os que fizeram o bem, para a ressurreição de vida, e os que fizeram o mal para a ressurreição de condenação" (Jo 5,25 28-29). Uma expressão paulina mal entendida -- Estultos e verdadeiramente infelizes são, pois, os que não querem enxergar coisas tão evidentes e claras, mas fogem da luz da verdade, cegando-se a si mesmos como o infeliz Édipo. Como no ginásio, um lutador principiante, lutando com outro, lhe agarra com todas as forças uma parte do corpo e é justamente derrubado por ela e ao cair pensa ter ganho a luta por se ter agarrado tenazmente ao primeiro membro que encontrou, além do tombo leva o ridículo, assim acontece com os hereges. Tirando duas palavras da frase de Paulo "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus", não captaram o pensamento do Apóstolo nem o sentido destas palavras: tirando duas palavras do seu contexto encontram a morte, tentando, por aquilo que está em seu poder, destruir toda a economia de Deus. -- Se pretendem que esta palavra indique precisamente a carne e não as obras da carne, como demonstramos, fazem com que o Apóstolo se contradiga a si mesmo, porque, logo em seguida, na mesma carta, o Apóstolo, referindo-se à carne, diz: "De fato, é necessário que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade e que este ser mortal seja revestido de imortalidade. Quando este ser mortal for revestido da imortalidade, então se cumprirá a Escritura: A morte foi absorvida pela vitória. Morte, onde está o teu aguilhão? Morte, onde está a tua vitória?" (1Cor 15,53-55). Estas palavras estão certas quando esta car ne mortal e corruptível, entregue à morte e humilhada pelo poder dela, revestida de incorruptibilidade e de imortalidade voltará à vida, porque, então, verdadeiramente será vencida a morte, quando esta carne que estava em seu poder se lhe subtrairá. Ele diz ainda aos filipenses: "A nossa vida está no céu, de onde esperamos como Salvador o Senhor Jesus que transformará o nosso pobre corpo, tornando-o conforme ao seu corpo glorioso, pela ação do seu poder" (Fl 3,20-21). Qual é este pobre corpo que o Senhor transformará tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso? Evidentemente, o corpo carnal que é aviltado no sepulcro. A transformação dele consiste nisto: que de mortal e corruptível é tornado imortal e incorruptível, não pela sua natureza, mas por obra do Senhor que pode revestir de imortalidade o que é mortal e de incorruptibilidade o que é corruptível. Por isso diz na segunda carta aos Coríntios: "Para que o que é mortal seja absorvido pela vida. Ora, quem nos dispôs para isto é Deus, que nos deu o penhor do Espírito" (2Cor 5,4-5). É evidente que aqui ele fala da carne, pois nem a alma nem o espírito são mortais. O que é mortal será absorvido pela vida quando a carne, já não morta, mas perpetuamente viva e incorrupta, glorificará a Deus que, deste modo, nos tornou perfeitos. Para obter esta perfeição, oportunamente exorta os coríntios: "Glorificai a Deus nos vossos corpos" (1Cor 6,20), pois Deus é o autor da incorruptibilidade. -- A prova de que fala do corpo de carne e não de outro corpo qualquer está no que diz aos coríntios de forma precisa e sem ambigüidade: "Sem cessar e por toda parte trazemos em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo. Embora estejamos vivos somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal". Que o Espírito está ligado à carne ele o diz na mesma carta: "De fato, vós sois uma carta de Cristo, redigida por nós, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, os vossos corações" (2Cor 4,10-11; 3,3). Ora, se já agora, corações de carne podem receber o Espírito não há que se admirar se na ressurreição recebem a vida dada pelo Espírito. O Apóstolo escreve aos filipenses a respei to desta ressurreição: "Tornado semelhante a ele na sua morte a fim de alcançar, se possível, a ressurreição dos mortos" (Fl 3,10-11). Em qual carne mortal pode-se entender que se manifeste a vida, a não ser nesta carne que morre por causa da confissão de Deus? Assim como ele mesmo diz: "Se é com entendimento humano que em Éfeso combati com as feras, que me adianta se os mortos não ressurgem? Se os mortos não ressuscitam, nem o Cristo ressuscitou; e se Cristo não ressuscitou, são ilusórias a nossa pregação e a vossa fé. E até se deve dizer que somos testemunhas falsas acerca de Deus, porque testemunhamos que ressuscitou o Cristo quando não é verdade. Se o Cristo não ressuscitou a vossa fé é ilusória e vós ainda estais nos vossos pecados. Assim, os que morreram em Cristo estão perdidos. Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens. Mas de fato o Cristo ressuscitou dos mortos, primícia dos que adormeceram. Porque, por um homem veio a morte e por um homem vem a ressurreição dos mortos" (1Cor 15,32 13-21). -- Portanto, como já dissemos, ou afirmam que em todos estes textos o Apóstolo se contradiz quanto às palavras "A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus", ou são obrigados a procurar explicações falsas e forçadas para torcer-lhes ou mudar-lhes o sentido. Que sentido poderão dizer que tenha quando procuram explicar de outra forma estas palavras: "É necessário que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade e que este ser mortal seja revestido da imortalidade"; e estas outras: "Para que a vida de Jesus se manifeste na nossa carne mortal" (1Cor 15,50 53; 2Cor 4,11), e todas as outras em que o Apóstolo proclama abertamente a ressurreição e a incorruptibilidade da carne? Eles se vêem obrigados a torcer a interpretação de tantos textos por não querer entender corretamente uma só frase. Em Cristo ressuscitou a nossa carne -- Podemos encontrar a prova de que o Apóstolo não falava da substância da carne e do sangue quando dizia que eles não podem herdar o reino de Deus, pelo fato de que se serviu constantemente das palavras carne e sangue a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo, quer para afirmar a sua natureza humana - ele próprio se chamava filho do homem, - quer a salvação da nossa carne (Desde que fora plasmada pelas mãos de Deus, nossa carne tem a capacidade de atingir a salvação plena; pode tornar-se incorruptível e imortal, apesar de ser criatura). Se, com efeito, a carne não devia ser salva, o Verbo de Deus não se teria feito carne e, se não se devia pedir conta do sangue dos justos, o Senhor não teria tido sangue. Mas, com efeito, desde o princípio o sangue tem voz, como o mostram as palavras que Deus disse a Caim, depois que matou seu irmão: "A voz do sangue de teu irmão chega até mim". E a Noé e aos que estavam com ele disse que pediria conta do sangue deles: "Pedirei conta do vosso sangue a todas as feras". E ainda: "Será derramado o sangue de quem derramou o sangue de um homem". E àqueles que derramariam o seu sangue disse: "Pedir-se-á conta de todo o sangue inocente derramado sobre a terra desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o templo e o altar; na verdade, eu vos digo, tudo isto acontecerá a esta geração" (Gn 4,10; 9,5 6; Mt 23,35-36). Com isso deixava entender que teria recapitulado em si o derramamento de todo o sangue dos justos e dos profetas, desde o início, e que se pediria conta do sangue deles na sua pessoa. Ora, não se pediria conta dele se não devesse ser salvo, como também o Senhor não teria recapitulado em si mesmo tudo isso se ele próprio não assumisse carne e sangue em conformidade com a obra modelada no princípio, salvando assim na sua pessoa, no fim, o que no princípio perecera em Adão. -- Se o Senhor se tivesse encarnado por conta de outra economia e se tivesse assumido carne de outra substância não teria recapitulado em si o homem e até nem poderia ser chamado carne, porque somente seria carne se derivasse daquela obra primitiva modelada do limo da terra. Se o Senhor tivesse que assumir a carne tirada de outra substância, já desde o princípio o Pai usaria essa substância para modelar a sua obra. Contudo, o Verbo salvador se tornou aquilo mesmo que era o homem que se perdeu para salvá-lo, operando assim em si mesmo a comunhão com o homem e a sua salvação. O que se perdera tinha carne e sangue, porque foi usando o limo da terra com que Deus plasmou o homem e era justamente por este homem que se devia realizar a economia da vinda do Senhor. Neste sentido, o Apóstolo escreve aos colossenses: "E vós também éreis uma vez afastados e éreis inimigos do seu pensamento pelas obras más, porém agora sois reconciliados no seu corpo de carne por meio de sua morte para vos apresentar diante dele santos, sem mancha e inocentes" (Cl 1,21-22). Vós sois reconciliados, ele diz, no seu corpo de carne, porque a carne justa reconciliou a carne que era presa do pecado e a introduziu na amizade de Deus. -- Se alguém diz que a carne do Senhor era diversa da nossa porque ela não pecou e não foi encontrado engano na sua alma, enquanto nós somos pecadores, tem razão. Mas se afirma que a carne do Senhor era de substância diferente da nossa, a palavra do Apóstolo relativa à reconciliação perderá para ele o sentido. Reconciliação se faz com quem se esteve alguma vez na inimizade. Ora, se o Senhor tomou carne de outra substância não reconciliou com Deus aquilo que pela transgressão se tornou inimigo de Deus. Mas pela comunhão que temos com ele o Senhor reconciliou o homem com Deus Pai, reconciliando-nos com ele próprio por meio de seu corpo de carne e resgatando-nos com seu sangue, conforme o Apóstolo diz aos efésios: "Nele recebemos a redenção adquirida pelo seu sangue, a remissão dos pecados". E ainda: "Vós que outrora estáveis afastados vos tornastes próximos, graças ao sangue de Cristo". E mais: "Na sua carne destruiu a inimizade, a lei dos mandamentos expressa em preceitos" (Ef 1,7; 2,13 14-15). Ademais, em toda a carta, o Apóstolo afirma expressamente que nós fomos salvos pela carne de nosso Senhor e pelo seu sangue. -- Portanto, se a carne e o sangue são a causa da nossa salvação, não é propriamente da carne e do sangue que está escrito que não podem herdar o reino de Deus, mas das obras da carne de que falamos, porque são elas que aliciando o homem para o pecado o privam da vida. Por isso, na carta aos Romanos diz: "Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal sujeitando-vos a ele, nem entregueis vossos membros, como armas de injustiça, ao pecado, mas oferecei-vos a Deus como vivos ressuscitados dos mortos, e oferecei vossos membros como armas de justiça para Deus" (Rm 6,12-13). Com os mesmos membros com os quais servíamos ao pecado e dávamos frutos de morte, ele quer que sirvamos à justiça e demos frutos de vida. Lembra-te, amigo caríssimo, que foste remido pela carne de nosso Senhor e comprado pelo seu sangue; "permanece unido à cabeça, da qual recebe coesão e crescimento todo o corpo" (Cl 2,19) da Igreja, isto é, à vinda na carne do Filho de Deus; confessa a sua divindade e com igual firmeza a sua humanidade; serve-te das provas tiradas das Escrituras e assim poderás facilmente refutar, como demonstramos, todas as opiniões extemporâneas inventadas pelos hereges. A mesma carne, o mesmo Criador -- Isaías diz que o Criador do homem prometeu segunda vida depois de sua decomposição na terra, com estas palavras: "Os mortos ressuscitarão, os que estão nos sepulcros se levantarão e os que estão na terra se alegrarão, porque o teu orvalho é remédio para eles". E diz ainda: "Eu vos consolarei e em Jerusalém sereis consolados; vós o vereis e o vosso coração se regozijará; os vossos membros serão viçosos como a erva; a mão do Senhor se revelará aos que o honram" (Is 26,19; 66,13-14). Ezequiel, por sua vez, diz: "A mão do Senhor esteve sobre mim e o Senhor me fez sair em espírito e me pousou no meio de um vale cheio de ossos. E me levou em torno deles de todos os lados; e eram abundantes na superfície do vale e estavam muito secos. Ele me disse: Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos? Ao que respondi: Senhor, tu o sabes, porque tu os fizeste. Então me disse: Profetiza sobre estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor! Assim fala o Senhor a estes ossos: Eis que trarei o Espírito da vida sobre vós, cobrir-vos-ei de nervos, vos cobrirei de carne e vos revestirei de pele, porei em vós o meu Espírito e vivereis e sabereis que eu sou o Senhor. E profetizei de acordo com a ordem do Senhor. Enquanto profetizava, houve tremor de terra e os ossos eram levados cada um à sua juntura. E vi, e eis que músculos e carne se formavam sobre eles e a pele se estendia sobre eles, mas o Espírito ainda não estava neles. E ele me disse: Profetiza ao Espírito, filho do homem, e diz ao Espírito: Assim fala o Senhor! Vem dos quatro ventos e sopra sobre estes ossos para que vivam. E profetizei de acordo com o que o Senhor me ordenou. E o Espírito entrou neles e eles viveram, firmando-se sobre os seus pés, como exército imenso". O mesmo Ezequiel diz ainda: "Assim fala o Senhor: Eis que abrirei os vossos túmulos, e vos farei sair de vossos túmulos e reconduzirei à terra de Israel, e sabereis que eu sou o Senhor quando abrir os vossos túmulos e fizer sair deles o meu povo. Porei o meu Espírito em vós e vivereis; estabelecer-vos-ei na vossa terra e sabereis que eu sou o Senhor. Falei e executarei, diz o Senhor" (Ez 37,1-10 12-14). Assim, portanto, o Criador vivifica já aqui os nossos corpos mortais, como é fácil ver, e promete a ressurreição, a saída dos túmulos e dos sepulcros e lhes dá a incorruptibilidade - porque, diz, "seus dias serão como a árvore da vida" (Is 65,22), - donde aparece que só ele é Deus, que faz todas as coisas e é o Pai bom, que por pura bondade dá a vida aos que não a possuem por si mesmos. -- Por isso o Senhor revela claramente aos seus discípulos quem é ele e quem é o Pai, para que não procurem um Deus diverso do que modelou o homem e lhe deu o sopro de vida, nem cheguem ao excesso de insânia de imaginar falsamente outro Pai acima do Criador. Com efeito, o Senhor curava com a palavra todos os outros doentes que eram acometidos por doenças provenientes de transgressão. E dizia-lhes: "Eis que estás curado; não peques mais para que não te aconteça algo pior", indicando que era por causa do pecado de desobediência que as doenças tinham atacado os homens. Porém, ao que era cego de nascença restituiu a visão não pela palavra e sim pela ação, agindo deste modo não por acaso ou sem motivo, mas para dar a conhecer a mão de Deus que, no início, modelara o homem. Por isso respondeu aos discípulos que lhe perguntavam de quem era a culpa de ter nascido cego, se dele ou dos pais: "Nem ele pecou nem seus pais, mas para que se manifestassem nele as obras do Senhor" (Jo 5,14; 9,3). As obras de Deus são a modelagem do homem, que foi feita por ação, segundo a Escritura: "O Senhor tomou do lodo da terra e plasmou o homem" (Gn 2,7. A cura do cego de nascença, para Ireneu, é uma figura bíblica de nossa salvação: esta consiste em ver a Deus - o cego viu Jesus, o salvador; o mesmo Deus que criou o homem, curou o cego - o Criador e o Redentor não se combatem; a carne humana foi modelada do barro - o cego foi curado com o barro; virá Jesus outra vez para salvar definitivamente o homem - veio Jesus e curou o cego; a salvação é dom gratuito de Deus ao homem que por si só não pode salvar-se - não podendo curar-se, o cego suplica a ajuda de Jesus). Foi por isso que o Senhor cuspiu por terra, fez um pouco de lodo e o espalhou sobre os olhos, indicando como aconteceu a primeira criação e, para os que eram capazes de entender, manifestava a mão de Deus que modelara o homem a partir do lodo. O que o Verbo artífice deixara de plasmar no seio materno o faz agora publicamente para que se manifestassem nele as obras do Senhor, e não procurássemos outra mão pela qual teria sido plasmado o homem, mas soubéssemos que a mão de Deus que nos modelou no princípio e agora nos modela no seio materno, esta mesma mão, nos últimos tempos, nos procurou quando perdidos, reencontrou a ovelha desgarrada, carregou-a aos ombros e com alegria a reintegrou no rebanho da vida. A salvação é obra do Verbo -- É Jeremias a afirmar que o Verbo nos plasma no seio materno: "Antes de modelar-te no seio de tua mãe eu te conheci, e antes que saísses de seu seio eu te santifiquei e te estabeleci como profeta para as nações" (Jr 1,5). Da mesma forma Paulo diz: "Quando aquele que me separou desde o seio materno houve por bem que o evangelizasse entre os gentios" (Gl 1,15-16). Assim, pois, como somos modelados pelo Verbo no seio materno, o mesmo Verbo remodelou os olhos do cego de nascença: manifestou assim publicamente aquele que nos plasmou secretamente, visto que era o próprio Verbo que se tornara visível aos homens; e ao mesmo tempo mostrou a antiga modelagem de Adão, isto é, como fora modelado e qual a mão que o modelou; por meio de uma parte mostrou a totalidade: aquele Senhor que formou a visão é o mesmo que plasmou o homem todo, cumprindo a vontade do Pai. E visto que na criação que se fez segundo Adão o homem caíra na transgressão e precisava do lavacro da regeneração, o Senhor disse ao cego de nascença, depois de lhe ter posto o lodo nos olhos: "Vai-te lavar na piscina de Siloé", lembrando-lhe simultaneamente a modelagem e a regeneração operada pelo lavacro. Assim, depois de se ter lavado, voltou vendo, para conhecer o seu plasmador e aprender quem era o Senhor que lhe dera a vida. -- Erram, portanto, os valentinianos ao dizer que o homem não foi plasmado da terra, mas de substância fluida e inconsistente. Está claro que a terra com que o Senhor remodelou os olhos do cego é a mesma com que o homem foi modelado no princípio, porque não é lógico modelar os olhos com uma matéria e o resto do corpo com outra, como não o é que um tenha modelado o corpo e outro os olhos. Mas aquele que modelara Adão no princípio e ao qual o Pai dissera: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", manifestando-se aos homens no fim dos tempos, remodelou os olhos daquele que, descendente de Adão, nascera cego. É por isso que a Escritura, querendo indicar o futuro, diz que quando Adão se escondeu por causa da desobediência, o Senhor foi a ele, pela tarde, e o chamou, dizendo: "Onde estás?” Isso porque, nos últimos tempos, o próprio Verbo de Deus veio chamar o homem, relembrando-lhe as obras entre as quais vivia, depois de se ter escondido de Deus. Assim como uma vez, à tarde, Deus falou a Adão, quando o procurava, também, nos últimos tempos, com a mesma voz, veio procurar e visitar os descendentes dele. -- E visto que Adão foi modelado com esta nossa terra, na Escritura se refere que Deus lhe disse: "Comerás o teu pão com o suor do teu rosto até que voltes à terra da qual foste tirado" (Gn 3,19). Se, portanto, depois da morte, os nossos corpos voltassem a qualquer outra terra, seria preciso que fossem para aquela da qual tiveram origem. Mas se eles voltam para esta mesma terra, está claro que é com esta que foram modelados, como o demonstrou o Senhor ao remodelar por meio dela os olhos do cego. Se, portanto, foi mostrada, de maneira clara, a mão de Deus pela qual foi plasmado Adão e nós, por nossa vez; se não há senão um só e idêntico Pai cuja voz está presente, do princípio ao fim, à obra modelada por ele; se, finalmente, no Evangelho, foi indicada claramente a substância da nossa criação, não é mais necessário procurar outro Pai diverso do que conhecemos, nem outra substância para esta criação além da que indicamos e que o Senhor mostrou, nem outra mão de Deus afora a que, do princípio ao fim, nos modela, nos faz viver, está presente à sua obra e a completa segundo a imagem e a semelhança de Deus. -- A verdade de tudo isso apareceu quando o Verbo de Deus se fez homem, tornando a si mesmo semelhante ao homem e o homem semelhante a si, para que o homem, por esta semelhança com o Filho, se tornasse precioso aos olhos do Pai. Em tempos passados já se dizia que o homem era feito à imagem de Deus, porém não aparecia, porque o Verbo, à imagem do qual o homem fora criado, era invisível. Por isso perdeu facilmente esta semelhança. Mas quando o Verbo de Deus se fez carne confirmou as duas coisas: fez aparecer a imagem em toda verdade, tornando-se a si mesmo exatamente o que era a sua imagem e restabeleceu a semelhança tornando-a estável e o homem perfeitamente semelhante ao Pai invisível por meio do Verbo visível (Este texto é a chave para perceber a distinção que Ireneu estabelece entre imagem e semelhança). A redenção da carne revela o Pai -- Não é somente pelo que foi dito, que o Senhor revelou a si mesmo e o Pai, mas também na sua paixão. Pois para destruir a desobediência original do homem que se deu por causa do lenho "se fez obediente até a morte e morte de cruz" (Fl 2,8), curando assim com a sua obediência sobre o lenho a desobediência que acontecera pelo lenho. Ora, não teria vindo destruir a desobediência feita ao nosso criador pela sua obediência se tivesse pregado outro Pai. Com efeito, foi justamente pelas mesmas coisas pelas quais não obedecemos a Deus e não cremos na sua palavra que reintroduziu a obediência a Deus e o assentimento à sua palavra. Mostrou claramente com isso o Deus que ofendêramos no primeiro Adão, não cumprindo o seu mandamento, e com o qual somos reconciliados, no segundo Adão, tornando-nos obedientes até a morte; de fato, só éramos devedores com aquele de quem transgredimos, no início, o preceito, e de ninguém mais. -- Ora, este é o Criador; pelo seu amor é nosso Pai; pelo seu poder é nosso Senhor; pela sua sabedoria é aquele que nos criou e modelou; é precisamente com ele que nos tornamos inimigos pela desobediência ao seu mandamento. Eis, então, por que, nos últimos tempos, o Senhor nos restabeleceu na amizade, pela sua encarnação, tornando-se mediador entre Deus e o homem, propiciando-nos o Pai contra o qual pecáramos, reparando a nossa desobediência com a sua obediência, dando-nos a graça da conversão e da submissão ao nosso Criador. Eis por que nos ensinou a dizer na nossa oração: "perdoa-nos as nossas dívidas", justamente por ser nosso Pai, com quem éramos devedores por ter transgredido o seu mandamento. Ora, quem é este? Pai desconhecido que nunca deu nenhum preceito ou o Deus pregado pelos profetas, com quem éramos devedores por ter transgredido o seu mandamento? Este mandamento fora dado ao homem por meio do Verbo. Com efeito, diz: "Adão escutou a voz do Senhor Deus". O Verbo pode, pois, dizer corretamente ao homem: "São-te perdoados os teus pecados: aquele contra quem pecáramos no início, no fim concedia a remissão dos pecados". Mas se fosse um aquele de quem transgredimos o mandamento e outro a dizer: "São-te perdoados os teus pecados", este último nem seria bom nem verídico nem justo. Como se pode dizer bom quem não te dá o que é seu? Como se pode chamar justo quem se apropria do que é dos outros? Como se poderia dizer que os pecados foram verdadeiramente perdoados, a não ser que o perdão nos seja concedido pelo que foi ofendido, "pelas vísceras de misericórdia do nosso Deus, em que nos visitou" (Gn 3,8; Mt 9,2; Lc 1,78) pelo seu Filho? -- Por isso, depois da cura do paralítico, "os que viram glorificaram a Deus que dera tal poder aos homens" (Mt 9,8). O povo que assistiu qual Deus glorificou? Seria o Pai desconhecido inventado pelos hereges? E como poderiam glorificar aquele que sequer conheciam? Está claro que os israelitas glorificavam o Deus pregado pelos profetas, que é também o Pai de nosso Senhor: eis por que ele ensinava os homens com verdade, por meio dos milagres que fazia, a glorificar a Deus. Fosse um o Pai de quem ele vinha e outro aquele que os homens glorificavam, ao ver os seus milagres, teria tornado os homens mal agradecidos com o Pai que o enviara a fazer o milagre. Mas visto que o Unigênito viera do verdadeiro Deus para a salvação dos homens e que, com os milagres que fazia, convidava os incrédulos a dar glória ao Pai, por isso dizia aos fariseus, que não admitiam a vinda do Filho de Deus e não criam no perdão que ele concedia: "Para que saibais que o Filho do homem tem, na terra, o poder de perdoar os pecados" (Mt 9,6); e depois de falar assim deu ordem ao paralítico que tomasse o leito em que jazia e fosse para sua casa. Com este milagre confundiu os incrédulos, indicando que era a voz de Deus pela qual o homem recebera os mandamentos que, depois, trasgrediu, tornando-se pecador: a paralisia era a conseqüência dos pecados. -- Por isso, ao perdoar os pecados sarou um homem e ao mesmo tempo revelou claramente quem ele era. Com efeito, se somente Deus pode perdoar os pecados e se o Senhor os perdoava sarando um homem, está claro que ele era o Verbo de Deus, feito Filho do homem, porque recebera do Pai o poder de perdoar os pecados, como homem e como Deus; como homem participou dos nossos sofrimentos e como Deus perdoa as dívidas que tínhamos com Deus, nosso criador. Eis por que Davi predisse: "Felizes aqueles aos quais foram perdoadas as iniqüidades e cobertos os seus pecados! Feliz o homem aos quais o Senhor não culpa de pecado!” (Sl 32,1-2) descrevendo antecipadamente o perdão que recebemos pela sua vinda, com a qual destruiu o título da nossa dívida, pregando-o na cruz, para que, como pelo lenho nos tornamos devedores a Deus, pelo lenho recebêssemos o perdão de nossa dívida. -- Isso foi mostrado simbolicamente, entre muitos outros, também pelo profeta Eliseu. Um dia, os profetas que estavam com ele cortavam lenha para fazer umas choupanas, quando o machado soltou-se do cabo e caiu no Jordão, e não conseguiam encontrá-lo. Tendo chegado àquele lugar, Eliseu soube o que acontecera, então lançou um pedaço de madeira na água e logo o ferro do machado veio à tona e os que o tinham perdido puderam recolhê-lo da superfície da água. Com este gesto o profeta indicava que o firme Verbo de Deus que perdêramos negligentemente por causa do lenho e que não encontrávamos, o teríamos encontrado pela economia do lenho. Também João Batista compara o Verbo de Deus a machado, quando diz: "O machado já está posto às raízes das árvores". E Jeremias diz a mesma coisa: "O Verbo do Senhor é como machado de dois gumes que racha a pedra" (Mt 3,10; Jr 23,29). Foi assim que nos foi manifestado este Verbo escondido, como acabamos de dizer. De fato, como o tínhamos perdido por causa do lenho, pelo lenho voltou a ser visto por todos, mostrando em si mesmo a altura, o comprimento e a largura, e como disse um dos anciãos, recolheu pela extensão de suas mãos dois povos para um só Deus. Duas mãos, porque havia dois povos dispersos até as extremidades da terra, mas no meio, uma só cabeça, porque "há um só Deus que é sobre todos, por meio de todos e em todos" (Ef 4,6). O Verbo, mediador perfeito -- O Senhor realizou esta economia tão prodigiosa não por meio de criaturas feitas por outros, mas pelas suas criaturas; não pelo que derivava da ignorância ou da degradação, e sim por meio das coisas derivadas da sabedoria e do poder do Pai. Ele não é injusto para desejar os bens dos outros, nem tão pobre que não possa produzir a vida nos seus e, servindo-se da sua criação, dar a salvação ao homem. A criação não o poderia sustentar se fosse fruto de ignorância e de degradação, porque o Verbo de Deus, encarnado, foi suspenso ao lenho, como longamente mostramos e como os próprios hereges o confessam crucificado. Aliás, como poderia o produto da ignorância e degradação sustentar aquele que encerra em si o conhecimento de todas as coisas e que é verdadeiro e perfeito? Ou como poderia uma criação separada e infinitamente distanciada do Pai, sustentar o Verbo? Se esta criação foi feita por anjos, quer tivessem ignorado, quer conhecido o Deus que está acima de todas as coisas, visto que o Senhor disse: "Eu estou no Pai e o Pai em mim" (Jo 14,11), como poderia a criação dos anjos sustentar simultaneamente o Pai e o Filho? Como poderia uma criação exterior ao Pleroma conter aquele que contém todo o Pleroma? Sendo isso tudo impossível e não havendo a mínima prova para o defender, somente resta verdadeira a afirmação da Igreja segundo a qual a própria criação de Deus, feita pelo poder, a arte e a sabedoria dele, pode sustentar Deus. Ela que no plano invisível é sustentada pelo Pai e no plano visível, por sua vez, sustenta o Verbo do Pai. E esta é a verdade. -- O Pai sustenta, ao mesmo tempo, a criação e o seu Verbo e o Verbo, sustentado pelo Pai, dá o Espírito a todos, segundo a vontade do Pai: às coisas criadas, um espírito conforme à criação, isto é, criado; a outros na adoção divina, que é nova geração. Assim manifesta-se "um só Pai que é sobre todos, por meio de todos e em todos" (Ef 4,6). Com efeito, sobre todos, há o Pai e é ele que é a cabeça de Cristo; por meio de todos, há o Verbo que é a cabeça da Igreja; em todos, há o Espírito, e ele é a água viva que o Senhor dá aos que nele crêem com retidão, que o amam, e que sabem que há "um só Pai que é sobre todos, por meio de todos e em todos". Também João, o discípulo do Senhor, afirma tudo isso, quando diz no seu Evangelho: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito". Ele diz, a seguir, acerca deste mesmo Verbo: "Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam. Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus, os que crêem em seu nome". Diz ainda, para indicar a sua economia humana: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós". E acrescenta: "E nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade" (Jo 1,1-3 10-12 14). Com estas palavras afirma claramente para quem quer ouvir, isto é, para quem tem ouvidos, "que há um só Pai que é sobre todos", e um Verbo de Deus que opera por meio de todos e pelo qual foram feitas todas as coisas, que este mundo é dele e foi feito por ele, segundo a vontade do Pai, e não por anjos, nem pela apostasia, a degradação, a ignorância, nem por alguma Potência, que alguns chamam Prounicos e outros Mãe, nem por algum outro Demiurgo que não conhecia o Pai. -- O verdadeiro Criador do mundo é o Verbo de Deus. Este é nosso Senhor, que nos últimos tempos se fez homem, ele que já estava no mundo e invisivelmente sustenta todas as coisas criadas e está impresso em toda a criação, como Verbo de Deus que tudo governa e dispõe; por isso veio para o que era seu, de forma visível, e se fez carne, foi suspenso no lenho, para recapitular em si todas as coisas. E os seus, isto é, os homens não o receberam, assim como Moisés anunciava ao dizer ao povo: "A tua vida será suspensa diante de teus olhos e não acreditarás na tua vida" (Dt 28,66). Assim os que não o receberam não receberam a vida. "Mas a todos que o receberam deu poder de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1,12). É ele que recebeu do Pai o poder sobre todas as coisas, porque é Verbo de Deus e verdadeiro homem. Por um lado, manda nos seres invisíveis de maneira espiritual para que cada um deles permaneça na sua ordem; por outro lado, reina de maneira manifesta sobre os seres visíveis e humanos, fazendo vir sobre todos o justo julgamento que merecem. Esta vinda visível do Verbo, Davi a anunciou, quando disse: "O nosso Deus virá de maneira manifesta e não se calará.” E depois anunciou o julgamento que ele traria, dizendo: "O fogo arderá diante dele e à sua volta se lançará a tempestade. Chamará os céus do alto e a terra para julgar o seu povo" (Sl 50,2-3 4). TRIUNFO DE CRISTO A economia da Virgem -- Quando o Senhor veio de modo visível ao que era seu, levado pela própria criação que ele sustenta, tomou sobre si, por sua obediência, no lenho da cruz, a desobediência cometida por meio do lenho. A sedução de que foi vítima, miseravelmente, a virgem Eva, destinada a varão, foi desfeita pela boa-nova da verdade, maravilhosamente anunciada pelo anjo à Virgem Maria, já desposada a varão. Assim como Eva foi seduzida pela fala de anjo e afastou-se de Deus, transgredindo a sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela boca de anjo e trouxe Deus em seu seio, obedecendo à sua palavra. Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra deixou-se persuadir a obedecer a Deus, para que, da virgem Eva, a Virgem Maria se tornasse advogada (O paralelo entre Eva e Maria é relativamente freqüente entre os Padres, e é encontrado pela primeira vez em Justino, Diálogo 100,5). O gênero humano que fora submetido à morte por uma virgem, foi libertado dela por uma virgem; a desobediência de uma virgem foi contrabalançada pela obediência de uma virgem; mais, o pecado do primeiro homem foi curado pela correção de conduta do Primogênito e a prudência da serpente foi vencida pela simplicidade da pomba: por tudo isso foram rompidos os vínculos que nos sujeitavam à morte. -- Todos os hereges são estúpidos e ignorantes quando tratam da economia de Deus e estão por nada ao corrente das obras relativas ao homem, e como cegos, diante da verdade, eles próprios se levantam contra a sua salvação; alguns introduzem outro Pai além do Criador, outros pretendem que o mundo e a matéria que o constitui foram feitos por anjos, outros afirmam que esta matéria, imensamente afastada do assim chamado Pai, ter-se-ia formado sozinha e seria inata, outros dizem que deriva da degradação e da ignorância dos seres contidos no Pai. Outros, ainda, negam a vinda visível do Senhor e não admitem a sua encarnação. Outros que desconhecem a economia da Virgem, dizem que ele foi gerado por José. Outros dizem que nem a alma nem o corpo podem receber a vida eterna, mas somente o homem interior, que pretendem identificar com o intelecto deles, o único julgado capaz de se elevar à perfeição. Outros admitem que a alma se salva, mas negam que o corpo possa participar da salvação que vem de Deus. Já dissemos tudo isso no nosso primeiro livro, onde expusemos os argumentos deles, e em seguida, no segundo livro onde mostramos a invalidade e a inconsistência deles. Sabedoria de Deus na Igreja -- Todos eles vieram muito tempo depois dos bispos aos quais os apóstolos confiaram as igrejas. Também isso nós mostramos, com toda a precisão possível, no nosso terceiro livro. Todos estes hereges que mencionamos, por serem cegos em relação à verdade, são obrigados a trilhar caminhos diferentes e impraticáveis: por isso, os vestígios de seus ensinamentos, discordes e contraditórios, estão espalhados por todos os lados. O que não acontece com os que pertencem à Igreja, cujos caminhos percorrem o mundo inteiro conservando a sólida tradição que vem dos apóstolos, mostrando-nos uma única e idêntica fé em todos, porque todos acreditam num só e idêntico Deus Pai, admitem a mesma economia da encarnação do Filho de Deus, reconhecem o mesmo dom do Espírito, observam os mesmos preceitos, conservam a mesma forma de organização da Igreja, esperam a mesma vinda do Senhor e a mesma salvação de todo o homem, isto é, da alma e do corpo. A pregação da Igreja é, portanto, verdadeira e firme e nela há caminho único e idêntico em todo o mundo. A ela foi concedida a luz de Deus: "eis por que a sabedoria de Deus com a qual salva os homens é celebrada nas estradas, age corajosamente nas praças, é proclamada do alto dos muros e fala com segurança nas portas da cidade" (Pr 1,20-21). Com efeito, em todo lugar, a Igreja prega a verdade, verdadeiro candelabro de sete braços, trazendo a luz de Cristo. -- Os que abandonam a doutrina da Igreja acusam de ingenuidade os santos presbíteros, sem entender que mais vale o homem religioso e simples do que o sofista blasfemo e impudente. Assim são todos os hereges, os quais pensando terem encontrado algo superior à verdade, seguindo as doutrinas que apresentamos, andam por caminhos tortuosos, sempre novos e inseguros, mudam continuamente de opinião e como cegos conduzidos por cegos fatalmente cairão na fossa da ignorância aberta diante deles, destinados a procurar sempre e nunca encontrar a verdade. É necessário, portanto, evitar as doutrinas deles e prestar muita atenção para não sermos prejudicados e, sobretudo, refugiar-nos na Igreja, para ser educados no seu seio e nutridos pelas Escrituras do Senhor. A Igreja é como paraíso plantado neste mundo. Portanto, comereis do fruto de todas as árvores do paraíso, diz o Espírito de Deus, o que significa: alimentai-vos de todas as Escrituras divinas, mas não o façais com intelecto orgulhoso e não tenhais nenhum contato com a dissensão dos hereges. Eles afirmam possuírem o conhecimento do bem e do mal e elevam seus pensamentos acima do Deus que os criou, e com a sua inteligência ultrapassam a medida da inteligência. Eis por que o Apóstolo diz: "Não tenhais pensamentos mais elevados do que é conveniente, mas sejam conservados na medida da prudência", para que ao comer da sua gnose que entende mais do que é conveniente, não sejamos expulsos do paraíso da vida, aonde o Senhor leva os que obedecem aos seus mandamentos, "recapitulando em si todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão sobre a terra" (Rm 12,3; Ef 1,10). As que estão nos céus são espirituais enquanto as que estão na terra são esta obra que é o homem. Ora, são estas coisas que ele recapitulou em si, unindo o homem ao Espírito e fazendo o Espírito habitar no homem, tornando-se a cabeça do Espírito e dando o Espírito para que seja a cabeça do homem: com efeito, é ele que nos faz ver, ouvir e falar. Luta contra o demônio: as tentações (As tentações de Jesus no deserto são um tema tido em apreço pelos Padres da Igreja. Também em Ireneu elas têm uma grande analogia: pela “recirculatio” da tentação do paraíso no deserto e realização da promessa a Adão; pela ênfase na obra do Salvador que vence Satanás e liberta o homem; pela obediência fiducial do homem a Deus, contra a antiga desobediência. Novamente, contra o dualismo gnóstico, são afirmadas: a identidade de Deus Criador e Pai de Jesus, e a continuidade dos dois Testamentos . Contra os docetismos gnósticos, afirma-se a humanidade de Jesus , e o homem libertado e restaurado em Cristo recebe a imortalidade). -- Portanto, recapitulando todas as coisas, Cristo assumiu também a luta que travamos contra nosso inimigo. Atacou e venceu aquele que no princípio, em Adão, nos reduzira ao cativeiro, e calcou sua cabeça, como lemos no Gênesis: Deus disse à serpente: "Porei inimizade entre ti e a mulher e entre tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3,15). Desde esse momento, pois, foi anunciado que esmagaria a cabeça da serpente aquele, semelhante a Adão, que devia nascer de Virgem. E é esta a descendência de que fala o Apóstolo na carta aos Gálatas: "A lei foi estabelecida até que chegasse a descendência a quem a promessa fora feita". E ainda explica mais claramente na mesma carta ao dizer: "Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher" (Gl 3,19; 4,4). O inimigo não teria sido vencido com justiça se não tivesse nascido de mulher o homem que o venceu, pois fora por meio de mulher que ele dominara o homem, opondo-se a ele desde o princípio. Por este motivo é que o próprio Senhor declara ser o Filho do homem, recapitulando em si o primeiro homem a partir do qual fora modelada a mulher. E assim como pela derrota de um homem nossa raça desceu para a morte, pela vitória de outro homem subimos novamente à vida, e, como a morte triunfara sobre nós por um homem, assim todos nós triunfamos da morte por um homem. -- O Senhor não teria recapitulado em si a antiga e primeira inimizade contra a serpente e não teria cumprido a promessa do Criador e nem o seu mandamento se tivesse vindo de outro Pai. Mas, sendo um só e idêntico aquele que, no princípio, nos modelou e, no fim, enviou seu Filho, o Senhor cumpriu verdadeiramente o seu mandamento nascendo de mulher, aniquilando o nosso adversário e completando no homem a imagem e semelhança de Deus. Por isso não o destruiu com outros meios a não ser pelas palavras da Lei e se serviu exatamente do mandamento do Pai como ajuda para destruir e desmascarar o anjo apóstata. Primeiramente jejuou por quarenta dias, a exemplo de Moisés e Elias, depois teve fome, para que entendêssemos que a sua humanidade era verdadeira e indiscutível, pois é próprio do homem ter fome quando não toma alimentos, e para que o adversário tivesse um ponto onde atacá-lo. Mas se a primeira vez por meio do alimento conseguiu seduzir o homem saciado e o levou a transgredir o mandamento de Deus, a segunda vez não conseguiu convencer o homem faminto a usar do alimento que vem de Deus. Com efeito, como o tentador lhe dissesse: "Se tu és o Filho de Deus, dize que estas pedras se tornem pão", o Senhor o afastou com a ajuda do mandamento da Lei, respondendo-lhe: "Está escrito: não é somente de pão que vive o homem" (Mt 4,3-4). E às palavras "e és o Filho de Deus" opôs o silêncio; assim deixou às escuras o tentador com a confissão de sua humanidade e, por meio da palavra do Pai, afastou o primeiro assalto. Assim a saciedade que o homem experimentou no paraíso por causa da comida do casal foi curada pela penúria que sofreu neste mundo. Então, derrotado por meio da Lei, serviu-se da Lei, para, de maneira enganadora, desferir novo ataque. Levando-o ao pináculo mais alto do templo, disse-lhe: "Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo. Porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em alguma pedra". Ele escondia a mentira sob as palavras da Escritura, como fazem todos os hereges, porque, se estava escrito que dará ordem a seus anjos a teu respeito, nenhuma Escritura dizia: "atira-te para baixo", mas o diabo dava, por sua conta, esta sugestão. E o Senhor confundiu-o, mais uma vez, por meio da Lei: "Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus" (Mt 4,6-7; Sl 91,11-12). Com estas palavras da Lei mostrou que o homem tem o dever de não tentar a Deus, e que ele, que estava diante do diabo como homem, nunca tentaria o Senhor seu Deus. Assim a intenção soberba da serpente foi destruída pela humildade que estava no homem. Já duas vezes o diabo fora vencido por meio da Escritura e convencido a sugerir coisas contrárias ao mandamento de Deus; estava provado que era inimigo de Deus, pelas suas próprias palavras. Grandemente confundido, se recolheu, de certa forma em si mesmo para reunir todo o poder de mentira e, pela terceira vez, "mostrou-lhe todos os reinos do mundo, com o seu esplendor", dizendo, como lembra Lucas: "Eu te darei tudo isto, porque me foi entregue e eu o dou a quem quero, se, prostrado, me adorares". Então o Senhor mostrando quem era o tentador, disse: "Vaite, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto" (Lc 4,6-7; Mt 4,8-10), revelando ao mesmo tempo o nome e a natureza dele: com efeito, a palavra Satanás, em hebraico, significa apóstata. Com esta terceira vitória, o Senhor afastava de si, definitivamente, o seu adversário derrotado pela Lei, e a transgressão do mandamento de Deus, perpetrada em Adão, era anulada pelo mandamento da Lei que o Filho do Homem observou para não transgredir o mandamento de Deus. Libertos da antiga escravidão -- Quem é o Senhor Deus a quem Cristo dá testemunho, que ninguém deve tentar, que devemos adorar e a quem unicamente devemos servir? Sem dúvida é o Deus que deu a Lei, porque estes preceitos estavam na Lei e pelas palavras da Lei o Senhor demonstra que a Lei, da parte do Pai, anuncia o verdadeiro Deus e que o anjo apóstata de Deus é vencido pela palavra da Lei, é apresentado tal como é e derrotado pelo Filho do homem que obedecia ao mandamento de Deus. Com efeito, no princípio, convenceu o homem a transgredir o mandamento do Criador e assim o submeteu ao seu poder que consiste na transgressão e na apostasia, com as quais o prendeu. Era preciso, pois, que, por sua vez, este apóstata fosse vencido pelo homem e fosse preso pelas mesmas amarras com as quais prendeu o homem, para que o homem, assim liberto, pudesse voltar ao seu Senhor, deixando para ele as amarras com as quais fora preso, isto é, a transgressão. O acorrentamento dele foi a libertação do homem, porque "ninguém pode entrar na casa de um homem forte e roubar os seus pertences, se primeiro não amarrar o homem forte" (Mt 12,29; Mc 3,27). Quando o Senhor o convenceu a dar conselhos contrários à palavra de Deus que fez todas as coisas e o submeteu por meio do mandamento, que é a Lei de Deus; como homem que era, demonstrou que o diabo era trânsfuga e violador da Lei, apóstata de Deus; como Verbo o amarrou para sempre, como um seu fugitivo e se apossou dos pertences dele, isto é, dos homens que mantinha em poder dele e usava injustamente. Justamente foi leva do prisioneiro o que injustamente aprisionara o homem; e o homem, antes escravo, foi subtraído ao poder do seu dono, pela misericórdia de Deus Pai, que teve piedade da obra por ele modelada, deu-lhe a salvação e o reintegrou pelo Verbo, isto é, pelo Cristo, para que o homem aprendesse, por sua própria experiência, que não conquista a incorruptibilidade por si mesmo, mas a recebe por dom de Deus. -- O Senhor, portanto, mostrando claramente que Senhor verdadeiro e único Deus é quem foi anunciado pela Lei - Cristo mostrou como Pai o mesmo que a Lei anunciara como Deus, ao qual somente os discípulos deviam servir; - superando o nosso adversário pelas palavras da Lei - esta Lei louva ao Criador como Deus e nos ordena servir somente a ele; - indica que não se deve procurar outro Pai diferente ou superior a este, porque "Há um só Deus que justifica os circuncisos pela fé e os incircuncisos através da fé" (Rm 3,30). Se existisse outro Pai acima do Criador, nunca o Senhor poderia vencer Satanás pelas palavras e os mandamentos dele. Uma ignorância não elimina outra nem uma degradação desaparece por meio de outra. Então se a Lei deriva da ignorância e da degradação, como podiam as suas palavras destruir a ignorância do diabo e triunfar do homem forte? O homem forte não pode ser vencido por mais fraco, nem por igual, mas por mais forte, e o Verbo de Deus é o mais forte de todos. É ele que fala alto na Escritura: "Escuta, Israel, o Senhor teu Deus é o único Senhor, e tu amarás o Senhor teu Deus com toda a tua alma, adorarás e servirás somente a ele". Com estas mesmas frases, no Evangelho derrotou a Apostasia e com a voz do Pai venceu o homem forte e declara que o mandamento da Lei são as suas palavras, quando diz: "Não tentarás o Senhor teu Deus" (Dt 6,4-5 13; Mt 4,7). De fato, não foi pelo mandamento de outro, mas pelo mandamento próprio do Pai que derrotou o Adversário e venceu o homem forte. -- A nós, libertados pelo mesmo mandamento, ensinou que, famintos, devemos esperar o alimento que vem de Deus; e que, sendo elevados por todos os carismas, confiantes nas obras de justiça e adornados de ministérios excelentes, não devemos ensoberbecer-nos, nem tentar a Deus, mas ter sentimentos de humildade em todas as coisas, e ter sempre diante de nós a palavra: "Não tentarás o Senhor teu Deus", como também ensina o Apóstolo: "Não tenhais sentimentos de orgulho, mas os mesmos sentimentos dos humildes". Não te deixes tomar pelas riquezas, pela glória do mundo e pela aparência das coisas presentes, mas saiba que deves adorar o teu Deus e servir somente a ele, e não acreditar no que falsamente promete coisas não suas, dizendo: "Eu te darei tudo isso, se prostrado me adorares". Ora, é ele próprio que afirma que adorá-lo e cumprir a sua vontade é o mesmo que cair do alto da glória de Deus. E o que pode oferecer de bom e agradável quem caiu do alto, e o que pode esperar para si quem se lançar abaixo, senão a morte? De fato, para quem caiu, a morte está próxima, nem o diabo dará o que prometeu porque ele mesmo caiu. Por outro lado, como Deus domina sobre todas as coisas, incluindo o diabo, e como, contra a vontade do Pai que está nos céus, sequer um pardal cai por terra, aquelas palavras: "Tudo me foi dado pelo Pai e eu o darei a quem quero", são pura gabolice. A criação não está em seu poder e ele é apenas uma das criaturas, nem é ele quem distribui entre os homens os reinos humanos, que são dispostos segundo a ordem estabelecida pelo Pai, como todas as coisas que dizem respeito aos homens. O Senhor disse que o diabo "é mentiroso desde o princípio e nunca permaneceu na verdade". Se é mentiroso e nunca permaneceu na verdade, com certeza mentia ao dizer: "Tudo isto foi posto em meu poder e eu o darei a quem quero" (Mt 4,10 9; Lc 4,6; Jo 8,44). O pecado original -- Já há muito estava acostumado a mentir contra Deus para seduzir os homens. De fato, no princípio, Deus deu ao homem frutos em abundância como alimento e só lhe proibiu comer dos frutos de uma única árvore, assim como aparece das palavras que Deus disse a Adão e que a Escritura refere: "Podereis comer dos frutos de qualquer árvore do paraíso, mas não comereis dos frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que comereis, morrereis". Foi então que o diabo mentiu contra Deus para tentar o homem, como bem o indicam as palavras que a serpente dirigiu à mulher e estão registradas na Escritura: "Por que Deus vos disse que não comais dos frutos de nenhuma árvore do paraíso?” A mulher rejeitou a mentira e com toda candura referiu o mandamento de Deus e disse: "Nós comemos os frutos de todas as árvores do paraíso; quanto aos frutos da árvore que está no meio do paraíso, Deus disse: Não os comereis e sequer os tocareis para não morrer". Assim o diabo soube, pelas palavras da mulher, da ordem de Deus e enganou espertamente a mulher com uma mentira: "Não é verdade que morrereis, porque Deus sabe que quando o comereis, se abrirão os vossos olhos e sereis como deuses que conhecem o bem e o mal" (Gn 2,16-17; 3,1-5). Foi assim que pela primeira vez e justamente no paraíso de Deus, falava de Deus, como se estivesse ausente, com efeito ignorava a grandeza de Deus; depois, tendo sabido pela mulher que Deus dissera que morreriam se comessem do fruto daquela árvore, mentiu terceira vez, ao dizer: "Não é verdade que morrereis!” Ora os efeitos mostraram que Deus falava a verdade e a serpente a mentira, pois a morte atingiu os que comeram. De fato, com aquele alimento atraíram a morte sobre si, porque comeram desobedecendo e a desobediência a Deus atrai a morte. Por isso, desde então, foram entregues à morte porque se tinham tornado devedores dela. -- Eles morreram naquele mesmo dia em que comeram e se tornaram devedores da morte, porque a criação se deu num só dia: "Houve uma tarde e uma manhã: um só dia" (Gn 1,5). Naquele mesmo dia em que comeram eles morreram. Por outro lado, se considerarmos o ciclo e a seqüência dos dias pelo qual um é o primeiro, outro o segundo, outro o terceiro, e quisermos saber exatamente em que dia da semana morreu Adão, o poderemos encontrar na economia do Senhor, o qual, recapitulando em si todo o homem do princípio ao fim, recapitulou também a sua morte. Por isso, é evidente que o Senhor, em obediência a seu Pai, sofreu a morte naquele mesmo dia em que Adão morreu, por ter desobedecido a Deus. Ora, o dia em que morreu é também aquele em que comeu do fruto proibido, porque Deus dissera: "No dia em que comereis deste fruto morrereis". Recapitulando em si este dia, o Senhor foi para a paixão na véspera do sábado, que é o sexto dia da criação e o dia em que foi plasmado o homem, efetuando nele, por meio da sua paixão, a segunda modelagem que se faz pela morte. Alguns, porém, dizem que a morte de Adão se deu no espaço de mil anos, porque um dia do Senhor é como mil anos. Adão não passou dos mil anos e morreu durante o transcorrer deles, cumprindo assim a sentença pela sua transgressão. Portanto, quer no sentido de que a sua desobediência foi a morte, quer no de que a partir daque-le instante foram entregues à morte e feitos devedores a ela, quer que tenham comido e morrido no mesmo dia, porque não há senão um só dia para a criação; quer, considerando o ciclo dos dias, tenham sofrido a morte no dia em que comeram, isto é, na Parasceve, que significa ceia pura, isto é, sexta-feira, dia que o Senhor deu a conhecer tornando-o dia da sua paixão; quer, finalmente, que Adão não tenha ultrapassado os mil anos, mas tenha morrido no trascorrer deles: em todos estes sentidos, Deus aparece verídico, porque os que comeram do fruto da árvore morreram e a serpente se mostra mentirosa e homicida, conforme o Senhor fala dela: "Ele é homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade". Mentiroso desde o princípio -- Como mentiu no princípio, assim mente, no fim, quando diz: "Tudo isto foi posto em meu poder e eu o darei a quem quero" (Lc 4,6), porque não foi ele a estabelecer os reinos deste mundo, e sim Deus, pois "o coração do Rei está na mão do Senhor". Pela boca de Salomão o Verbo diz ainda: "É por mim que reinam os reis, e que os príncipes decretam a justiça; por mim os grandes são exaltados e os chefes governam a terra" (Pr 21,1; 8,15-16). O apóstolo Paulo fala no mesmo sentido: "Sede submissos a todas as autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus e as que existem foram estabelecidas por Deus". E diz ainda a respeito delas: "Não é sem motivo que a autoridade porta a espada: com efeito, ela é ministra de Deus e toma vingança enérgica contra o malfeitor". Ele não fala nem das potências angélicas, nem dos principados invisíveis, como alguns têm a ousadia de interpretar, mas de autoridades humanas; e a prova disso está nestas palavras: "É por isso que pagais os impostos, porque eles são ministros de Deus que se desincumbem com zelo do seu ofício". O Senhor confirmou isso tudo ao não fazer o que o diabo lhe sugeria e, por sua vez, dando ordens que se pagasse o imposto aos coletores para si e para Pedro, porque "são ministros de Deus e se desincumbem com zelo do seu ofício" (Rm 13,1-6). -- Com efeito, o homem quando se separou de Deus, chegou a tal ponto de crueldade que considerou como inimigos até os parentes e se lançou, sem medo, a toda espécie de desordens, homicídios e cupidez. Por isso Deus lhe impôs o temor dos homens, visto que não conheciam o temor de Deus, para que submetidos a uma autoridade humana e educados pelas suas leis, chegassem a certa justiça e usassem de moderação uns com os outros por medo da espada posta ostensivamente diante de seus olhos, de acordo com o que diz o Apóstolo: "Não é à toa que ela traz a espada; ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal". Por este motivo, os magistrados não devem prestar contas nem podem ser punidos pelo que fazem quando são revestidos das leis como de indumento de justiça, mas são punidos por tudo o que fazem em detrimento da justiça agindo de maneira iníqua, ilegal e tirânica, porque o justo julgamento de Deus se aplica a todos os homens da mesma forma e sem falhas. Foi Deus que estabeleceu os reinos terrenos para o bem das nações e não o diabo, que nunca sossega nem deixa sossegada alguma nação, para que, pelo temor desta autoridade, os homens não se entredevorem como peixes, mas refreiem pela força das leis a grande injustiça dos gentios. É neste sentido que "os magistrados são os ministros de Deus". Se, portanto, os que recolhem os nossos impostos "são os ministros de Deus e se desincumbem com zelo do seu ofício", e -- se "todas as autoridades que existem foram estabelecidas por Deus", está claro que o diabo mentia ao dizer: "Foram-me entregues e as dou a quem quero". Por ordem de quem nascem os homens é o mesmo por ordem de quem são estabelecidos reis convenientes àqueles que são governados por eles, num tempo determinado. De fato, alguns são estabelecidos para correção e bem dos seus súditos e pela manutenção da justiça, outros para incutir medo, para o castigo e a repressão; outros, ainda, para o escárnio, a insolência e o orgulho conforme os súditos os merecem; porque, como dissemos, o justo juízo de Deus se aplica a todos os homens da mesma forma. O diabo, porém, não sendo mais que anjo apóstata, pode fazer somente o que fez desde o início, isto é, seduzir e induzir a mente dos homens a transgredir os mandamentos de Deus e tornar paulatinamente cego o coração dos que se esforçam por servi-lo, para que esqueçam o verdadeiro Deus e adorem a ele como Deus. -- É como se um rebelde, depois de se ter apossado com a força de uma região, espalhasse o temor entre seus habitantes e usurpasse para si as honras reais dos que não sabem que é rebelde e ladrão. Assim é com o diabo; ele era um dos anjos prepostos aos ventos da atmosfera, assim como Paulo o dá a conhecer na carta aos Efésios, que, por inveja dos homens, se tornou apóstata da lei de Deus: a inveja aliena de Deus. E, como a sua rebelião fosse denunciada pelo homem, que se tornou a pedra de toque de suas disposições, mais e mais cresceu nele a sua aversão pelo homem, invejoso que era da sua vida, e decidiu que o sujeitaria ao seu poder apóstata. Mas o Verbo de Deus, o Artífice de todas as coisas, vencendo-o na sua humanidade e denunciando a sua rebelião, submeteu-o, por sua vez, ao homem, dizendo: "Eis que vos dou o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo" (Lc 10,19. Tornou-se vitorioso e livre o homem na vitória de Cristo. A libertação é conquistada. O homem reencontra Deus e recebe o mesmo poder de Cristo. Daí, vale a pena para a humanidade e a Igreja continuarem lutando: a vitória eliminará a escravidão e a apostasia), de forma que, tendo dominado o homem por meio da apostasia, assim por meio do homem que voltava a Deus, fosse eliminada a sua apostasia. O Anticristo: profetizada a sua vinda -- Não somente pelo que foi dito até agora, mas também pelo que acontecerá no tempo do Anticristo, manifesta-se que o demônio, enquanto apóstata e ladrão, quer ser adorado como Deus e enquanto escravo quer ser proclamado rei. Com efeito, o Anticristo, depois de ter recebido todo o poder do demônio, virá não como rei justo, submetido a Deus e dócil à sua lei, mas como ímpio, injusto e sem lei, como apóstata, injusto, homicida e ladrão, recapitulando em si toda a apostasia do demônio. Rejeitará os ídolos para fazer acreditar que ele é Deus, mas se levantará como o único ídolo concentrando em si a falsidade de todos os ídolos e para que os que adoram o demônio com a multidão de abominações o sirvam agora através deste único ídolo. O Apóstolo, na segunda carta aos Tessalonicenses, fala assim do Anticristo: "Porque deve vir primeiro a apostasia, e aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, o adversário, que se levanta contra tudo que se chama Deus, ou recebe culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus e querendo passar por Deus" (2Ts 2,3-4). O Apóstolo se refere claramente à sua apostasia e à sua elevação acima de tudo que se chama deus, ou seja, objeto de culto, isto é, de todos os ídolos - são estes chamados os deuses pelos homens, mas não o são - e à tentativa tirânica de se fazer passar por Deus. -- Além disso, afirma o que já temos abundantemente demonstrado, isto é, que o templo de Jerusalém foi construído de acordo com a prescrição do verdadeiro Deus. O Apóstolo, manifestando a sua opinião, chama-o propriamente templo de Deus. No terceiro livro dissemos que os apóstolos, falando em seu próprio nome, nunca chamam Deus a ninguém, a não ser ao verdadeiro Deus, o Pai de nosso Senhor, por ordem do qual foi construído o templo de Jerusalém, pelos motivos apresentados acima, no qual se assentará o adversário querendo passar por Deus, conforme diz também o Senhor: "Quando virdes a abominação da desolação, de que fala o profeta Daniel, instalada no lugar santo, que o leitor o entenda, então os que estiverem na Judéia, fujam para as montanhas, aquele que estiver no terraço, não desça para apanhar as coisas da sua casa. Pois naquele tempo haverá tão grande tribulação como não houve desde o princípio do mundo até agora, nem tornará a haver jamais" (Mt 24,15-17 21). -- Daniel, ao contemplar o fim do último reino, isto é, os últimos dez reis entre os quais será dividido o reino, sobre os quais virá o filho da perdição, diz que surgiram dez chifres à besta e depois, entre eles surgia um chifre pequeno, diante do qual foram arrancados três dos primeiros. "E eis, que este chifre, diz ele, tinha olhos como olhos humanos e boca que falava palavras arrogantes, e cujo aspecto era mais majestoso do que o dos outros. Estava eu contemplando: e este chifre fazia guerra aos santos e prevalecia sobre eles até o momento em que veio o Ancião dos Dias e foi feito o julgamento em favor dos santos do Altíssimo. E chegou o tempo em que os santos entraram na posse do reino" (Dn 7,7-8 20-21). Depois, na explicação da visão, foi-lhe dito: "O quarto animal será um quarto reino na terra, que se elevará sobre todos os outros, devorará a terra inteira, calcá-la-á aos pés e a esmagará. Os dez chifres desta besta são dez reis que surgirão, e outro se levantará depois deles, que superará no mal todos os outros que o precederam, e abaterá três reis; proferirá insultos contra o Altíssimo e oprimirá os santos do Altíssimo e tentará mudar os tempos e a Lei, o que lhe será concedido por um tempo, dois tempos e metade de um tempo" (Dn 7,23-25), isto é, por três anos e seis meses, tempo que, ao vir, reinará sobre a terra. O apóstolo Paulo, falando sobre isso na segunda carta aos Tessalonicenses, manifestava também o motivo desta vinda: "Então aparecerá o ímpio, aquele que o Senhor destruirá com o sopro de sua boca, e suprimirá pela manifestação da sua Vinda. Vinda que será assinalada pela atividade de Satanás, com toda sorte de portentos, milagres e prodígios mentirosos e por todas as seduções da injustiça, para os que se perdem, porque não acolheram o amor da verdade, a fim de serem salvos. É por isso que Deus lhes manda o poder da sedução, para acreditarem na mentira e serem condenados todos os que não creram na verdade, mas antes consentiram na injustiça" (2Ts 2,8-12). -- A mesma coisa dizia o Senhor aos que não acreditavam nele: "Eu vim em nome de meu Pai e não me acolhestes"; quando virá outro em seu próprio nome vós o recebereis. Com este "outro" indicava o Anticristo, que é estranho a Deus. Ele é o juíz iníquo de quem o Senhor disse: "não temia a Deus e não respeitava nenhum homem" (Lc 18,6 2), ao qual recorreu a viúva esquecida de Deus, isto é, a Jerusalém terrena, reclamando justiça contra o seu inimigo. É exatamente isto que fará o Anticristo no tempo de seu reinado: transferirá o seu reinado para Jerusalém, assentar-se-á no templo de Deus, enganando os seus adoradores, fazendo com que creiam que é o Cristo. Eis por que Daniel diz ainda: "O santuário será devastado; o sacrifício foi trocado pelo pecado e a justiça foi lançada por terra; ele fez e conseguiu fazer isso". E o anjo Gabriel explicando-lhe as visões, dizia a respeito do Anticristo: "E no fim do seu reinado levantar-se-á um rei de olhar arrogante, capaz de penetrar os enigmas. Seu poder será considerável; ele tramará coisas inauditas, prosperará em suas empresas, arruinando poderosos e o próprio povo dos santos; o jugo de sua coleira se apertará; a perfídia terá êxito em suas mãos; ele se exaltará em seu coração, e, supreendendo-os, destruirá a muitos; causará a ruína de muitos e esmagá-los-á com as mãos, como ovos". Depois o anjo indica o tempo de sua dominação tirânica durante o qual os santos que oferecerão ao Senhor sacrifícios puros serão perseguidos: "Durante o tempo de meia semana, diz, serão abolidos o sacrifício e a oblação, e no templo haverá a abominação da desolação e até a consumação do tempo a consumação será dada acima da desolação" (Dn 8,11-12 23-25; 9,27). A "metade da semana" equivale a três anos e seis meses. -- Em todas estas profecias são indicadas não somente a apostasia e as heresias que recapitulam em si todo erro diabólico, mas ainda se afirma que há um só e idêntico Pai, anunciado pelos profetas e revelado pelo Cristo. Ora, se as profecias de Daniel relativas ao fim dos tempos foram confirmadas pelo Senhor que diz: "Quando virdes a abominação da desolação predita pelo profeta Daniel" (Mt 24,15); se Daniel teve a explicação das visões pelo anjo Gabriel e se este é ao mesmo tempo o arcanjo do Criador e quem anunciou a Maria a boa nova da vinda visível e da encarnação do Cristo, está provado com toda clareza que um só e idêntico é o Deus que enviou os profetas, depois o seu Filho e nos chamou para que o conhecêssemos. Previsto o fim do seu reino -- Uma revelação mais clara ainda acerca dos últimos tempos e dos dez reis, entre os quais será dividido o império que agora domina, foi feita por João, o discípulo do Senhor, no Apocalipse. Explicando o que eram os dez chifres vistos por Daniel, refere o que lhe foi dito: "Os dez chifres que tu viste são dez reis que ainda não receberam o reino, mas que receberão o poder como reis, por uma hora, com a besta. Eles não têm senão um pensamento, o de homenagear a besta com a sua força e o seu poder. Eles combaterão contra o Cordeiro, mas o Cordeiro os vencerá, porque é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis" (Ap 17,12-14). Está claro, portanto, que aquele que deve vir matará três destes dez reis, que os outros se lhe submeterão e que ele será o oitavo entre eles. Eles destruirão Babilônia, reduzi-la-ão a cinzas, darão o seu reino à besta e perseguirão a Igreja, mas, em seguida, serão destruídos pela vinda de nosso Senhor. O Senhor disse que o reino deve ser dividido e ser destruído: "Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruína e nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá subsistir" (Mt 12,25). O reino, a cidade, a casa devem ser divididas em dez partes, e por isso o Senhor desde já predisse essa divisão e partilha. O próprio Daniel identifica exatamente o fim do quarto reino nos dedos dos pés da estátua vista por Nabucodonosor, com os quais se chocou a pedra que se desprendeu sem intervenção de mão alguma. Ele diz assim: "Os pés eram parte de ferro e parte de argila, quando uma pedra, sem intervenção de mão alguma, destacou-se e veio bater na estátua, nos pés de ferro e de argila e os triturou completamente". Mais adiante, na explicação, diz: "Os pés e os dedos que viste, parte de argila e parte de ferro, designam um reino que será dividido; haverá nele a estabilidade do ferro, como viste o ferro misturado à argila. E os dedos dos pés eram parte de ferro e parte de argila" (Dn 2,33-34; 41,42). Os dez dedos dos pés significam os dez reis entre os quais será dividido o reino; alguns deles serão fortes, hábeis e poderosos e outros serão fracos e ociosos e contrários, como diz Daniel: "Uma parte do reino será forte e será quebrada pela outra parte. O fato de teres visto ferro misturado à argila, indica que se misturarão por casamentos, mas não se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro não se funde com a argila". E sobre o que acontecerá no fim, diz: "No tempo desses reis o Deus do céu suscitará um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre. Foi o que pudeste ver na pedra que se destacou da montanha, sem que mão alguma a tivesse tocado e reduziu a pó o ferro, o bronze, a argila e a prata. O grande Deus manifestou ao rei o que deve acontecer depois disto. O sonho é verdadeiramente este, e digna de fé é a sua interpretação" (Dn 2,42-43; 44,45). -- Se, portanto, o grande Deus deu a conhecer o futuro por meio de Daniel e o confirmou por meio de seu Filho; se o Cristo é a pedra que se desprendeu sem intervenção de mão alguma, aquele que deve aniquilar os reinos temporais e introduzir o reino eterno, isto é, a ressurreição dos justos - "o Deus do céu, diz, suscitará um reino que nunca mais será destruído", - dêem-se por vencidos e se emendem os que, rejeitando o Criador, não admitem que os profetas foram enviados pelo mesmo Pai que também enviou o Senhor, mas dizem que as profecias derivam de Potências diferentes. Com efeito, o que o Criador predisse de forma idêntica por meio de todos os profetas foi o que o Cristo cumpriu, no fim, obedecendo à vontade do Pai e realizando a sua economia do gênero humano. Portanto, os que blasfemam o Criador - explícita e abertamente, como os discípulos de Marcião ou astuciosamente, como os discípulos de Valentim e todos os falsos gnósticos - sejam reconhecidos por todos os que adoram a Deus como instrumentos de Satanás, que começou nestes nossos dias o que ainda não começara, isto é, a amaldiçoar a Deus, que preparou o fogo eterno para toda apostasia. Ele não tem a coragem de ofender o seu Senhor abertamente, por sua conta, como no princípio, sob a forma de serpente, seduziu o homem, escondendo-se de Deus. Foi Justino a dizer que Satanás, antes da vinda do Senhor, nunca teve a ousadia de blasfemar a Deus, porque ignorava o alcance da sua condenação, visto que os profetas haviam falado dele em parábolas e alegorias (Embora também citada por Eusébio, esta afirmação não se encontra nas obras de Justino). Mas depois da vinda do Senhor ficou sabendo claramente, pelas palavras de Cristo e dos apóstolos, que um fogo eterno foi preparado para ele que se separou voluntariamente de Deus, e para todos os que, recusando-se de fazer penitência, perseveram na apostasia. Assim, por intermédio destes homens, blasfema o Senhor que faz sobrevir o juízo e, como já condenado, culpa o seu Criador pelo pecado de apostasia e não a sua livre vontade, assim como os transgressores da lei, quando punidos, incriminam o legislador em lugar de imputar a si mesmos a culpa. Assim estes, cheios de espírito diabólico, proferem inumeráveis acusações contra o nosso Criador, que nos deu o Espírito de vida e estabeleceu uma lei apropriada para todos e não querem aceitar o justo juízo de Deus. Por este motivo imaginam outro Pai que não cuida e nem se importa das nossas coisas, e até aprova todos os nossos pecados. Condenado por Deus -- Com efeito, se o Pai não julga, é por que ou não lhe importa nada tudo o que fazemos ou o aprova. Assim, se ele não julga, todos os homens serão iguais e estarão todos na mesma condição. Então a vinda de Cristo seria supérflua e sem sentido se não viesse para julgar. Porque "veio separar o homem de seu pai, a filha de sua mãe e a sogra da nora" (Mt 10,35); veio tomar um e deixar outro de dois que se encontram na mesma cama e de duas mulheres ocupadas a moer juntas, tomar uma e deixar a outra; veio para ordenar aos ceifadores, no fim dos tempos, que juntem primeiro o joio, amarrem-no em feixes e queimem-no no fogo inextinguível e depois recolham o trigo nos celeiros; e finalmente veio reunir os cordeiros no reino preparado para eles e enviar os cabritos para o fogo eterno, que o Pai preparou para o diabo e os seus anjos. O que dizer? Que o Verbo veio para a ruína e a ressurreição de muitos: para a ruína dos que não crêem nele e que ameaçou, no dia do juízo, de uma pena mais severa do que aquela de Sodoma e Gomorra; e para a ressurreição dos que crêem e obedecem à vontade de seu Pai que está nos céus. Se o Filho veio para todos igualmente, mas julga e distingue os que crêem dos que não crêem - porque espontaneamente os que crêem fazem a sua vontade e espontaneamente os que não crêem não recebem os seus ensinamentos - está claro que o Pai criou todos iguais, cada um possuindo o seu poder de decisão e seu livre-arbítrio, mas vê tudo e providencia para todos e "faz nascer o sol sobre os maus e os bons e faz chover sobre os justos e os injustos" (Mt 5,45). -- E a todos os que guardam o seu amor oferece a sua comunhão; a comunhão de Deus é vida, é luz, é gozo dos bens que vêm dele. Para aqueles, porém, que por sua própria vontade se afastam dele, confirma a separação que escolheram; a separação de Deus é a morte, a separação da luz são as trevas, é a perda de todos os bens que vêm dele. Os que, portanto, pela sua apostasia, perderam tudo o que acabamos de dizer, sendo privados de todos os bens, estão imersos em todos os castigos, não porque Deus não tivesse no princípio a intenção de puni-los, mas o castigo veio como conseqüência da privação de todos os bens. Os dons de Deus são eternos e sem fim e a privação deles é também eterna e sem fim, como os que se autocegaram por uma luz violenta ou o foram por outros, estão privados permanentemente do gozo da luz, não porque a própria luz cegue, mas porque sua cegueira aumenta a sua desgraça. Por isso o Senhor dizia: "Quem crê em mim não é julgado", isto é, não é separado de Deus, porque está unido a Deus pela fé. E acrescentava: "Mas quem não crê já está condenado porque não creu no nome do Unigênito Filho de Deus", isto é, separou-se de Deus por sua livre decisão. "Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz. Quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, a fim de que as suas obras não sejam desmascaradas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que se manifeste que as suas obras são feitas em Deus" (Jo 3,18 19-21). Envolve os seus seguidores -- Assim pois, visto que neste mundo alguns acorrem à luz e se unem a Deus pela fé, ao passo que outros se afastam da luz e se separam de Deus, o Verbo de Deus veio para dar a cada um a morada apropriada: a uns, na luz, para que gozem dos bens que ela contém, e a outros, nas trevas, a fim de partilhar as penas que encerram. É por isso que o Senhor diz que chamará os da sua direita para o reino do Pai e mandará os da sua esquerda para o fogo eterno, porque eles, sozinhos, se privaram de todos os bens. -- Eis por que o Apóstolo diz: "Visto que não acolheram o amor da verdade a fim de serem salvos, por isso Deus lhes manda o poder da sedução para que acreditem na mentira e sejam condenados todos os que não acreditaram na verdade, mas antes consentiram na iniqüidade" (2Ts 2,10-12). Com efeito, virá aquele que deve vir, o Anticristo, e voluntariamente recapitulará em si a apostasia e por sua vontade e arbítrio fará tudo o que fará, sentar-se-á no templo de Deus, para que os seus seguidores o adorem como Cristo: assim será justamente lançado ao lago de fogo. Deus, na sua previdência, conhece todas as coisas, fará vir em tempo oportuno aquele que deve ser o tal "para que acreditem na mentira e sejam condenados todos os que não acreditaram na verdade, mas antes consentiram na iniqüidade". A sua vinda é anunciada por João, desta forma: "A besta que eu vi parecia pantera, seus pés eram como de urso e a sua boca como a boca de leão; e o dragão lhe entregou o seu poder, seu trono e grande autoridade; uma de suas cabeças parecia mortalmente ferida, mas a ferida mortal foi curada. Cheia de admiração, a terra inteira seguia a besta e adorou o dragão por ter entregue a autoridade à besta, e adorou a besta dizendo: Quem é comparável à besta e quem pode lutar contra ela? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras insolentes e blasfêmias e, também, poder para agir durante quarenta e dois meses. Ela então abriu a boca em blasfêmias contra Deus, blasfemando contra o seu nome, sua tenda e os que habitam no céu. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação. Adoraram-na, então, todos os habitantes da terra, cujo nome não está escrito, desde a fundação do mundo, no livro da vida do Cordeiro imolado. Se alguém tem ouvidos, ouça: Se alguém está destinado à prisão, irá à prisão; se alguém deve morrer pela espada é preciso que morra pela espada. Nisto repousa a perseverança e a fé dos santos" (Ap 13,2-10). João fala depois do escudeiro da besta, que chama pseudoprofeta: "Falava, ele diz, como um dragão. Toda a autoridade da primeira besta, ela a exerce diante desta. Ela faz com que a terra e seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. Ela opera grandes maravilhas até mesmo a de fazer descer fogo do céu sobre a terra, à vista dos homens. E seduz os habitantes da terra" (Ap 13,11-14). Não se julgue que faça isso graças a poder divino, mas o faz graças a operação de mágica. E não é de se admirar se, com a ajuda dos demônios e dos espíritos apóstatas, opera prodígios que hão de seduzir os habitantes da terra. "E os incitará, continua João, a fazerem uma imagem em honra da besta, e infundirá espírito na imagem, de modo que a imagem fale e mate todos os que não a adorarem. Faz também com que todos recebam uma marca na fronte ou na mão direita, para que ninguém possa comprar e vender, se não tiver a marca, o nome da besta ou o número de seu nome: e seu número é seiscentos e sessenta e seis" (Ap 13,14-18), isto é, seis centenas, seis dezenas e seis unidades, que é a recapitulação de toda a apostasia perpetrada durante seis mil anos. -- Quantos foram os dias empregados a criar este mundo, tantos serão os milênios da sua duração total. Eis por que o livro do Gênesis diz: "Assim foram concluídos os céus e a terra e toda a sua ornamentação. Deus concluiu no sexto dia toda a obra que fizera e no sétimo dia descansou de todas as obras que fizera" (Gn 2,1-2). Esta é descrição do passado, tal como aconteceu, e ao mesmo tempo uma profecia para o futuro: com efeito, "se um dia do Senhor é como mil anos", se a criação foi acabada em seis dias, está claro que a consumação das coisas acontecerá no sexto milênio. -- Eis por que durante todo este tempo, o homem, modelado no princípio pelas mãos de Deus, isto é, o Filho e o Espírito, vai crescendo na imagem e semelhança de Deus; descartada a palha, - que é a apostasia, - o trigo é recolhido no celeiro, - isto é, aqueles cuja fé frutifica para Deus. Por isso também é necessária a tribulação para os que se salvam, a fim de que, de certo modo moídos e amassados pela paciência e assados pelo Verbo de Deus, se tornem prontos para a festa de núpcias do Rei. Como disse alguém dos nossos condenado às feras, por causa do testemunho que prestou a Deus: "Eu sou o trigo de Cristo moído pelos dentes das feras para me tornar o pão puro de Deus" (Trata-se de santo Inácio de Antioquia). Recapitula em si todas as iniqüidades -- Nos livros precedentes expusemos os motivos pelos quais Deus permitiu que acontecessem estas coisas e mostramos como todas elas se cumpriram em benefício do homem que se salva, amadurecendo-lhe o livre-arbítrio para a imortalidade e tornando-o mais apto para a eterna submissão a Deus. É por isso que a criação está submetida ao homem, porque não é o homem que foi feito para ela, mas ela para o homem. Até os pagãos que não levantaram os olhos ao céu, não agradeceram o seu Criador e não quiseram ver a luz da verdade, escondendo-se como ratos cegos nas profundezas da sua loucura, foram justamente considerados como uma gota que cai do balde, ou como um grão de pó nos pratos da balança e como nada, úteis para os justos quanto o pode ser uma espiga para o crescimento do trigo ou uma palha para o fogo que derrete o ouro. Por isso, quando, no fim, de repente a Igreja será levada daqui, "haverá, como está escrito, uma tribulação como nunca houve desde o princípio e nunca mais haverá" (Mt 24,21); será a última prova dos justos e os vencedores serão coroados com a incorruptibilidade. -- Por isso, na besta que há de vir, haverá a recapitulação de toda a iniqüidade e de todo o engano, para que todo o poder da apostasia que se ajuntou e recolheu nela, seja lançado na fornalha ardente. Por esta razão o número de seu nome será justamente seiscentos e sessenta e seis, recapitulando em si toda a mistura do mal que se desencadeou antes do dilúvio em conseqüência da apostasia dos anjos - Noé tinha seiscentos anos quando se precipitou o dilúvio na terra, destruindo a rebelião da terra por causa da geração perversa dos tempos dele; - recapitulando também toda a falsidade que houve depois do dilúvio, aquela que recomendava o culto dos ídolos, a matança dos profetas e o suplício do fogo infligido aos justos. Com efeito, a estátua construída por Nabucodonosor tinha sessenta côvados de altura e seis de largura e por se terem recusado a adorá-la Ananias, Azarias e Misael foram lançados na fornalha acesa, profetizando com o que lhes acontecera, a prova do fogo a que serão submetidos os justos no final dos tempos. Aliás toda esta estátua foi a prefiguração da vinda daquele que pretendia se fazer adorar por absolutamente todos os homens. Assim os seiscentos anos de Noé, na época do dilúvio que se deu por causa da apostasia, e o número dos côvados da estátua, por causa da qual os justos foram lançados na fornalha acesa, indicam o número do nome daquele em que será recapitulada toda apostasia, a injustiça, a iniqüidade, a pseudoprofecia e o engano de seis mil anos, por causa dos quais acontecerá o dilúvio de fogo. O nome misterioso do Anticristo -- Sendo essa a situação, visto que este número se encontra em todos os manuscritos mais antigos e cuidados, é atestado pelos que viram João com seus próprios olhos e, racionalmente, o número do nome da besta, contado à maneira dos gregos, somando o valor das letras que formam este nome, é de seiscentos e sessenta e seis, isto é, igual número de centenas, dezenas e unidades - o número seis, assim conservado, indica a recapitulação de toda a apostasia perpetrada no princípio, no meio e no fim dos tempos - não entendo como alguns se puderam enganar, levados por uma opinião particular a corrigir o número do meio, diminuindo-o de cinqüenta unidades e deixando somente uma dezena no lugar das seis. Penso que houve erro do copista, coisa que acontece freqüentemente quando os algarismos são escritos por meio de letras, porque é fácil confundir a letra grega que indica sessenta com o iota, que indica o dez. Em seguida aceitou-se o novo número sem discussão: por alguns, com simplicidade e sem segundas intenções, por outros, por ignorância, procurando nomes que indicassem este número errado. Os que agiram com simplicidade e sem malícia pode-se acreditar que serão perdoados por Deus, mas todos os que por vanglória apresentarão nomes que contêm este número errado e afirmarão que o nome que eles imaginaram é o de quem deve vir, não se sairão bem, por ter seduzido a si mesmos e os que acreditam neles. O primeiro prejuízo é o de se afastar da verdade e julgar verdadeiro o que não é, e o segundo é que, se é verdade que quem acrescenta ou elimina alguma coisa das Escrituras sofrerá castigo exemplar, inevitavelmente será atingido quem agir desta forma. Correm ainda o perigo, e este não leve, os que pensam erroneamente conhecer o nome do Anticristo, porque se o que deve vir tem nome diverso do que eles pensam, facilmente serão seduzidos por ele, pensando não ser aquele de quem se devem guardar. -- É necessário que estes aprendam a conhecer o verdadeiro número do nome se não quiserem ser contados entre os falsos profetas. Conhecendo, pois, com certeza, o número indicado pelas Escrituras, isto é, seiscentos e sessenta e seis, devem primeiramente esperar a divisão do reino entre os dez reis e depois, quando eles reinarão pensando em aumentar o seu poder e ampliar o seu reino, prestar atenção ao homem que, tendo no nome o número indicado, virá improvisamente reivindicar o reino e a aterrorizar estes reis, a fim de saber que ele é realmente a abominação da desolação. É o que diz o Apóstolo: "Quando dirão: paz e segurança, então cairá sobre eles, improvisa, a morte". Jeremias não somente indica a instantaneidade da sua vinda, mas também a tribo donde ele virá, com estas palavras: "Ouviremos o barulho da velocidade dos seus cavalos vindo de Dã; pelo relinchar dos seus corcéis em corrida, toda terra se turvará; e ele virá, e devorará a terra e o que ela contém, a cidade e os seus habitantes" (1Ts 5,3; Jr 8,16). É esta a razão pela qual esta tribo não será contada, no Apocalipse, entre as que se salvam. -- É mais seguro e sem perigo esperar o cumprimento desta profecia do que se entregar a elucubrações e conjecturas sobre nomes, porque é possível encontrar quantidade enorme deles que combinam com este número, e o problema continuará o mesmo, pois, se há muitos nomes com este número, continuará a valer a pergunta de quem será o nome do que deve vir. Com efeito, não é por falta de nomes que tenham o número do nome do Anticristo que falamos assim, mas por temor de Deus e pelo zelo da verdade. Por exemplo, a palavra EYANTHAS contém o número procurado, mas não dizemos nada sobre ela; também a palavra LATEINOS contém este número, seiscentos e sessenta e seis, e pode-se até acreditar que este seja o nome, que significa o último reino, visto que são os latinos que dominam neste momento; contudo não insistiremos neste nome. A palavra TEITAN, quando se escreve a primeira sílaba com duas vogais gregas, o épsilon e o iota, de todas as que conhecemos, merece atenção maior. De fato possui o número que dissemos: compõe-se de seis letras, de duas sílabas com três letras; é nome antigo e excepcional, visto que nenhum dos nossos reis se chamou Titã e nenhum dos ídolos adorados pelos gregos ou pelos bárbaros tem este nome. Além disso, muitos pensam que é divino, tanto que alguns contemporâneos chamam Titã ao sol; é nome que contém sentido de castigo e de vingança e o Anticristo simulará a vingança das vítimas de maus tratos; finalmente, sobretudo, porque é antigo e verossímil para um rei e mais ainda para um tirano. Por todos estes motivos o nome de Titã possui grau de probabilidade que nos permite concluir que poderia muito bem ser o nome do que deve vir. Mas não nos arriscaremos em declarar peremptoriamente que terá este nome, bem sabendo que se o seu nome tivesse que ser proclamado no nosso tempo, já teria sido manifestado pelo vidente do Apocalipse, porque não faz muito tempo que ele foi visto, e sim próximo aos nossos dias, no fim do reinado de Domiciano (Os cálculos aqui se referem às palavras gregas, daí a necessidade de conservá-las na língua original. Estes três nomes prováveis, entretanto, nada asseguram, como se verá em seguida). -- Com efeito, João nos deu a conhecer o número do nome dele para que estejamos atentos à sua vinda, sabendo quem é; mas passou sob silêncio o nome, porque não era conveniente que fosse anunciado pelo Espírito Santo. Se o tivesse anunciado talvez tivesse que durar por muito tempo, mas visto que foi e "já não é, e que sobe do abismo para ir à perdição" como se nunca tivesse vindo, assim o nome dele não foi anunciado; com efeito, não se anuncia o nome de quem não existe. Ora, depois que o Anticristo tiver destruído todas as coisas neste mundo, reinado três anos e seis meses e tiver assentado no templo de Jerusalém, o Senhor virá do alto do céu, sobre as nuvens, na glória do Pai, e o lançará no lago de fogo com todos os seus seguidores; para os justos trará os tempos do reino, isto é, o repouso do sétimo dia santificado, e dará a Abraão a herança prometida, aquele reino, diz o Senhor, ao qual "muitos virão do oriente e do ocidente para se assentar à mesa com Abraão, Isaac e Jacó" (Ap 17,8; Mt 8,11). O REINO ETERNO Preparação gradual -- Mas há alguns, julgados como ortodoxos, que passam por cima da ordem com que os justos hão de progredir e ignoram os passos graduais para a incorruptibilidade. Estes têm em si pensamentos heréticos - com efeito, os hereges, ao desprezar a obra modelada por Deus, ao não aceitar a salvação de sua carne, menosprezando a promessa de Deus e ultrapassando completamente, com a sua mente, a Deus, afirmam que logo depois da sua morte subirão acima dos céus, acima até do próprio Criador, para irem junto à Mãe ou ao Pai que eles inventaram. - Por que nos devemos admirar se os que rejeitam toda ressurreição e, pelo que está em seu poder, a eliminam, não conhecem a ordem com que se realizará esta ressurreição? Recusando entender que se as coisas se verificassem realmente como eles querem, sequer o Senhor, em quem dizem acreditar, teria ressuscitado ao terceiro dia, mas logo que expirou sobre a cruz teria subido às alturas, abandonando o seu corpo sobre a terra. Ora, passou três dias onde estavam os mortos, em conformidade com o que o profeta diz dele: "O Senhor se lembrou dos seus santos mortos, dos que antes adormeceram na terra das sepulturas e desceu até eles para tirá-los de lá e salvá-los". O próprio Senhor diz: "Como Jonas ficou três dias e três noites no ventre do cetáceo, assim acontecerá com o Fi lho do homem no seio da terra". E o Apóstolo diz: "Que significa `subiu' a não ser que tinha descido às regiões inferiores da terra?” Igualmente disse Davi, profetizando sobre ele: "Libertaste a minha alma das profundezas do inferno". Ao ressuscitar no terceiro dia, dizia a Maria, a primeira que o via e o adorava: "Não me toques, porque ainda não subi ao Pai; mas vá aos meus discípulos e dize-lhes: Subo ao meu Pai e vosso Pai" (Mt 12,40; Ef 4,9; Sl 86,13; Jo 20,17). -- Se o Senhor se submeteu às leis da morte para ser primogênito entre os mortos e ficou três dias nas regiões inferiores da terra antes de ressuscitar na carne, para mostrar aos discípulos também os sinais dos pregos, e assim subir ao Pai, devem-se envergonhar os que afirmam que o inferno é este nosso mundo e que o homem interior sobe para um lugar supraceleste, deixando aqui o corpo. Tendo o Senhor ido entre as sombras da morte, onde estavam as almas dos mortos, e ressuscitando depois corporalmente, e depois de ressuscitado, sendo levado ao céu, indicou que o mesmo aconteceria com seus discípulos, pois era para eles que o Senhor fez tudo isso: as almas deles irão a um lugar invisível estabelecido por Deus e aí ficarão até a ressurreição, à espera dela; depois, reassumirão seus corpos numa ressurreição perfeita, isto é, nos seus corpos, da mesma forma que o Senhor ressuscitou, e irão à presença de Deus. "Nenhum discípulo é superior ao mestre, mas todo discípulo será perfeito como o seu mestre" (Lc 6,40). Como o nosso Mestre não voltou logo para o céu, mas esperou o tempo da sua ressurreição, estabelecido pelo Pai e indicado pela história de Jonas, e ressuscitando depois de três dias, foi assunto ao céu; assim nós devemos esperar o momento da nossa ressurreição estabelecido pelo Pai e prenunciado pelos profetas. Então, ressuscitando, serão levados ao céu os que, entre nós, o Senhor julgará dignos. -- Visto que alguns se deixam induzir ao erro por causa de discurso herético e ignoram as disposições de Deus e o mistério da ressurreição dos justos e do reino que será o prelúdio da incorruptibilidade - reino pelo qual os que serão julgados dignos se acostumarão paulatinamente a possuir Deus, - é necessário dizer sobre isso que os justos, ressuscitando, à aparição de Deus, nesta criação renovada, primeiramente receberão a herança que Deus prometeu aos pais e reinarão nela, e somente depois se realizará o juízo de todos os homens. Com efeito, é justo que recebam o prêmio do sofrimento naquela mesma natureza em que sofreram e foram provados de todos os modos, e que naquela mesma em que foram mortos por amor a Deus e suportaram a escravidão, recebam a vida e reinem. É necessário que a própria natureza seja reconduzida ao seu estado primitivo para servir, sem limites, aos justos. É o que o Apóstolo afirma na epístola aos Romanos, com estas palavras: "A criação em expectativa, anseia pela revelação dos filhos de Deus, porque foi submetida à vaidade, não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8,19-21). Cumprimento da promessa -- Desta forma, continua igualmente válida a promessa que Deus outrora fez a Abraão: "Levanta os olhos e, do lugar onde estás agora, olha para o norte e o sul, para o oriente e para o mar ocidental: toda a terra que vês, eu a darei a ti e a tua posteridade para sempre". E a seguir, diz: "Levanta-te e anda pelo seu comprimento e largura, porque eu ta darei". Contudo Abraão não recebeu na terra nenhuma herança, sequer do tamanho de uma pegada, mas andou sempre nela como estrangeiro e hóspede de passagem. E quando morreu Sara, sua mulher, e os heteus queriam dar-lhe gratuitamente um lugar para sepultá-la, não aceitou, mas comprou de Efron, filho de Seor, a gruta e o campo por quatrocentos siclos de prata, na espera do cumprimento da promessa de Deus para que não parecesse que recebia dos homens o que Deus lhe tinha prometido dar-lhe, dizendo: "À tua posteridade darei esta terra, do rio do Egito até o grande rio, o Eufrates" (Gn 13,14-15 17; 15,18). A propriedade da terra que Deus lhe tinha prometido e que não recebeu durante toda a sua estada aqui na terra, é necessário que a receba com a sua posteridade, isto é, os que temem a Deus e crêem nele, na ressurreição dos justos. A sua posteridade é a Igreja que, por meio do Senhor, recebe a filiação adotiva de Abraão, como dizia João Batista: "Deus pode fazer surgir destas pedras filhos a Abraão". Também o Apóstolo na sua epístola aos Gálatas diz: "Vós, irmãos, sois filhos segundo a promessa como Isaac". Na mesma epístola diz claramente que os que crêem em Cristo, receberam, por intermédio de Cristo, a promessa feita a Abraão: "As promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência". Não diz: "e aos descendentes", como referindo-se a muitos, mas como a um só: "e à tua descendência", que é Cristo. E para confirmar tudo isso, diz ainda: "Foi assim que Abraão creu em Deus e isto lhe foi levado em conta de justiça. Sabei, portanto, que os que são pela fé, são filhos de Abraão. Prevendo que Deus justificaria pela fé os gentios, a Escritura preanunciou a Abraão: em ti serão abençoadas todas as nações. De modo que os que são pela fé são abençoados juntamente com Abraão, que teve fé" (Mt 3,9; Gl 4,28; 3,16; 3,6-9). Portanto, os que são pela fé são abençoados juntamente com Abraão, que teve fé, e são os filhos de Abraão. Ora, Deus prometeu a herança da terra a Abraão e sua posteridade; mas, se nem Abraão nem a sua posteridade, que são os justificados pela fé, recebem agora a herança na terra, eles a receberão na ressurreição dos justos, porque Deus é verídico e estável em todas as coisas. É por isso que o Senhor dizia: "Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra" (Mt 5,4). -- Por isso o Senhor, pouco antes da paixão, para anunciar a Abraão e aos que estavam com ele, a abertura da herança, deu graças sobre o cálice, bebeu dele e o passou aos seus discípulos, dizendo: "Bebei todos vós, este é o meu sangue do Novo Testamento, que será derramado por muitos, para remissão dos pecados. Eu vos digo: eu já não beberei do fruto desta videira, até o dia em que o beberei novamente convosco no reino de meu Pai" (Mt 26,27-29). Ele renovará a herança da terra e restaurará o ministério da glória dos filhos de Deus, como diz Davi: "Ele renovará a face da terra". Prometendo beber do fruto da videira com os seus discípulos, mostrou juntamente a herança da terra na qual se bebe o novo fruto da videira e a ressurreição carnal dos seus discípulos. A carne que ressuscita renovada é a mesma que recebe a bebida nova, pois não se poderia entender que ele beba do fruto da videira num lugar supraceleste, nem que os que bebem não tenham um corpo de carne. Pertence à carne e não ao espírito a bebida que se extrai da videira. -- Por isso o Senhor dizia: "Quando ofereces um almoço ou um jantar não convides os ricos nem os amigos, vizinhos ou conhecidos para que eles te convidem em troca e te recompensem; mas convida coxos, cegos e mendigos e serás feliz, porque eles não têm com que te recompensar; receberás a recompensa no reino dos justos". E continua dizendo: "Quem abandonará campos, ou casa, ou pais, ou irmãos, ou filhos por minha causa, receberá o cêntuplo neste mundo e herdará a vida eterna no futuro" (Lc 14,12-13; Mt 19,29). Onde estão o cêntuplo nesta vida, os almoços oferecidos aos pobres, e os jantares restituídos? Isto acontecerá nos tempos do reino, isto é, no sétimo dia que foi santificado quando Deus descansou de toda obra que tinha feito; o verdadeiro sábado dos justos, no qual não executarão nenhuma obra terrena, mas estarão diante de mesa preparada por Deus que os alimentará com todas as iguarias. -- Realiza-se também a bênção de Isaac ao filho menor Jacó: "Eis que a fragrância de meu filho é como a fragrância de um campo de trigo maduro, abençoado pelo Senhor". O campo é o mundo, por isso acrescenta: "Que Deus te conceda o orvalho do céu, a fertilidade da terra, a abundância de trigo e de vinho. Que as nações te sirvam e os príncipes se prostrem diante de ti. Sê o senhor de teu irmão e que os filhos de teu pai se prosternem diante de ti. Seja maldito quem te amaldiçoar e bendito quem te abençoar!” (Gn 27,27 28-29). Se estas palavras não se referem ao reino definitivo, encontrar-se-ão dificuldades e contradições consideráveis, justamente aquelas nas quais se encontram e se debatem os judeus. De fato, Jacó, durante a sua vida, não somente não viu as nações servi-lo, mas, depois da bênção, ele teve que partir para servir o tio Labão, o sírio, durante vinte anos. E não somente não se tornou o senhor do irmão, mas foi ele que se prostrou diante de Esaú, quando, da Mesopotâmia, voltou para o pai, e lhe ofereceu muitos presentes. E como recebeu aqui a herança da abundância do trigo e do vinho ele que, por causa da carestia que assolou a terra onde vivia, teve que emigrar para o Egito e submeter-se ao faraó, que então reinava no Egito? Ora, a bênção de que se falava, sem dúvida se refere aos tempos do reino, em que reinarão os justos, depois de ter ressuscitado dos mortos, quando a criação, libertada e renovada, produzirá abundantemente toda espécie de alimentos, pelo orvalho do céu e a fertilidade da terra. Isto pode ser confirmado pelo fato de que os presbíteros que conheceram pessoalmente João, o discípulo do Senhor, lembravam tê-lo ouvido referir o que o Senhor ensinava sobre estes tempos, com estas palavras: "Virão dias em que crescerão videiras com dez mil cepas e sobre cada cepa dez mil ramos; sobre cada ramo dez mil rebentos; sobre cada rebento dez mil cachos; em cada cacho dez mil grãos; e de cada grão esmagado se farão vinte e cinco metretas de vinho. E quando algum dos santos for apanhar um cacho, outro lhe dirá: eu sou melhor, apanha-me e bendize ao Senhor por mim! Da mesma forma um grão de trigo produzirá dez mil espigas, cada espiga terá dez mil grãos e cada grão produzirá vinte e cinco libras de farinha pura. Também os outros frutos, sementes e ervas terão abundância igual, conforme a sua natureza; e todos os animais se servirão deste alimento, que receberão da terra, viverão em paz e harmonia entre si e estarão completamente submetidos aos homens". As profecias de Isaías -- Eis o que Pápia, discípulo de João, amigo de Policarpo, homem venerável, atesta por escrito no seu quarto livro - existem cinco livros compostos por ele - quando diz: "Tudo isto é crível para os que têm fé. A Judas, o traidor que não acreditava e que perguntava: Como o Senhor poderia criar tais frutos?, o Senhor respondeu: Vê-los-ão os que viverão naquele tempo". Isaías, profetizando sobre estes tempos, dizia: "O lobo pastará com o cordeiro, o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leão e o novilho pastarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos e juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi. A criança de peito porá a mão na cova das serpentes, na cova dos seus filhotes, e não lhe farão mal e não poderão mais fazer morrer ninguém sobre a minha montanha santa". E diz o mesmo, noutro lugar: "Os lobos e os cordeiros pastarão juntos e o leão comerá feno como o boi; para a serpente, a terra será como pão; não se fará mal nem violência no meu monte santo, diz o Senhor" (Is 11,6-9; 65,25). Eu sei que alguns se esforçam por aplicar estes textos de maneira metafórica àqueles homens selvagens, que, provindo de povos diversos e dedicados a ocupações de toda espécie, abraçaram a fé e vivem de acordo com os justos. Mas se isto vale para homens que chegaram a uma mesma fé, provenientes de vários povos, realizar-se-á também para estes animais, na ressurreição dos justos, como foi dito: Deus é rico em todas as coisas e é preciso que quando o mundo for restabelecido no seu estado primeiro, todos os animais selvagens obedeçam ao homem, lhe sejam submissos e voltem ao primeiro alimento que Deus lhes deu, assim como estavam submetidos a Adão antes da sua desobediência e comiam dos frutos da terra. Por outro lado, não é este o momento para provar que o leão se alimentará de feno, porque isso somente significa a riqueza e a fartura dos frutos: porque, se um animal como o leão se alimentará da palha, o que não alimentará o trigo cuja simples palha é suficiente para alimentar os leões? -- O próprio Isaías anunciou manifestamente a alegria que haverá na ressurreição dos justos, quando diz: "Os mortos ressuscitarão, os que estão nos sepulcros se levantarão, porque o orvalho que vem de ti é uma cura para eles". Igualmente diz Ezequiel: "Eis que abrirei os vossos túmulos, e vos farei subir dos vossos túmulos, ó meu povo. Porei o meu espírito dentro de vós e revivereis; eu vos reporei em vossa terra, e sabereis que eu sou o Senhor". O mesmo profeta diz ainda: "Eis o que diz o Senhor: Reunirei Israel de todas as nações, por onde foram espalhados, revelarei entre eles a minha santidade aos olhos das nações e habitarão na terra que dei ao meu servo Jacó. Nela habitarão em segurança, edificarão casas e plantarão vinhas; habitarão em segurança, quando executarei o julgamento contra todos os que os desprezam dentre os seus vizinhos, e saberão que eu sou o Senhor, Deus deles e dos seus pais". Ora, indicamos mais acima, que a Igreja é a posteridade de Abraão; por isso, para que saibamos que tudo isso se realizará na Nova Aliança, que reunirá os que são salvos de todas as nações, suscitando das pedras filhos para Abraão, Jeremias diz: "Eis que dias virão, diz o Senhor, em que não se dirá mais: Viva Javé que tirou os israelitas do Egito. Em lugar disso dirão: Viva o Senhor que fez subir Israel da terra do Norte e de todas as regiões onde os tinha dispersado e os reconduzirá à terra deles, que dera a seus pais" (Is 26,19; Ez 37,12-14; 28,25-26; Jr 16,14-15; 23,7-8). -- Que toda criatura deva, conforme a vontade de Deus, crescer e chegar à plenitude de seu desenvolvimento, para produzir e amadurecer os frutos, é o que diz Isaías: "Sobre todo monte alto e sobre todo outeiro elevado, haverá cursos de água e mananciais, no dia da grande matança, ao ruírem as fortalezas. Então a luz da lua será igual à luz do sol, e a luz do sol será sete vezes mais forte, como a luz de sete dias reunidos, no dia em que o Senhor pensar a ferida de seu povo e curar a dor da tua praga" (Is 30,25-26). A "dor da praga" é aquela com que foi atingido o homem no princípio, quando em Adão desobedeceu, e é a morte, da qual Deus nos curará, ressuscitando-nos dentre os mortos e restabelecendo-nos na herança dos pais, como diz ainda Isaías: "Porás a tua confiança no Senhor e te fará prosperar sobre toda a terra; ele te alimentará com a herança de Jacó, teu pai". É o mesmo que diz o Senhor: "Bem-aventurados os servos que o Senhor na sua vinda encontrar vigilantes. Na verdade vos digo que se porá o avental, fá-los-á sentar à mesa, e passando diante deles servi-los-á. E, se chegar pela tarde e os encontrar assim, serão felizes, porque fá-los-á sentar à mesa e servi-los-á. E se chegar à segunda ou à terceira vigília, serão felizes". A mesma coisa diz João no Apocalipse: "Bem-aventurado e santo quem participa na primeira ressurreição". Isaías anunciou também o tempo em que acontecerão estas coisas: "E eu disse: Até quando, Senhor? Até que as cidades estejam despovoadas por falta de habitantes, bem como as casas por falta de homens e a terra fique deserta. Depois disto o Senhor afastará os homens e os que ficarem se multiplicarão". Daniel diz o mesmo: "E o reino e o império e as grandezas dos reinos sob todos os céus serão entregues ao povo dos santos do Altíssimo. Seu império é império eterno, e todos os impérios o servirão e lhe prestarão obediência". E para que não se pense que esta promessa se refere ao tempo presente, foi dito ao profeta: "Tu, vem, para receber a tua parte, no fim dos dias" (Is 58,14; Lc 12,37-38; Ap 20,6; Is 6,11-12; Dn 7,27; 12,13). -- Que estas promessas não se dirigiam somente aos profetas e aos pais, e sim às igrejas reunidas de entre todas as nações, que o Espírito chama de ilhas; que elas sejam postas no meio do alvoroço e provem as tempestades das blasfêmias; que sejam porto de salvação para os que estão em perigo e refúgio para os que amam a verdade e se esforçam por fugir do abismo do erro, é o que diz Jeremias: "Nações, escutai a palavra do Senhor, anunciai-a às ilhas distantes. Dizei: Aquele que dispersa Israel o reunirá e o guardará como o pastor a seu rebanho. Porque o Senhor resgatou Jacó, libertou-o da mão do mais forte. Eles virão gritando de alegria sobre os altos de Sião, afluirão aos bens do Senhor: o trigo, o mosto, o azeite, as ovelhas e os bois; sua alma será como árvore frutífera, e não terão mais fome. Então as moças se alegrarão na companhia dos jovens e dos velhos. Converterei seu luto em alegria, eu os alegrarei e engrandecerei, e inebriarei a alma dos sacerdotes filhos de Levi, e o meu povo se saciará com os meus bens" (Jr 31,10-14). Mostramos no livro precedente que os levitas e os sacerdotes representam todos os discípulos do Senhor que no templo violam o sábado e ficam sem culpa. Essas promessas, portanto, significam com toda evidência o festim que esta criação, que recebeu a promessa de Deus, dará aos justos no reino. -- Isaías diz ainda a respeito de Jerusalém e de seu rei: "Bem-aventurado quem tem posteridade em Sião e parentes em Jerusalém. Eis que um Rei justo reinará e os príncipes reinarão com justiça". E acerca dos preparativos para a sua reconstrução, diz: "Eis que te preparo carbúnculo como pedras e safira para as fundações, jaspe para as torres, cristal para as portas e pedras preciosas para as muralhas. Todos os teu filhos serão instruídos pelo Senhor e viverão em grande paz; e serás edificada na justiça". O mesmo profeta diz ainda: "Regozijar-me-ei em Jerusalém, alegrar-me-ei em meu povo. Nela não se tornará a ouvir choro nem lamentação. Não haverá mais criancinhas que tenham morte prematura nem velhos que não completem o seu tempo. Os jovens terão cem anos e o pecador ao morrer aos cem anos será amaldiçoado. Construirão casas e eles mesmos as habitarão; plantarão vinhas e eles mesmos comerão seus frutos e beberão seu vinho. Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto, pois a duração dos dias de meu povo será como os dias da árvore da vida; consumirão eles mesmos o fruto do trabalho de suas mãos" (Is 32,1; 54,11-14; 65,18-22). O reino dos justos (A questão do “milenarismo” ireneano é a tese mais criticada no autor. Ele é milenarista, apesar de não estar preocupado em precisar datas. Está convencido da vinda de um reino temporal do Messias: “prelúdio de imortalidade”, “mundo renovado”. Como Pápias, Justino, Tertuliano e Lactâncio, também Ireneu crê que, após o sexto milênio da criação, o Senhor reinará na terra com os justos ressuscitados, durante mil anos. Depois virão o juízo universal e o Reino eterno. É bem verdade que em Demonstração, 61, parece ter ele superado esta teoria milenarista, exposta principalmente nesta obra maior, entre os números 32 e 35 deste quinto livro). -- Se alguns quiserem interpretar estas profecias em sentido alegórico não chegarão a acordo entre si sobre todos os pontos e serão refutados pelas próprias palavras sobre as quais discutem e dizem: "Quando as cidades das gentes estarão despovoadas por falta de habitantes e as casas por falta de homens e a terra ficará deserta". "Eis, pois, diz Isaías, o dia do Senhor terrível, cheio de furor e de ira. Ele vem para tornar deserta a terra e exterminar os pecadores". Ele diz ainda: "Será eliminada, para que não veja a glória do Senhor". E depois que isso tiver acontecido, diz: "O Senhor afastará os homens e os que ficarem se multiplicarão sobre a terra". "Construirão casas que eles mesmos habitarão e plantarão vinhas cujos frutos eles mesmos comerão" (Is 6,11; 13,9; 26,10; 6,12; 65,21). Todas estas profecias se referem, sem contestação, à ressurreição dos justos, que se realizará depois do advento do Anticristo e da eliminação de todas as nações submetidas à sua autoridade, quando os justos reinarão sobre a terra, aumentarão pela aparição do Senhor e se acostumarão, por ele, a participar da glória do Pai e, com os santos anjos, participarão da vida, da comunhão e da unidade espirituais, neste reino. Os que o Senhor encontrar na carne, esperando-o vindo dos céus, depois de ter suportado a tribulação e escapado das mãos do ímpio, são aqueles dos quais fala o profeta: "Os abandonados sobre a terra se multiplicarão", e também todos os que, dentre os pagãos, o Senhor tiver preparado, para que, após ser deixados, se multipliquem sobre a terra, sejam governados pelos santos e sirvam a Jerusalém. O profeta Jeremias falou mais claramente ainda sobre Jerusalém e o reino que será estabelecido nela, dizendo: "Dirige o teu olhar para o oriente, Jerusalém, e vê a alegria que te vem da parte de Deus! Olha, estão chegando teus filhos a quem vistes partir; eles vêm, reunidos do nascente ao poente pela palavra do Santo, jubilando com a glória de Deus. Despe, Jerusalém, a veste da tua tristeza e desgraça e reveste para sempre a beleza da glória que vem do teu Deus. Cobre-te com o manto da justiça e cinge a cabeça com o diadema da glória eterna. Pois Deus mostrará o teu esplendor a toda a terra que está debaixo do céu e te chamará com o nome que vem de Deus para sempre: Paz-da-justiça e Glória-da-piedade. Levanta, Jerusalém, coloca-te sobre o alto e olha na direção do oriente: vê teus filhos, reunidos desde o pôr-do-sol até o nascente à ordem do Santo, alegres por Deus ter-se lembrado deles. Eles saíram de ti a pé, arrastados por inimigos, mas Deus os reconduziu a ti, carregados de glória, como por um trono real. Pois Deus ordenou que sejam abaixadas toda alta montanha e as colinas eternas, e se encham os vales para aplainar a terra, a fim de que Israel possa acorrer com segurança, à glória de Deus. Também as florestas e todas as árvores aromáticas darão sombra a Israel, por ordem de Deus. Pois Deus conduzirá Israel com alegria, à luz da sua glória, com a misericórdia e a justiça que dele procedem" (Br 4,36-5,9). -- Todas estas coisas não se referem a mundos supracelestes, porque diz: "Deus mostrará o teu esplendor a toda a terra que está debaixo do céu", mas aos tempos do reino, quando a terra será renovada por Cristo e Jerusalém será reconstruída conforme o modelo da Jerusalém do alto, da qual o profeta Isaías disse: "Eis que desenhei teus muros nas minhas mãos e tu me estás sempre diante dos olhos". E o Apóstolo, escrevendo aos Gálatas, diz: "A Jerusalém do alto é livre e é a mãe de todos nós". Neste momento não pensa no Éon errante, nem em Potência separada do Pleroma chamada Prounicos, e sim na Jerusalém desenhada nas mãos de Deus. E é esta mesma que João, no Apocalipse, viu descer a uma terra nova. De fato, depois dos tempos do reino, ele diz, "eu vi um grande trono branco e aquele que estava assentado nele; o céu e a terra fugiram de diante dele e não se encontrou mais lugar para eles". Então ele descreve a ressurreição e o juízo universais, dizendo: "Eu vi os mortos, os grandes e os pequenos. Pois a morte restituiu os mortos que se encontravam nela; a morte e o inferno restituíram os que estavam neles. E foram abertos os livros. Foi aberto também o livro da vida e os mortos foram julgados de acordo com o que estava escrito nestes livros e conforme as suas obras. Depois, a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo, que é a segunda morte" (Is 49,16; Gl 4,26; Ap 20,11 12-14). É o que se chama Geena e o Senhor o chama fogo eterno. "E quem não estava escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo". A seguir diz: "Eu vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a terra se foram, e o mar já não existia. E vi a cidade santa, a nova Jerusalém descer do céu, enfeitada como esposa para o seu esposo. E ouvi uma voz forte que saía do trono e dizia: Eis a morada de Deus com os homens e habitará com eles e eles serão o seu povo; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. E enxugará toda lágrima dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem gritos, nem dores, porque as coisas de antes passaram". É o que já dissera Isaías: "Haverá céu novo e terra nova; não se lembrarão mais das primeiras coisas e elas não voltarão à memória, mas encontrarão nela a alegria e o regozijo" (Cf Mt 25,41; Ap 20,15; 21,1-4; Is 65,17-18). Foi isso também que o Apóstolo disse: "Com efeito, passa a figura deste mundo". E o Senhor: "O céu e a terra passarão". Quando terão passado estas coisas, diz João, o discípulo do Senhor, descerá a Jerusalém do alto sobre uma terra nova, como esposa adornada para o seu esposo, e ela será o tabernáculo de Deus, em que Deus habitará com os homens. A Jerusalém que se encontrava na terra de antes é a imagem da Jerusalém em que os justos se exercitarão para a incorruptibilidade e se prepararão para a salvação. Foi deste tabernáculo que Moisés recebeu o modelo no monte. E tudo isto não pode ser interpretado alegoricamente, mas se deve crer tudo verdadeiro, certo e real, realizado por Deus para a alegria dos homens justos. Como é realmente Deus que ressuscita o homem e não em sentido alegórico, como demonstramos de várias maneiras. E como realmente ressuscita, assim realmente se exercitará na incorruptibilidade e crescerá e amadurecerá nos tempos do reino para ser capaz da glória de Deus Pai. Em seguida, renovadas todas as coisas, habitará verdadeiramente na cidade de Deus. Com efeito, diz João: "Aquele que está assentado no trono diz: Eis que faço novas todas as coisas. E o Senhor diz: Escreve tudo isso, porque estas palavras são certas e verdadeiras. E me disse: Assim foi feito" (1Cor 7,31; Ap 21,5-6). Nada de mais justo. -- Sendo homens reais também real deve ser a sua recolocação, e não cairão no nada, mas antes, progredirão no ser. Porque nem a substância nem a matéria da criação serão destruídas - é verdadeiro e estável quem as fez - mas passará a figura deste mundo, isto é, aquilo em que se deu a transgressão, porque o homem envelheceu nele. Eis por que esta figura foi feita temporária, visto que Deus já sabia de todas as coisas, como demonstramos no livro precedente, onde explicamos, enquanto possível, o por que da criação de um mundo temporário. Mas quando esta figura tiver passado e o homem estiver maduro para a incorruptibilidade a ponto de não poder mais envelhecer, haverá novo céu e nova terra, em que morará o homem novo, conversando com Deus de maneira sempre nova. E isto durará para sempre e sem fim, como diz Isaías: "Como o céu novo e a terra nova que criarei durarão para sempre diante de mim, diz o Senhor, assim perdurará a vossa descendência e o vosso nome" (Is 66,22). E, como dizem os presbíteros, será então que os que forem julgados dignos de estar no reino dos céus entrarão aí, enquanto outros gozarão das delícias do paraíso e outros ainda possuirão o esplendor da cidade; mas Deus será visto de todos os lugares conforme o merecimento dos que o verão. -- Esta será a diferença das moradas entre os que frutificaram o cem por um, o sessenta por um e o trinta por um: os primeiros serão elevados aos céus, os segundos permanecerão no paraíso e os outros morarão na cidade. Foi este o motivo pelo qual o Senhor disse que há muitas moradas na casa de seu Pai. Com efeito, tudo é de Deus que dá a todos a sua morada; como diz o seu Verbo, o Pai as distribuirá em conformidade com os merecimentos presentes e futuros. Este é o salão de festa em que tomarão lugar e se banquetearão os convidados às núpcias. Estes são, na palavra dos presbíteros, discípulos dos apóstolos, a ordem e a disposição dos que se salvam, e os degraus pelos quais passarão: pelo Espírito subirão ao Filho e, depois, pelo Filho, ao Pai, quando o Filho entregar a sua obra ao Pai, conforme disse o Apóstolo: "É necessário que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos para escabelo dos seus pés; e o último inimigo a ser vencido será a morte. Nos tempos do reino o homem justo que vive na terra esquecerá de morrer. Mas, continua o Apóstolo, quando ele disser: Tudo está submetido, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos" (1Cor 15,25-28). CONCLUSÃO -- Por isso João previu de forma precisa a primeira ressurreição, que é a dos justos, e a herança da terra que se deve realizar no reino, de pleno acordo com o que os profetas já tinham profetizado acerca desta ressurreição. E é exatamente também o que o Senhor ensinou, quando prometeu beber a nova taça com os discípulos, no reino. Também quando disse: "Virão dias em que os mortos que estão nos sepulcros ouvirão a voz do Filho do homem e ressuscitarão para a vida os que tiverem praticado o bem e os que tiverem feito o mal ressuscitarão para a condenação" (Jo 5,25 28-29). Com estas palavras afirma que os que tiverem feito o bem serão os primeiros a ressuscitar para ir no lugar do repouso e que em seguida ressuscitarão os que devem ser julgados. É o que já está escrito no Gênesis, segundo o qual a consumação deste mundo realizar-se-á no sexto dia, isto é, no sexto milênio. Haverá depois o sétimo dia, o dia do repouso, acerca do qual Davi diz: "Este é o lugar do meu repouso e os justos entrarão aí" (Sl 132,14; 118,20); este sétimo dia é o sétimo milênio, o do reino dos justos em que os justos se prepararão para a incorruptibilidade após o que será renovada a criação por meio daqueles aos quais foi reservada esta tarefa. E o Apóstolo afirmou que a futura criação seria liberta da escravidão da corrupção para tomar parte da liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Em tudo isto é indicado um só e idêntico Pai; aquele que modelou o homem; aquele que prometeu aos pais a herança da terra; aquele que a concederá na ressurreição dos justos e cumprirá as suas promessas no reino de seu Filho; aquele, enfim, que, na sua bondade, dará o que olho não viu nem ouvido ouviu nem passou pela cabeça de nenhum homem. Com efeito, único é o Filho que cumpriu a vontade do Pai, único é o gênero humano em que se cumprem os mistérios de Deus, que os anjos desejam ver, porque não conseguem perscrutar a Sabedoria de Deus pela qual a sua criatura, conformada e incorporada ao Filho, é levada à perfeição; de forma que, enquanto o Primogênito, isto é, o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se à imagem e semelhança de Deus..

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